1. EDUCAÇÃO E DESINFORMAÇÃO
Cada vez mais brasileiros têm acesso à internet. Segundo dados da PNAD Contínua organizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, 2019), 78,3% dos brasileiros com mais de 10 anos utilizaram a internet em 2019. A internet possibilitou tanto uma democratização da informação, estimulando inovação e empreendedorismo, como uma enxurrada de desinformação e relativismo, evidenciado pela epidemia de notícias falsas da atualidade (KAKUTANI, 2018). Um ponto a ser considerado, no aumento da desinformação, é que a barreira de entrada na mídia, isto é, a dificuldade de se publicar uma informação, caiu vertiginosamente (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017), possibilitando um modelo de vários emissores, diminuindo os intermediários e com isso os filtros e a verificação. A disseminação de desinformação é um problema atual, porque suscita uma polarização da sociedade e uma descrença na ciência (LEWANDOWSKY; ECKER; COOK, 2017). Este ensaio tem como objetivo discutir o papel da educação nesse cenário. Para isso faz-se necessário uma contextualização sobre fake news, pós-verdade e desinformação.
Há diversos termos utilizados para referir-se à disseminação de informações falsas na internet, como fake news e pós-verdade. Meneses (2018) define fake news como um documento deliberadamente falso publicado on-line e com o objetivo de manipular os consumidores. Para Gelfert (2018) são apresentações deliberadas de alegações falsas como notícias, as quais são projetadas para serem enganosas. Essas definições de fake news apontam para uma intenção de enganar. Cooke (2017) afirma que é difícil discernir as motivações por trás de um compartilhamento de informações falsas em um ambiente on-line onde existe uma abundância de informação.
A definição de pós-verdade, segundo o Dicionário Oxford, que a consagrou como palavra do ano em 2016, é que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública que apelos à emoção e às crenças pessoais. Lewandowsky, Ecker e Cook (2017) apontam que o mal-estar da pós-verdade é impulsionado por motivações políticas para criação de realidades alternativas que não se conformam com os padrões que se apoiam em evidências.
Há diversas definições para a desinformação, contudo Habgood-Coote (2019) elenca três argumentos do porquê a academia e os jornalistas deveriam evitar os termos fake news e pós-verdade: 1) esses termos não têm significados públicos estáveis, o que implica que são sensíveis ao contexto; 2) esses termos são desnecessários, porque já temos um vocabulário rico neste campo como mentira, não confiável, distorção de fatos e tendencioso; 3) fake news e pós-verdade foram transformados em armas para fins políticos e legitima a propaganda antidemocrática.
Nesse ensaio, será considerado o termo desinformação que inclui todas as informações falsas ou imprecisas que são divulgadas nas redes sociais (WU et al., 2019). A desinformação não é um fenômeno isolado (BUCKINGHAM, 2019), pois precisa ser entendida em um contexto social, econômico e cultural amplo. Para a Comissão Europeia (2018) a desinformação está erodindo a confiança pública, ameaçando a integridade dos processos eleitorais e intensificando a polarização social.
O cenário de polarização política que vivemos também contribui para o aumento e a disseminação de desinformação (boyd4, 2018). O enfraquecimento de nossas normas democráticas está enraizado na polarização sectária extrema que se estende além das diferenças políticas e adentra conflitos de raça e cultura (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018). Klein (2020) complementa que um aumento na polarização social nos EUA decorre de um acirramento político e de uma junção das identidades partidárias com questões ideológicas, culturais, geográficas, raciais e religiosas.
A polarização e o enfraquecimento da democracia têm relação com o negacionismo científico. Duarte e César (2020) apontam que a negação da ciência é um fenômeno político porque, muitas vezes, está associado com a extração de vantagens por parte de grupos econômicos interessados em negar ou questionar teses e conhecimentos científicos. A negação de conceitos e teorias consensualizados pela ciência passou a ganhar força e visibilidade, sobretudo a partir da ascensão mundial do conservadorismo de ultradireita (VILELA; SELLES, 2020). Para essas autoras, trata-se de um processo sofisticado de produção de desinformação, pautado em uma visão reducionista da ciência que despreza os complexos processos de produção do conhecimento científico, manipulando a opinião pública para finalidades espúrias.
Há um descompasso da escola com as formas de comunicação do mundo contemporâneo. A escola reproduz o modelo do texto impresso: sucessivo e linear, mecânico e unidirecional, enquanto os estudantes estão acostumados a tomar suas decisões com base na seleção de informações da rede que eles valorizam, estruturam e integram com outras informações (LAPA; PINA; MENOU, 2019). Assim, a escola tem sido convocada, cada vez mais, a se colocar nesse debate sobre quais iniciativas podem ajudar os estudantes a lidar com a desinformação. Segundo Lessenski (2019), uma educação sólida ajuda a evitar a crença em notícias falsas. Além disso, pessoas com mais anos de escolaridade tendem a acreditar menos em teorias da conspiração (VAN PROOIJEN, 2017). A pesquisa do DataSenado (2019) apontou que quanto mais alto o nível de escolaridade, maior é a chance de que o indivíduo verifique se a notícia é verdadeira antes de compartilhá-la.
Nesse contexto, a educação tem um papel a desempenhar no combate à desinformação. Como trata-se de um problema que coloca em xeque o que é conhecimento, mina a confiança na ciência e contribui para a polarização da sociedade, é preciso de diferentes frentes de ação. Sugere-se três pontos em que a educação pode contribuir: letramento midiático, reforço na confiança na ciência e estímulo ao diálogo para lidar com a polarização.
1.1 Letramento midiático
Segundo a Comissão Europeia (2007), letramento midiático trata-se da capacidade de acessar, de compreender e de avaliar criticamente diferentes aspectos da mídia e dos conteúdos da mídia e de criar comunicações em uma variedade de contextos. Bulger e Davison (2018) apontam que o letramento midiático tornou-se um centro de gravidade para combater as notícias falsas. Esses autores apontam que uma ampla gama de partes interessadas - de educadores a legisladores, filantropos a tecnólogos - direcionou recursos significativos para programas de letramento midiático. Observa-se pela produção acadêmica da última década uma preocupação crescente em desenvolver habilidades para identificação de notícias falsas. Santos e Almeida (2020) realizaram um levantamento bibliométrico das produções desenvolvidas no período de 2013 a 2019, disponíveis no repositório Science Direct sobre educação e fake news e identificaram entre os 14 artigos selecionados que o principal tópico abordado foi a habilidade para a identificação de notícias falsas.
No entanto, apesar da importância do letramento midiático nesse processo de combate à desinformação, creditar todos os esforços apenas a esta ação pode simplificar demais o problema e subestimar a dificuldade da tarefa como afirmam Buckingham (2019) e boyd (2018). Ambos os autores concordam que o letramento midiático, quando mal implementado, pode se desdobrar em uma desconfiança generalizada da mídia, abrindo espaço para formas alternativas de acesso à informação. boyd (2018) aponta que parte dos estadunidenses já têm uma desconfiança das notícias da mídia tradicional, como a CNN ou New York Times, ao mesmo tempo, muitos jovens têm aprendido a lidar com a mídia fora da sala de aula, ganhando seguidores no Youtube ou pensando na sua própria representação no Instagram. Assim, reforçar uma desconfiança na mídia tradicional pode levar esses jovens a buscarem um tópico em destaque na mídia em fontes alternativas que propagam teorias da conspiração.
Alguns autores ressaltam especificidades do letramento midiático para que esse seja efetivo. Mihailidis e Viotty (2017) argumentam que o letramento midiático, como resposta popular para ajudar a cultivar consumidores mais críticos de mídia, deve ser reposicionado no contexto atual para responder a uma era de partidarismo e desconfiança. Jones-Jang, Mortensen e Liu (2021) apontam que a alfabetização informacional é mais relevante na identificação de notícias falsas do que o letramento midiático, dado que a alfabetização informacional concentra-se nas habilidades das pessoas para navegar e encontrar informações on-line que sejam verificadas e confiáveis, enquanto o letramento midiático abrange uma questão mais geral do entendimento crítico da mídia.
Em resumo, o letramento midiático é uma frente de ação da educação no combate à desinformação. Trata-se de uma ferramenta voltada para o entendimento do cenário midiático e das questões do campo do jornalismo como a checagem de um fato. A educação tem um grande trabalho na formação de cidadãos capazes de fazer a leitura crítica dos conteúdos difundidos nas mídias atuais para que fiquem atentos às possíveis estratégias de manipulação presentes nas redes (LAPA; PRETTO, 2019). Por mais que seja fundamental que os estudantes saibam checar a veracidade de uma notícia, há outros dois grandes desdobramentos da desinformação que a educação não deve ignorar: o negacionismo científico e a polarização da sociedade.
1.2 Negacionismo científico
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabeleceu como um dos pilares do Ensino Superior o estímulo do desenvolvimento do espírito científico. No entanto, a experiência recente com a Covid-19 serve para exemplificar como estamos distantes desse espírito científico, uma vez que médicos com Ensino Superior completo divulgaram tratamentos para o coronavírus sem comprovação científica. Os vídeos desses médicos brasileiros (BARBOSA et al., 2021) com desinformação sobre a Covid-19 tiveram ao menos 30,8 milhões de visualizações no YouTube de janeiro de 2020 a fevereiro de 2021, os conteúdos dos vídeos defendem o uso de drogas sem eficácia comprovada para a doença ou alertam contra o uso de máscaras. Esse levantamento do Radar Aos Fatos também apontou que mais da metade dessa audiência (52%) veio de entrevistas publicadas no site por veículos da grande imprensa, como a rádio Jovem Pan, a TV Record, a CNN Brasil, entre outros.
Mello (2020), como jornalista, faz uma autocrítica à imprensa já que a ideia da obrigação de ouvir sempre os dois lados tem incorrido em uma falsa equivalência. Kakutani (2018) ressalta que essa falsa equivalência foi resultado da confusão que os jornalistas fizeram ao terem cedido à pressão dos grupos de interesse de direita para apresentar “ambos os lados”. O´Connor e Weatherall (2019) alertam que não é papel dos jornalistas arbitrar divergências científicas; é para isso que serve a revisão por pares e o processo científico, justamente porque o julgamento de especialistas, muitas vezes, é essencial. Nesse sentido, Donovan e boyd (2019) ressaltam a importância do silêncio estratégico: um mecanismo de discrição editorial das mídias tradicionais que pesam os benefícios e os custos de amplificar uma determinada voz em relação aos valores sociais mais amplos.
Para Cardoso e Gurgel (2019), os movimentos de negação das ciências são frutos de embates sociais que demandam uma problematização sobre a mídia e o acesso ao conhecimento. Diante disso, para uma maior confiança na ciência é importante que os cientistas consigam se comunicar com o público em geral. No Brasil, tivemos exemplos de fontes confiáveis de informação no Youtube sobre a pandemia da Covid-19, como Dráuzio Varella e Atila Iamarino. Esses especialistas da saúde e da ciência transformaram-se em influenciadores digitais populares nas suas esferas de atuação e contribuíram para esclarecer algumas controvérsias envolvendo o novo coronavírus (ROBALINHO; BORGES; PÁDUA, 2020). Durante a pandemia, houve muitas transmissões ao vivo (lives) organizadas por grupos de pesquisa, faculdades e universidades que debateram em profundidade inúmeros temas relacionados à pandemia. Algumas lives no Instagram colaboraram para a disseminação de informações confiáveis na educação de profissionais da saúde para prevenção, diagnóstico e cuidado com a Covid-19 (NEVES et al., 2021). Além disso, é importante que exista uma divulgação científica culturalmente diversa, cuja afinidade com diferentes comunidades aumente sua credibilidade e a ressonância do conteúdo a diferentes grupos (KAHAN et al., 2012).
Infelizmente, durante a pandemia, os expoentes do negacionismo científico foram alguns políticos. Um estudo (EVANEGA et al., 2020) realizado a partir de 38 milhões de publicações da mídia tradicional em inglês a respeito da desinformação da Covid-19 aponta que o ex-presidente norte-americano Donald Trump foi o maior propagador de desinformação, sendo o tópico mais disseminado aquele relativo às curas milagrosas. Hart, Chinn e Soroka (2020) estudaram a cobertura de notícias de jornais norte-americanos sobre Covid-19 nos meses de março, abril e maio de 2020. Esses autores apontam que a cobertura foi polarizada e politizada, sendo os políticos mais mencionados que os cientistas na cobertura dos jornais. No Brasil, infelizmente, durante o governo de Jair Messias Bolsonaro houve uma estratégia de negacionismo como política na gestão da pandemia, ignorando recomendações científicas como o distanciamento social e propagando medicamentos sem comprovação científica como a cloroquina (DUARTE; CÉSAR, 2020).
Por fim, há inúmeros desafios sobre o ensino de ciências no Brasil. Segundo dados do Censo Escolar 2019 (BRASIL, 2020b), apenas 41% das escolas públicas estaduais de Ensino Médio possuíam laboratório de ciências. Há também uma falta de professores com a formação adequada para lecionar algumas disciplinas de ciências. Dados do Censo Escolar 2020 (BRASIL, 2021) mostram que menos da metade (49,6%) dos professores de física do Ensino Médio das escolas brasileiras possuem licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) em física. Esses problemas acabam se revelando no baixo desempenho do Brasil em ciências no Pisa. Na edição de 2018 (BRASIL, 2020a), 55% dos estudantes do Brasil ficaram abaixo do nível 2 em Ciência, o que é considerado o nível básico de proficiência nesta área. Ou seja, segundo esta avaliação, mais da metade dos estudantes brasileiros de 15 anos não apresentaram a habilidade de fazer distinção entre questões científicas e não científicas, além de não saber identificar a evidência que apoia uma afirmação científica.
1.3 Polarização
A polarização decorrente de posições cada vez mais extremas que desconsideram a possibilidade de ouvir uma outra opinião e potencializada pelas redes sociais é um problema grave que se relaciona com a desinformação. Há uma correlação entre a polarização política e a difusão de notícias falsas (RIBEIRO et al., 2017). Diferentes fatores contribuíram para uma polarização nas redes sociais como os filtros-bolha, a exposição seletiva, viés de disponibilidade entre outros (SPOHR, 2017). Segundo Spohr (2017), a polarização ideológica propicia que pessoas de grupos com pensamento extremamente homogêneo ignorem qualquer fato que contraponha um argumento deste grupo, o que gera um impacto negativo para a democracia. Além disso, a falta de civilidade nos comentários on-line pode contribuir para aumentar a polarização que divide a sociedade (ANDERSON et al., 2018). Para boyd (2018), a escola deve educar para desenvolver a habilidade de seus estudantes de aprender a ouvir e de compreender a perspectiva de outras pessoas.
Ortellado e Ribeiro (2018) apontam que a esfera pública brasileira dividiu-se principalmente após as manifestações de junho de 2013, com um polo estruturando-se no campo antipetista, aglutinados na pauta anticorrupção, e o outro a esquerda formado por movimentos sociais como negro e feministas. Para esses autores (2018), a polarização do debate político levou a uma redução da diversidade do debate e a criação de um ambiente propício para difusão de informações que corroboram crenças previamente aceitas.
É possível verificar que o problema da polarização evidencia-se com a pandemia. Charron, Lapuente e Rodríguez-Pose (2020) apontam que aquelas localidades em que houve maior polarização – divisão na confiança política entre apoiadores e oponentes dos governos – foram observados um número maior de mortes relacionadas à Covid-19 durante a primeira onda da pandemia. No Brasil, também há evidências de que essa polarização gerou impactos em relação à pandemia. Fernandes et al. (2020) indicam que, nos municípios brasileiros, a maior proporção de votos em Bolsonaro no ano de 2018 está positivamente associada a um maior número de óbitos por Covid-19 e uma menor taxa de isolamento social efetivo nesses municípios. Soares et al. (2021) estudaram mensagens em grupos do WhatsApp no Brasil, de março a abril de 2020, e identificaram que a desinformação acerca do vírus foi enquadrada politicamente, sendo utilizada para minimizar a pandemia e depreciar os opositores de Bolsonaro, aproveitando-se da polarização política do país. A polarização é uma grave ameaça à civilidade, segundo Levitsky e Ziblatt (2018, n.p):
A polarização pode destruir as normas democráticas. Quando diferenças socioeconômicas, raciais e religiosas dão lugar a sectarismo extremo, situação em que as sociedades se dividem em campos políticos cujas visões de mundo são não apenas diferentes, mas mutuamente excludentes, torna-se difícil sustentar a tolerância.
Outra questão relativa à desinformação são as teorias da conspiração que podem contribuir para a polarização política (DYRENDAL; JOLLEY, 2020). West (2018) aponta que essas teorias, em geral, tentam explicar uma situação ou um evento como resultado de uma trama secreta realizada por uma poderosa organização. Segundo esse autor (2018), essas teorias distraem a sociedade de problemas reais e diminuem a participação dos cidadãos na democracia. O que explica parte da adesão às teorias da conspiração é que essas são um ótimo fator de coesão (EMPOLI, 2019).
Um ponto de entrada para as teorias da conspiração e para a radicalização podem ser os vídeos do Youtube (ROOSE, 2019). Para Córdova (2019), os vídeos do Youtube são recomendados baseados nas métricas que aumentam a possibilidade do próximo vídeo ser assistido, por isso conteúdos extremistas e teorias da conspiração costumam chamar mais a atenção e ter mais chance de serem assistidos. Assim, a lógica do Youtube é de reter os usuários na plataforma por mais tempo para conseguir mais dados e maior exposição desses à publicidade. A indignação, o medo, o preconceito, o insulto e a polêmica racista propagam- se e proporcionam muito mais atenção e engajamento nas redes (EMPOLI, 2019). Assim, vídeos polêmicos sobre uma visão revisionista ou contestadora da história têm ganhado notoriedade e público no Youtube, em detrimento da inexpressividade das produções sobre história feitas por instituições públicas ou universitárias nessa plataforma (FONTOURA, 2020).
Por fim, reconhecemos que lidar com a polarização não é um trabalho fácil. Requer disponibilidade para o diálogo e uma abertura respeitosa aos outros (FREIRE, 1996). Caso a escola deixe de ser um espaço em que os estudantes sintam-se seguros para debater ideias, teremos deixado de cumprir um dos objetivos da LDB quanto a formação básica do cidadão mediante o fortalecimento dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
1.4 Contribuições da Educação
Diante desse cenário de desinformação, negacionismo científico e polarização social, a educação pode atuar de diferentes maneiras. Em relação ao letramento midiático, na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), há uma habilidade no Ensino Médio que trabalha especificamente a checagem notícias falsas no campo jornalístico:
(EM13LP38) Usar procedimentos de checagem de fatos noticiados e fotos publicadas (verificar/avaliar veículo, fonte, data e local da publicação, autoria, URL, formatação; comparar diferentes fontes; consultar ferramentas e sites checadores etc.), de forma a combater a proliferação de notícias falsas (fake news).
(BRASIL, 2018, p. 511).
Trata-se de uma habilidade relevante, já que segundo dados da pesquisa TIC Kids On- line Brasil 2019 (CETIC.BR, 2020), 33% dos usuários da internet de 11 a 17 anos afirmaram que não sabem verificar se uma informação encontrada na internet está correta. Spinelli e Santos (2020) elencam algumas iniciativas de letramento midiático no Brasil como o curso on- line Vaza Falsiane que apresenta os conteúdos para combater a desinformação em um tom divertido para atrair principalmente os mais jovens e professores de educação básica. Também é mencionada a iniciativa do Instituto Palavra Aberta com a revista Nova Escola que disponibiliza uma série de reportagens e conteúdos didáticos para auxiliar o professor a inserir a alfabetização midiática em sala de aula.
Para exemplificar como a checagem de fatos requer um conhecimento específico, Wineburg e Mcgrew (2017) buscaram determinar a credibilidade da informação digital a partir de 45 indivíduos: 10 doutores em história, 10 checadores de fatos profissionais e 25 alunos de graduação da Universidade de Stanford. Os checadores de fatos apresentaram os melhores resultados na identificação de notícias falsas. Já os historiadores e os estudantes, muitas vezes, foram vítimas de recursos de sites manipulados, como logotipos de aparência oficial e nomes de domínio. Uma grande diferença foi que historiadores e estudantes permaneceram dentro de um site para avaliar sua confiabilidade. Em contraste, os checadores de fatos optaram por um caminho indireto, deixaram os sites após uma verificação rápida e abriram novas guias do navegador para julgar a credibilidade do site original. Essa estratégia de uma leitura lateral leva em consideração como a Internet e as pesquisas são estruturadas para tornar a navegação mais eficaz.
Diante de um cenário de negacionismo científico a escola deve ser um local de resistência a esse tipo de desinformação, dado que os jovens de uma forma geral ainda confiam nos professores (MASSARANI et al., 2019). A pesquisa realizada por Massarani et al. (2019) ainda revela que a maioria dos jovens brasileiros manifesta grande interesse por temas de ciência e tecnologia. A educação deve aproveitar esse interesse para o cultivo do espírito científico, para valorização do método científico e para que os estudantes conheçam os benefícios e os limites da ciência. Para que a ciência não seja estigmatizada como algo distante e de elite, é preciso mostrar que os cientistas são produtores de conhecimento e não detentores da informação, e a sociedade precisa conhecer e valorizar os processos de produção de conhecimentos (VILELA; SELLES, 2020). Nesse ponto, vale ressaltar a importância da colaboração e do trabalho interdisciplinar dos cientistas no combate à Covid-19, integrando áreas da matemática, física, química, engenharia, biologia, medicina, economia, ciências sociais entre outras (MORADIAN et al., 2020).
Além disso, a escola pode trabalhar a importância do método científico, uma vez que a lógica de observação, hipóteses, testes e experimentos contribui para o avanço do conhecimento. É possível, ainda, mostrar como o método científico pode ser usado na construção de conceitos científicos, desde que não se engesse como um caminho único e verdadeiro, mas que assuma seu caráter exploratório e provisório (MARSULO; SILVA, 2005). Uma referência atual neste caso pode ser o canal do Youtube Manual do Mundo que realiza experimentos, mostra quando alguns não dão certo e explica os problemas que ocorreram. Segundo Harari (2018), o que marca a ciência é a disposição para admitir o fracasso e tentar outro caminho. Braga (2019) aponta que utilizar o Youtube no ensino de ciências pode ser uma maneira de atrair e incentivar os alunos a se interessarem por assuntos que estão estipulados na Base Nacional Comum Curricular.
A confiança na ciência pode decorrer também de demonstrações em sala de aula da utilidade do conhecimento científico. É importante que o professor respeite os saberes dos educandos (FREIRE, 1996) e busque destacar como a ciência pode ajudar a resolver os desafios cotidianos. É possível, da mesma forma, promover uma cultura científica escolar a partir da abordagem didática do ensino por investigação e da argumentação em sala de aula que promova o engajamento dos estudantes com formas de resolver um problema (SASSERON, 2015). Além disso, é possível planejar práticas nas aulas de Ciências com inspiração na literatura, na arte e na educação não-formal (VILELA; SELLES, 2020).
Já para lidar com a polarização é preciso trabalhar a importância do diálogo e da convivência para fomentar uma sociedade menos dividida e radicalizada. O trabalho de promover diálogos e conversas com pessoas de diferentes opiniões pode proporcionar referências importantes para que os estudantes não entrem em câmaras de ecos e filtros-bolhas que só reforçarão uma visão de mundo. Saviani (2003) afirma que em política o objetivo é vencer e não convencer, o que é o inverso da educação que tem como objetivo convencer e não vencer.
Para evitar os filtros-bolha, Pariser (2012) sugere alterar a rotina na internet buscando escapar dos caminhos conhecidos e ter contato com novas ideias e culturas. West (2018) sugere algumas ações para abordar aqueles que acreditam em teorias da conspiração: manter uma comunicação efetiva; encontrar pontos em comum; validar as preocupações genuínas; fornecer informações úteis; mostrar outras informações para ampliar a perspectiva de diálogo e dar tempo suficiente para que reflitam sobre o diálogo realizado.
A promoção de um diálogo para lidar com a polarização passa por uma reflexão sobre as emoções. Dado que a crença em uma teoria da conspiração pode decorrer de um medo ou de uma necessidade de um sentimento de pertencimento (EMPOLI, 2019). É preciso estar atento às emoções nesta cultura digital. O Facebook busca detectar sentimentos e predizer emoções a partir dos dados dos seus usuários para direcionar sugestões publicitárias com maior probabilidade de resultado (ZUBOFF, 2021). Um exemplo da relevância das emoções é que estudantes universitários, às vezes, compartilham desinformação na mídia social para chamar a atenção ou interagir com amigos (CHEN et al., 2015). Por isso, a educação precisa considerar que os sentimentos influenciam a razão (DAMÁSIO, 2012), evitando a separação entre razão e emoção e levando em consideração o benefício da afetividade na relação professor-aluno. A afetividade em sala de aula pode ocorrer na qualidade da mediação realizada pelo docente para promoção da confiança e da motivação do aluno, na receptividade do questionamento dos discentes e nos elogios como motivadores de emoções positivas aos estudantes (SILVA; NETA, 2017).
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O combate à desinformação na escola passa inicialmente por questões estruturais. No Brasil, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional 2018 (LIMA; CATELLI JR., 2018) apenas 34% dos estudantes de Ensino Superior brasileiros foram considerados funcionalmente alfabetizados proficientes, ou seja, tinham a capacidade de elaborar textos de maior complexidade. Outra questão é a oferta de uma formação em serviço para que os professores tenham dimensão do problema da desinformação e das inúmeras possibilidades de atuação a partir das suas disciplinas. Um investimento específico deveria ser destinado para a montagem de laboratórios de ciências nas escolas e uma política pública para adequação docente para que os professores ministrem disciplinas nas quais foram formados. Todas essas ações são em longo prazo e dependem de uma sensibilização do Estado brasileiro para essa pauta. Contudo, no atual governo, tais ações têm uma chance diminuta visto que o bolsonarismo é contrário à ciência, ao pensamento crítico e às políticas educacionais públicas (DUARTE; CÉSAR, 2020). O que não impede iniciativas de secretarias estaduais, municipais, ONGs, sindicatos e outras entidades e atores sociais a se organizarem.
Outro ponto importante é compreender o fenômeno da desinformação como algo complexo que foi potencializado nesta cultura digital que vivemos. Zuboff (2021) alerta para o capitalismo da vigilância, uma nova ordem econômica preocupada mais com a extração de dados que a avaliação da honestidade do conteúdo disseminado nas redes. Políticos conservadores souberam ampliar sua ressonância neste cenário, pois entenderam que a coerência e a veracidade contam cada vez menos (EMPOLI, 2019). Visto que a democracia depende dos cidadãos informados, há uma ameaça a partir de formas cada vez mais complexas e sutis de manipulação (MASON; KRUTKA; STODDARD, 2018).
O conhecimento de como os estudantes utilizam as redes sociais, como têm se informado e como identificam problemas de desinformação pode ser um tópico inicial de conversa com professores para começar a identificar pontos a serem debatidos. A educação precisa trabalhar para que os estudantes não acreditem que toda notícia ou conteúdo que chame a atenção é uma verdade. É preciso mostrar como o mundo é complexo e como as notícias falsas apelam para retórica e narrativas simplistas para ganhar a atenção (MURUNGI; PURAO; YATES, 2018). Um passo importante é mostrar a diferença entre um fato e uma opinião e buscar pautar os debates a partir de evidências (O´CONNOR; WEATHERALL, 2019). Educadores e cientistas também deveriam adotar uma postura comunicativa de intelectuais públicos, fazendo conexão entre a universidade e a vida cotidiana em particular no que se refere à divulgação do conhecimento científico (LAPA; PRETTO, 2019).
Para que a educação possa formar cidadãos brasileiros que valorizem a democracia é preciso encarar o problema da desinformação. Sempre houve desinformação na sociedade, contudo trata-se de um problema mais acentuado nos dias de hoje por conta do impacto dos algoritmos das redes sociais em sua disseminação (MOROZOV, 2018). Dado que o governo Bolsonaro propaga desinformação, negacionismo científico e favorece a polarização, não se pode esperar políticas públicas dessa parte. Cabe à sociedade civil, aos movimentos organizados e aos educadores brasileiros críticos lutar para que a escola brasileira continue sendo um espaço de promoção da ciência, do diálogo e da democracia.