Nesta pesquisa, mapeamos os editais e termos de adesão ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu),1 para identificar os critérios utilizados pelas universidades federais para definição do público-alvo às cotas para pessoas com deficiência, bem como a influência da Convenção sobre os direitos da pessoas com deficiência (CDPD) e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, no que se refere à concepção e avaliação da deficiência adotadas em seus processos seletivos.
A previsão de reserva de vagas (cotas) nas instituições federais de educação superior (Ifes) foi sancionada pela Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, com a criação do Sisu, tendo como condição sine qua non que os estudantes tenham cursado integralmente o ensino médio na rede pública, e, dentre esses, as seguintes modalidades: autodeclarados pretos, pardos e indígenas e aqueles com renda bruta familiar igual ou inferior a 1,5 salário mínimo2 por pessoa. Quatro anos depois, a Lei n. 13.409, de 28 de dezembro de 2016, incluiu no rol de cotistas as pessoas com deficiência, as quais devem comprovar essa condição com um laudo médico.
No âmbito normativo, a mais recente lei em defesa dos direitos dessa população é a LBI, a qual apresenta na sua definição uma concepção relacional, considerando as características do indivíduo e do contexto em que está inserido, qual seja:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Ainda nesse mesmo artigo, estabelece:
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.
§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência. (Lei n. 13.146, 2015).
Cumpre-nos ressaltar que a referida lei tem como base a CDPD e seu Protocolo Facultativo (Organização das Nações Unidas [ONU], 2007), principal tratado internacional em defesa dessa população (Dhanda, 2008), do qual o Brasil é signatário, e, em 2009, o Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, a elevou ao status de emenda constitucional.
A CDPD marca significativas mudanças, não apenas no que se refere aos direitos, mas também, e tão importante quanto, na concepção de deficiência, com vistas a romper com o chamado modelo médico, o qual estruturou a sociedade sob a lógica de que a deficiência deve ser objeto de cuidados da área da saúde, para aderir ao modelo social, que advém de uma perspectiva sociológica da deficiência, como experiência de opressão resultante da ideologia capitalista (Diniz, 2007).
Assim sendo, partimos essencialmente da defesa da deficiência como parte da diversidade humana e da crítica ao modelo médico, perspectivas que se consolidam no modelo social e nos estudos sobre deficiência, que a compreendem como desvantagem social (Barnes, 1999; Campbel, 2001; Diniz, 2007; Gesser et al., 2012). O principal argumento de contraposição desses modelos é a defesa de que o tema deficiência não deveria estar submetido exclusivamente à área da saúde, mas também às ações políticas e intervenções do Estado (Diniz, 2007), o que fundamenta a discussão acerca da implementação da política de cotas do Sisu, cujos destinatários devem-se enquadrar nas concepções indicadas pelas Ifes.
É importante destacar que a confirmação da condição de deficiência, além de um debate controverso no Brasil, faz-se necessária para delimitar o público-alvo de mais de trinta políticas públicas, somente no âmbito federal, e, apesar da previsão legal sobre como essa condição deve ser avaliada, até o momento, o governo federal não aprovou um instrumento que oriente e unifique essa avaliação.
Vale dizer que há um campo de disputas que não se apresenta apenas quando se trata da comprovação da deficiência. As controvérsias estão presentes desde a concepção, escolha de conceitos e terminologias utilizadas, que podem se apoiar nos manuais da área da saúde, nas epistemologias sociais e políticas, no campo da educação, assim como nas decisões e intervenções do Poder Judiciário.
Tendo em vista a problemática apresentada, e sendo o Sisu um processo seletivo unificado, de âmbito federal, vemo-nos diante de um profícuo lócus de investigação, buscando conhecer como as universidades têm estabelecido seus critérios para definição do público-alvo à modalidade de cotas em apreço.
Método
Esta pesquisa alinha-se aos pressupostos da abordagem qualitativa, de cunho descritivo- -analítico e exploratório e da análise documental (Gil, 2008; Minayo, 2012).
Os dados foram extraídos de documentos públicos: as normas legais que regem o Sisu, identificando as regras a serem seguidas pelas universidades, no que se refere à comprovação da deficiência; e os editais e os termos de adesão relativos ao processo seletivo do primeiro semestre de 2019 de 62 universidades federais,3 os quais estão disponíveis nos sites das Ifes.
Seguindo os procedimentos de análise de conteúdo de Bardin (1977), após a leitura prévia dos editais e termos de adesão (163 arquivos em PDF) e a identificação dos trechos que se referiam à participação de estudantes com deficiência, delimitamos duas categorias, as quais nortearam a análise: concepção de deficiência e critérios e exigências para comprovação.
Para a primeira categoria - concepção de deficiência -, foram consideradas as normas legais referenciadas, os conceitos e/ou tipos de deficiência indicados como elegíveis à cota, em busca de identificar a concepção adotada em cada uma das Ifes. Na segunda categoria - critérios e exi- gências -, foram inseridos os excertos que elencavam os documentos a serem apresentados pelo candidato, o profissional que deveria emiti-los, bem como as informações que deveriam constar para a comprovação da deficiência.
Com apoio do software NVivo, os excertos foram localizados e organizados em tabelas nas respectivas categorias, possibilitando o mapeamento dos dados, comparações das aproximações e divergências nas regras, bem como a análise à luz dos referenciais já indicados.
Resultados e discussão
As regras que regem o Sisu estão dispostas em duas leis e dois decretos promulgados pela Presidência da República, e mais quatro portarias normativas expedidas pelo Ministério da Educação (MEC) (Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012; Decreto n. 7.824, de 11 de outubro de 2012; Portaria Normativa n. 18, de 11 de outubro de 2012; Portaria Normativa n. 21, de 5 de novembro de 2012; Lei n. 13.409, de 28 de dezembro de 2016; Decreto n. 9.034, de 20 de abril de 2017; Portaria Normativa n. 9, de 5 de maio de 2017; Portaria n. 1.117, de 1º de novembro de 2018). Nelas constatamos a adesão ao modelo médico de deficiência, por assumir como referência para a comprovação da deficiência exclusivamente o Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, ou seja, um rol de doenças para cada tipo de deficiência, desconsiderando a concepção de deficiência relacional assumida pela CDPD, pela Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012 (doravante denominada Lei-TEA) - que inclui o TEA na condição de deficiência para fins de direitos -, e a LBI.
Importa destacar que a LBI foi instituída em julho de 2015 e passou a vigorar em janeiro de 2016. A Lei n. 13.409 (2016), que incluiu as pessoas com deficiência como cotistas do Sisu, é de dezembro do mesmo ano, causando estranhamento o fato de ela e o Decreto n. 9.034, de 20 de abril de 2017, que a regulamentou, sequer fazerem menção a uma normativa de tamanha relevância para políticas que envolvem essa população, por contemplar os avanços sociais e científicos relativos à deficiência, os quais vinham se fortalecendo no Brasil desde o início do ano 2000 (Lanna, 2010; Maior, 2022).
Somente em 2018, por meio da Portaria n. 1.117, de 1º de novembro de 2018, o MEC cita a LBI para justificar uma alteração na regra relativa ao percentual de vagas ofertadas, fazendo menção à linha de corte do Grupo de Washington4 (GW) e à avaliação biopsicossocial. Cabe dizer que o corte do GW, além de reduzir o percentual de reserva de vagas, altera o perfil do estudante elegível à cota, passando a considerar apenas as pessoas que apresentam muita dificuldade ou que não realizam atividades como andar, ouvir e enxergar (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018). Contudo, não obstante as referidas alterações, o MEC não publicou nenhuma diretriz que orientasse as Ifes, impondo a elas a responsabilidade de estabelecer suas próprias regras.
Faz-se necessário pontuar que todas as Ifes estão subordinadas às normativas supracitadas, as quais determinam que a deficiência seja declarada por meio de um laudo médico, devendo ser enquadrada nas condições elencadas no Decreto n. 3.298 (1999), quais sejam:
I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz;
III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
IV - deficiência mental - funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho;
V - deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências.
O decreto elenca condições clínicas que denotam a concepção de deficiência da época de sua publicação, ou seja, o diagnóstico bastava para enquadrar a pessoa na condição de deficiência para fins de direitos. Todavia, apesar da nova concepção trazida pela CDPD, bem como da previsão de avaliação biopsicossocial da LBI, como até o momento não há instrumento aprovado5 para essa avaliação, o referido decreto ainda está em vigor, e vem sendo utilizado como referência para os aspectos biológicos da avaliação, não podendo ser considerado determinante.
Na esteira do que foi exposto, o mapeamento proposto busca indicar se, para além da orientação do MEC, as universidades incluíam em seus editais os avanços trazidos pela CDPD e pela LBI para definição dos destinatários à política de cotas do Sisu para as pessoas com deficiência.
As contradições acerca do que é deficiência
O conceito de deficiência é apresentado nos editais por meio da transcrição do texto do Decreto n. 3.298 (1999) e/ou da LBI. Em alguns casos, temos apenas a menção a determinadas normas legais, ficando a cargo dos interessados buscar cada uma delas, conforme exemplifica o excerto a seguir.
Excerto 1:
Para concorrer às vagas reservadas . . . o candidato deverá se enquadrar nas categorias discriminadas no art. 4º do Decreto n. 3.298, de 1999, conforme o inciso VII do art. 2º da Portaria Normativa MEC n. 18, de 2012, alterado pela Portaria n. 1.117, de 2018. (Universidade Federal de Viçosa [UFV], 2019).
A Tabela 1 indica as normas legais que pautaram a concepção de deficiência adotada pelas universidades.
Referência legal ou conceito | Instituição federal de educação superior6 |
---|---|
Decreto n. 3.298/1999 | UFABC, Unifal, Unifesp, UFRPE, UFSM, Ufopa |
Decreto n. 3.298/1999 e Lei-TEA | UFMG, UFVJM, Ufersa, Univasf, UFMS |
Decreto n. 3.298/1999 e LBI | UFOP, UFU, UFCA, UFOB, UFRN, UFPR, Unila, UTFPR, UFAC, UFRA |
Decreto n. 3.298/1999, LBI, Lei-TEA | Unifei |
Decreto n. 3.298/1999, Súmula STJ 377/2009* (visão monocular) | UFSJ, UFLA |
Decreto n. 3.298/1999, Lei-TEA e Súmula - visão monocular | UFRGS |
Decreto n. 3.298/1999, Lei-TEA, Súmula - visão monocular e LBI | UFF, UFRJ, UFV, UFFS |
Decreto n. 3.298/1999, Lei-TEA, Súmula - visão monocular e CDPD | UFMA |
Decreto n. 3.298/1999, Lei-TEA, Súmula - visão monocular, CDPD e LBI | UFSCar, UFBA, Unifap, UnB |
Decreto n. 3.298/1999, Lei-TEA, CDPD e LBI | UFTM |
LBI | UFES |
CDPD | UFT |
Não apresenta conceito ou norma legal | UFJF, UFRRJ, Unirio, UFAL, UFC, UFCG, Ufesba, UFPB, UFPE, UFPI, UFRB, UFS, Unilab, FURG, UFCSPA, UFPel, UFSC, Unipampa, UFAM, UFRR, Unifesspa, UNIR, UFG, UFGD, UFMT |
Fonte: Elaboração das autoras com dados da pesquisa.
Nota: * Súmula do Superior Tribunal de Justiça, doravante denominada Súmula - visão monocular, cuja decisão confere à pessoa com visão monocular o direito de concorrer às vagas reservadas às pessoas com deficiência em concursos públicos.
Verifica-se que não há consenso na aplicação das normas e na definição de deficiência entre as 62 universidades federais, o que já nos permite constatar que, a despeito de um sistema único em que o candidato poderia escolher qualquer uma das Ifes, o perfil de um candidato à cota pode ser aceito em uma universidade, e, em outra, não, dada a combinação de leis, decretos e outras normativas citadas.
Chama a atenção, não obstante o status constitucional da CDPD, o fato de ter sido citada por apenas sete das 62 universidades, assim como a LBI, mencionada por 21, o que nos leva a considerar que as Ifes, em sua maioria, seguem as normativas do MEC, as quais não demonstram alinhamento com o ordenamento jurídico brasileiro relativo aos direitos das pessoas com deficiência.
Com exceção das Ifes que trazem o conceito da LBI - que não elenca condições específicas -, dentre as que citam decretos e leis, oito não fazem menção ao TEA como condição elegível à cota, o que pode gerar dúvidas e até desestimular a participação desses estudantes, em função de sua condição não estar textualmente contemplada.
Identificamos também divergências na exposição de regras de uma mesma Ifes, como, por exemplo, nos excertos 2 e 3, cujo edital prevê apenas o enquadramento da condição conforme Decreto n. 3.298 (1999), e, em seu anexo (modelo de laudo médico), passa a considerar expressamente a Lei-TEA, a CDPD e a LBI:
Excerto 2:
Os candidatos que concorrem às vagas, . . . reservadas para aqueles que possuem deficiência deverão comprovar tal condição de acordo com os termos do Art. 4° do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999.
a) Entregar Laudo Médico juntamente com o documento de Apresentação de Laudo Médico, conforme modelos nos Anexos V e VI. (Universidade Federal de Alagoas [UFAL], 2019, p. 10, grifos nossos).
Excerto 3:
ANEXO VI
[Modelo de] LAUDO MÉDICO - PESSOA com DEFICIÊNCIA
ENQUADRAMENTO DA DEFICIÊNCIA
Nos termos do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 1999, alterado pelo Decreto n. 5.296, de 2004.
Lei 12764/2012 - Espectro Autista
Deficiência Mental . . . conforme Convenção ONU.
ENQUADRAMENTO DA DEFICIÊNCIA
Nos termos do art. 2º da Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. (UFAL, 2019, Anexo VI, grifos nossos).
Três Ifes não incluíram nenhuma informação para caracterização da deficiência em seus editais, o que constou apenas dos respectivos termos de adesão. O termo de adesão é um documento de difícil leitura por ser muito extenso, contempla todas as informações de todos os cursos, para todos os campi, contém tabelas com os quantitativos de vagas e de vagas reservadas - para todas as modalidades; tudo isso organizado por códigos. As informações sobre as regras e a documentação a ser apresentada estão no final do documento, com tamanho de fontes muito pequeno. Vale lembrar que o termo de adesão é emitido eletronicamente pelo MEC, e não pelas universidades.
A dificuldade pode se acentuar para usuários de leitores de tela, pois seu formato não é acessível. Não identificamos e não temos notícias de termo de adesão traduzido para a Língua Brasileira de Sinais (Libras), ou qualquer informação sobre acessibilidade desse documento.
Ainda sobre os conceitos estarem dispostos nos editais e nos termos de adesão, destacamos dois aspectos: o valor jurídico do edital, pois ele é a lei do certame, ou seja, nele deve prevalecer, entre outros, o princípio da transparência, da isonomia e da segurança jurídica, para que os interessados conheçam as regras às quais estão se submetendo. Assim, tudo que nele estiver disposto deve ser rigorosamente cumprido. O edital é o ato administrativo que normatiza e fixa as condições tanto de realização quanto de participação dos interessados (Motta, 2011).
O segundo, conforme Medeiros e Diniz (2004, p. 108) afirmam, deve considerar que “as políticas sociais voltadas aos deficientes precisam definir deficiência”. As autoras destacam que essa não é uma tarefa fácil, pois buscar critérios técnicos para se definir o que é deficiência pode ser não apenas ingênuo, como pode ocultar valores prescritivos em relação aos objetivos das políticas sociais.
Assim sendo, essa pluralidade nas formas de se apresentar a deficiência, que ora reconhece, ora exclui determinada condição, assim como a falta de consenso entre as próprias regras do Sisu, as quais não estão alinhadas aos princípios da CDPD e da LBI, resulta em editais que causam insegurança jurídica aos interessados, contribuindo para a manutenção de uma história que invisibiliza determinados grupos (Fonseca, 2009).
Contudo essas inconsistências não aparecem exclusivamente na conceituação da deficiência, mas também nas regras para a sua comprovação e nos desdobramentos que surgem ao designar tipos de deficiências, conforme apresentamos a seguir.
Critérios e exigências das Ifes para comprovação da deficiência
Além de ser uma regra do Sisu, em consonância ao Decreto n. 3.298 (1999), a apresentação do laudo médico é condição obrigatória das diversas políticas públicas,7 que, em geral, solicitam: o tipo, grau ou nível de deficiência; o código correspondente à Classificação Internacional de Doenças (CID-10); além dos dados e carimbo do médico que o emitiu. Todavia, para o Sisu, não há consenso acerca das formalidades para a emissão, conforme indicado na Tabela 2.8
Exigências relativas ao laudo médico | Total de Ifes com a referida exigência |
---|---|
Original ou original e cópia | 12 |
Original e cópia autenticada em cartório | 2 |
Emitido nos últimos 12 meses | 28 |
Emitido nos últimos 6 meses | 1 |
Emitido nos últimos 90 dias | 4 |
Laudo recente | 2 |
Conforme modelo ou formulário da própria universidade, para ser preenchido pelo médico | 7 |
Digitado e impresso/legível | 9 |
Emitido por dois médicos, um especialista e um generalista | 2 |
Emitido por especialista (não aceita laudo de médico generalista) | 14 |
Emitido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) | 2 |
Assinado pelo responsável da unidade de saúde emissora | 2 |
Reconhecimento de firma da assinatura do médico | 1 |
Fonte: Elaboração das autoras com dados da pesquisa.
Algumas dessas exigências podem ser consideradas barreiras de difícil transposição, como laudos emitidos por dois médicos do sistema público, sendo um obrigatoriamente da especialidade da deficiência, ou prazo de emissão de, no máximo, 90 dias, tendo como referência o período de inscrição do Sisu. Aspectos formais, como laudo impresso ou com letra legível, podem até ser compreensíveis, porém extrapolam a responsabilidade do candidato, e o ônus do não cumprimento não poderia recair sobre ele.
Sendo o laudo médico necessário para diversas outras políticas públicas, muitos candidatos poderiam utilizá-lo (e suas cópias) para outros benefícios, por diversas razões, inclusive pela dificuldade de se conseguir um agendamento no sistema de saúde brasileiro exclusivamente para esse fim. A respeito dessa discussão, Maior (2019) refere:
Somente na esfera da União, existem 32 políticas públicas que exigem comprovação e, por não existir uma avaliação unificada, os usuários devem apresentar laudos médicos. Como as pessoas com deficiência também precisam comprovar essa condição para acessar as políticas e programas das esferas estadual, distrital e municipal, os laudos se multiplicam, provocando custos adicionais para cada pessoa e para os serviços públicos emissores dos laudos. Portanto, esse sistema de avaliação é ineficiente e apresenta maior risco de resultados injustos e de fraudes nas avaliações por não haver padronização definida.
Pela força legal do edital, utilizamos o termo “exigência” por entendermos que as regras devem ser cumpridas por todos e tais quais estão dispostas, não sendo, então, passíveis de flexibilização sob pena de impugnação ou suspeição do processo (Motta, 2011). Se há exigências muito rigorosas, no caso de descumprimento, não pode haver flexibilização, pois aceitar documentação incompleta ou diferente do que foi exigido num processo seletivo é ferir o princípio da isonomia.
Também são indicadas as informações que o médico deve inserir no laudo, como, por exemplo: as limitações impostas pela deficiência/limitações funcionais na prática; a descrição das áreas e funções do desenvolvimento afetadas e as restrições/limitações acadêmicas impostas; o comprometimento/dificuldades nas atividades diárias ou acadêmicas; a deficiência e suas sequelas; início e evolução dos sintomas da doença ou incapacidade, bem como os cuidados médicos prévios, tratamento e evolução da patologia.
Tais requisitos remetem à marca da concepção médica de deficiência, que enxerga a pessoa como alguém fadado a uma vida de constantes cuidados e tratamentos e que corrobora a manutenção de uma lógica capacitista que reforça a ideia de que a pessoa com deficiência é incapaz de ser ou de fazer algo (Barnes, 1999; Diniz, 2007; Böck et al., 2020). Ao focalizar apenas as “limitações impostas pela deficiência”, “sequelas”, “sintomas da doença ou incapacidade” e a “evolução da patologia”, reforçamos a lógica de que é apenas a deficiência que impõe limites, o que corrobora a interpretação da adesão ao modelo médico. Essa interpretação ganha força na medida em que os editais não solicitam informações que lancem às universidades a responsabilidade de organizar os espaços e atividades para que o estudante possa participar, assim como aqueles sem deficiência. Em outras palavras, identificar apenas as limitações em função da deficiência não possibilita a adequada promoção de espaços e práticas inclusivas e se afasta tanto dos princípios da CDPD quanto da perspectiva biopsicossocial prevista na LBI de que tais limitações devem ser verificadas a partir do contexto e das condições desse sujeito em determinados ambientes.
A seguir, apresentaremos os achados relativos aos critérios e exigências das Ifes para cada tipo de deficiência.
Deficiência física
O conceito do Decreto n. 3.298 (1999) foi transcrito por 15 universidades. As divergências são observadas nos critérios para a comprovação, quais sejam: oito Ifes exigiram laudo médico emitido por especialista, neurologista ou ortopedista; duas solicitaram exames de imagem; uma indicou a necessidade de atestado de funcionalidade; outra requisitou que, do laudo, constasse o código da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), com a respectiva descrição; um relato histórico da deficiência descrito pelo candidato foi pedido por uma das universidades.
Como previsto na LBI, a condição do corpo e a lesão que gera a deficiência são informações que devem ser prestadas por profissional da área da saúde, porém o que encontramos pode gerar interpretações diversas e provavelmente extrapola o que o médico pode descrever. O excerto a seguir o exemplifica.
Excerto 4:
Candidatos com Deficiência Física: Laudo médico . . . assinado por um médico ortopedista e/ou neurologista, contendo na descrição clínica . . . e a descrição das dificuldades decorrentes da deficiência ou condição apresentada que podem ser percebidas e influenciar o processo ensino-aprendizagem e o ambiente educacional. (Universidade Tecnológica Federal do Paraná [UTFPR], 2018, p. 30, grifos nossos).
Não fica claro a que a regra se refere; ou seja, o médico deveria perceber e julgar as condições que podem influenciar no processo ensino-aprendizagem? Essa avaliação não deveria ser feita por ou em parceria com um profissional da educação? Como o médico poderia, previamente, em consulta para emissão do laudo, discorrer sobre a deficiência em relação ao ambiente educacional? Essas provocações se fazem necessárias, pois é muito comum que profissionais da educação vinculem suas ações e práticas pedagógicas ao que o laudo médico estabelece, reduzindo as possibilidades daquele sujeito ao que o médico estabeleceu como limite. Essa “dependência” da equipe pedagógica em relação ao médico colabora fortemente para a manutenção do capacitismo nesses espaços, pois não é o médico que deve orientar as ações pedagógicas das escolas ou universidades (Angelucci, 2014).
Deficiência auditiva (DA)
Além do conceito indicado no referido decreto, 12 universidades utilizaram os termos surdo ou surdez como condições distintas da DA. Todavia apenas uma indicou essa diferenciação:
Excerto 5:
Deficiência Auditiva [conforme decreto]
Surdez - considera-se surda aquela pessoa que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.9 (Universidade Federal do Oeste do Pará [Ufopa], 2018, p. 16).
Podemos inferir que essas universidades estejam pautadas numa concepção socioantropológica da surdez, considerando que esses sujeitos são usuários de Libras, pertencentes a uma minoria linguística (Skliar, 1998), e, assim, não se identificam com a classificação de DA.
Acerca da comprovação, nota-se a exigência de audiometria em 28 Ifes; laudo emitido por especialista ou otorrinolaringologista, em nove; e uma solicitou que fosse indicado se a perda auditiva melhora com uso de prótese.
Deficiência visual (DV)
Nesse caso, os editais apresentaram as três terminologias constantes do decreto de referência, quais sejam: DV, cegueira e baixa visão. Porém, quando há escolha pelo uso de uma delas, não há justificativa, sugerindo que sejam tratados em muitos casos como sinônimos. Temos: 12 universidades que usaram DV; 4 que especificaram cegueira ou baixa visão; 14 incluíram taxativamente a visão monocular como condição elegível à cota, em função da Súmula - visão monocular; e outras 11 determinaram previamente que candidatos com essa condição não se enquadravam como destinatários de cotas, como exemplifica o Excerto 6.
Excerto 6:
Candidatos com visão monocular, perda auditiva unilateral, deformidades estéticas, distúrbios de aprendizagem ou doenças psiquiátricas, que não se configuram como condição de deficiência conforme estabelecido na legislação vigente, não poderão concorrer às vagas reservadas para pessoas com deficiência. (Universidade Federal do Rio Grande do Norte [UFRN], 2019, grifos nossos).
A polêmica acerca da visão monocular já vinha, há muito tempo, sendo debatida e judicializada (Leme, 2015), resultando, em 2021, na Lei n. 14.126, de 22 de março de 2021, a qual classifica a visão monocular “como deficiência sensorial, do tipo visual, para todos os efeitos legais”, contudo o fato de uma lei trazer tal previsão não encerra o debate, pois, conforme previsto na LBI, a condição deveria ser avaliada sob o aspecto biopsicossocial.
Quanto à comprovação, além do laudo, 22 Ifes exigiam apresentação de exames oftalmológicos (acuidade visual, campimetria e outros). Assim, como no caso da DA, os editais não fizeram menção à funcionalidade ao tratar especificamente da DV.
Deficiência intelectual (DI) e deficiência mental (DM)
A análise dos documentos sugere que a DI é a condição mais complexa de se abordar, desde a escolha da terminologia e da definição, passando pelo estabelecimento das regras para sua comprovação, até a sua confirmação para elegibilidade do sujeito à política de cotas, como veremos mais adiante.
Em relação à nomenclatura utilizada, sete Ifes apresentaram o termo DM e o respectivo conceito do Decreto n. 3.298 (1999); outras oito substituíram DM por DI, mantendo o conceito do referido decreto, o que indica aproximação e atualização em relação às produções da área. Em três editais, encontramos a seguinte indicação: DI ou DM, o que sinaliza que foram consideradas como condições distintas, contudo utilizaram a mesma definição (do decreto) para ambas.
Três outras Ifes indicaram apenas a condição como DI, elencaram os critérios para comprovação, mas não discorreram sobre o conceito. Em outro caso, os dois termos estavam juntos (DM/DI), sugerindo condições idênticas, embora também sem nenhum conceito; outra universidade indicou o TEA como uma condição da DM ou da DI; e 34 universidades sequer fizeram referência a essas condições.
Cumpre-nos resgatar que os termos utilizados para definição desse grupo vêm historicamente sendo modificados. No Brasil, os documentos oficiais sofrem muita influência da American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD), que adota a terminologia DI e recomenda que esse grupo (pessoas que tinham o diagnóstico de retardo mental) seja assim identificado (Veltrone & Mendes, 2012).
Para Breitenbach (2018), as polêmicas causadas pelas terminologias vinculadas à DI não denotam divergências apenas em nível teórico, mas também no aspecto jurídico. Como o Decreto n. 3.298 (1999) é a base para a definição do sujeito das políticas públicas, e, em seu texto, permanece o termo DM, isso pode levar as pessoas em situação de transtorno mental a considerar que se encaixam na condição de DI. E, havendo esse tipo de situação, ou seja, a falta de clareza quanto ao conceito, consequentemente a decisão de aceitar ou não a pessoa como passível de ser beneficiadas por determinada política, no caso, as cotas, acaba por ficar a cargo de cada Ifes, já que, até o momento, não há diretrizes do MEC ou normativas legais que as orientem acerca dessa definição.
Em suma, conforme Vilela (2023) elucida, o referido decreto encontra-se desatualizado onde consta a terminologia DM, pois o respectivo conceito refere-se à DI, por estar relacionado ao funcionamento intelectual e às habilidades adaptativas. Já a DM, em razão da concepção da CDPD, refere-se aos transtornos mentais e às limitações psicossociais, que serão apresentadas adiante.
Outra confusão conceitual está na associação direta do TEA com a DI ou a DM, imprecisão que não é observada apenas no campo da educação, ou como um problema dos editais. Trata-se também de importante debate no campo da saúde do próprio diagnóstico de ambas as condições que podem se apresentar associadas, embora sejam distintas (Xavier & Schwartzman, 2018).
Em relação às exigências para comprovação, temos: seis Ifes exigiram laudo emitido por psiquiatra ou neurologista; duas aceitavam laudo de psiquiatra ou de psicólogo; quatro indicavam laudo de especialista, sem especificar; outras duas pediam laudo psicológico com avaliação do funcionamento intelectual e do comportamento adaptativo, conforme o DSM-5; uma universidade solicitou avaliação psicopedagógica; quatro requeriam informação sobre a área ou função do desenvolvimento afetadas; em cinco universidades, a exigência foi de relatório neuropsicológico com teste de QI (grau de inteligência/avaliação cognitiva, com grau de funcionamento intelectual); e uma universidade solicitou relatório pedagógico emitido por escola frequentada ao longo da escolarização básica ou órgão oficial competente, descrevendo atendimento/serviços da educação especial recebidos.
Apesar de os editais focalizarem as dificuldades e impedimentos causados pela deficiência, no caso da DI, isso se mostra acentuado, em razão do que é solicitado. E, mais uma vez, com exceção de uma Ifes, não identificamos espaço para indicação das condições de acessibilidade que pudessem assegurar a participação do estudante.
Deficiência múltipla
O conceito do Decreto n. 3.298 (1999) foi apresentado por 12 Ifes; 28 indicaram essa condição sem apresentar um conceito ou exigências específicas para comprovação; cinco solicitaram exame adicional das áreas afetadas; audiometria e exame oftalmológico foram exigidos por seis Ifes; e outras quatro solicitaram esses exames quando pertinente; a especificação da área ou função do desenvolvimento afetadas foi requerida por duas Ifes; e uma pediu a descrição clínica da deficiência.
Para essa condição, sete universidades especificaram a possibilidade de apresentação de atestado de funcionalidade. No entanto não apareceu como uma exigência, e sim como uma alternativa, conforme consta do seguinte excerto:
Excerto 7:
Para os Candidatos com deficiência múltipla juntamente com o laudo médico deverá apresentar exame de Audiometria, e/ou Exame Oftalmológico, e/ ou Laudo de Funcionalidade de acordo as deficiências apresentadas e seguindo os critérios já indicados nas demais deficiências. (Universidade Federal Rural do Semiárido [Ufersa], 2019, grifos nossos).
Chama a atenção a solicitação de exame oftalmológico e audiometria para comprovação de deficiência múltipla, o que pode indicar que as instituições associam, diretamente, essa condição à surdocegueira, pautando assim mais uma confusão conceitual ou mesmo das áreas de conhecimento envolvidas com esse tema, e não necessariamente um problema dos editais ou de seus elaboradores, visto que não encontramos consenso ou orientação que esgote o debate.
Surdocegueira
Essa condição não está contemplada no Decreto n. 3.298 (1999), mas foi indicada como um tipo específico de deficiência por quatro Ifes. Três delas exigiram exames de audiometria e oftalmológico como critério de comprovação. A funcionalidade também não aparece nessa condição, ou mesmo informações específicas sobre as possíveis e necessárias adaptações.
Segundo Sassaki (2019a),
. . . não devemos considerar a surdocegueira como um exemplo de deficiência múltipla, pois a surdocegueira não é uma mera presença de uma deficiência auditiva junto com uma deficiência visual na pessoa surdocega. Trata-se de uma deficiência única, que extrapola o simples conceito de deficiência múltipla.
As universidades que assim a reconhecem apresentaram o seguinte conceito:
Excerto 8:
Pessoa com Surdocegueira: Pessoa com deficiência única que apresenta características peculiares como graves perdas auditiva e visual, levando quem a possui a ter formas específicas de comunicação para ter acesso a lazer, educação, trabalho e vida social. Não há necessariamente uma perda total dos dois sentidos. A surdocegueira pode ser identificada como sendo de vários tipos: cegueira congênita e surdez adquirida; surdez congênita e cegueira adquirida; cegueira e surdez congênitas; cegueira e surdez adquiridas; baixa visão com surdez congênita; baixa visão com surdez adquirida. (Universidade Federal de São Carlos [UFSCar], 2018, p. 85).
Vale destacar que o referido conceito consta originalmente de um documento do MEC.10
Transtorno do espectro autista (TEA)
Apesar de a Lei-TEA incluir o TEA como deficiência para todos os efeitos legais, ele não apareceu em muitos editais, provavelmente por não estar elencado nem no decreto de referência, nem em qualquer outra norma relativa ao Sisu.
Assim sendo, apresentamos o conceito de acordo com a referida lei:
Art. 1º.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada na forma dos seguintes incisos I ou II:
I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos. (Lei n. 12.764, 2012).
Dentre os documentos analisados, apenas cinco Ifes apresentaram textualmente o referido conceito. E, dentre as 16 Ifes que citaram o TEA como condição de deficiência elegível à reserva de vagas, temos as seguintes exigências para sua comprovação: três solicitaram laudo de psiquiatra ou neurologista; duas indicaram emissão por especialista, sem especificá-lo; para outra, o laudo deveria ser de profissional da área da psicologia e/ou psiquiatria, remetendo à condição de TEA em qualquer período da vida; duas solicitaram a indicação do comprometimento/dificuldades no desenvolvimento de funções e nas atividades diárias; outra Ifes pediu a comprovação conforme a lei, sem indicá-la; cinco Ifes requisitaram laudo com a descrição clínica das áreas e funções do desenvolvimento afetadas e as limitações impostas pelo TEA; em outro caso, foi solicitada a descrição clínica da patologia; e, como no caso da DI, uma universidade solicitou relatórios pedagógicos emitidos por escola frequentada ao longo da escolarização básica ou órgão oficial competente, descrevendo atendimento e serviços da educação especial recebidos. Das 62 universidades, 20 não citaram o TEA em seus editais.
Assim como observado anteriormente em relação à DI, chama a atenção a preocupação em se apresentar as limitações impostas por essa condição.
O excerto a seguir exemplifica o foco nos aspectos clínicos:
Excerto 9:
Para candidatos(as) com transtorno do espectro autista: I - Relato Histórico da deficiência elaborado e assinado pelo(a) candidato(a). II - Laudo Médico legível, emitido por psiquiatra ou neurologista no máximo nos 12 meses . . . . b) Descrição clínica da patologia, conforme a LEI N. 12.764 DE 27 DE DEZEMBRO DE 2012 com o período em que se manifestou, período de tratamento com o médico que emitiu o laudo e tratamento realizado. (Universidade Federal da Fronteira Sul [UFFS], 2019, p. 16, grifos nossos).
Sobre as nomenclaturas, um edital indicou a reserva de vagas para as pessoas com transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e foi retificado, substituindo o referido termo por TEA. Importa dizer que TGD é terminologia ainda utilizada no campo da educação especial, sendo as pessoas com TGD consideradas seu público de referência, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, 1996). Sobre a mudança nessa terminologia, cumpre-nos informar que: “Os [TGD], que incluíam o Autismo, Transtorno Desintegrativo da Infância e as Síndromes de Asperger e Rett foram absorvidos por um único diagnóstico, Transtornos do Espectro Autista” (Araújo & Lotufo, 2014, p. 70).
Não pretendemos aqui adentrar as temáticas do campo da saúde, suas mudanças e orientações. Todavia esse achado nos permite discutir os entrelaçamentos entre as duas áreas, visto que, desde então, no campo da educação, as normativas não foram retificadas ou atualizadas, e as duas nomenclaturas têm sido encontradas na literatura científica, com destaque às produções da educação especial.
Assim como observamos na descrição das demais deficiências, com exceção de uma universidade, nenhuma outra solicitou que o candidato informasse as condições e/ou recursos de acessibilidade necessários para garantir sua participação com igualdade de condições.
Diante de tudo o que foi exposto, consideramos que, apesar de o Sisu ser um processo seletivo unificado, no que se refere à possibilidade de concorrer a qualquer curso/Ifes, a diversidade de critérios e exigências que definem o perfil de quem é elegível à cota inviabiliza que os candidatos com deficiência se beneficiem dessa mobilidade que o sistema oferece, pois podem cumprir os requisitos para uma Ifes, e a mesma condição não ser reconhecida por outra.
Para além dos dados levantados a partir dos tipos de deficiência, uma condição foi atrelada - por algumas universidades - para a elegibilidade à cota, qual seja, a necessidade de atendimento educacional especializado.
Necessidade de atendimento educacional especializado
Das 62 universidades federais, apenas seis indicaram em seus editais que a confirmação da deficiência poderia ou estaria vinculada à necessidade de atendimento educacional especializado. Apesar de não haver, em nenhum desses editais, a justificativa para tal vinculação, podemos considerar duas hipóteses: a adesão à concepção de deficiência da LBI e ao modelo social que compreende a deficiência a partir do encontro com barreiras que impedem a plena participação da pessoa, e/ou o alinhamento à lógica trazida pela linha de corte do GW, a qual, na mesma direção, considera como elegíveis à condição de deficiência apenas as pessoas que apresentam muita dificuldade ou que não realizam determinadas atividades, como andar, ouvir e enxergar.
Contudo, em nossa análise, observamos que os editais também apresentam certa ambiguidade na redação, conforme se verifica a seguir:
Excerto 10:
Poderão se beneficiar das vagas reservadas a pessoas com deficiência candidatos que apresentem deficiência(s) que exija(m) atendimento educacional especializado, mediante a disponibilização de recursos humanos, materiais ou uso de dispositivos e tecnologias assistivas para garantir o acesso à informação, à comunicação e ao conhecimento no processo de ensino-aprendizagem. (UFRN, 2019, grifos nossos).
Nesse edital, a expressão “poderão se beneficiar das vagas”, que se refere às pessoas cujas deficiências exijam atendimento educacional especializado, por um lado, parece assegurar as condições das hipóteses indicadas; ao mesmo tempo, ela não exclui candidatos cuja deficiência não gere impedimentos que requeiram algum tipo de apoio.
Isso fica ainda mais evidente ao procedermos à leitura dos itens que se complementam, constatando-se uma redação mais taxativa com a utilização da redação “Somente poderão concorrer”, e outra mais flexível, “Podem concorrer”, de acordo com o seguinte excerto:
Excerto 11:
8.1 - Somente poderão concorrer às vagas reservadas . . . os candidatos com deficiência que se enquadrem nas categorias discriminadas no art. 2º da Lei n. 13.146/2015 e nas categorias discriminadas no art. 4º do Decreto n. 3.298/1999, com as alterações introduzidas pelo Decreto n. 5.296/2004; no § 1º do art. 1º da Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012 (Transtorno do Espectro Autista); e as contempladas pelo enunciado da Súmula n. 377 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), observados os dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009.
8.3 - Podem concorrer às vagas, pessoas que apresentem deficiência(s) que exija(m) atendimento educacional especializado, mediante a disponibilização de recursos humanos, materiais e/ou uso de dispositivos e tecnologias assistivas para garantir o acesso à informação, à comunicação e ao conhecimento no processo ensino-aprendizagem. (UFSCar, 2018, p. 6, grifos nossos).
Já em outra Ifes, o edital apresentou a necessidade educacional especial como uma condição determinante para o perfil elegível, além dos outros critérios (escola pública e renda), embora tal condição não esteja prevista na Lei n. 12.711 (2012), que dispõe sobre o ingresso via Sisu:
Excerto 12:
Candidatos com deficiência (que se enquadre no Decreto Federal 3.298, de 20/12/1999 e na recomendação n. 03 de 01/12/2012) que apresente necessidade educacional especial e que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas com renda bruta familiar por pessoa igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (Lei n. 12.711/2012). (Universidade Federal de Santa Maria [UFSM], 2019, grifos nossos).
Observamos nesses editais o empenho das universidades em alinhar suas regras aos pressupostos da CDPD e da LBI, apesar do que está disposto nas normativas do Sisu que delas se distanciam. Não obstante fica a dúvida em relação às deficiências que não resultam em necessidades educacionais especiais que, entretanto, podem impactar na interação social, por exemplo.
Destacamos ainda que, além das regras descritas, 23 Ifes apresentaram, como anexo, um modelo de laudo médico, cujo objetivo - na maioria dos casos - era de orientar quanto às informações que dele deveriam constar. Porém algumas impuseram a tal modelo o preenchimento obrigatório pelo médico, por vezes exigindo dele a declaração de que o candidato se enquadrava nas regras do Sisu, de acordo com a legislação vigente. Vale ponderar que, além de as regras do Sisu não serem claras, seria responsabilidade do médico conhecê-las e prestar essa declaração?
Também constatamos que nem sempre as informações (conceitos, normas legais, tipos de deficiência) apresentadas no modelo anexado coincidiam com as regras dispostas no corpo do edital. Outras nomenclaturas também foram identificadas nos modelos analisados, como: transtorno atípico e autismo atípico para indicar TEA - termos que já caíram em desuso -; DM com referência à Lei-TEA; e uma terminologia ainda pouco utilizada, como a deficiência psicossocial. O seguinte excerto exemplifica um dos casos:
Excerto 13:
Deficiência Mental: Psicossocial - conforme Convenção ONU - Esquizofrenia, Transtornos psicóticos e outras limitações psicossociais que impedem a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (Informar no campo descritivo se há outras doenças, data de início das manifestações e citar as limitações para habilidades adaptativas).
Deficiência Mental: Lei n. 12764/2012 - Espectro Autista. (UFAL, 2019, Anexo VI, grifos nossos).
É importante destacar que a discussão sobre o conceito de deficiência psicossocial se impôs a partir da CDPD (Sassaki, 2019b), porém, de forma muito tímida, em especial no campo da educação. Das 62 universidades, apenas em duas identificamos essa condição, e, em ambas, elas não constavam do texto do edital, mas exclusivamente nos seus respectivos modelos de laudo médico.
Segundo Sassaki (2019b, p. 18), a inclusão da categoria deficiência psicossocial junto às demais utilizadas (como a física, auditiva, visual, intelectual, essa em substituição à mental) foi um dos avanços trazidos pela CDPD. Porém faz-se necessário apontar as dúvidas e confusões em relação a esse conceito, o qual “foi associado equivocadamente ao conceito de deficiência intelectual”. Para o autor, o termo psicossocial não foi inserido no texto da CDPD em português, em função de equívocos na tradução, sendo utilizado apenas o termo mental, o que vem contribuindo para a referida confusão.
Na esteira do que foi exposto, as divergências não se apresentaram apenas nos conceitos ou critérios de comprovação, e constatamos que algumas Ifes, provavelmente preocupadas em garantir o amparo da cota ao real destinatário, ainda estabeleceram as condições que não seriam elegíveis, conforme se verifica nos dados que seguem.
Condições de não elegibilidade à cota
Dentre as 62 Ifes analisadas, dez apresentaram previamente uma lista com as características (e os códigos da CID-10) que não seriam reconhecidas como deficiência para fins da cota.
Em síntese, elencaram as seguintes condições: transtornos de aprendizagem, de leitura, de aritmética e outros que envolvam habilidades escolares; dislexia e outras disfunções simbólicas e não especificadas; distúrbios da atividade e da atenção; transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH); transtornos mentais e comportamentais; esquizofrenia; transtornos do humor, neuróticos, relacionados com o stress e outros; síndromes comportamentais; transtorno mental não especificado; pessoa com deformidades estéticas e/ou deficiências sensoriais que não configurem impedimento e/ou restrição para seu desempenho no processo ensino-aprendizagem que requeiram atendimento educacional especializado; pessoa com mobilidade reduzida.
Identificamos editais que, apesar de não apresentarem uma lista com condições inelegíveis à cota, ao descrever os tipos de deficiência, incluíram observações afirmando que transtornos de depressão, de ansiedade, de personalidade, de déficit de atenção e hiperatividade não se enquadram em DM; assim como no caso de DA estabeleceu que a perda unilateral, em qualquer nível, não seria enquadrada.
Outro exemplo de contradição que podemos citar se dá ao retomarmos o Excerto 13, o qual inclui a esquizofrenia como deficiência psicossocial, condição taxativamente expressa por dez Ifes como não elegível à cota.
É importante ponderarmos, tendo em vista o modelo social da deficiência e sua perspectiva relacional (indivíduo - barreiras - participação), assim como a necessidade de uma avaliação bio- psicossocial como preconizado pela LBI, que não seria possível determinar previamente condições elegíveis ou não para fins de definição quanto ao direito às políticas públicas, levando em conta, no caso em apreço e em tantos outros, que a condição do sujeito não é estática.
Vilela (2023) ressalta que apenas o diagnóstico não determina se o sujeito é ou não elegível à cota, pois a mesma condição pode ou não causar impedimentos na participação, a depender do contexto, das barreiras ou dos facilitadores que a pessoa encontrar. O que vale inclusive para as chamadas deformidades estéticas, que também deveriam ser avaliadas no aspecto biopsicossocial, pois o sujeito pode enfrentar significativas barreiras atitudinais que obstruem sua participação em igualdade de condições.
Há outros aspectos que merecem estudos aprofundados e que não serão discutidos neste artigo, como, por exemplo, o fato de dez Ifes solicitarem atestado de funcionalidade, algumas delas apresentando modelos desses atestados, os quais devem ser assinados por um médico ou profissional de saúde. Podemos inferir que tal procedimento se inclina à concepção biopsicossocial de deficiência, a partir da avaliação de funcionalidade prevista na LBI, todavia essa avaliação não pode ser feita por um único profissional, e sim por equipe multidisciplinar.
Ao final do processo, a aprovação ou a validação da condição de deficiência é feita por uma perícia médica e/ou por uma comissão, comumente chamada de banca de verificação, a qual, basicamente, tem a função de validar as informações prestadas, seja analisando o laudo médico e outros documentos apresentados, seja entrevistando o candidato. Das 62 universidades, 51 previam a realização dessa banca, e a perícia médica, vale dizer, procedimento contrário ao previsto na LBI, mas previsto no Decreto n. 3.298 (1999), apareceu como a etapa definidora do processo em 11 Ifes.
Cumpre-nos pontuar que apenas uma universidade se responsabilizou por convocar e realizar a avaliação biopsicossocial de todos os candidatos classificados nessa modalidade de cota. É importante também citar que apenas seis universidades indicaram que nessa etapa de validação dos documentos (bancas e/ou entrevistas) seria oportunizado ao candidato apresentar suas necessidades específicas para adequações das atividades acadêmicas.
Considerações finais
No que se refere à concepção de deficiência, tanto nas normas legais que regem o Sisu quanto nos editais das Ifes, constatamos majoritariamente a presença do modelo médico, e isso não se dá somente em razão de a base da avaliação ser pautada no laudo médico, pois, na perspectiva biopsicossocial, o diagnóstico não deve ser dispensado. Contudo chama a atenção a ênfase dada, na maioria dos editais, às limitações e impedimentos que a deficiência pode causar. Igualmente, algumas condições, como a deficiência intelectual, a deficiência múltipla, a surdocegueira e o TEA, sequer são citadas em boa parte dos editais, contribuindo para um processo de invisibilidade dessas pessoas e um certo descrédito da possibilidade de elas alcançarem a educação superior.
Sobre os critérios para a comprovação da deficiência, algumas exigências para a emissão do laudo podem ser consideradas pouco razoáveis, reforçando estigmas, configurando-se em potenciais barreiras para a participação do estudante com deficiência, em especial os mais vulneráveis economicamente, que ficam na dependência de um sistema de saúde muitas vezes moroso ou que não atende a essas demandas.
Por conseguinte, os resultados sinalizam algumas urgências, a destacar: a necessidade de o MEC alinhar suas normativas à concepção de deficiência da CDPD e da LBI, lançando diretrizes que orientem as Ifes tanto na elaboração das regras quanto na confirmação do público elegível à modalidade de cota em apreço; a participação de profissionais das áreas da deficiência, alinhados aos construtos do modelo social, na elaboração dos editais; e a aprovação de instrumentos que norteiem a avaliação biopsicossocial, no que nos filiamos a Vilela (2022), ao referir que o investimento nesse modelo de avaliação pode contribuir sobremaneira para que as políticas sejam dirigidas a quem realmente precise delas, já que, no Brasil, cada política pública vem sendo implementada de forma diferente, no que se refere à confirmação da deficiência e à elegibilidade do seu público-alvo, fato que este mapeamento confirmou.
As incongruências mapeadas nos editais e termos de adesão ao Sisu quanto a concepção, conceitos e critérios de comprovação de deficiência sinalizam descompassos nas ações do governo federal, no que se refere aos direitos dessa população, fragilizam a política e causam insegurança jurídica dos destinatários.
Ressaltamos que, dentre as universidades federais brasileiras, existem aquelas com seus próprios sistemas de cotas para estudantes com deficiência, os quais antecedem o Sisu, com grupos de referência nos estudos sobre deficiência, além de relevante atividade de seus núcleos de acessibilidade, conhecimentos que podem contribuir para o debate multiprofissional sobre a avaliação biopsicossocial, em especial no que se refere às políticas públicas educacionais de acesso e permanência no ensino superior.
Por fim, é fundamental retomar que esta pesquisa busca contribuir para o debate acerca da complexidade de implementação das políticas públicas que requerem a confirmação da deficiência. Assim sendo, esperamos que este estudo contribua para uma discussão mais ampla e que o mapeamento ora apresentado e as incongruências identificadas subsidiem outros estudos e possibilitem avanços no debate.