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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 14-Nov-2024

https://doi.org/10.1590/1980531411441 

TRABALHO DOMÉSTICO: CASA, MERCADO E POLÍTICA

APRESENTAÇÃO: TRABALHO DOMéSTICO: REGISTRAR E (RE)PENSAR O BRASIL

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;

IIUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria (RS), Brasil;

IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil;


O trabalho doméstico pode ser compreendido como uma das principais manifestações das desigualdades que moldaram e continuam a estruturar a sociedade brasileira. Os registros históricos das assimetrias de gênero, classe e raça nos informam que nesse trabalho expressam-se dimensões políticas e sociais mais amplas, como o processo fragmentado e fragilizado de democratização no país, a magnitude do mercado informal brasileiro, as desigualdades familiares embasadas em papéis tradicionais de gênero e os aspectos econômicos e culturais enraizados desde o período escravocrata - características que têm marcado em especial o modo de vida das mulheres negras brasileiras.

Essas dimensões vêm chamando a atenção de cientistas sociais há pelo menos cinco décadas. No Brasil, o campo de estudos de gênero e feminista foi o que mais se dedicou a compreender as características de desigualdade concernentes ao trabalho doméstico no país. Desde meados da década de 1970, pesquisadoras feministas têm investido em análises sobre uma ampla agenda que tem recoberto temas como as condições de trabalho, o perfil das trabalhadoras domésticas marcado pela raça e classe social, as contradições e posições entre “empregadoras e trabalhadoras”, as características singulares do mercado de trabalho para essas mulheres, as ações do movimento sindical e as formas pelas quais desigualdades e afetividades se manifestam - tão fortemente - nas relações que envolvem esse trabalho (Saffioti, 1978; Chaney & Castro, 1989). Nesse sentido, o “trabalho doméstico” foi um dos temas centrais na história dos estudos brasileiros na área de gênero e feministas, tendo dado lugar a um dos mais densos e relevantes acervos de análises na área. Ademais, é importante ressaltar a relevância do trabalho doméstico como um dos principais meios de acesso ao trabalho remunerado para as mulheres das classes mais baixas e com pouca escolaridade no país ao longo dos anos, o que traz consequências importantes em termos de representação política, econômica e cultural no Brasil (Bruschini & Lombardi, 2000).

Nos últimos anos, vimos o tema ser privilegiado em termos analíticos por outras áreas, como a sociologia do trabalho, os estudos decoloniais, a sociologia e antropologia das emoções, os estudos étnico-raciais, os estudos do cuidado, ampliando fronteiras disciplinares e adentrando fortemente em áreas como direito e comunicação social. Essas novas perspectivas analíticas têm enriquecido o campo, trazendo enfoques inovadores que flagraram mudanças significativas no trabalho doméstico no Brasil.

Por outro lado, nos últimos vinte anos também vimos crescer consideravelmente as políticas públicas destinadas a essas trabalhadoras, notadamente a equiparação de direitos trabalhistas por meio da Lei Complementar n. 150 (2015), a ratificação da Convenção n. 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2011) e mais recentemente as políticas delineadas no âmbito da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família. É de suma importância ressaltar o papel crucial do movimento sindical de trabalhadoras domésticas na conquista de tais políticas, consolidando a centralidade de suas militantes e das ações sindicais ao longo da história recente do Brasil. Isso não impediu, entretanto, que brechas regulatórias tenham produzido um cenário contraditório, no qual uma parte significativa das trabalhadoras “diaristas” foi excluída das proteções e direitos trabalhistas tão duramente conquistados.

No Brasil, as responsabilidades relacionadas às tarefas domésticas e ao cuidado estão passando por mudanças significativas, mas a casa continua sendo o lócus de múltiplas negociações e contratações, envolvendo questões de gênero, raça e classe. Um exemplo dessas mudanças é a redução na contratação de trabalhadoras domésticas mensalistas e o aumento significativo da contratação de diaristas. Essa transformação resulta em maior autonomia para essas trabalhadoras na gestão de seus contratos de trabalho e na opção por relações de trabalho menos servis - como se pode verificar na transição da residência na casa dos empregadores para a sua própria moradia (Monticelli, 2022). Em direção contrária, no entanto, o aumento gradual na contratação de cuidadoras de idosos aponta para uma nova internalização das ocupações remuneradas presentes nos domicílios. O cuidado no Brasil é realizado “portas adentro”, a custos da família. Considerando que apenas duas em cada dez famílias têm acesso a esse apoio profissional para a realização de tarefas domésticas e de cuidado, a interseccionalidade nessa situação assume uma geometria variável: quando se trata do cuidado remunerado, dominam as trabalhadoras negras, quando se trata do cuidado não remunerado, todas estão sujeitas a ele, basta serem mulheres (Pinheiro et al., 2021).

Ademais, se há tradições que persistem, surgem novas maneiras de cuidar. Nas famílias mais abastadas, que podem contratar profissionais, o ambiente doméstico se torna mais heterogêneo, complexo e tenso, com diversas disputas relacionadas a identidades, fronteiras e direitos envolvendo a prestação desses trabalhos e tarefas, fazendo com que o domicílio possa ser concebido quase como um “minimercado” (Guimarães, 2020). Nesse cenário, reiteram-se, na nova conjuntura, traços já conhecidos: o cuidado absorve mulheres mais pobres, menos escolarizadas e negras e libera as empregadoras para carreiras mais prósperas. Toda essa trama de negociações escapa às regras imaginárias de racionalidade econômica. Na interioridade dos lares, na intimidade da vida doméstica, as negociações são atravessadas por emoções e afetos, que jogam luz sobre as hierarquias e as disputas entre mulheres, diferenciadas por sua posição de classe e raça (Brites, 2003). De toda forma, nessas novas lógicas entre direitos e reconfigurações de mercado, a afetividade ainda se faz presente, mas toma contornos mais politizados e ancorados em uma perspectiva que envolve intimidade, responsabilidade, desigualdade e Estado.

Este dossiê pretende trazer a debate toda essa gama de questões e reconfigurações. À luz dos ensinamentos extraídos das análises produzidas por intelectuais pioneiras do campo, procuramos flagrar continuidades, mas também novos desafios que amparam as compreensões acerca das (re)configurações do presente.

A nossa reflexão conjunta sobre o tema do dossiê “Trabalho doméstico: Casa, mercado e política” começou a tomar forma a partir das reflexões partilhadas durante as discussões da mesa-redonda “O trabalho doméstico e de cuidados (remunerado) no Brasil: Onde estamos?”, que aconteceu em 2021 por ocasião do I Congresso da Red de Investigación sobre Trabajo del Hogar en América Latina (Rithal).1 Naquele momento, o objetivo era realizar um balanço dos estudos sobre trabalho doméstico e de cuidados nas últimas cinco décadas, indicando as continuidades e, ao mesmo tempo, apontando as reconfigurações normativas e do mercado, sem perder de vista os valores familiares e a projeção desse debate na vida política mais ampla. O dossiê está embasado em uma perspectiva que recupera o histórico do ativismo das militantes, das suas conquistas de direitos e do legado empírico e teórico deixado por esse processo para bem analisarmos as mudanças e transformações que se apresentam atualmente.

O primeiro artigo do dossiê, intitulado “Fronteiras no trabalho remunerado em domicílio: Dilemas analíticos e identitários”, de autoria de Anna Bárbara Araujo, Nadya Araujo Guimarães e Luana Simões Pinheiro, reflete sobre o trabalho remunerado nos domicílios brasileiros, sublinhando a diversidade das suas configurações, seja pelo prisma da literatura acadêmica, seja à luz de dados estatísticos mais recentes. As autoras mostram como os trabalhos domésticos e de cuidado figuram na literatura ora de maneira fragmentada, como campos distintos, ora de maneira articulada, subsumidos em um campo mais amplo, obrigando-nos a encarar dilemas analíticos desafiadores. Evidenciam, também, como os recentes movimentos do mercado de trabalho não apenas estimulam novos enquadramentos teóricos, como deixam pistas para entender a produção e diluição das fronteiras entre tais ocupações, iluminando os dilemas identitários que se colocam.

Já o artigo de Jurema Brites, Thays Monticelli e Cecy Bezerra de Melo, “Os sentidos do afeto nos estudos sobre trabalho doméstico”, busca analisar como o afeto - uma das principais categorias do campo - foi articulado teoricamente, destacando um caráter dicotômico entre opressões e agências nas quais a afetividade era vinculada analiticamente pelos estudos da área. As autoras propõem uma análise que repense o afeto a partir da teoria da prática, abrangendo conjuntamente os processos de desigualdades e as possibilidades de emancipação a partir da afetividade. O artigo ainda busca compreender como essa dimensão se apresentou no cenário da pandemia de covid-19, apontando de que modo o afeto ancorou atitudes ambíguas de desigualdades, de hierarquias e de acolhimento. Por outro lado, a ausência de afeto possibilitou reflexões sobre a garantia (ou não) de direitos, abrindo alguma brecha para o reconhecimento da “humanidade” a partir de uma relação afetiva politizada.

“Sempre elas? Valores e divisão do trabalho doméstico em perspectiva comparada”, de Felícia Picanço, Maira Covre-Sussai, Isadora Vianna Sento-Sé e Clara Araújo, aporta um olhar comparativo sobre os valores e práticas relacionados à divisão sexual do trabalho doméstico, a partir de análises multinível dos dados quantitativos disponibilizados pelo Family and Changing Gender Roles, do International Social Survey Programme (ISSP). As autoras investigam papéis de gênero, valores, modelos de família, práticas domésticas e políticas públicas em quarenta países de diferentes continentes. Dessa forma, buscam compreender quais fatores têm maior impacto na manutenção ou mudança nos padrões de divisão sexual do trabalho.

Esse conjunto de artigos que tratam das lógicas de contratação, das dinâmicas familiares em relação às divisões de tarefas domésticas e seus valores, das relações estabelecidas cotidianamente e suas perspectivas afetivas e de desigualdades são complementados por outros dois artigos do dossiê que nos remetem às políticas institucionais mais amplas. O artigo de autoria de Alexandre Barbosa Fraga, “Serviço doméstico e equiparação legal: Disputa argumentativa e fatores associados”, analisa como foram arquitetados os discursos favoráveis e contrários no Congresso Nacional brasileiro em relação à equiparação de direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas, assim como na aprovação da Convenção n. 189 da OIT, conduzindo seus dados a partir do contexto político que o Brasil apresentava naquele momento.

O artigo de Joaze Bernardino-Costa, Meg Weeks e Renata Monteiro Lima, intitulado “Ativismo das trabalhadoras domésticas: Da cozinha à arena nacional e internacional”, retoma a história do movimento sindical de trabalhadoras domésticas à luz da decolonialidade. Para além de ressaltar o papel fundamental das militantes nas conquistas dos direitos trabalhistas no Brasil e de seu protagonismo na aprovação da Convenção n. 189 da OIT, o estudo indica o surgimento de um novo sujeito político decolonial, na medida em que as trabalhadoras domésticas, no seu ativismo sindical, fazem emergir a possibilidade de um novo modelo de nação.

Dessa maneira, o dossiê “Trabalho doméstico: Casa, mercado e política” traz à tona novas possibilidades analíticas para pensar a casa e o mercado no que se refere às desigualdades no trabalho doméstico, às dinâmicas de contratação, à afetividade e a novos desafios apresentados a partir da heterogeneidade das trabalhadoras domésticas e de cuidado. Partindo do cotidiano dos lares, os artigos avançam em direção aos espaços institucionais de disputas por direitos - o Congresso Nacional e os sindicatos -, indicando que o cotidiano e as experiências das trabalhadoras domésticas e do cuidado refletem a organização social e política da nação, com seus traços arcaicos coloniais e as lutas persistentes por espaços de democratização e justiça social, atentas aos desafios que hoje se colocam para a sociedade brasileira. Por isso mesmo, todos os artigos do dossiê sublinham as continuidades e desigualdades que insistem em permanecer nas práticas, discursos e lógicas que embasam as relações do trabalho doméstico no país; dessa forma, aspectos fundamentais da sociedade brasileira são registrados e (re)pensados. Mas, e ao mesmo tempo, os textos examinam as potencialidades abertas pela capacidade de agência dessas trabalhadoras, o que nos anima a explorar novos horizontes na tessitura dos elos entre casa, mercado e política.

Como citar este textoGuimarães, N. A., Brites, J., & Monticelli, T. (2024). Apresentação - Trabalho doméstico: Registrar e (re)pensar o Brasil. Cadernos de Pesquisa, 54, Apresentação e11441. https://doi.org/10.1590/1980531411441

Referências

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Bruschini, C., & Lombardi, M. R. (2000). A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, (110), 67-104. https://doi.org/10.1590/S0100-15742000000200003Links ]

Chaney, E., & Castro, M. G. (1989). Muchachas no more: Household works in Latin America and the Caribbean. Temple University Press. [ Links ]

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Pinheiro, L., Tokarski, C. P., & Posthuma, A. C. (2021). Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: Dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Ipea; OIT. http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-026-4Links ]

Saffioti, H. (1978). Emprego doméstico e capitalismo. Vozes. [ Links ]

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