Introdução
O presente artigo discute aspectos inerentes à relevância da formação continuada e seus respectivos contributos na qualidade de vida de docentes atuantes na Educação Básica em municípios do estado de Santa Catarina. Neste enfoque, objetivou-se analisar as contribuições da formação continuada na qualidade de vida dos professores da Educação Básica. Assim, a problemática norteadora desta pesquisa consiste em quais são as contribuições de um programa de formação continuada pautado na tríade complexidade-transdisciplinaridade-ecoformação na percepção da qualidade de vida de docentes da Educação Básica.
Com intuito de efetivar o exposto, a abordagem metodológica utilizada foi a pesquisa descritiva, com abordagem quantitativa, aplicada na observação entre um grupo que participou de um programa de formação continuada (GFC) e o grupo sem formação continuada (GFSC). Com relação ao estudo descritivo Gil (2010, p. 27) explica que tem como propósito descrever “características de determinada população. Podem ser elaboradas também com a finalidade de identificar possíveis relações entre variáveis”. Sobre a abordagem quantitativa, Fonseca (2002, p. 20) enfatiza que “os resultados da pesquisa quantitativa podem ser quantificados. [...] recorre à linguagem matemática para descrever as causas de um fenômeno, as relações entre variáveis, etc.”
Considerando que o foco desta pesquisa abrange a formação continuada que é compreendida como “o prolongamento da formação inicial, visando o aperfeiçoamento profissional teórico e prático no próprio contexto de trabalho e o desenvolvimento de uma cultura geral mais ampla, para além do exercício profissional” (LIBÂNEO, 2004, p. 227).
A formação continuada é definida por Gatti (2008, p. 57) como “cursos estruturados e formalizados oferecidos após a graduação, ou após o ingresso no exercício do magistério [...]”. Segundo a autora, a formação continuada é compreendida como atividades que podem contribuir para o desempenho profissional, englobando discussões, reflexões, construção e ressignificação dos conhecimentos que favoreçam o aprimoramento profissional.
Complementando Garcia (1995, p. 137) explica a formação continuada como o “desenvolvimento profissional de professores”. Neste sentido, Ribeiro e Vieira (2015, p. 36902) pontuam que a escola também deve ser vista como “local de formação continuada, devendo-se nela valorizar os saberes da experiência dos docentes, saberes que alicerçam o trabalho e a formação dos professores”.
Considerando a importância da formação continuada para o desenvolvimento profissional, destaca-se o Plano Nacional de Educação (PNE), o qual traz na meta 16 que é necessário “garantir a todos (as) os (as) profissionais da educação básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino” (BRASIL, 2014, p. 12).
Baseado no documento supramencionado, Pioll, Silva e Heloani (2015) enfatizam que os professores nas suas respectivas áreas de atuação e considerando as necessidades e contextos dos vários sistemas de ensino, devem continuar o seu processo de formação e preservar a sua saúde para atender as novas demandas do sistema educacional.
Neste enfoque, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que “a qualidade da educação depende de professores, escolas, currículos e cursos” (BRASIL, 2021, p. 320). Ainda conforme o documento, para que ocorra a melhoria da qualidade da educação em longo prazo é necessário que a profissão docente seja aprimorada e que seja fornecido aos professores apoio ao desenvolvimento profissional e o acesso a formação continuada.
Neste viés, considera-se a pertinência da formação continuada englobar aspectos que advêm do campo de atuação dos professores, contemplando momentos dialógicos entre os profissionais, objetivando compartilhar e construir conhecimentos que podem repercutir na qualidade de vida dos profissionais e na melhoria dos processos de ensino e aprendizagem.
Sabirova (2014) explica que a formação continuada de professores é um programa que visa a enriquecer o potencial de aprendizagem contínua e deve ser pensada numa perspectiva de atualização de saberes e promoção de competências necessárias ao adequado desempenho profissional.
Contudo, os modelos tradicionais de formação continuada para professores são centrados na transmissão, através de palestras, seminários, oficinas, grupos de estudo e cursos de curta duração, o que tem preocupado e recebido críticas (GATTI; BARRETO & ANDRÉ, 2011; MORAES, 2012; NÓVOA, 2002; ZWIEREWICZ, 2017). Os autores consideram que estes modelos de formação são muitas vezes descontextualizados da escola, ofertados de forma fragmentada, e não respondem às demandas da realidade educacional atual.
A lei exposta em Brasil (2021) afirma que a formação continuada precisa ser planejada e desenvolvida oportunizando espaços para que os profissionais possam aprender uns com os outros, sendo necessário um olhar para as múltiplas formas de ensinar, visando a contribuir para a aprendizagem dos educandos.
Os programas de formação continuada precisam promover alternativas flexíveis e interligadas, capazes de articular os saberes curriculares de acordo com a realidade e as demandas local e global, comprometidos com a superação do pensar e do fazer reducionista e simplificador (PINHO; PASSOS, 2018).
Neste contexto, o Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas tem sido um dos modelos de formação continuada que repensa a formação docente atomizada e descontextualizada. Este programa é pautado na tríade “complexidade-transdisciplinaridade-ecoformação”, que significa dar sentido às conexões entre o ser humano, a sociedade e o seu entorno (ZWIEREWICZ, 2017).
Este modelo valoriza o olhar atento sobre a própria condição docente, suas relações e seu entorno, religando a sua profissionalização a uma prática formativa articulada local e globalmente, individual e socialmente. Além disso, amplia o protagonismo de docentes e estudantes, estimula a criação de cenários de aprendizagem e de materiais didáticos alternativos, favorece o envolvimento de situações-problema e o desenvolvimento de ações que promovam o bem-estar individual, social e ambiental (ZWIEREWICZ, 2017).
Nessa perspectiva, o Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas pode refletir na qualidade de vida global dos professores, que se refere à percepção do indivíduo sobre sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. É um conceito de alcance abrangente, afetado de forma complexa pela saúde física, estado psicológico, nível de independência, relações sociais e relações com as características do meio ambiente do indivíduo (WHO, 2012).
Como a docência é considerada uma atividade complexa, interativa e multidimensional, envolvendo uma diversidade de tarefas, é fundamental que os professores participem de formações continuadas que englobem saberes articulando teoria e prática e visando contribuir para a melhoraria da qualidade do processo de ensino e aprendizagem, além da sua carreira profissional.
No entanto, segundo Davoglio e Lettni e Baldissera (2015) como esta atividade não está fundamentada apenas pela lógica racional, mas mantém na interação humana e em todas as especificidades dela decorrentes, demanda dos professores equilíbrio contínuo, tanto físico como psíquico, social e espiritual, refletindo-se na sua percepção de qualidade de vida.
Neste sentido Grochoska (2020, p. 99) defende a necessidade da valorização do docente que é “o princípio para se chegar a dois objetivos: o primeiro, a qualidade da educação nacional, e o segundo, a qualidade de vida do trabalhador. Esses dois objetivos são necessários para que o professor possa produzir a sua vida, a escola e sua profissão”. Neste enfoque, destaca-se que a formação continuada também permeiam a valorização do docente, visto que por meio das formações é possível abranger conhecimentos relacionados à qualidade de vida e o seus possíveis reflexos no desenvolvimento pessoal e profissional do docente.
Davoglio, Lettni e Baldissera (2015), a partir dos resultados da pesquisa realizada, demonstraram a importância do aprofundamento dos estudos abrangendo a qualidade de vida do docente atuante campo educacional.
Ao pensar na qualidade de vida e na educação, estes consistem em objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS/ONU), que busca assegurar uma vida saudável e o bem-estar para todos, promover a qualidade e as oportunidades de aprendizagem ao longo da vida. É importante analisar as contribuições dos programas de formação continuada para a qualidade de vida dos docentes, aspecto este que focalizaremos no artigo em pauta, com intuito de analisar os contributivos da formação continuada a qualidade de vida dos docentes.
Metodologia
A metodologia utilizada nesta pesquisa é descritiva com abordagem quantitativa. Participaram da pesquisa 90 professores de ambos os sexos que trabalham na rede municipal de educação e que estavam em plena docência no Ensino Infantil, Fundamental e Médio dos municípios de Caçador, Rio das Antas, Timbó Grande, Paulo Lopes e São Ludgero, localizados no estado de Santa Catarina. Os professores foram divididos em 2 grupos: o GSFC (n = 42) formado por professores dos municípios de Caçador, Rio das Antas e Timbó Grande; e o GFC (n = 48), constituído por professores dos municípios de Paulo Lopes e São Ludgero, que participaram de um programa denominado Formação-Ação em Escolas Criativas.
Para a realização do estudo, foi solicitada uma autorização aos secretários de educação dos municípios. Em seguida, os docentes do GSFC e do GFC foram informados sobre os procedimentos, e somente participaram os profissionais que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Alto Vale do Rio Peixe (UNIARP), com parecer número 1.225.145.
Como critério de inclusão para participar da pesquisa, os docentes do GSFC não poderiam estar inseridos em nenhum programa de formação continuada nos anos de 2017-2019. Para o GFC, o critério de inclusão foi ter participado ativamente do programa Formação-Ação em Escolas Criativas, realizado entre fevereiro de 2017 a dezembro de 2019, convênio entre a universidade e a Secretaria de Educação dos municípios participantes.
O programa de Formação-Ação em Escolas Criativas foi ofertado aos professores da Educação Básica e compreendeu 5 etapas, sendo que em cada etapa foi realizado um encontro presencial de 4 horas e três encontros remotos, totalizando 12 horas. O Quadro 1 mostra as etapas e as atividades desenvolvidas durante o programa Formação-Ação em Escolas Criativas.
Etapas | Encon-tros | Descrição | Atividades |
---|---|---|---|
Conexão | I | - Constitui os encontros iniciais da formação e objetivou tanto conhecer e valorizar práticas pedagógicas dos próprios participantes como analisar possibilidades para aprofundar ou desenvolver experiências transdisciplinares e ecoformadoras. - Ao conectar o programa com o contexto local, as atividades favorecem a discussão das bases epistemológicas da proposta, bem como a discussão de demandas globais e do contexto de inserção dos participantes. |
- Epítome: abertura com dinâmica para a conexão da formação com a realidade local. - Questionário sobre demandas formativas. - Discussão sobre o funcionamento das Escolas Criativas. - Atividades em equipe desenvolvendo as Tendências Pedagógicas. - Vídeo sobre tendências pedagógicas. - Breve explanação sobre a tendência pedagógica ecossistêmica. - Vídeo das crianças de uma escola da Rede Municipal de Paulo Lopes com falas de sonhos sobre um mundo melhor para todos. - Memória conceitual. - Atividade em equipe para a discussão e socialização de uma possível condição mobilizadora do PCE a ser proposta por escola. - Discussão de demandas a serem realizadas no próximo encontro. |
Projeção | II | - Contempla os momentos de reflexões e planejamento que visam reduzir a distância entre o realizado e o desejado. -Nesta etapa, são definidas as temáticas e elaborados os Projetos Criativos Ecoformadores - PCE, bem como planejadas algumas das iniciativas vinculadas aos seus organizadores conceituais, com a intenção de que, na análise e incorporação das ideias dos estudantes, elas possam ser dinamizadas no contexto escolar. - Caracterizam a conciliação entre as perspectivas iniciais dos participantes em relação ao PCE de cada escola e sua adequação de acordo com as demandas dos estudantes. São momentos para experienciar colaborativamente sonhos, desafios e possibilidades. |
- Memória das condições mobilizadoras e indicação da temática definida no período entre o encontro anterior e o atual. - Análise da estrutura de um PCE. - Elaboração e socialização do esquema parcial do PCE. - Apresentação, acompanhada de discussão, dos avanços e das dificuldades encontradas até o momento em relação ao desenvolvimento da versão preliminar do PCE. - Elaboração e socialização do esquema geral do PCE. |
Interação | III | - Favorece a escuta, oportunizando a partilha das ações desenvolvidas a partir da formação. - Ela é fundamental para potencializar a criatividade da equipe por meio da troca de ideias entre os profissionais de todas as instituições da rede municipal de ensino que participam da proposta. - Dessa forma, ao retornar às escolas, os professores puderam replanejar com os estudantes o que haviam previsto para a última etapa do PCE. |
- Retomada de conceitos de forma conectada à socialização do encontro anterior. - Socialização de vivências no desenvolvimento de cada PCE. - Avaliação dos avanços e desafios de cada escola no desenvolvimento de seu PCE e discussão de possibilidades para sua continuidade. |
Fortalecimento | IV | - Tem como objetivo aprofundar discussões sobre a base epistemológica da formação, observando como ela tem se dinamizado na prática pedagógica dos participantes. - Essa etapa é fundamental para potencializar a conexão teórico-prática. |
- Memória da base teórica com sínteses de estudos que possibilitam seu aprofundamento. - Socialização de episódios vivenciados nas escolas no desenvolvimento de cada PCE e sua análise. - Avaliação dos avanços e desafios de cada escola no desenvolvimento de seu PCE. |
Polinização | V | - Divulgação dos resultados referentes ao Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas; - Valorização das escolas, dos profissionais, dos estudantes, das comunidades e suas iniciativas, contribuindo, da mesma maneira, para outros contextos poderem ressignificar suas práticas a partir daquilo que foi compartilhado. |
- Socialização dos PCE em seminário local realizado no último encontro. |
Fonte: Adaptado de Horn e Zwierewicz, 2021.
Para analisar as contribuições da formação continuada na percepção da qualidade de vida dos docentes, foi utilizado o questionário WHOQOL-bref, do World Health Organization Quality of Life Group (Grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde), proposto por Fleck et al. (2000), que consiste em 26 questões: duas gerais sobre a satisfação com a saúde e a qualidade de vida e outras 24 correspondentes a quatro domínios (físico, psicológico, social e ambiental). A coleta de dados foi realizada com os dois grupos nos meses de outubro a dezembro de 2019.
Com relação ao domínio físico, refere-se a informações sobre dor e desconforto, energia e fadiga, mobilidade, necessidade de assistência médica etc.; o psicológico diz respeito ao afeto, à memória, concentração, autoestima, imagem corporal e aparência; o social investiga as relações interpessoais e as redes de apoio social; e o ambiental trata de questões relativas à segurança física, proteção, aos recursos financeiros, ao transporte, à moradia, entre outras. Os resultados dos escores brutos de cada faceta foram transformados em um escore de variação de 0 a 100 pontos. Esta transformação possibilitou expressar o escore da escala percentual entre o valor mais baixo possível (0) e o mais alto possível (100).
Inicialmente foi realizada a análise descritiva dos dados, e os resultados foram apresentados através da mediana, mínimo e máximo. Para determinar a estatística paramétrica ou não paramétrica, foi verificada a normalidade dos dados com o teste de Shapiro-Wilk e o teste de Levene, para analisar a homogeneidade das variáveis entre os grupos. Nas análises da percepção da qualidade, devido à falta de normalidade dos dados, foi utilizado o teste de Mann-Whitney para comparar os grupos e o nível de significância adotado foi de p<0,05. Para a análise dos resultados da qualidade de vida dos docentes, foi utilizado o modelo estatístico adotado pelo WHOQOL-bref, segundo o método e os resultados de grupos focais no Brasil (FERRAZ et al., 2002). Todas as análises foram realizadas no Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0.
Resultados
Os resultados revelaram que predominaram nas amostras de ambos os grupos docentes do sexo feminino e com idade acima de 30 anos. Com relação às características do trabalho, a maioria dos docentes do grupo GSFC e do GFC possui experiência no magistério de até 10 anos, e carga horária de trabalho entre 21 a 40 horas semanais; contudo, uma proporção significativa (26,2%) dos docentes do grupo GSFC trabalha mais de 40 horas semanais (Tabela 1).
Variáveis | GSFC (N= 42) | GFC (N= 48) |
---|---|---|
N (%) | N (%) | |
Gênero | ||
Masculino | 9(21,4%) | 4(11,1%) |
Feminino | 33(78,6%) | 44(88,9%) |
Idade | ||
20-29 anos | 7(16,7%) | 10(20,8%) |
30-39 anos | 18(42,8%) | 15(31,2%) |
40 anos ou mais | 17(40,5%) | 23(48,0%) |
Tempo de docência no magistério | ||
Até 10 anos | 23(54,8%) | 21(43,8%) |
11 a 20 anos | 11(26,2%) | 18(37,5%) |
21 anos ou mais | 8(19,0%) | 8(16,7%) |
Carga horária semanal | ||
Até 20 horas | 4(9,5%) | 20(41,7%) |
21 a 40 horas | 27(64,3%) | 28(58,3%) |
41 horas ou mais | 11(26,2%) | - |
Turno de trabalho | ||
1 turno | 2(4,8%) | 16(33,3%) |
2 turnos | 18(42,9%) | 32(66,7%) |
3 turnos | 22(52,3%) | - |
Pluriemprego | ||
Não | 28(66,7%) | 37(77,1%) |
Sim | 14(33,3%) | 11(22,9%) |
Vínculo | ||
Horista | 22(52,4%) | 3(6,7%) |
Concursado | 20(47,6%) | 45(93,3%) |
Média de alunos por sala | ||
Até 20 alunos | 5(11,9%) | 31(64,6%) |
21 alunos ou + | 37(88,1%) | 17(35,4%) |
Licença do trabalho para tratamento de saúde | ||
Sim | 23(54,8%) | 13(27,0%) |
Não | 19(45,2%) | 35(73,0%) |
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.
Observa-se que 52,3% dos docentes do grupo GSFC trabalham em 3 turnos diferentes e 33,3% em mais de dois empregos, enquanto que no grupo GFC 66,7% trabalham em 2 turnos diferentes e 22,9% em mais de dois empregos. Além disso, 52,4% dos docentes do grupo GSFC são horistas, 88,1% trabalham com mais de 21 alunos por sala e 54,8% se afastaram das atividades laborais para tratamento de saúde. Em contrapartida, no grupo GFC 93,3% dos docentes são concursados, 64,6% trabalham com até 20 alunos por sala e 27,0% se afastaram do trabalho para tratamento de saúde.
DOMÍNIOS | GSFC | GFC | Valor de p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Mediana | Mínimo | Máximo | Mediana | Mínimo | Máximo | ||
Físico | 53,6 | 10,7 | 89,3 | 57,1 | 39,3 | 82,1 | 0,003 |
Psicológico | 62,5 | 20,8 | 100,0 | 66,7 | 41,7 | 87,5 | 0,010 |
Social | 66,7 | 8,3 | 100,0 | 75,0 | 25,1 | 100,0 | 0,003 |
Ambiental | 56,3 | 21,9 | 90,6 | 65,6 | 31,3 | 84,4 | 0,000 |
QV Geral | 59,0 | 25,9 | 89,7 | 66,0 | 43,2 | 84,1 | 0,000 |
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.
Os resultados da Tabela 2 mostraram que a mediana dos escores da qualidade de vida nos domínios físico, psicológico, social e ambiental do Grupo Formação Continuada (GFC) foi maior que a mediana dos escores do Grupo Sem Formação Continuada (GSFC) (p≤0,01). Além disso, a mediana da percepção da qualidade de vida geral (QV Geral) foi significativamente maior no Grupo Formação Continuada (GFC), comparada ao Grupo Sem Formação Continuada (GSFC) (p<0,001).
Discussão
A profissão de docente é considerada uma atividade complexa, interativa e multidimensional, envolvendo diversidade de tarefas e atuações, demandando dos professores equilíbrio contínuo, tanto físico como psíquico, social e espiritual, refletindo-se na sua percepção de qualidade de vida (DAVOGLIO; LETTNI; BALDISSERA, 2015). Neste contexto, o principal objetivo desta pesquisa foi analisar os reflexos de um programa de formação continuada de professores sobre as dimensões que impactam a qualidade de vida.
A formação continuada de professores, além de priorizar a qualidade da escolarização dos alunos, tem contribuído para o desenvolvimento profissional e pessoal através da construção de elementos que possibilitam aos professores ampliarem o senso crítico e reflexivo (SABIROVA, 2014). No entanto, outras contribuições destes programas não têm sido analisadas, principalmente aquelas relacionadas às satisfações, experiências, relações sociais e bem-estar dos docentes. Desta forma, esta pesquisa é inédita, visto que é a primeira que analisa os reflexos de um programa de formação continuada sobre a qualidade de vida de docentes da Educação Básica.
Os professores de ambos os grupos eram em sua grande maioria adultos do sexo feminino (Tabela 1). Esses resultados aproximam-se de pesquisas nacionais e internacionais com professores que atuam na Educação Básica, confirmando que a escola é um espaço de trabalho com predomínio feminino (SOLIS-SOTO et al., 2017; CONVERSO; VIOTTI, 2018; LUZ et al., 2019; SANTOS et al., 2020). A razão de predominarem professores do sexo feminino pode estar relacionada ao processo histórico da entrada das mulheres no mercado de trabalho, pois a maioria delas ingressou no campo educacional (PEREIRA et al., 2014).
De acordo com as características ocupacionais dos docentes dos grupos GSFC e GFC, predominou a pouca experiência e carga horária de até 40 horas semanais nas escolas (Tabela 1). Outros estudos com professores da Educação Básica brasileira também encontraram resultados semelhantes aos da presente pesquisa (ROCHA et al., 2016; ASSUNÇÃO; ABREU, 2019; SANTOS et al., 2020).
Interessantemente, 52,3% dos professores do grupo GSFC trabalham 3 turnos, enquanto nenhum professor do grupo GFC excede 2 turnos de trabalho diário (Tabela 1). Este resultado pode estar relacionado ao número significativo de professores do grupo GSFC com pluriemprego (33,3%), carga horária maior que 40 horas por semana de trabalho (26,2%), e ao vínculo como horistas (52,4%). De acordo com Dias et al. (2017) os professores que têm contratos temporários (horistas) possuem menor quantidade de garantias e direitos trabalhistas, e ao final de cada ano letivo os contratos são suspensos, por isso acabam aumentando a sua carga horária diária de trabalho com outros empregos ou em mais de uma escola.
Nesse sentido, Romanowski e Martins (2010, p. 294) explicam que “os resultados obtidos apontam que os professores possuem carga elevada de trabalho, com aulas ministradas em diferentes colégios [...]”. Ainda conforme as autoras, os referidos aspectos interferem na disponibilidade de tempo para a realização de formação continuada, de grupos de estudo e leituras.
A média de alunos por sala de aula foi maior no grupo GSFC, comparado ao grupo GFC (Tabela 1). Isto pode ser explicado pelo pluriemprego e o menor tempo no magistério do grupo GSFC. Os respectivos dados da pesquisa se aproximam de outros estudos, como de Rocha et.al (2016), que revelam um total de 251 professores da Educação Básica de um município localizado na região Sudoeste da Bahia, dos quais 40% atuavam em mais de uma escola, principalmente aqueles que estavam em início de carreira (ROCHA et al., 2016). Outro estudo com 349 professores das escolas municipais e estaduais de Florianópolis, Santa Catarina, mostrou que 89,7% dos professores apresentavam outra função remunerada (PEREIRA et al., 2014).
É importante destacar que muitos professores horistas e que estão no início da carreira docente trabalham em mais de uma escola para preencher as 60 horas semanais e melhorar o salário, além de que assumem aquelas escolas e turmas remanescentes que normalmente são as mais distantes geograficamente, possuem as piores condições de trabalho e salas de aulas com excesso de alunos (MILANI; FIOD, 2008; LUZ et al., 2019).
A frequência de professores que se afastaram das atividades laborais para tratamento de saúde foi consideravelmente elevada no grupo GSFC (54,8%), comparado ao grupo GFC (27,0%) (Tabela 1). Estas diferenças dos afastamentos podem estar associadas ao fato de que o grupo GSFC apresenta pluriemprego, excesso de trabalho e maior número de alunos atendidos, o que pode gerar um aumento do estresse e da pressão laboral, impactando a saúde física e mental dos professores (ASSUNÇÃO; ABREU, 2019)
Os estudos têm mostrado que os docentes são os que mais se afastam das atividades laborais entre os servidores da educação, e que os agravos à saúde mais frequentes que acometem estes profissionais são os transtornos mentais e comportamentais e os distúrbios do sistema musculoesquelético (DIEHL; MARIN, 2016; HAEFFNER et al., 2018; NG et al., 2019; RODRÍGUEZ-LOUREIRO et al., 2019).
As causas para o número elevado de afastamentos dos professores podem estar relacionadas ao contexto atual das atividades laborais, pois a função do professor extrapolou a mediação do processo de conhecimento do aluno, ampliando-se a missão deste profissional para além da sala de aula, com atividades extracurriculares e extraclasses, a fim de garantir uma articulação entre a escola e a comunidade (NG et al., 2019). O professor, além de ensinar, deve preparar as aulas, avaliar o trabalho dos alunos, participar da gestão e do planejamento escolar, e ser membro das diferentes comissões da escola e da comunidade, o que significa uma dedicação mais ampla, e um consequente aumento do desgaste físico e mental dessa categoria profissional (ROCHA et al., 2017).
Os professores participantes da pesquisa, GFC tiveram uma melhor percepção sobre as suas condições de dor e desconforto, energia e fadiga, mobilidade e necessidade de assistência médica (Domínio Físico), comparados ao grupo que não participou do programa, GSFC (Tabela 2). A ampla percepção no domínio físico relacionado à qualidade de vida dos professores pode ser explicada pela atenuação dos fatores psicossociais relacionados ao trabalho (alta demanda e sobrecarga de trabalho, a percepção alta dos níveis de estresse, o baixo suporte social e a baixa satisfação no trabalho) que pode ter ocorrido com o Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas. Este programa estimula a resiliência e a superação dos envolvidos, aumentando a capacidade dos professores para lidar com problemas, adaptar-se às mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas durante as atividades laborais (ZWIEREWICZ et al., 2019).
A percepção da qualidade de vida no domínio psicológico, que se refere ao afeto, memória, concentração, autoestima, imagem corporal e aparência, foi significativamente melhor no grupo que participou do Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas (GFSC) que no grupo que não participou (GFSC) (Tabela 2). A tríade conceitual “pensamento complexo, transdisciplinaridade e ecoformação”, desenvolvida em etapas no Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas, estimula a conexão com a realidade dos docentes participantes e de seus contextos de atuação, priorizando o estímulo ao trabalho colaborativo, a pertinência do ensino, e utilizando uma metodologia inovadora em seu desenvolvimento (ALMEIDA et al., 2019, p. 97). Este processo pode melhorar a formação, conhecimento, motivação, autoestima e memória dos docentes, refletindo positivamente nos aspectos psicológicos.
A satisfação dos professores do grupo GFC com as relações interpessoais e redes de apoio social, que estão inseridas no domínio Relações Sociais, foi maior que a do grupo GSFC (Tabela 2). Como mencionado anteriormente, o foco sobre a tríade conceitual do Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas pode estimular o bem-estar individual, social e ambiental, através do protagonismo dos docentes e do envolvimento em situações-problema que valorizam a sua prática formativa local e globalmente, individual e socialmente (ZWIEREWICZ, 2017).
As questões relativas à segurança física, proteção, recursos financeiros, transporte, moradia, entre outros, avaliados no domínio Ambiental, mostrou que o grupo GFC relatou melhores escores, comparado ao grupo GSFC (Tabela 2). Inferimos que estes achados com os professores do grupo GFC estão relacionados com a maior participação e envolvimento social nas comunidades em que as escolas estão inseridas. O Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas estimula os docentes a desenvolverem as suas práticas pedagógicas para resolver problemas tanto no contexto específico da escola como globalmente, envolvendo a comunidade nas resoluções destes problemas (ZWIEREWICZ, 2017). Esta aproximação das pessoas da comunidade na escola pode melhorar a segurança física e a proteção para os docentes que se deslocam e atuam em suas respectivas instituições de ensino.
Os escores da percepção da qualidade de vida dos professores do grupo GFC foram melhores que os do grupo GSFC (Tabela 2). Salientamos que o programa de formação continuada pode ter sido responsável por estes resultados, pois todos os domínios da qualidade de vida do grupo GFC foram significativamente melhores.
Considerações finais
Conclui-se que o Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas articulado com a ecoformação, com pensamento complexo e as práticas transdisciplinares, proporcionou possibilidades aos docentes de revelarem o seu potencial criativo, situando-se como protagonistas de um ensino inovador, além de acentuar sua resiliência no enfrentamento de adversidades surgidas na transição de práticas tradicionais, contribuindo para uma melhor percepção nas dimensões físicas, sociais, ambientais e psicológicas relacionadas a sua qualidade de vida.
Com base nisso, os professores participantes do Programa de Formação-Ação em Escolas Criativas tiveram reflexos positivos na percepção da qualidade de vida geral, quando comparados com professores que não participaram, mostrando que este programa contribuiu para melhorar o bem-estar dos docentes, corroborando com a hipótese inicial do estudo.
Apesar dos resultados serem importantes para direcionar os programas de formação continuada a docentes da Educação Básica, apontamos que o estudo apresenta limitações. Os hábitos e o estilo de vida dos professores dos grupos não foram avaliados e podem influenciar na percepção da qualidade de vida no domínio físico. Além disso, não foi avaliada a percepção da qualidade de vida dos docentes no início do programa de formação continuada, para verificar se havia diferenças entre os grupos.
Recomendamos que nos programas de formação continuada sejam consideradas questões individuais, sociais e ambientais para abrir possibilidades para o autoconhecimento e para a valorização de si e das relações estabelecidas com os outros e com o entorno, e dessa forma mitigar os efeitos do estresse laboral sobre a qualidade de vida destes profissionais da educação. Propomos ainda que sejam realizados estudos com outros modelos de formação continuada para verificar os possíveis reflexos na qualidade de vida de docentes com diferentes níveis de atuação no ensino.