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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 04-Jul-2024

https://doi.org/10.1590/1980531410079 

ARTIGOS

PROGRAMA DE INOVAÇÃO EDUCAÇÃO CONECTADA: POLÍTICA DE AMPLIAÇÃO DO CAPITAL

PROGRAMA DE INOVAÇÃO EDUCAÇÃO CONECTADA: CAPITAL INCREASE POLICY

PROGRAMA DE INOVAÇÃO EDUCAÇÃO CONECTADA: POLÍTICA DE AMPLIACIÓN DEL CAPITAL

PROGRAMA DE INOVAÇÃO EDUCAÇÃO CONECTADA: POLITIQUE D’AUGMENTATION DE CAPITAL

Marcos Antonio Alves FilhoI  , Coleta de dados, análise dos dados, escrita do texto
http://orcid.org/0000-0003-3702-4981

Júlia Cavasin OliveiraII  , Coleta de dados, análise dos dados, escrita do texto
http://orcid.org/0000-0003-2213-3683

Adda Daniela Lima Figueiredo EchalarIII  , Coleta de dados, análise dos dados, escrita do texto
http://orcid.org/0000-0003-3026-8860

IUniversidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia (GO), Brasil; marcosantonio_12@hotmail.com

IIUniversidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia (GO), Brasil; profajuliacavasin@gmail.com

IIIUniversidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia (GO), Brasil; adda.daniela@ufg.br


Resumo

A pesquisa em tela teve como objetivo compreender os fundamentos teóricos que orientam o Programa de Inovação Educação Conectada. Tendo como método de pesquisa o materialismo histórico-dialético, foi realizada uma análise documental nos documentos oficiais disponíveis no site do Programa. Os dados deste estudo nos possibilitam compreender que os fundamentos teóricos presentes no Programa corroboram a perspectiva neoliberal para a educação. Em função disso, as lógicas determinista e instrumental são as preponderantes na fundamentação do Programa e no modo como busca estabelecer as relações entre as tecnologias e a educação. Além disso, esse mesmo Programa, sob a égide da inovação, abre caminho para ampliar as possibilidades de parcerias público-privadas.

Palavras-Chave: INTERNET; INCLUSÃO DIGITAL; TECNOLOGIA; INOVAÇÃO

Abstract

The present research aimed to understand the theoretical foundations that guide the Programa de Inovação Educação Conectada [Connected Education Innovation Program]. Using the historical-dialectical materialism as the research method, a documentary analysis was carried out in the official documents available on the Program’s website. The data from this study allow us to understand that the theoretical foundations of the Program corroborate the neoliberal perspective for education. As a result, the deterministic and instrumental logics are preponderant in the Program’s foundation and in the way it seeks to establish the relations between technologies and education. In addition, this same program, under the aegis of innovation, opens the way to expand the possibilities of public-private partnerships.

Key words: INTERNET; DIGITAL INCLUSION; TECHNOLOGY; INNOVATION

Resumen

La investigación en pantalla tuvo como objetivo comprender los fundamentos teóricos que orientan el Programa de Inovação Educação Conectada [Programa de Innovación Educación Conectada]. Teniendo como método de investigación el materialismo histórico-dialéctico, se realizó un análisis documental en los documentos oficiales disponibles en el sitio web del Programa. Los datos de este estudio nos permiten comprender que los fundamentos teóricos presentes en el Programa corroboran la perspectiva neoliberal para la educación. En función de esto, las lógicas determinista e instrumental son las preponderantes en la fundamentación del Programa y en el modo como busca establecer las relaciones entre las tecnologías y la educación. Además, este mismo Programa, bajo la égida de la innovación, abre el camino para ampliar las posibilidades de asociaciones público-privadas.

Palabras-clave: INTERNET; INCLUSIÓN DIGITAL; TECNOLOGÍA; INNOVACIÓN

Résumé

Cette recherche visait à comprendre les fondements théoriques qui guident le Programa de Inovação Educação Conectada [Programme d’Innovation Éducation Connectée]. Le matérialisme historico-dialectique a été employé comme méthode de recherche, une analyse documentaire a été menée sur les documents officiels disponibles sur le site web du programme. Les données de cette étude nous permettent de comprendre que les fondements théoriques présents dans le programme corroborent la perspective néolibérale de l’éducation. Par conséquent, les logiques déterministe et instrumentale sont prédominantes dans la logique du programme et dans la manière dont il cherche à établir la relation entre les technologies et l’éducation. En outre, ce même programme, sous l’égide de l’innovation, ouvre la voie à l’élargissement des possibilités de partenariats public-privé.

Key words: INTERNET; INCLUSION NUMÉRIQUE; TECHNOLOGIE; INNOVATION

Colocar em perspectiva o processo de expansão do capital é fundamental para compreender as relações entre o desenvolvimento do neoliberalismo e a educação, pois, em larga escala, vivenciamos políticas de retiradas de direito e serviços sociais, o que inclui cada aspecto social da vida no mercado capitalista (Dourado, 2019). Esse processo de mercantilização dos aspectos básicos da vida, como educação, saúde, segurança, entre outros, se torna um imperativo para o desenvolvimento da sociedade capitalista, principalmente em suas periferias.

A educação torna-se um serviço atrativo para o capital, pois garante novas fontes de investimento e financeirização e, ao mesmo tempo, permite a utilização das estruturas do Estado para garantir estabilidade no seu investimento. Desse modo, a doutrina político-econômica neoliberal amplia a ação do mercado nas áreas de serviços para a sociedade e coloca todas as possíveis chances de prejuízos às custas do Estado (Harvey, 2008). Assim, o Estado burguês torna-se pequeno para a sociedade civil, mas, para o mercado e a classe burguesa, se mostra mais eficiente e generoso.

No caso da burguesia brasileira, devemos considerar que essa classe vive o conflito de ser uma burguesia dependente de outras nações, ou seja, a classe burguesa do Brasil só existe em associação com outros países. Logo, as demandas da classe dominante do Brasil não visam a um projeto de nação e sociedade, mas a estabelecer laços de dependência mais fortes com o capital internacional para garantir a sua existência (Dourado, 2019).

No contexto atual, pós-golpe, o processo de flexibilização do trabalho e o corte nos investimentos em educação efetivam políticas concretas pró-capital, como a tentativa de implementação do Decreto n. 9.741 (2019), a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição n. 187 (2019) e da Proposta de Emenda à Constituição n. 188 (2019), que demonstram que, se por um lado os investimentos do Estado na educação pública são enxutos, por outro abrem-se caminhos para a inserção de investimentos privados na educação (Nacif & Silva, 2019).

É nesse contexto que foi construída a política pública intitulada Programa de Inovação Educação Conectada (Piec), que tem como objetivo “apoiar a universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica” (Portaria n. 1.602, 2017).

A partir desse panorama, este trabalho teve como objetivo compreender quais são os fundamentos pedagógicos que orientam o Programa de Inovação Educação Conectada. A pesquisa em tela se efetivou tendo o materialismo histórico-dialético como método de investigação e análise. Para tanto, foi efetuada uma pesquisa exploratória sobre os principais documentos que criam e implementam o Programa, a fim de desvelar que relações entre educação e tecnologias ele procura estabelecer (Peixoto, 2012, 2015, 2020) e, consequentemente, suas principais finalidades educativas (Libâneo, 2019).

Princípios e diretrizes do Piec: Adensamento da cadeia produtiva por meio da instrumentalidade

Os documentos analisados, disponíveis no site do Programa, estão elencados na Tabela 1.

De acordo com as diretrizes do Piec, o Programa visa a “estimular nos estados e municípios o planejamento da inovação e tecnologia como elementos transformadores da educação, promovendo valores como: qualidade, contemporaneidade, melhoria de gestão e equidade” (Programa de Inovação Educação Conectada [Piec], n.d., p. 9, grifo nosso).

Tabela 1 Documentos oficiais relacionados ao Programa de Inovação Educação Conectada 

Ano Sigla Documento Objetivo
2017 D1 Decreto n. 9.204, de 23 de novembro de 2017 “Institui o Programa de Inovação Educação Conectada e dá outras providências” (Decreto n. 9.204, 2017).
D2 Portaria n. 1.602, de 28 de dezembro de 2017 “Dispõe sobre a implementação, junto às redes de educação básica municipais, estaduais e do Distrito Federal, das ações do Programa de Inovação Educação Conectada, instituído pelo Decreto n. 9.204, de 23 de novembro de 2017” (Portaria n. 1.602, 2017).
2019 D3 Portaria n. 29, de 25 de outubro de 2019 “Define critérios da fase de expansão do Programa de Inovação Educação Conectada para repasse de recursos financeiros às escolas públicas de educação básica em 2019” (Portaria n. 29, 2019).
D4 Portaria n. 34, de 27 de dezembro de 2019 “Estabelece os critérios para o apoio técnico e financeiro, em caráter suplementar e voluntário, às redes públicas de educação básica dos estados, Distrito Federal e municípios, via Plano de Ações Articuladas (PAR), para atendimento da iniciativa de aquisição de equipamentos e recursos tecnológicos, no âmbito do Programa Inovação Educação Conectada” (Portaria n. 34, 2019).
2020 D5 Portaria n. 9, de 2 de julho de 2020 “Define critérios do Programa de Inovação Educação Conectada - PIEC, para repasse de recursos financeiros às escolas públicas de educação básica em 2020” (Portaria n. 9, 2020).
N.d. D6 Diretrizes do Programa de Inovação Educação Conectada “Trata o presente documento da compilação de diretrizes técnicas e pedagógicas, critérios de participação, definições acerca do sistema e orientações sobre ações de apoio aos entes federados que venham aderir ao Programa de Inovação Educação Conectada” (Piec, n.d., p. 3).

Fonte: Elaboração dos autores.

Se nos aprofundarmos no primeiro valor apresentado, a qualidade, percebemos que o Programa considera qualidade como sinônimo de uso de tecnologias na aprendizagem, pois pressupõe que o uso de tecnologias pelo estudante, por si só, garantirá a ele um melhor desempenho escolar. Essa visão está expressa no trecho a seguir: “Diversos estudos evidenciam a demanda por diretrizes nacionais para ações de inovação e uso de tecnologia nas escolas, tendo como premissa que a utilização pedagógica das tecnologias da informação é necessária para a melhoria das condições de aprendizagem” (Piec, n.d., p. 3, grifo nosso). Isso evidencia que o Programa orienta suas ações pela lógica determinista, a qual considera a tecnologia como motor do processo educativo.

Os valores da contemporaneidade, melhoria da gestão e equidade não são aprofundados nos documentos oficiais do Programa, entretanto nas suas diretrizes destaca-se que “[c]omo base conceitual para o Programa foi considerada a Teoria das 4 dimensões (Four in Balance), a partir do estudo realizado pelo CIEB [Centro de Inovação para a Educação Brasileira], no âmbito do Guia EduTec” (Piec, n.d., p. 8). De acordo com o relatório do Guia EduTec: “A visão no Guia EduTec mede a crença de que a tecnologia pode promover um ensino de qualidade e uma gestão escolar eficaz e as maneiras com que essa crença se traduz em estratégias e políticas efetivas” (Centro de Inovação para a Educação Brasileira [Cieb], 2016, p. 15, grifo nosso). Nesse sentido, o Programa tem como pressuposto a crença dos indivíduos na tecnologia. Isso significa dizer que o caráter explicativo que o Programa adota é pautado no puro fetichismo que encarna valores historicamente construídos como se fossem atributos do aparato tecnológico.

Podemos perceber outra relação estabelecida por essa política pública, a saber, a viabilização da parceria público-privada. Brito e Marins (2020) destacam que o Itaú Cultural e a Fundação Lemann mantiveram parcerias com o setor público para financiamento do Piec. A educação no setor privado se torna uma mercadoria cujos processos de produção são pautados em lógicas de gerenciamento empresariais, como produtividade e velocidade. A finalidade da escola de transmissão do conhecimento científico e da cultura, com uma função emancipadora, é substituída pelo critério produtivo mercadológico (Libâneo, 2011). Enfim, o máximo de lucro com o mínimo de investimento.

Assim, podemos discutir as relações entre educação e tecnologias no Programa e suas finalidades educativas a partir de três unidades de análise: i. Condições concretas, ii. Trabalho e formação e iii. Inovação (Tabela 2).

Tabela 2 Excertos do Piec que versam sobre “condições concretas, trabalho e formação e inovação”: Subsídios para análise 

Doc. Condições concretas Trabalho e formação Inovação
D1 “Art. 2º O Programa de Inovação Educação Conectada visa a conjugar esforços entre órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, escolas, setor empresarial e sociedade civil para assegurar as condições necessárias para a inserção da tecnologia como ferramenta pedagógica de uso cotidiano nas escolas públicas de educação básica” (Decreto n. 9.204, 2017). “Art. 3º São princípios do Programa de Inovação Educação Conectada:
IX - incentivo à formação de professores e gestores em práticas pedagógicas com tecnologia e para uso de tecnologia” (Decreto n. 9.204, 2017).
“Parágrafo único. A execução do Programa de Inovação Educação Conectada se dará em articulação com outros programas apoiados técnica ou financeiramente pelo Governo Federal, voltados à inovação e à tecnologia na educação.
I - apoio técnico às escolas e às redes de educação básica para a elaboração de diagnósticos e planos locais para a inclusão da inovação e da tecnologia na prática pedagógica das escolas” (Decreto n. 9.204, 2017).
D2 “III - Recursos Educacionais Digitais: acesso a recursos educacionais digitais e incentivo à aquisição e socialização de recursos entre as redes de educação básica; e IV - Infraestrutura: apoio à aquisição e contratação dos serviços e equipamentos necessários ao uso da tecnologia nas escolas públicas, inclusive serviços de conexão à internet de alta velocidade” (Portaria n. 1.602, 2017, p. 2). “II - Formação: disponibilização de materiais e oferta de formação continuada a professores, gestores e articuladores locais, e articulação com instituições de ensino superior para incluir o componente tecnológico na formação inicial” (Portaria n. 1.602, 2017, p. 2). “I - Visão: estímulo ao planejamento por estados e municípios da inovação e tecnologia como elementos transformadores da educação, promovendo valores como: qualidade, contemporaneidade, melhoria de gestão e equidade” (Portaria n. 1.602, 2017, p. 2).
D3 “Art. 1º Ficam definidos os critérios técnicos para o repasse direto de recursos financeiros às escolas públicas em 2019, no âmbito do Programa Inovação Educação Conectada.
§ 1º O repasse de recursos financeiros da fase de expansão condiciona-se ao limite orçamentário anual e prioriza, nesta ordem, a manutenção do benefício a escolas contempladas na fase de indução e a novas escolas, desde que todas atendam aos critérios desta Portaria” (Portaria n. 29, 2019).
-x- “Art. 3º São critérios de elegibilidade:
I - escola urbana localizada em área com cobertura de serviço de conexão de internet terrestre por fibra ótica, conforme relação fornecida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - MCTIC;
II - escola com rede elétrica; e
III - escola com Unidade Executora - UEx.
Art. 4º São critérios de inclusão:
I - escola com número de matrículas maior que 14 alunos;
II - escola com, no mínimo, 03 computadores para uso pelos alunos;
III - escola com, no mínimo, 01 computador para uso administrativo;
IV - escola com, pelo menos, 01 sala de aula em funcionamento.
Art. 5º São critérios de classificação:
I - escola com desempenho abaixo da média nacional do último resultado do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB.
II - escola localizada em município de alta vulnerabilidade socioeconômica, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDH-m” (Portaria n. 29, 2019).
Doc. Condições concretas Trabalho e formação Inovação
D6 “I - equidade de condições entre as escolas públicas da educação básica para uso pedagógico da tecnologia;
II - promoção do acesso à inovação e tecnologia em escolas situadas em regiões de maior vulnerabilidade socioeconômica e baixo desempenho em indicadores educacionais;
III - colaboração entre entes federados;
VI - acesso à internet com qualidade e velocidade compatíveis com as necessidades de uso pedagógico dos professores e alunos;
VII - amplo acesso a recursos educacionais digitais de qualidade” (Piec, n.d., p. 8).
“IV - autonomia de professores na adoção da tecnologia para a educação;
V - estímulo ao protagonismo do aluno;
VIII - incentivo à formação de professores e gestores em práticas pedagógicas com tecnologia e para uso de tecnologia” (Piec, n.d., p. 8).
“Diversos estudos evidenciam a demanda por diretrizes nacionais para ações de inovação e uso de tecnologia nas escolas, tendo como premissa que a utilização pedagógica das tecnologias da informação é necessária para a melhoria das condições de aprendizagem” (Piec, n.d., p. 3).

Fonte: Elaboração dos autores.

Nas subseções a seguir aprofundaremos a discussão sobre cada unidade de análise.

Adensamento da cadeia produtiva sem garantias para todos/as: Em relação às condições concretas

No Manual do Piec (Piec, 2020, p. 3), é especificado que o Programa tem como foco “promover grandes avanços na educação brasileira e garantir melhores oportunidades para nossos estudantes por meio de uma educação inovadora e conectada com as novas tecnologias”. Tal fato evidencia um olhar tecnocentrado acerca da relação entre as tecnologias e o processo educativo. Se a visão do Programa é a crença de que a tecnologia transforma a educação e é essa mesma crença que dá legitimidade para que ações de políticas públicas educacionais tenham foco somente nas potencialidades técnicas do artefato tecnológico, o discurso sobre inovação que fundamenta esse Programa corrobora justamente essa lógica de expropriação do trabalho.

O avanço educacional proposto pelo Programa consiste, basicamente, em “garantir” às escolas com maior vulnerabilidade social e com baixo desempenho no Ideb condições igualitárias de consumo de tecnologias oferecidas pelo setor privado. O disposto no artigo 12, item III, do Decreto n. 9.204, de 23 de novembro de 2017, corrobora essa interpretação: “Art. 12. Compete ao BNDES: III - modelar, gerir e operacionalizar apoio econômico integrado de entidades privadas e de organizações da sociedade civil para acelerar a adoção do Programa” (Decreto n. 9.204, 2017, grifo nosso).

No que se refere ao aspecto da construção dos recursos digitais, os principais objetivos apresentados pela diretriz são:

  • publicação de referenciais para o uso pedagógico da tecnologia;

  • apoio técnico ou financeiro às escolas e redes de educação básica para aquisição de recursos educacionais digitais ou suas licenças; e

  • fomento ao desenvolvimento de recursos educacionais digitais. (Piec, n.d., p. 17).

Nesse âmbito, para alcançar esses objetivos são propostas duas linhas de ação: a construção de um repositório nacional que “unirá recursos educacionais digitais e de formação gratuitos, próprios e de parceiros, com processo de curadoria e alinhamento com a BNCC [Base Nacional Comum Curricular]” (Piec, n.d., p. 17, grifo nosso) e a alteração do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para possibilitar aos estados e municípios optarem pela utilização de livros didáticos ou recursos digitais em sala de aula, como destacado no trecho a seguir: “Está em desenvolvimento uma reformulação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e do Guia de Tecnologias do Ministério. Com isso, o PNLD permitirá que os municípios, estados e o DF optem pela aquisição de livros ou recursos digitais pré-qualificados” (Piec, n.d., p. 17).

O foco do documento está totalmente voltado para as tecnologias digitais, ao ponto de destacar a possibilidade de substituição do livro didático impresso por recursos digitais. Cabe frisar que uma tecnologia não substitui a outra, visto que ambas têm suas funcionalidades diante de objetivos pedagógicos elaborados pelo professor em seu momento de planejamento.

Nesse sentido, o Programa coloca a escola como consumidora e dependente de serviços da rede privada.

. . . existe uma ofensiva orquestrada contra os direitos do trabalho (que une governos neoliberais e todas as frações do capital), especificamente manifestos pelas terceirizações e precarizações no mundo do trabalho; a reestruturação produtiva produz uma nova ótica nas formas de produzir, substituindo o trabalhador fordista por um trabalhador diversificado e plural, sendo uma condição objetiva para o desgaste e desmonte das organizações sindicais, tendo em vista o desemprego estrutural e as formas fragmentadas de trabalho; por fim, a reforma do Estado foi conduzida por processos acelerados de privatização e desestatização das coisas e serviços públicos, ampliando as manobras do capital no sentido de encontrar áreas para acumulação ampliada de sua lucratividade. A PPP é corolário da perspectiva de privatização dos bens públicos e consequentemente produzem efeitos consideráveis no horizonte das políticas públicas. (Mazetto, 2015, p. 13).

Além disso, os estudantes não têm condições materiais concretas de acesso aos materiais digitais, como foi comprovado pelo processo educativo que se efetivou durante a pandemia de covid-19. Esse fetiche revela que a tecnologia, para o Programa, tem caráter messiânico, uma vez que ele parte do pressuposto de que todos os problemas educacionais e as desigualdades sociais que a escola vivencia podem ser justificados pela falta de fé que trabalhadores da educação têm em relação ao uso das tecnologias. Faz-se necessário, portanto, opor-se à lógica determinista apresentada pelo Programa, pois incluir o acesso à rede de internet com recursos básicos não significa inclusão social (Heinsfeld & Pischetola, 2019; Peixoto & Echalar, 2017).

Marx (2017) destaca que o fetiche da mercadoria coloca à margem seus produtores e transforma as relações sociais entre capitalistas e trabalhadores em relações entre coisas.

Trabalho e formação: Instrumentalidade para professores e estudantes

Outro fator que influencia o viés determinista do Piec é o foco em resultados ou, em outras palavras, a redução do processo educativo a dados estatísticos e quantitativos, como se esses fossem responsáveis pelo progresso da educação.

O Programa Inovação Educação Conectada se apresentou como uma política sustentável, para que cada estudante brasileiro possa utilizar as novas tecnologias de forma a obter uma educação plena, que lhe traga desenvolvimento pessoal, e que o prepare para ser um agente de desenvolvimento de seu país. (Moreira et al., 2019, p. 35).

Colocar toda a responsabilidade do processo de ensino e aprendizagem na tecnologia, sem valorizar os sujeitos envolvidos nesse percurso, é encarar a situação de maneira tecnocêntrica.

As diretrizes do Programa destacam que a formação de professores deve estar alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e ser dividida em dois momentos distintos - formação inicial e continuada:

Formação inicial

As ações do Ministério em relação à formação inicial são:

  1. disponibilizar currículos de referência para formação de professores mediados por tecnologia, alinhados com a BNCC;

  2. articular com instituições de ensino superior para incluir o componente tecnológico na formação inicial ofertada; e

  3. apoiar o desenvolvimento de formação com “residência pedagógica”, aliando a formação teórica à prática.

Formação continuada

Para a formação continuada está previsto:

  1. ofertar formação a professores e gestores da educação básica, voltada à inovação e tecno- logia educacional, em nova plataforma formativa;

  2. disponibilizar trilhas de formação on-line, a serem criadas pelo MEC [Ministério da Educação], com os materiais de formação existentes e com novos materiais alinhados à BNCC (por exemplo: redesenho do curso “Cultura Digital”); e

  3. preparar cursos específicos sobre práticas pedagógicas mediadas por tecnologia, cultura digital e outros recursos educacionais, como robótica. (Piec, n.d., p. 16, grifo nosso).

A decisão de amarrar a formação de professores à BNCC não é aceita entre os profissionais da educação em suas variadas instâncias, uma vez que, para muitos, ela visa a tornar o trabalho docente algo meramente procedimental. Afinal, Aguiar (2018, p. 19) destaca que, segundo a BNCC, cabe ao professor executar ações para que os discentes adquiram certas habilidades e competências em detrimento da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, bem como o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.

De acordo com as diretrizes do Programa, a escola “deverá considerar o grau de adoção de tecnologia no uso pedagógico, dentro das quatro dimensões do Programa” (Piec, n.d., p. 13). As quatro dimensões do Piec (visão, formação, recursos educacionais digitais e infraestrutura) partem da premissa de que o uso de tecnologia melhora de modo imediato a aprendizagem e, sendo assim, se esquivam de uma discussão mais aprofundada dos referenciais pedagógicos do Programa. O que o Programa considera como utilização pedagógica das tecnologias é, porém, um tanto ou quanto túrbido. Podemos perceber essa turbidez quando analisamos expressões vagas e constantes nos documentos responsáveis por orientá-lo, tais como: “Diversos estudos evidenciam a demanda por diretrizes nacionais para ações de inovação e uso de tecnologia nas escolas, tendo como premissa que a utilização pedagógica das tecnologias da informação é necessária para a melhoria das condições de aprendizagem” (Piec, n.d., p. 3). Quais os fundamentos da utilização pedagógica das tecnologias para o Programa? Ao focar somente no uso de aparatos tecnológicos, podemos perceber um viés praticista do Programa que reduz a atividade docente ao recurso.

O Programa, ao enfatizar a tecnologia como uma mera ferramenta, pode nos mostrar indícios de uma lógica que homogeneíza a relação entre os meios e os fins de uma determinada atividade. Isso porque aponta para o entendimento de que as tecnologias utilizadas pelo professor não se relacionam com as suas intencionalidades, como se o único critério que envolvesse as relações entre educação e tecnologias fosse as inclinações dos sujeitos (Peixoto, 2015). Esse viés praticista hipertrofia aspectos práticos do trabalho pedagógico, reduzindo-o a formas e procedimentos de ensino. Quando analisamos os temas propostos na formação de articuladores locais, o Piec foca sua formação no uso de tecnologias e metodologias para o diagnóstico do Plano Local de Inovação, como destacado no seguinte trecho:

O curso inicial terá duração de três meses, sequenciais ou alternados, e será composto por aulas expositivas e atividades práticas, abordando os seguintes temas:

  • diretrizes do Programa;

  • dimensões: visão, formação, recursos educacionais digitais e infraestrutura;

  • temas sobre o uso de tecnologia para fins pedagógicos nas escolas; e

  • metodologia de elaboração de diagnóstico e do Plano Local de Inovação da rede de educação básica.

Na etapa final do curso inicial, o participante realizará exercícios de simulação do Diagnós- tico e Plano Local de Inovação, aplicando os conhecimentos adquiridos. (Piec, n.d., p. 12).

Dessa forma, o foco do Programa é o “como ensinar” com o uso das tecnologias, em detrimento de uma visão mais abrangente e crítica sobre o processo educativo e o trabalho pedagógico- -didático. Tal fato evidencia que o trabalho pedagógico é colocado sob a égide da racionalidade prática, de modo procedimental e tecnicista.

O discurso vigente sobre tecnologias e educação está relacionado ao suposto caráter descentralizador das tecnologias de informação e comunicação (TIC), consequentemente a tecnologia na educação imbricaria em si um processo de ensino e aprendizagem focado nas nuances de cada estudante e, ao mesmo tempo, possibilitaria um ambiente escolar mais democrático e voltado para o sujeito (Shiroma, 2011).

Na próxima seção, aprofundaremos as discussões sobre o lugar da inovação tecnológica nos documentos do Programa e a viabilização institucional para as parcerias público-privadas na educação básica pública de nosso país.

A inovação como instrumento de reprodução da lógica neoliberal de educação

O processo de inovação com base nas diretrizes do Piec será garantido por meio de apoio técnico e financeiro dado às escolas contempladas pelo Programa. Nesse sentido, para que as escolas possam receber esse apoio é necessário que a secretaria de educação municipal, estadual e/ou do Distrito Federal realize um diagnóstico local e elabore um plano local de inovação “com base na metodologia criada pelo Cieb para o Guia EduTec”, disponibilizado “nos módulos ‘Educação Conectada’ do Simec e do PDDE Interativo” (Piec, n.d., p. 13).

Além disso, as escolas públicas devem realizar um plano de aplicação financeira (PAF) para garantir repasses financeiros do Programa para a compra de serviços de internet e de equipamentos. Cabe salientar que o Guia EduTec é fundamentado pela teoria das quatro dimensões, que também orienta toda a diretriz do Piec. De acordo com a Portaria n. 1.602, de 28 de dezembro de 2017, essas dimensões se sustentam nos seguintes aspectos:

  1. Visão: estímulo ao planejamento por estados e municípios da inovação e tecnologia como elementos transformadores da educação, promovendo valores como: qualidade, contempo- raneidade, melhoria de gestão e equidade;

  2. Formação: disponibilização de materiais e oferta de formação continuada a professores, gestores e articuladores locais, e articulação com instituições de ensino superior para incluir o componente tecnológico na formação inicial;

  3. Recursos Educacionais Digitais: acesso a recursos educacionais digitais e incentivo à aquisição e socialização de recursos entre as redes de educação básica; e

  4. Infraestrutura: apoio à aquisição e contratação dos serviços e equipamentos necessários ao uso da tecnologia nas escolas públicas, inclusive serviços de conexão à internet de alta velocidade. (Portaria n. 1.602, 2017, p. 2, grifo do autor).

Esses quatro aspectos da teoria das quatros dimensões, que são derivados do Four in Balance, uma série de publicações anuais da Fundação Kennisnet, possuem como objetivo evidenciar aos educadores holandeses os benefícios do uso de TIC na educação - e são considerados os elementos fundamentais para garantir a inovação na educação básica no Brasil.

Com essa base, o plano de ação regional deve “priorizar” as debilidades da rede local de educação no que se refere à adoção de tecnologias pelos professores e estudantes. A inovação, nesse contexto, é colocada como critério de adoção de tecnologia pela rede pública de educação. Cingindo essa lógica, o uso de tecnologia durante o trabalho docente seria um indicador dos processos inovadores que o Piec almeja.

O uso de tecnologias digitais e internet nos processos educativos é, desse modo, a condição sine qua non para compreender a inovação, logo a lógica que orienta o Piec teria um grande foco nos meios que compõem os processos educativos. A inovação focada somente nos meios que compõem o ato educativo implica uma percepção reformista da educação. Sendo assim, o Piec não busca uma discussão sobre as finalidades escolares que perpassam a educação pública; busca, na verdade, criar mecanismo que reforce o status quo atual (Alves, 2022). Enfim, o Programa fortifica a ideia de que a inovação será garantida somente pelo consumo de tecnologias e internet.

Nesse contexto, a ideia de inovação contida no Piec está pautada nos pilares do consumo e do uso de tecnologias; tecnologias oferecidas pelo setor privado. Destarte, a escola, dentro dessa lógica mercadológica, é tratada como consumidora e dependente dos serviços ofertados por entidades privadas. Essa percepção está oficializada no artigo 16 do Decreto n. 9.204, de 23 de novembro de 2017.

Art. 16. Para a execução do Programa de Inovação Educação Conectada poderão ser firmados convênios, termos de compromisso, acordos de cooperação, termos de execução descentralizada, ajustes ou outros instrumentos congêneres, com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, bem como com entidades privadas. (Decreto n. 9.204, 2017).

Os critérios para o repasse de recursos financeiros para a contratação de serviço de internet, infraestrutura para distribuição de sinal de internet e aquisição e contratação de dispositivos eletrônicos foram primeiramente descritos na Portaria n. 29, de 25 de outubro de 2019; são eles, “critérios de elegibilidade, inclusão, classificação e confirmação são cumulativos”. Os critérios de classificação estão definidos no artigo 5º:

Art. 5º São critérios de classificação:

I. escola com desempenho abaixo da média nacional do último resultado do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB.

II. escola localizada em município de alta vulnerabilidade socioeconômica, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDH-m. (Portaria n. 29, 2019).

Cabe salientar que esses mesmos critérios foram mantidos nas seguintes Portarias: n. 34, de 27 de dezembro de 2019, e n. 9, de 2 de julho de 2020. É perceptível, portanto, a intenção do Piec de atingir escolas com maiores vulnerabilidades sociais e com baixo desempenho educacional. Entretanto, o fato de o Programa colocar o acesso à tecnologia como condição fundamental para a melhoria da condição escolar, tal como já destacado, não garante que os estudantes superem as condições de desigualdade social, pois estas são resultado de fatores muito mais complexos (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2015; Peixoto & Echalar, 2017; Peixoto, 2020).

De acordo com Bresser-Pereira (1995) e Pochmann (2017), o projeto de sociedade neoliberal enxuga todos os serviços produzidos pelo Estado voltados para a sociedade civil. Consequentemente, o setor privado fica responsável por atender a população em suas necessidades mais básicas, e no contexto educacional o setor privado aparece como um distribuidor de recursos e serviços para a educação básica.

Nesse âmbito, o foco nas instituições escolares em situações de vulnerabilidade é transmutado em prioridade de consumo de tecnologias oferecidas pelo setor privado. Além disso, podemos evidenciar que o Piec orienta a avaliação da educação básica pública pelo Ideb, todavia as avaliações são direcionadas de acordo com os interesses empresariais que fomentam e controlam as políticas públicas educacionais (Lopes et al., 2022).

Esses interesses estão voltados para a preparação da força de trabalho adequada ao mercado, com isso a formação humana oferecida pelas reformas empresariais na educação é limitada ao desenvolvimento cognitivo do indivíduo ou, mais explicitamente, à garantia de que os sujeitos adquirirão habilidades aplicáveis no seu futuro emprego.

A finalidade escolar sob a ótica neoliberal seria criar uma força de trabalho que se adequasse às condições de trabalho existentes na sociedade atual. Libâneo (2019) destaca que uma finalidade escolar conservadora busca a reprodução e manutenção do status quo atual, isto é, a reprodução da hegemonia dominante. Nesse sentido, por mais que o Piec enfatize a necessidade de usar tecnologia para garantir a inovação na educação, seu foco somente no aspecto instrumental da tecnologia garante o subsídio ideológico para a reprodução neoliberal da educação e a formação de sujeitos que atendam às demandas do mercado de trabalho.

Sob essa ótica, a desigualdade no processo educativo passa a ser encarada com naturalidade, tendo em vista o foco no “esforço” e no “dom”. Na lógica liberal, essa desigualdade seria solucionada com a garantia igualitária das condições da escola, ou seja, acesso aos mesmos recursos e tempo de aprendizagem, entretanto há uma padronização, o que rebaixa a diversidade dos sujeitos (Freitas, 2016). O autor ressalta ainda que:

Essa é a exigência que falta aos liberais e aos reformadores empresariais. A eficácia que pregam é a da curva normal. Em educação, no entanto, não deve haver curva normal. O horizonte é que todos devem aprender tudo ao seu tempo. A diversidade pessoal ou as “aptidões” se manifestam no tempo de aprendizagem e nas escolhas profissionais, não na diversificação de desempenho dos estudantes. Isso é mais forte ainda se considerarmos que estamos falando da etapa da educação básica. (Freitas, 2016, p. 149).

O discurso governamental sobre o uso de tecnologias na educação salienta um caráter determinista do artefato com uma suposta linearidade no processo educativo, ou seja, coloca como imediata a melhoria da qualidade da educação com o uso de uma tecnologia digital. Não obstante, Heinsfeld e Pischetola (2019, p. 14) ressaltam que as tentativas do Programa de Inovação Educação Conectada são “mensurar as nuances acerca do que significa inovar pedagogicamente”, o que, a nosso ver, coloca a tecnologia como mecanismo de otimização da educação básica.

O discurso de inovação do Programa, ao adotar essa lógica, apresenta uma linearidade que reduz qualquer processo educativo ao mero acesso e uso de um determinado recurso. De tal modo que o Programa coloca o uso de tecnologias e o estar conectado à rede de internet como capazes de garantir um salto qualitativo no fenômeno educativo.

Os discursos de inovação que restringem esse processo apenas aos artefatos tecnológicos ocultam que as transformações técnicas desses objetos são também um fenômeno social. Ou seja, as inovações tecnológicas influenciam e são influenciadas pelas formas de organização da produção, e, se considerarmos o nosso contexto atual, os processos de inovação só podem ser pensados dentro do contexto da sociedade capitalista (Peixoto, 2020).

Tal discurso torna-se um recurso ideológico que subjuga o trabalho docente aos processos produtivos do capital e, ao mesmo tempo, cria uma égide que responsabiliza o professor e os estudantes pelos futuros prejuízos e limites produtivos que porventura venham a se materializar. Percebe-se então que o Programa, através do discurso da inovação, constrói caminhos para ampliar a relação público e privado e coloca a educação em uma união estreita com as demandas do mercado de trabalho.

Considerações finais

Podemos observar duas lógicas de pensamento predominantes nos documentos oficiais do Piec, uma determinista, que coloca a tecnologia como impulsionadora da transformação da educação, e uma instrumental, que coloca a tecnologia como um elemento moldável ao bel-prazer do sujeito, independentemente de suas limitações técnicas e sociais (Peixoto, 2012, 2015). Essas lógicas viabilizam um caminho que culpabiliza os docentes e discentes que estão envolvidos no processo educativo, pois, como a tecnologia em si melhoraria a qualidade educativa, qualquer possibilidade que possa inviabilizar o alcance das metas traçadas pelo Programa pode ser justificada pela incompetência dos envolvidos.

O discurso de inovação do Programa se filia a uma lógica imediatista que se equivoca ao direcionar o desenvolvimento tecnológico à melhoria imediata da qualidade da educação. Daí decorre uma lógica que imputa à educação a formação de indivíduos que corresponde às necessidades do mercado e, se considerarmos o contexto neoliberal, uma formação que prepara o sujeito para o trabalho flexibilizado e precarizado.

Nesse sentido, é o movimento do capital que orienta e configura o Programa Educação Conectada, que vê na educação uma possibilidade de ampliar o mercado consumidor de TIC por meio de parcerias públicas e privadas. Isso fomenta a discursividade de que os problemas educacionais são unicamente relacionados ao consumo de recursos digitais, invertendo a relação entre os meios e os fins do processo educacional (Peixoto & Echalar, 2017). Além disso, ignora não só a relação entre a sociedade civil e o Estado, mas também o fato de que a organização de políticas públicas de educação está estritamente ligada às lutas das classes sociais, que fundamentam a sociedade capitalista.

Nessa perspectiva, o Programa analisado usa o discurso de tentar atribuir o sucateamento e as desigualdades ao acesso à internet, mas apresenta, em contrapartida, uma proposta de compensação que atende unicamente às demandas neoliberais, que buscam englobar os serviços oferecidos pelo Estado nos seus investimentos privados.

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Recebido: 14 de Fevereiro de 2023; Aceito: 10 de Abril de 2024

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