Ao longo do desenvolvimento da sociologia da educação, um dos principais debates que atravessam o campo é a tensão entre as ditas teorias da modernização e teorias da reprodução. De um lado, temos a hipótese de que o processo de modernização, caracterizado pelo desenvolvimento econômico e social, pela consolidação das instituições democráticas e pela transição demográfica, ampliaria as oportunidades educacionais para toda a sociedade, de modo a reduzir o peso da origem social no destino dos indivíduos; no lugar das características herdadas, a modernidade valorizaria as características adquiridas (Parsons, 1970; Treiman, 1970). De outro lado, há a hipótese de que a expansão educacional não conduz à universalização das oportunidades, mas sim à reprodução das relações de dominação entre as classes sociais - a aparente garantia de acesso à escola ocultaria o rearranjo de desigualdades que chancela a estrutura de classes sob a égide da democratização. Por conseguinte, segundo essa perspectiva, os certificados escolares acabam por se prestar à função de legitimar disparidades de origem, dissimulando essa reprodução por meio da ideologia dos dons e do mérito (Bourdieu, 2015).
Embora esse embate seja central no campo, há uma terceira abordagem desenvolvida em estudos históricos sobre a formação dos sistemas educacionais que enfatiza como relações de poder e conflitos entre as classes moldam esses sistemas. Bowles e Gintis (1976), por exemplo, enfatizam que a própria estrutura organizacional da educação nos Estados Unidos seria caracterizada por divisões hierárquicas entre instituições de ensino superior (IES) voltadas para a elite, e outras voltadas para os trabalhadores. Ainda, Brint e Karabel (1989) avançaram ao demonstrar que a criação e expansão dos community colleges norte-americanos, apesar de prometerem a expansão de oportunidades para todos, acabaram por estratificar o sistema entre instituições de elite e de massa. Argumento semelhante foi desenvolvido por sociólogos brasileiros (Jardim & Almeida, 2016) que interpretam a expansão das IES privadas de caráter comercial durante os anos 1960 e 1970, em plena ditadura militar, como uma construção institucional que contribui para a segregação dos setores de elite nas universidades públicas, e dos setores populares nas faculdades privadas de baixa qualidade e grande alcance.
Dessa forma, a literatura sobre as tensões institucionais e de origem social nos ajuda a interpretar o contexto da democratização de oportunidades educacionais que marcou a sociedade brasileira desde a década de 1950, com a massificação da educação básica, e a partir dos anos 1990, com a expansão do ensino superior. Foi na década de 2010 que o país alcançou o auge da política expansionista em nível de graduação, chegando em 2019 à cifra de 8,6 milhões de matrículas e uma taxa líquida de escolarização de 25,5% da população entre 18 e 24 anos de idade (Senkevics, 2021a). Com o acesso à graduação compreendendo um quarto da juventude e uma potencial redução das desigualdades sociais, o embate entre modernização e reprodução é atiçado diante de um cenário inédito na realidade brasileira, o qual coloca o desafio de interpretar o que seria preponderante: o otimismo das teses modernizadoras ou a cautela - ou até o pessimismo - das teorias da reprodução? Para as gerações que concluíram a educação básica e procuraram efetuar a transição médio-superior durante o auge da expansão, resta perguntar: qual é o peso do nível socioeconômico (NSE) nessa transição? E do desempenho escolar? Esses efeitos variam em função da origem social do candidato? Candidatos de desempenhos semelhantes, mas de origens sociais diferentes, têm probabilidades parecidas de ingressar no ensino superior? Como essas diferenças se articulam com a divisão entre os setores público e privado? Em suma, investigar o balanço entre a nota e o NSE - ou, de forma alusiva, entre o mérito e o berço - é o objetivo deste artigo.
Para tanto, utilizamos um painel de jovens egressos do ensino médio em 2012, a partir do qual cada indivíduo é acompanhado por até cinco anos após a conclusão da educação básica. Esses dados baseiam-se em registros administrativos da educação básica e superior, administrados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mediante o cruzamento de três bases: o Censo da Educação Básica (CEB ou Censo Escolar), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Censo da Educação Superior (CES). Um conjunto de variáveis de desempenho e de NSE foi mobilizado para entender os mecanismos que estruturam as probabilidades de ingresso no ensino superior entre 2013 e 2017, com especial atenção para as desigualdades de acesso aos setores público e privado.
Este texto deriva de uma tese de doutorado (Senkevics, 2021b) e está organizado em quatro seções, além desta introdução. Primeiramente, discutimos os referenciais teóricos que contextualizam a discussão sobre mérito e origem social na literatura sociológica, provocados por uma lacuna no campo e uma proposta para superá-la. Em seguida, discorremos sobre a construção do painel de egressos, as variáveis de análise e a estratégia empírica. A seção seguinte desenvolve os resultados e a discussão - o ponto de partida é a descrição das desigualdades de acesso à graduação nos setores público e privado em função do desempenho e do NSE; conforme se consolida essa compreensão, decompomos as disparidades entre essas duas dimensões e analisamos implicações sociológicas a partir de modelos estatísticos. Finalmente, as conclusões revisitam o debate em torno da meritocracia à luz da estrutura de oportunidades de acesso à graduação.
Revisão da literatura
Um ponto cego das pesquisas nacionais
Desde o final da década de 1990, o Brasil tem vivenciado uma forte expansão do acesso à universidade, com consequências ambíguas sobre a redução das desigualdades na transição do ensino médio ao superior. Esse quadro se choca com a intuição de que a expansão educacional é uma força que necessariamente reduz disparidades, na medida em que permitiria a equalização das oportunidades de acesso e a inclusão de novos contingentes populacionais. Do contrário, pesquisas recentes têm demonstrado que a ampliação da oferta de ensino superior no Brasil foi acompanhada de um incremento nas desigualdades de acesso até, pelo menos, meados da década de 2000, pois, em um primeiro momento, a expansão educacional beneficiou estratos populacionais que já usufruíam de maiores oportunidades de ingresso (Collares, 2010; Brito, 2014; Salata, 2018). Uma inferência possível de ser feita nesse contexto temporal é que a redução da desigualdade de oportunidades em etapas de ensino correspondentes aos anos iniciais e finais do ensino fundamental não foi repetida nos ensinos médio e superior. Assim, quando analisamos a expansão do sistema educacional brasileiro como um todo até a primeira década dos anos 2000, não é possível falar de uma equalização de oportunidades, mas sim de um adiamento da seletividade socioeconômica para níveis mais avançados de escolarização (Shavit et al., 2007).
Mais recentemente, novas evidências têm indicado ora estabilidade, ora reversão desse padrão, uma vez que a virada da década de 2010 foi caracterizada pela redução das desigualdades de acesso em prol de grupos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior, tais como a população de baixa renda, de famílias pouco escolarizadas, de negros e de indígenas (Mont’Alvão, 2014; Caseiro, 2016; Marteleto et al., 2016; Salata, 2018). Ainda que se constate algum grau de equalização das oportunidades, o ensino superior brasileiro está muito aquém de oferecer condições igualitárias de ingresso.
Ademais, a estruturação das desigualdades de acesso é marcada pela distinção entre os setores público e privado. De longa data, a diferenciação entre as duas categorias administrativas tornou-se ainda mais relevante nas últimas décadas, em razão do desproporcional crescimento das IES privadas, rumo a um perfil cada vez mais mercadológico (Santos et al., 2020). Já atenta a esse padrão, Collares (2010) mobilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) entre 1982 e 2006 para concluir que o impacto da renda domiciliar sobre o ingresso é especialmente alto no setor privado, em razão de seu caráter pago. Na mesma linha, Mont’Alvão (2015) demonstra, a partir da Pnad 2007, que, entre as instituições de perfil acadêmico (em oposição ao vocacional), o setor privado, é mais seletivo do ponto de vista socioeconômico, isto é, o ingresso é mais elitizado em termos de escolaridade e ocupação parentais. Com base nos censos demográficos, Brito (2014) mostra que as instituições públicas se tornaram mais inclusivas entre 2000 e 2010, na medida em que o crescimento na oferta de vagas beneficiou segmentos populacionais de menor poder aquisitivo e, assim, reduziu a associação entre um background privilegiado e o acesso ao setor público, o contrário do que foi observado no setor privado.
As pesquisas supracitadas trouxeram contribuições fundamentais para o campo ao demonstrarem o quão dependente é o acesso ao nível universitário das características socioeconômicas dos jovens e de suas famílias, bem como as mutações, ao longo do tempo, que intensificaram, mantiveram ou minimizaram esse padrão no decorrer da política expansionista; porém todas elas esbarram em limitações metodológicas patentes. Em comum, essas pesquisas empregam dados em série histórica de levantamentos domiciliares - como o Censo Demográfico e a Pnad -, cuja utilização para o estudo da estratificação educacional é limitada pelo fato de que nenhuma delas traz informações sobre o desempenho escolar dos candidatos.
Trata-se de uma informação decisiva, uma vez que a trajetória pós-educação básica é altamente dependente da proficiência que o jovem adquire ao longo da escolarização e das possibilidades de escolha que um desempenho mais ou menos elevado proporciona (Jackson, 2013). No passado, essa limitação suscitou uma das principais críticas aos estudos das transições entre etapas educacionais pela sua incapacidade de compreender a heterogeneidade não observada das coortes que progridem ao longo da escolarização (Shavit et al., 2007). Cameron e Heckman (1998) argumentam, entre outras coisas, que desconsiderar variáveis de desempenho escolar pode enviesar a interpretação das barreiras que afetam a progressão educacional dentro de uma coorte, uma vez que atributos não observáveis, como a proficiência dos estudantes, podem ser o principal fator explicativo de por que alguns avançam e outros, não.
Embora exista uma tradição consolidada no Brasil de estudos sobre desigualdade educacional com atenção ao desempenho escolar (Brooke & Soares, 2008), raramente esses trabalhos contêm desenhos de pesquisa que observem o mesmo aluno em pelo menos dois pontos no tempo. De modo geral, quando alguma medida de desempenho acadêmico está disponível nos dados, não há informação sobre o fluxo do estudante no sistema educacional. Assim, a análise das trajetórias educacionais quase nunca é observada, e fenômenos como a transição médio-superior se tornam pontos cegos. Estudar essa transição exige dados tanto de egressos do ensino médio quanto de ingressantes no ensino superior, o que implica seguir os mesmos estudantes ao longo do tempo, cruzando dados dos dois níveis de ensino (Ribeiro & Carvalhaes, 2020). Na ausência dessas informações, as pesquisas limitam-se a somente um dos níveis educacionais, ou, no máximo, restringem seu poder de inferência a poucos municípios no país.
Felizmente, é possível contornar essas limitações. O panorama da disponibilidade de dados que permitem buscar alternativas a tais obstáculos mudou radicalmente nos últimos anos. A possibilidade de cruzar bases de dados da educação básica com aquelas da graduação - prática recorrente em vários países - foi finalmente institucionalizada no Brasil. Por ser um fenômeno recente, ainda engatinham as pesquisas que desbravam esse eldorado das estatísticas oficiais. Em vista disso, inexistem publicações sobre nosso país que tenham acompanhado longitudinalmente egressos do ensino médio em âmbito nacional, tomando o desempenho escolar como variável de análise da transição médio-superior e resolvendo tecnicamente parte das restrições impostas pelas pesquisas domiciliares. Tal feito confere a esta pesquisa um pioneirismo no cenário nacional.
Nível socioeconômico e desempenho
Na literatura sociológica, a associação entre NSE e a probabilidade de transição educacional é interpretada por duas vias: os efeitos diretos e os indiretos. Por efeitos indiretos, entendem-se aqueles da origem social sobre a transição resultantes das diferenças de classe no desempenho escolar, isto é, mediadas pelo desempenho adquirido pelo estudante; já os efeitos diretos são aqueles da origem social sobre a transição, uma vez controlado o desempenho (Jackson, 2013). Até recentemente, os efeitos indiretos e diretos eram conhecidos por efeitos primários e secundários, respectivamente, em quadro teórico que remete a Boudon (1981) e que se mantém influente na pesquisa educacional, orbitando em torno da seguinte questão central: por que estudantes com o mesmo nível de desempenho acadêmico têm probabilidades distintas de prosseguir suas carreiras educacionais?
Aos efeitos indiretos, atribui-se a influência do NSE sobre as oportunidades de aprendizado das crianças e jovens ao longo de sua escolarização, por fatores diversos, tais como: o ambiente familiar, em termos da disponibilidade de recursos econômicos, culturais e sociais; a saúde e nutrição desde o nascimento; o tamanho da prole e suas consequências sobre a partilha de recursos; o acesso à informação sobre o funcionamento do sistema educacional e retornos no mercado de trabalho; a qualidade das escolas frequentadas por estudantes de distintas origens sociais (para uma revisão, ver Alves et al., 2013; Broer et al., 2019). Em paralelo a esses mecanismos que remetem ao processo de escolarização e seus frutos em médio e longo prazos, os efeitos diretos dizem respeito a benefícios, custos e expectativas de sucesso associados a distintos resultados educacionais e como estes diferem em função do NSE, mesmo entre quem possui desempenhos próximos. Exemplos desses mecanismos são: recursos econômicos familiares e a possibilidade de cobrir custos associados ao estudo ou amenizar custos de oportunidade de uma escolarização longeva; incentivos e aspirações parentais no sentido de evitar uma mobilidade intergeracional descendente; tendência de famílias escolarizadas sustentarem valores e normas consoantes com a cultura dominante; e fatores sociais e econômicos em uma escala macro - estrutura do sistema educacional, adoção de políticas de ação afirmativa, qualidade das ocupações disponíveis no mercado, desemprego e desalento juvenis, etc. (para uma revisão, ver Breen et al., 2014; Guimarães et al., 2020; Nogueira, 2021).
Dada a relevância desses mecanismos na estruturação das desigualdades, autores como Morgan (2012) têm destacado a importância de se considerar não apenas o desempenho escolar nas análises de transições, mas também as interações entre o desempenho e o NSE. Na prática, isso significa que o efeito da nota sobre as chances de ingresso não seria o mesmo para candidatos de diferentes níveis socioeconômicos, ou, invertendo a formulação, o efeito do NSE sobre o ingresso não seria o mesmo para candidatos com distintos desempenhos. Essa consideração é fundamental, porque rompe com o pressuposto de que os efeitos de NSE e nota seriam idênticos para todos os grupos sociais, como se os efeitos diretos e indiretos atuassem de modo independente na construção de desigualdades. Em realidade, pesquisas mais recentes têm alertado para a necessidade de perceber o quão heterogêneos são os efeitos diretos e indiretos, dependendo de qual estrato social analisamos (Jackson, 2013), o que nos conduz a uma reflexão sobre como as vantagens oriundas de NSE e/ou de nota mais elevados podem se acumular ou se compensar na estratificação educacional.
Isso porque as (des)vantagens identificadas em um ponto no tempo não se circunscrevem exclusivamente ao evento em tela; elas são construídas ao longo do ciclo de vida dos indivíduos. De um lado, segmentos populacionais podem se tornar paulatinamente desiguais ao longo do tempo por um acúmulo de vantagens ou desvantagens que suas respectivas condições sociais propiciam, de modo que níveis correntes de posse de um determinado recurso - rendimentos, proficiência, etc. - afetem a possibilidade de acumulá-lo ainda mais no futuro (DiPrete & Eirich, 2006). De outro lado, determinados grupos de origem social privilegiada podem ser menos dependentes de seus resultados anteriores: ainda que encontrem obstáculos no percurso de sua escolarização, tais crianças e jovens encontrariam meios, provenientes de sua posição social, para compensar tais desvantagens e, assim, auferir ganhos que jovens de camadas populares não conseguiriam sem uma dose maior de esforço, como se os estudantes de camadas abastadas usufruíssem de uma “segunda chance” - uma salvaguarda - contra eventuais fracassos (Bernardi & Triventi, 2020). Interessa reter dessa discussão que os efeitos diretos e indiretos podem ser heterogêneos conforme a classe de origem, isto é, há uma interação entre tais efeitos que responde a condicionantes específicos de cada segmento populacional, forçando-nos a complexificar o entendimento sobre a relação entre fatores herdados e o desempenho na geração de um determinado resultado educacional.
Dados, variáveis e métodos
Bases de dados
O painel desta pesquisa acompanha a coorte de egressos do ensino médio em 2012, entre 16 e 22 anos de idade, segundo o Censo Escolar. Essa coorte engloba 1,69 milhão de jovens diplomados naquele ano no ensino médio regular, tanto no ramo comum quanto no profissionalizante. Esses indivíduos foram rastreados por meio do Cadastro de Pessoa Física (CPF)1 em cada edição do CES entre 2013 e 2017, para identificar quem ingressou no ensino superior no prazo de cinco anos após a conclusão da escolarização básica. Será considerado exclusivamente o primeiro ingresso do indivíduo, não sendo computados eventuais desistências e reingressos no sistema.
Para gerar as variáveis independentes, foram adicionados dados do Enem de 2012 a 2016. Essas bases contemplam informações sobre a família, o domicílio e a trajetória escolar dos candidatos - declaradas pelo próprio respondente durante a inscrição no exame -, acrescentando-se as notas obtidas em cada uma das quatro áreas de conhecimento da prova. Com relação a qual edição do Enem utilizar para cada indivíduo, optamos por aquela imediatamente anterior ao ingresso no ensino superior, por refletir as informações mais próximas do momento de candidatura. Caso o indivíduo não tivesse ingressado, ou não tivesse participado da edição do Enem anterior ao ingresso, usamos a edição mais recente, por ser a melhor informação disponível sobre aquele candidato e que possivelmente reflete a melhor condição para disputar uma vaga.
Do total de egressos do ensino médio de 2012, foram excluídos cerca de 57 mil (3,3%) para os quais não estavam disponíveis o CPF. Dos quase 97% incluídos na análise, cerca de dois terços (65,8%) participaram de alguma edição do Enem entre 2012 e 2016. Por mais que a participação no Enem seja importante para acessar o ensino superior, não é um pré-requisito. De um lado, 69,4% dos egressos que participaram do Enem ingressaram no ensino superior; outros 30,6% não lograram acessar esse nível de ensino. De outro lado, entre os que não realizaram o Enem, as proporções praticamente se invertem: 74,9% não ingressaram no ensino superior, enquanto 25,1% conseguiram acesso.2
Para a geração dos resultados, o quantitativo de indivíduos corresponde aos 1.115.930 egressos que participaram de alguma edição do Enem. Mesmo sabendo que essa escolha acarreta a perda de um terço (34,2%) da base, não será possível executar nenhuma das análises multivariadas sem que se tenham informações válidas das variáveis de interesse, por sua vez construídas a partir do Enem. Logo, esta pesquisa permitirá um retrato das desigualdades de acesso somente entre quem concluiu o ensino médio e se candidatou ao exame. O mesmo não se pode dizer daqueles que não ingressaram e, principalmente, que não chegaram a se candidatar - trata-se de um público sobre o qual é desafiante obter-se informações, exigindo futuras pesquisas para aprofundamento.
Variáveis
O ingresso no ensino superior é estudado por meio de uma variável categórica nominal (0 = não ingresso; 1 = ingresso no setor público; 2 = ingresso no setor privado). Não se discrimina a dependência administrativa dentro de cada setor ou qualquer outra informação sobre natureza jurídica. O intuito é comparar o acesso aos setores público e privado, sabendo das diferenças estruturais que os caracterizam e dos distintos padrões de desigualdade já identificados pela literatura.
As duas principais variáveis que representam, com as devidas ressalvas, as características herdadas e adquiridas dos indivíduos são: renda domiciliar per capita (proxy do NSE) e nota média no Enem (proxy do desempenho). A renda domiciliar per capita é calculada pelo ponto médio da faixa de salário mínimo dividido pelo número de habitantes no domicílio, a partir do questionário do Enem, e em seguida recodificada em quintos de renda na forma de uma variável categórica ordinal; a análise privilegiará a comparação entre o primeiro quinto (1ºQ) e o último quinto (5ºQ), os quais representam, respectivamente, os jovens pertencentes aos segmentos 20% mais pobres e 20% mais ricos dos egressos do ensino médio participantes do Enem. É bem documentada na literatura a associação positiva entre renda domiciliar e probabilidades de transição educacional (Brito, 2014). Ao lado disso, a persistência de elevados níveis de desigualdade de renda no Brasil e no mundo (Souza, 2018) sublinha a relevância de considerar os rendimentos como variável focal.
Como medida de desempenho, tomamos a nota média no Enem - variável intervalar computada a partir da média aritmética simples das notas nas quatro provas objetivas (Linguagens e Códigos; Matemática; Ciências Humanas; e Ciências da Natureza), desconsiderando-se a nota na redação. Somente foram contabilizadas as notas dos indivíduos presentes nos dois dias de prova e que não haviam sido eliminados. A escala de proficiência do certame varia de 0 a 1.000 pontos, comparável desde a edição de 2009, sendo que cada prova é composta de 45 questões de múltipla escolha, elaboradas a partir de uma matriz de referência curricular que reflete os principais conteúdos esperados para o ensino médio. Um leque relativamente recente de pesquisas tem analisado o desempenho dos estudantes no Enem e investigado os fatores associados a este (e.g., Nascimento et al., 2020).
Para conferir maior robustez às análises, foram acrescidas sete variáveis de controle: sexo, cor/raça, idade, escolaridade parental e características escolares (categoria administrativa, área geográfica, unidade da federação). Outras variáveis foram testadas (e.g., estado civil e exercício de atividade remunerada), mas não apresentaram contribuição relevante aos modelos e foram excluídas para fins de parcimônia.
Estratégia empírica
Dada a natureza da variável dependente relativa ao não ingresso e ao ingresso nos setores público e privado, executamos um conjunto de modelos logit multinomiais indicados para variáveis de resposta com duas ou mais categorias que não assumem um ordenamento intrínseco (Long & Freese, 2014). Para tanto, essas equações baseiam-se nos modelos de transição de Mare (1980) - com a adição de um termo de interação entre renda e nota (Morgan, 2012) -, adequando o lado esquerdo da equação para uma variável que apresenta mais de dois valores possíveis. Essas regressões foram estimadas pelo método de máxima verossimilhança por meio do pacote estatístico Stata/MP 12.1.
Formalmente, o modelo é dado pela equação 1:
Essa função estima as probabilidades de o indivíduo ingressar no ensino superior público ou privado para cada valor da variável dependente ( j = 1 ou 2, sendo 1 = público e 2 = privado) em relação à categoria-base b = 0 (não ingresso). As variáveis focais são: os efeitos principais da renda domiciliar per capita (β1Renda), os efeitos principais do desempenho (β2Nota) e os efeitos interativos de renda e desempenho (β3Renda * Nota); estes foram incluídos para flexibilizar o pressuposto de que o efeito do desempenho seria idêntico entre os distintos estratos socioeconômicos, e vice-versa. São acrescidos no modelo o vetor de controles (β k X k ), a constante (β 0 ) e o termo de erro (ε).
Além de pouco parcimoniosos e demandantes computacionalmente, os modelos logit multinomiais implicam pelo menos duas dificuldades em termos de interpretação. Em primeiro lugar, a escala dos coeficientes estimados é pouco inteligível para a leitura sociológica, fato que exige técnicas adicionais para a geração e visualização de resultados. Para tanto, lançamos mão de estratégias de pós-estimação que calculam probabilidades preditas e efeitos marginais médios como estratégia para desenvolver medidas de significado substantivo e formas gráficas de ilustração dos resultados (Mize, 2019).
A segunda dificuldade refere-se à impossibilidade de comparar coeficientes de diferentes grupos em um mesmo modelo ou de um mesmo grupo em diferentes modelos, mesmo se aninhados, em razão de um processo intrínseco de reescalamento dos parâmetros estimados. Para contornar isso, utilizamos o método Karlson-Holm-Breen (KHB), o qual representa uma solução para o problema de reescalamento dos parâmetros, permitindo, assim, que a comparação entre modelos indique diferenças na magnitude dos efeitos das variáveis em si, e não de outras questões intrínsecas da estimação (Karlson & Holm, 2011).
O mérito e o berço
Em 2012, formaram-se no ensino médio regular brasileiro 1,69 milhão de jovens entre 16 e 22 anos de idade - já excluídos aqueles sem CPF -, dos quais 1,12 milhão participaram do Enem. Mais da metade são mulheres (59,0%), e a maioria tem até 18 anos de idade (87,5%); pretos, pardos ou indígenas somam 49,5%. A maior parte dos estudantes concluiu o ensino médio na rede estadual (76,1%), seguida pela rede privada (21,7%). Somente 22,9% deles têm pelo menos um genitor com nível superior completo. Mais informações sobre a coorte podem ser encontradas na Tabela 1 do Apêndice.
A respeito da renda domiciliar per capita, os quintos aqui empregados dão uma dimensão da profundidade da desigualdade social brasileira: enquanto os quatro quintos mais pobres não superam rendas médias de um salário mínimo (SM) por cabeça, o último quinto varia de 1,2 a 20 SM (Tabela 2 do Apêndice). Em média, os rendimentos do quinto mais rico (5ºQ) são três vezes maiores do que os do 4ºQ e assustadoramente 12 vezes superiores aos do quinto mais pobre (1ºQ). Pela magnitude dos desvios padrão, também se percebe que o quinto mais rico é internamente mais desigual, decorrência da elevada amplitude de rendimentos. Apesar de os quintos inferiores parecerem pouco distintos em termos de rendimentos médios, veremos que essas pequenas diferenças são suficientemente grandes para torná-los distintos em termos de probabilidades de ingresso no ensino superior.
Acesso desigual à graduação
Em torno de 775 mil jovens (69,4%), entre os 1,12 milhão de concluintes do ensino médio em 2012 que participaram do Enem, ingressaram no ensino superior no prazo de cinco anos, dos quais 588 mil (75,9%) no setor privado e 187 mil (24,1%) no setor público. Em contrapartida, aproximadamente 340 mil (30,6%) não o fizeram. O Gráfico 1 ilustra a proporção acumulada de ingresso segundo a renda. Como esperado, o acesso à educação terciária é profundamente desigual, evidenciado pela divergência na transição médio-superior entre jovens de condições socioeconômicas díspares, desde os primeiros anos. Ao final do período analisado, 92,3% dos egressos pertencentes ao 5ºQ ingressaram no ensino superior, em contraste à proporção de 48,1% entre aqueles do 1ºQ. Em grande parte, essa desigualdade se dá entre quem “passa direto” ou não, isto é, entre quem efetua ou não a transição para o ensino superior logo após completar a educação básica - 90% da disparidade final entre os quintos mais rico e mais pobre é construída logo após a diplomação. Daqui em diante, trataremos somente do resultado ao final da série histórica.3
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
Também são profundamente desiguais as probabilidades de se obterem notas mais altas no Enem a depender do estrato socioeconômico. O Gráfico 2 ilustra que, quanto maior a renda, mais as curvas de desempenho se deslocam para os valores mais elevados. Para fins de comparação, a nota média é de 466 pontos no 1ºQ e 578 pontos no 5ºQ - diferença de 112 pontos, correspondente a 1,44 desvio padrão (d.p.). Ainda que a distribuição seja mais dispersa no quinto mais rico do que no mais pobre - dispersão de 83 contra 58 pontos, em média -, é inquestionável que são segmentos bastantes distintos em termos de probabilidade de obter um desempenho elevado. Enquanto 53,5% do segmento mais rico obtêm as notas 20% mais elevadas, somente 4,6% do segmento mais pobre o fazem (dados não ilustrados).
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
Presumidamente, desempenhos mais elevados estão associados a maiores probabilidades de ingresso no ensino superior. Porém essa relação não é necessariamente idêntica para todos os estratos socioeconômicos e, mais do que isso, para todas as categorias administrativas da instituição de destino. O Gráfico 3 oferece um panorama das probabilidades de ingresso nos setores público e privado em função do desempenho no Enem, em centésimos ordenados.
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
Os resultados, inéditos no estado de conhecimento sobre a seletividade do ensino superior no país, indicam forte contraste entre os dois setores. Para o acesso ao setor público, observa-se uma associação positiva entre o desempenho e o ingresso ao longo da escala de proficiência, com incremento exponencial das probabilidades entre os maiores centésimos de nota. Até o percentil 50 (p50, equivalente a 498 pontos no Enem), as probabilidades de acessar uma instituição pública são inferiores a 10%; somente quando se ultrapassa o p94 (643 pontos) que se supera o limiar de 50% de probabilidade de ingresso, representado pela linha tracejada vertical (à direita). Conclui-se que desempenhos elevados estão diretamente relacionados à maior chance de acessar uma graduação no setor público; por consequência, as maiores probabilidades de ingresso se concentram nas fatias mais elevadas de proficiência no Enem.
Para o acesso ao setor privado, o cenário é contrastante. Nota-se uma elevação das probabilidades de ingresso até a faixa de desempenho entre os percentis 70 e 80, quando se atinge o auge das chances de ingresso. Após essa faixa, observa-se uma queda nas probabilidades rumo a patamares inferiores ao verificado no início da escala. Além disso, também se percebe que não é necessária uma proficiência tão elevada para acessar esse setor: mesmo entre o pior centésimo de desempenho (p1, equivalente a notas iguais ou inferiores a 368 pontos), já se parte de uma probabilidade de ingresso de 27%, e uma probabilidade superior a 50% é logo atingida quando se supera o p27 (454 pontos), na linha pontilhada vertical (à esquerda). Em resumo, as conclusões caminham em um sentido divergente do que pudemos observar para o setor público: o desempenho é um preditor positivamente associado ao ingresso no setor privado até um determinado patamar, e, a partir daí, passa a estar negativamente associado a ele.
Esses números indicam que jovens de baixo e médio desempenho tendem a ingressar no setor privado. Porém, quando superado um determinado limiar - correspondente ao p72 (528 pontos) -, há um ponto de inflexão em que os jovens tendem a acessar o setor público em detrimento do privado. Ao lado disso, a distância entre as notas indicadas pelas linhas pontilhada e tracejada verticais revela um hiato de 2,42 d.p., ilustrativo do abismo entre os dois setores no tocante ao desempenho médio de quem os acessa. Em suma, esses resultados permitem concluir que, ao tratar das categorias administrativas, estamos nos referindo a regimes de ingresso profundamente distintos. Para avançarmos, resta conhecer como as probabilidades de ingresso se comportam segundo a origem social do candidato.
Decomposição de efeitos diretos e indiretos
A Tabela 1 apresenta os resultados de uma decomposição de efeitos pelo método KHB. Para cada quinto de renda, os cálculos estimam qual é o peso dos efeitos diretos da renda sobre o ingresso no ensino superior, uma vez controlado o desempenho, e indiretos, mediados pelo desempenho, nas vantagens que cada grupo apresenta em relação ao mais pobre, segundo a categoria administrativa. Exemplo: o incremento no acesso ao setor público para o 5ºQ, com relação ao 1ºQ, deve-se 19,0% a efeitos diretos e 81,0% a efeitos indiretos, desconsiderando-se os controles; e 7,7% a efeitos diretos e 92,3% a efeitos indiretos, controlando-se pelas demais variáveis.
Renda domiciliar per capita | Sem controles | Com controles | ||
---|---|---|---|---|
Efeitos diretos | Efeitos indiretos | Efeitos diretos | Efeitos indiretos | |
Público | ||||
1ºQ (referência) | ‒ | ‒ | ‒ | ‒ |
2ºQ | -12,0 | 112,0 | -51,4 | 151,4 |
3ºQ | 5,6 | 94,4 | -6,9 | 106,9 |
4ºQ | 10,8 | 89,3 | -0,3 | 100,3 |
5ºQ | 19,0 | 81,0 | 7,7 | 92,3 |
Média aritmética | 5,8 | 94,2 | -12,7 | 112,7 |
Privado | ||||
1ºQ (referência) | ‒ | ‒ | ‒ | ‒ |
2ºQ | 71,8 | 28,2 | 78,8 | 21,2 |
3ºQ | 71,3 | 28,7 | 78,2 | 21,8 |
4ºQ | 67,3 | 32,7 | 73,3 | 26,7 |
5ºQ | 63,2 | 36,8 | 68,1 | 31,9 |
Média aritmética | 68,4 | 31,6 | 74,6 | 25,4 |
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
No setor público, observa-se pelas médias aritméticas que a maior parte (na coluna “Sem controles”) ou a totalidade (“Com controles”) dos incrementos nas probabilidades de ingresso no ensino superior decorrem dos efeitos indiretos. Isto é, o acesso às IES públicas é altamente dependente da nota, havendo pouca margem para desigualdades socioeconômicas per se; disparidades existem e se expressam quase totalmente via desempenho. Para além disso, os dados revelam que a renda pode ter um efeito supressor sobre as chances de ingresso, expresso pelos valores negativos; isso significa que jovens de origem privilegiada podem apresentar desvantagens no acesso às instituições públicas com relação aos de origem modesta, controlando-se pelas demais variáveis, de tal maneira que a nota é o único fator que explica as vantagens dos mais ricos sobre os mais pobres.
Como entender esse efeito supressor? A rigor, renda e desempenho estão positivamente correlacionados entre si e com as probabilidades de acesso ao ensino superior. Porém, para o setor público, rendas mais elevadas podem estar negativamente associadas ao ingresso. Há várias hipóteses que procuram explicar essa correlação negativa: o impacto das políticas de ação afirmativa em beneficiar estudantes de baixa renda, a preferência de estudantes mais ricos por instituições privadas a depender do curso, etc. (Machado & Szerman, 2021; Mello, no prelo). O que os dados nos permitem concluir é que ser relativamente mais rico contribui para incrementar o acesso ao setor público quase exclusivamente porque os mais ricos tendem a obter os desempenhos mais elevados, e não por serem mais ricos; assim, a desigualdade socioeconômica é quase em sua totalidade mediada pela nota. Para complementar essa informação, o Gráfico 1 do Apêndice ilustra como o desempenho se distribui entre os quintos de renda: a título de ilustração, no estrato das notas 10% mais elevadas, 60% pertencem ao 5ºQ e somente 2,5% ao 1ºQ.
No setor privado, a razão entre efeitos diretos e indiretos se inverte. Neste, os efeitos indiretos respondem por menos de um terço, em média, das vantagens que os demais segmentos de renda apresentam sobre o mais pobre: 31,6% no modelo sem controles e 25,4% com controles. Esse padrão sugere que o desempenho tem uma importância menor no acesso ao ensino superior privado, permanecendo sobre a renda o maior peso pelas desigualdades de acesso e, assim, corroborando que o ingresso nesse setor seja mais dependente do background familiar do candidato, resultado que se coaduna com pesquisas anteriores (Collares, 2010; Brito, 2014; Mont’Alvão, 2015).
Ademais, os efeitos diretos para acesso ao setor privado crescem quando se adicionam os controles - contrariamente ao que se observa no setor público -, sugerindo que o efeito da renda não apenas se mantém como também se intensifica com a inclusão das demais variáveis no modelo e, portanto, enfatizando o peso dos rendimentos domiciliares no poder de compra desse serviço educacional. Finalmente, observa-se ainda que há um crescimento na magnitude dos efeitos indiretos conforme se eleva a renda domiciliar (de 21,2% no 2ºQ para 31,9% no 5ºQ, no modelo completo), sugerindo que, por obterem notas médias mais altas, os jovens de origem privilegiada usufruem dos benefícios de um desempenho mais elevado sobre a transição médio-superior, tais como garantir maiores chances de ser aprovado nos processos seletivos ou receber mais incentivos familiares para prosseguir com os estudos pós-escolarização básica.
Na literatura internacional, há controvérsias a respeito da relativa importância dos efeitos diretos e indiretos na estruturação das desigualdades educacionais. Em uma comparação do acesso à educação terciária em sete países desenvolvidos (Jackson & Jonsson, 2013), quatro deles (Alemanha, Holanda, Itália e Suécia) apresentaram efeitos diretos proporcionalmente mais elevados do que os indiretos; o contrário foi encontrado nos Estados Unidos, França e Inglaterra. No caso da Rússia, Jackson et al. (2020) verificaram que os efeitos diretos respondem por entre 55% e 85% das probabilidades de acesso, dependendo da métrica de proficiência. Não existem elementos que nos assegurem um padrão desses dados comparados, mas é possível sugerir que o peso dos efeitos diretos e indiretos deve variar conforme a importância que cada sistema atribui ao desempenho do candidato, ao nível de desigualdade social e suas consequências sobre a estrutura de oportunidades educacionais. Em linhas gerais, medidas como gratuidade do ensino, ações afirmativas no ingresso, programas de transferência de renda e campanhas informativas podem amenizar disparidades nos meios pelos quais o background socioeconômico incide sobre as possibilidades de um jovem alcançar o nível superior.
A nota importa: para que e para quem
No Gráfico 4, exibem-se as probabilidades preditas de ingresso nos setores público e privado, em função do desempenho, por renda. Essas probabilidades correspondem a resultados da pós-estimação do modelo logit multinominal completo.
Observa-se que, para o setor público, há uma forte associação entre probabilidade de ingresso e desempenho para todos os quintos de renda, com vantagem para o 1ºQ ao longo de toda a escala, e pouca acomodação de desigualdades socioeconômicas. Situação oposta é encontrada no setor privado; percebe-se que a curva de probabilidades preditas do 5ºQ aproxima-se de uma linha reta até por volta do p60. Isso significa que, para acessar uma IES privada, tanto faz para os mais ricos obterem uma nota alta ou baixa no Enem - independentemente do escore no exame, sua probabilidade de matricular-se no ensino superior privado após a conclusão do ensino médio gira em torno de 70%, tudo o mais constante. O que se vê é que notas elevadas tendem a deslocar tais jovens para o setor público. O saldo desse processo é que o desempenho tende a ser um preditor negativo para o acesso dos mais ricos a esse setor. O mesmo não se pode afirmar dos mais pobres, para os quais a nota pode, sim, contribuir para incrementar suas chances de acesso - segundo o modelo, de 34% no p1 para 54% no p60.
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
Para entender a magnitude das variações ao longo da escala de proficiência, a Tabela 2 ilustra as probabilidades preditas e os efeitos marginais médios de acesso ao ensino superior por desempenho, segundo a renda. Nas probabilidades preditas, compara-se o ingresso nos desempenhos mais baixos e mais altos - p5 e p95, respectivamente, excluindo-se os valores extremos -; nos efeitos marginais médios, os incrementos médios nas probabilidades de ingresso para cada desvio padrão ou ponto a mais.
Renda domiciliar per capita | Probabilidades preditas por nota | Efeitos marginais médios da nota | |||
---|---|---|---|---|---|
Em p5 (%) | Em p95 (%) | Diferença (p.p.) | Para cada desvio padrão | Para cada ponto | |
Público | |||||
1ºQ | 2,4 | 63,5 | 61,1 | 16,7 | 0,00153 |
2ºQ | 1,9 | 58,1 | 56,2 | 17,1 | 0,00158 |
3ºQ | 1,6 | 56,2 | 54,6 | 18,2 | 0,00173 |
4ºQ | 1,3 | 55,1 | 53,8 | 20,3 | 0,00203 |
5ºQ | 1,3 | 49,9 | 48,6 | 22,6 | 0,00263 |
Total | 1,7 | 56,9 | 55,2 | 18,8 | 0,00187 |
Privado | |||||
1ºQ | 28,1 | 28,6 | 0,5 | 2,9 | 0,00091 |
2ºQ | 41,3 | 34,7 | -6,6 | -1,7 | 0,00045 |
3ºQ | 51,4 | 38,0 | -13,4 | -6,0 | -0,00005 |
4ºQ | 63,3 | 39,7 | -23,6 | -11,8 | -0,00086 |
5ºQ | 84,8 | 46,5 | -38,3 | -19,7 | -0,00225 |
Total | 52,3 | 37,0 | -15,3 | -6,7 | -0,00027 |
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
Notas: Nota média em p5 = 394 pontos; nota média em p95 = 647 pontos; desvio padrão = 77,64 pontos.
Em todos os grupos socioeconômicos, as probabilidades preditas de ingresso no setor público partem de patamares diminutos no p5 (entre 1,3% no 5ºQ e 2,4% no 1ºQ) e se elevam enormemente no p95, com variações maiores para os mais pobres. No setor privado, por outro lado, as desigualdades baseadas na origem social são bastante intensas: enquanto o quinto mais rico parte de uma probabilidade de 84,8% no p5, o quinto mais pobre inicia com apenas 28,1%. Conforme cresce a nota, os grupos tendem a convergir, embora persista um hiato em favor dos de origem abastada. Em média, o 1ºQ mantém-se estagnado nas probabilidades de ingresso; já o 5ºQ despenca 38,3 p.p. e ainda assim sustenta uma larga vantagem com relação aos mais pobres. No geral, cada desvio padrão está associado a uma elevação média de 18,8 p.p. na probabilidade de ingresso no setor público, e a uma redução média de 6,7 p.p. no privado.
Desagregando por estrato socioeconômico, nota-se que o efeito da nota é, em média, praticamente nulo para o ingresso no setor privado. Cada desvio padrão a mais incrementa em 2,9 p.p. a probabilidade de o 1ºQ ingressar; e reduz em 1,7 p.p. a do 2ºQ. Ainda, o efeito médio que a nota apresenta entre os mais ricos (-11,8 p.p. para o 4ºQ e -19,7 p.p. para o 5ºQ) explica a tendência decrescente de ingresso no setor privado. Quanto maior a nota, menor é a tendência de os mais ricos acessarem esse setor, pois eles já partem de probabilidades elevadas de ingresso garantidas pela proteção socioeconômica que apresentam. Notas altas, portanto, significam maiores chances de acessar uma graduação no setor público, esta sim dependente do desempenho. Já para os pobres, a barreira socioeconômica das instituições privadas impede que, mesmo com notas altas, eles tenham elevadas probabilidades de ingresso. Por mais que, em alguns segmentos da escala, a nota contribua para elevar suas chances de ingresso, na média esse efeito é nulo.
E se o berço não fosse de ouro?
Há pelo menos dois elementos que devem ser articulados entre os resultados já apresentados, a fim de encaminhar este texto para as conclusões: a probabilidade de ingresso no ensino superior em função do nível socioeconômico, uma vez controladas as demais variáveis, que tendencialmente favorecem estudantes de background familiar privilegiado; e a distribuição percentual do desempenho entre os grupos socioeconômicos, isto é, as probabilidades de jovens de distintas origens sociais de obterem determinados desempenhos no Enem.
Multiplicando-se as probabilidades preditas de ingresso pelas probabilidades observadas de desempenho (Tabela 4, Apêndice), obtêm-se os resultados apresentados no Gráfico 5, inspirado em Bernardi e Triventi (2020): à esquerda, as probabilidades preditas ponderadas pela distribuição de desempenho, isto é, um cenário observado de probabilidades de ingresso nos setores público e privado a depender da nota; à direita, uma simulação contrafactual que imagina um cenário no qual os mais ricos e os mais pobres mantêm suas probabilidades preditas em função da renda domiciliar, mas têm suas distribuições de nota trocadas entre si; nessa hipótese, os mais pobres apresentariam o desempenho dos mais ricos, e vice-versa. Em ambos os resultados, exprime-se a probabilidade de se obter determinado desempenho e de ingressar no ensino superior com aquele desempenho, controlando-se as demais variáveis.
Fonte: Elaboração dos autores a partir do cruzamento de bases do Inep mencionados na seção metodológica.
No cenário observado, nota-se que os mais pobres (1ºQ) apresentam baixas probabilidades de ingresso ao longo de toda a escala de desempenho. Isso porque, com notas baixas, suas chances de ingresso no ensino superior são mínimas, especialmente no setor público; por outro lado, ainda que as notas altas possam representar uma estratégia de compensar desvantagens socioeconômicas, a probabilidade de esses jovens alcançarem notas elevadas no Enem é tão baixa que esse mecanismo de compensação teoricamente presente não se consolida na prática. Em outras palavras, é tão improvável que eles atinjam desempenhos elevados no Enem que quase nunca têm a oportunidade de compensar o baixo NSE por meio da nota. Em vista disso, suas chances de sucesso na transição médio-superior são irrisórias.
Já os mais ricos, como se notou anteriormente, são capazes de ingressar mesmo com notas baixas; porém, como raramente obtêm níveis baixos de desempenho, é mais frequente que ingressem com desempenho alto, daí porque a curva dos mais ricos cresce ao longo de toda a escala de desempenho, tanto no setor público quanto no privado. Isso significa que o destino mais provável dos mais ricos é lograr desempenhos altos e ingressar com tais notas: probabilidade ponderada de 26,0% (5,7% + 20,3%) para ingresso no setor público e de 24,9% (11,9% + 13,0%) no privado entre os dois maiores décimos de desempenho (9º e 10ºD, respectivamente). Ou seja, ainda que eles pudessem ingressar no setor privado com baixo desempenho, isso quase não ocorre porque a origem social lhes garante notas altas no Enem e, assim, a possibilidade de fazer uso destas para acessar uma graduação.
Contrastes interessantes são constatados no cenário contrafactual (Gráfico 5), em que trocamos a distribuição de notas entre os mais ricos e os mais pobres. Verifica-se que a curva dos mais pobres praticamente adquire a forma da curva dos mais ricos do gráfico referente ao cenário observado. Ou seja, com desempenho elevado, os jovens pertencentes ao 1ºQ teriam alta probabilidade de ingresso nas duas categorias administrativas: multiplicando-se a probabilidade predita pela distribuição de notas dos mais ricos, os mais pobres teriam 27,0% (7,3% + 19,7%) de probabilidade de ingresso no setor público e 24,4% (10,3% + 14,1%) no privado com notas dos dois maiores décimos de desempenho (9º e 10ºD, respectivamente). Já os mais ricos, por outro lado, veriam grande redução nas suas probabilidades de ingresso no setor público, mas não no privado: caso tivessem a distribuição de notas dos mais pobres, os jovens do 5ºQ apresentariam uma probabilidade de 1,3% (0,7% + 0,6%) de ingresso no setor público e de inacreditáveis 20,5% (10,5% + 10,0%) no privado, entre os dois menores décimos de desempenho (1º e 2ºD, respectivamente).
Em resumo, os mais pobres tendem a enfrentar mais dificuldades de ingressar no ensino superior por um duplo mecanismo: a tendência de obter notas baixas no Enem ao final do ensino médio e a tendência de não superarem barreiras socioeconômicas relacionadas ao acesso à graduação. Simetricamente, os mais ricos beneficiam-se duplamente: pelas notas altas e pela proteção que o nível socioeconômico lhes confere. Para ingressarem no ensino superior, os mais pobres dependeriam de um desempenho atipicamente elevado, algo improvável em seu meio social. Já os mais ricos, além de já tenderem ao desempenho alto, ainda contam com uma alternativa: a compensação de desvantagens, que lhes garante probabilidades relativamente elevadas de ingresso no setor privado, mesmo com os piores desempenhos.
Conclusão
Com base em um painel inédito de egressos do ensino médio de 2012, esta pesquisa demonstra que jovens de origem abastada são beneficiados duplamente em um movimento de acúmulo de vantagens, tanto pela propensão em obter desempenhos de excelência nos processos seletivos quanto pela proteção que a condição socioeconômica privilegiada lhes oferece diante de eventuais fracassos. Os de origem modesta, por sua vez, carregam o fardo dos desempenhos insuficientes e da ausência de salvaguardas de base econômica, em um evidente acúmulo de desvantagens, de tal sorte que, se o jovem for de origem privilegiada, o NSE representa uma proteção contra o baixo desempenho; se de origem humilde, somente o desempenho pode garantir o acesso ao ensino superior.
Ademais, as análises indicam que o acesso aos setores público e privado suscita regimes de ingresso radicalmente distintos. Enquanto o setor público é altamente seletivo do ponto de vista da nota e acomoda relativamente menos desigualdades socioeconômicas, o setor privado é palco de um hiato persistente entre os grupos de renda e depende pouco ou nada do desempenho, ao menos no agregado. Esse achado é visível pela decomposição de efeitos: o contraste entre os setores sugere que o desempenho é quase o único fator que explica por que os mais ricos tendem a prevalecer também nas IES públicas e corrobora o peso dos rendimentos familiares sobre a possibilidade de aquisição de um serviço privado.
Uma decorrência disso é a seguinte reflexão: caso obtivessem o mesmo desempenho, os mais ricos e os mais pobres teriam probabilidades idênticas de ingresso no ensino superior? Não, dado que, com a mesma nota, jovens de origem privilegiada ainda tendem a ingressar em maior proporção. Esse resultado não apenas enfatiza o peso dos efeitos diretos sobre o acesso a esse nível de ensino, como também chama a atenção para um elemento que coloca em xeque a própria noção de meritocracia: que mérito há em ingressar no ensino superior tendo os piores desempenhos na prova de seleção? É possível argumentar que determinados rincões do ensino superior continuam restritos a uma elite intelectual e são invariavelmente dependentes da nota. Mas, abstraindo-se o curso ou a instituição, o acesso à graduação, em si, corresponde a uma porta sempre aberta para os estratos privilegiados da sociedade, o que, na prática, significa um reforço à desigualdade de origem preexistente e tem como consequência tornar a disparidade na transição mais aguda quanto menor for a proficiência adquirida.
Resta evidente desses resultados que é exclusivamente por meio do setor privado que se opera o mecanismo que permite aos mais ricos ingressar no ensino superior mesmo com os piores desempenhos no Enem. Em uma interpretação ampla do fenômeno, percebe-se que os mais ricos, quando têm notas baixas ou medianas, têm elevada probabilidade de ingresso nas IES privadas; porém, se atingem notas altas, tendem a optar pelo setor público. Já os mais pobres dependem inteiramente das notas elevadas, não gozando de uma proteção contra o baixo desempenho. Essa salvaguarda dos mais ricos corresponde à possibilidade de superar as barreiras socioeconômicas da matrícula em uma instituição privada - fenômeno que explica a forte associação entre o background socioeconômico e o ingresso nesse setor, tanto nesta pesquisa quanto em anteriores (Brito, 2014; Collares, 2010; Mont’Alvão, 2015).
Há, evidentemente, limites a essas conclusões. Primeiro, o nível de inferência desta pesquisa são os egressos do ensino médio que participaram do Enem; não estamos tratando do conjunto da juventude elegível ao ensino superior, mas sim de uma demanda manifesta e, portanto, selecionada. Segundo, nosso exercício de mediação de efeitos é baseado em duas variáveis - o NSE e o desempenho - importantes, porém insuficientes para entender os diversos mecanismos que condicionam o acesso à graduação, de tal modo que novas pesquisas são necessárias para explorar em mais detalhes, por exemplo, fatores associados à escola ou à unidade federativa. Terceiro, a única dimensão de estratificação horizontal que abordamos é a diferenciação entre os setores público e privado, quando seria possível estender esse estudo a inúmeras outras dimensões que também segmentam o nível superior em distintos estratos de qualidade, prestígio e retorno econômico, a exemplo do curso, do grau acadêmico e da modalidade de ensino. A despeito disso, pelo caráter pioneiro da análise aqui empregada, acreditamos que esta pesquisa traz contribuições ao campo.
Retornando à questão colocada no título deste artigo, é difícil pensar que o acesso dos mais ricos ao ensino superior seja qualquer outra coisa que não berço. Pela profundidade das disparidades socioeconômicas, o acúmulo de aprendizado ao longo da vida escolar e as características intrínsecas de um sistema de graduação heterogêneo e desigual, os jovens de origem privilegiada estão condicionados a obterem sucesso na transição. Não somos insensíveis aos custos pessoais e familiares envolvidos no processo de admissão em certos cursos de determinadas instituições. Porém fato é que as condições para o sucesso estão dadas, e este ocorrerá por uma via ou por outra. Há alternativas à disposição, demandantes de mais ou menos esforço, mais ou menos dinheiro. Logo, não recai exclusivamente sobre os indivíduos esse fardo, e, em vista do contexto desigual em que estão inseridos, a situação familiar explica a desigualdade de resultados mais do que os esforços individuais. Por isso o berço sobressai sobre o mérito entre os jovens de origem privilegiada.
Com relação aos mais pobres, a resposta é mais complexa. De um lado, o berço não os beneficia, e, quanto a isso, não há polêmica: nascer em “berço de lata”, no Brasil, significa ser criado sob uma condição para a qual convergem inúmeras violações de direitos. Nesse sentido, os jovens de origem modesta devem jogar contra a sua origem social: batalhar pelo sucesso na transição, apesar do contexto de onde vieram. Para tanto, adentra nessa equação um segundo elemento: o mérito. Para ingressar no ensino superior, eles dependem quase inteiramente de seu esforço, a fim de compensar as defasagens relacionadas ao meio de origem. Diferentemente do nível socioeconômico, cuja base é familiar e, portanto, alheia à ação do indivíduo, o mérito tem um componente inescapavelmente individual.
No entanto as oportunidades para se ter mérito são profundamente desiguais. Fatores associados ao mérito do candidato - como a dedicação para obter um desempenho excelente em uma prova de seleção - não apenas dependem de condições preexistentes, disposições sociais e escolhas construídas no decorrer de sua trajetória individual, como também esbarram em constrangimentos estruturais que delimitam as possibilidades de acessar uma graduação. Se e onde existem vagas, os custos associados a elas, sua distribuição pelo território nacional e o investimento familiar no cumprimento desse objetivo são alguns elementos que podem ou não conflitar com o nível de proficiência do candidato e o esforço empregado por este para ingressar no curso de interesse. Logo, se há meritocracia no acesso à graduação no Brasil, ela existe para premiar - ou principalmente para punir - o desempenho dos mais pobres.