As tecnologias digitais estimulam a ubiquidade, compreendida como o compartilhamento de lugares simultâneos que conectam pessoas e espaços distintos, tal qual sugere Santaella (2010), e acabam por manifestar novas formas de relacionamento interpessoal e subjetivo.
Em tempos de capitalismo de vigilância, de aprimoramento da inteligência artificial e da performance algorítmica, a comunicação ubíqua é atravessada pela conformação de bolhas digitais (Zuboff, 2021). Nesse cenário, a produção, a circulação e o consumo de informações se ordenam nas mídias digitais mediante a criação de nichos, com forte endereçamento e aderência de conteúdos aos interesses de um público com anseios, valores e ideais convergentes.
Entre as muitas repercussões que esse processo desencadeia, enfatizam-se os desafios educacionais que essa forma de relação estabelece para o exercício da participação social e da democracia. Isto é, uma vez que esses mecanismos estimulam a convivência e a participação em grupos de ideais convergentes, em que se reforçam valores comuns e o viés de confirmação das opiniões dos sujeitos encontra facilmente ressonâncias, mais desafiadora se torna a conformação de pontes para que a convivência e a abertura ao diálogo entre os divergentes se estabeleçam.
No intuito de apostar em novas metodologias de pesquisa e ação em educação, a equipe de pesquisadores do Grupo de Estudos sobre Desigualdades na Educação e na Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Gedes-UFRJ) vem se debruçando sobre a adaptação e utilização da metodologia dos grupos de diálogo (GD), proposta por Yankelovich et al. (2006).
Freire (1987) nos lembra que, tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve necessita almejar a construção de uma operação simpática, interessada em conhecer o outro e as múltiplas faces de uma dada realidade. Isto é, nos convoca a pensar estratégias que rompam com a lógica de abordagem dos temas de interesse de forma isolada, ou ainda, “soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus opostos” (1987, p. 53). Desse modo, já nos alertava para as ameaças que a supressão do valor da alteridade, fundamental na construção de espaços de diálogo, poderia representar para o esvaziamento da compreensão da própria realidade social. Segundo ele:
Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, há uma tendência para a mitificação da temática e da realidade mesma, o que, de modo geral, instaura um clima de “irracionalismo” e de sectarismo. Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes a conotação dinâmica que os caracteriza. (Freire, 1987, p. 53).
Assim, este artigo tem como motivação a reflexão sobre o diálogo na contemporaneidade, suas propriedades e o modo como a utilização da metodologia dos grupos de diálogo pode representar uma estratégia eficaz de pesquisa e ação em educação em nosso tempo.
De que tipo de diálogo estamos falando?
Em Buber (2005), o diálogo ocupa um lugar de centralidade na existência humana. A relação dialógica entre eu e tu fundamenta o ser humano a partir do encontro com o outro. Esse encontro é baseado na igualdade e reciprocidade, em que há o reconhecimento da existência do outro. Para o autor, há inerentemente em cada um de nós uma parcela do outro, o que nos torna, por natureza, propensos ao encontro e diálogo com o outro. Apenas existimos de fato na realização desse encontro, do acontecimento dialógico. Ao negar essa abertura ao encontro e ao diálogo, estamos também negando nossa própria existência e nossa razão de ser no mundo. Buber estabelece ainda duas relações diferentes, eu-isso e eu-tu. O eu-isso é uma relação estabelecida com o outro como objeto, ou seja, sem diálogo, em que o outro é coisificado e objetificado. A relação eu-tu, ao contrário, é a primordial, porque é nela que ocorre verdadeiramente o diálogo, em que há o reconhecimento do outro em sua plenitude. O diálogo verdadeiro buberiano é então caracterizado, dessa forma, pela reciprocidade e encontro autênticos.
Segundo Freire (1987, p. 50), o diálogo é esse “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. Para o autor, a palavra verdadeira é a que nasce da práxis da humanidade-mundo em sua constante busca por significação e transformação mútua. Por isso, não é possível o diálogo entre os que “negam o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito” (p. 50), sendo o primeiro requisito para o diálogo a reconquista do direito de dizer a própria palavra pelos sujeitos. O diálogo se apresenta, assim, como uma exigência existencial. Sem ele não é possível a palavra que pronuncia o mundo e o modifica (Freire, 1987).
Lima (1981/2011), analisando a obra Extensão ou comunicação, de Paulo Freire, dirá que os conceitos de comunicação e diálogo são usados indistintamente pelo autor. No entanto, para Freire, “apenas o diálogo comunica realmente”, uma vez que o diálogo expressa a coparticipação dos sujeitos no ato de conhecer a realidade-mundo e supera a mera transmissão/extensão de informações, a transferência depositária de conteúdos, a invasão cultural - sintomas da anticomunicação. Segundo Lima (1981/2011), para Freire, “não existe ser humano isolado, da mesma forma que não existe pensamento isolado. . . . O sujeito pensante não pode pensar sozinho. . . . Comunicação implica em reciprocidade que não pode ser rompida” (Lima, 1981/2011, pp. 87-88).
Martín-Barbero (2014) compreende que a teoria latino-americana de comunicação se condensa sobre o pensamento freiriano a respeito da palavra e da ação. O autor nos dirá que é no nível das mediações que a comunicação acontece, ou seja, em que se encontram “linguagem e ação enquanto formas de estar no mundo” (Martín-Barbero, 2014, p. 12). Em tempos de enfrentamento do fenômeno da desinformação, nos parece fundamental identificar dois desafios relevantes à construção do diálogo.
O primeiro refere-se ao combate às formas de distribuição desigual de conteúdos, dados, informações dos/para os usuários pelas big techs, segundo critérios pouco transparentes de autoria e financiamento que prejudicam o debate público. Referimo-nos a processos que parcializam, fragmentam ou falsificam informações que limitam ou enviesam as possibilidades do ato de conhecer a própria realidade e da capacidade dos sujeitos de pronunciá-la, reforçando mecanismos antidialógicos. O segundo é ressaltar a urgência de processos político-pedagógicos que eduquem a sociedade para o exercício das mediações como linguagem e ação que podem restaurar a prática democrática.
Vieira e Vieira (2017) abordam alguns pactos e exercícios de convivência que devem ser observados nos encontros intersubjetivos para que mediações interculturais aconteçam. Para os autores, a mediação intercultural:
Pressupõe um avanço na desejada coesão social. Inclui os diferentes participantes no conflito, promove a capacidade de compreensão, aceitando as diferentes versões da realidade, defende a pluralidade e contribui para a participação democrática, visto que fomenta a livre tomada de decisões e compromissos. Mas este processo não é automático. Como refere Torremorell (2008) “[…] não deduzimos que os processos de mediação, por si só, venham a construir a ponte social para um futuro mais humanizado, mas sim que tais processos talvez assentem uma das pedras que nos ajudarão a cruzar o rio em ambos os sentidos”. (Vieira & Vieira, 2017, p. 46, grifo nosso).
É importante destacar que, para Vieira e Vieira (2017), o exercício da mediação implica processos de transformação de todos os envolvidos em sua busca pelo entendimento dos distintos pontos de vista. Nesse intuito, encontra-se a busca pela superação de pretensas noções de neutralidade e imparcialidade em prol de uma multiparcialidade.
Assim, instaurados em uma situação de escuta e de diálogo capaz de resguardar os direitos de os divergentes dizerem suas próprias palavras, caberá à mediação e ao mediador superarem a lógica do silenciamento por adesão ou dos consensos artificiais da tolerância. Para os autores, é objetivo das mediações interculturais a criação de terceiros lugares de intercâmbio. Dito de outro modo:
Urge que o mediador sociocultural potencialize hermenêuticas multitópicas que levem ao entendimento e respeito, o que não significa, necessariamente, concordância e identificação, e não apenas à tolerância. É por isso que dizemos que tolerar não basta (Héritier, 1999; Vieira, 2011; Vieira, R. & Vieira, A., 2016). Não cremos que seja o caminho de podermos ser diferentes e vivermos juntos (Touraine, 1999). Quando muito poderíamos viver justapostos, mas segregados e não comunicantes. . . . Pelo contrário, a tolerância passiva promove a segregação. (Vieira & Vieira, 2017, p. 48).
Identificados os desafios para estabelecer e cultivar o diálogo na contemporaneidade e interessados em desenvolver processos de mediação que impliquem o respeito à diferença, a superação das desigualdades e a valorização da diversidade no exercício da participação social e democrática, o Gedes-UFRJ vem se debruçando sobre a metodologia dos grupos de diálogo como recurso de pesquisa e ação em educação no marco de investigações sobre a temática da desinformação.
O referencial teórico-metodológico dos grupos de diálogo
Proposta por Yankelovich et al. (2006), a metodologia dos grupos de diálogo surge como uma estratégia para o enfrentamento da lógica de dominação na qual são forjadas as pesquisas de opinião sobre questões políticas, em que não é permitido que os cidadãos reflitam coletivamente sobre as temáticas abordadas.
Dessa forma, a atenção principal dos grupos de diálogo reside não em opiniões individuais, e sim nas opiniões produzidas pela interação coletiva. É uma metodologia que possibilita aos agentes expressarem suas próprias opiniões, colocá-las em diálogo com as opiniões divergentes dos outros agentes, fazendo com que sejam novamente devolvidas a si de uma outra maneira, atingindo em profundidade seus próprios valores.
Em busca de uma diferenciação entre o diálogo e outras modalidades de conversação, Yankelovich (1999) aponta que o diálogo aplicado em investigações acadêmicas e de opinião pública parte necessariamente da ideia de que haverá, por um lado, desdobramentos tangíveis, como, por exemplo, ações, resultados ou tomada de decisão e, por outro lado, desdobramentos intangíveis, como estabelecimento de compreensão mútua, de confiança e de vínculo, além do entendimento de motivações, atitudes e subjetividades entre os participantes. Ao abordar o diálogo como uma habilidade que vem sendo perdida, o autor menciona que:
Quando o diálogo é feito habilmente, os resultados podem ser extraordinários: estereótipos são dissolvidos, desconfianças superadas, compreensão mútua alcançada, visões são moldadas e fundamentadas em propósitos compartilhados, pessoas anteriormente em desacordo umas com as outras são alinhadas em torno de objetivos e de estratégias, novos pontos em comum descobertos, novas perspectivas e visões adquiridas, doses extras de criatividade são estimuladas, e a força comunitária é potencializada. (Yankelovich, 1999, p. 16, tradução nossa).1
Freire (1987) entende que estimular as pessoas à reflexão sobre suas condições materiais e ideológicas de vida e permitir que controlem suas próprias palavras traz, por consequência, a consciência e encoraja os sujeitos a se envolverem nas questões políticas que permeiam seu cotidiano.
O diálogo como elemento central possibilita um ambiente no qual a escuta é tão importante quanto a fala, envolvendo todos os integrantes do grupo, sem que a defesa de uma opinião desvalorize ou ignore as outras opiniões. As ideias são apresentadas. Há um esforço para ouvir, entender e buscar fundamentos para concordar com o que é dito, permitindo a descoberta de novas formas de compreender o tema principal e aprender uns com os outros. Sendo assim, além de ser um método de pesquisa, essa metodologia pode também ser entendida como um processo educacional expandido. Uma referência importante foi o trabalho desenvolvido na pesquisa Juventude Brasileira e Democracia (Instituto Pólis & Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas [Ibase], 2006a, 2006b), que reuniu amplo grupo de pesquisadores de diversas áreas das ciências sociais - e, entre eles, alguns do campo da educação, como Nilton Bueno Fischer.
O processo de formação de opiniões e suas mudanças, que ocorrem no decorrer do procedimento, é analisado durante o próprio acontecimento dos grupos de diálogo. Yankelovich et al. (2006) consideram que o processo de formação de opinião ocorre em três etapas: conscientização por meio de informações e ideias de outras pessoas; trabalho em possíveis soluções e suas consequências; e, finalmente, alinhamento das soluções propostas com os valores centrais para atingir uma resolução em comum.
Desse modo, as opiniões são formadas não apenas pelo recebimento de informações, mas também por um processo que inclui valores pessoais e a dificuldade em que consiste a tomada de decisões. Os GD são propícios, uma vez que oportunizam expressar ideias, ouvir outros pontos de vista e ponderar valores e decisões.
Os grupos de diálogo compartilham com o método de grupo focal a característica de terem uma entrevista em grupo que resulta em um discurso coletivo. No entanto, conforme explicado por seus criadores, o que os torna diferentes é o fato de os participantes serem capazes de desenvolver perspectivas sobre questões pelas quais nunca se interessaram antes. Para atingir essa possibilidade o GD é composto de três momentos principais.
No primeiro, há um processo formativo, em que os sujeitos são apresentados às discussões e às situações reais e concretas envolvidas na temática central. No fim desse momento inicial, é apresentada uma questão única e objetiva que se mostra como uma questão problematizadora geradora do debate.
No segundo momento, o grupo pode ser idealmente dividido em dois (para que posteriormente sejam analisadas comparativamente as opiniões formuladas por ambos os grupos), quando serão apresentadas quatro sugestões de alternativas que podem dar conta da questão. Eles então são estimulados pelos facilitadores a discutirem entre si a questão central, as quatro alternativas e outros possíveis caminhos que os participantes poderão construir coletivamente entre si a partir ou não das alternativas iniciais.
Salienta-se que não deve se chegar, apenas, a uma resposta intelectual, mas também a uma ação diante da problemática exposta. No terceiro e último momento, os grupos voltam a se juntar para apresentarem, analisarem e discutirem a resolução e o processo realizado para chegarem a ela.
A metodologia dos grupos de diálogo funciona como uma lente de aumento que promove a interação coletiva, assim como acontece na vida cotidiana, porém com um enfoque maior na reflexividade produzida pela interação coletiva. Assim, eles podem permitir uma ênfase em um tópico específico que pode não aparecer em outras metodologias de investigação ou análises sociais, e incentivar o diálogo sobre esse tema.
Além disso, nessa metodologia, a autoridade frequentemente associada ao pesquisador pode ser diluída, porque são os participantes que coordenam a si mesmos no diálogo coletivo, e não os pesquisadores. Dessa forma, acabam por desvelar elementos que seriam raramente acessíveis em discursos individuais, mas que, no diálogo como método, conformam uma voz coletiva.
Contextualizando as experiências de aplicação da metodologia
A primeira utilização dos grupos de diálogo pela equipe do projeto em pesquisas sobre desinformação ocorreu por ocasião da investigação “Valores e argumentos na assimilação e propagação da desinformação: uma abordagem dialógica”, pesquisa de abrangência nacional vencedora do Prêmio de Pesquisa WhatsApp para Ciências Sociais (2018-2020), que revelou importantes resultados sobre os caminhos da desinformação no Brasil (Fonseca & Dias, 2021; Dias et al., 2020, 2021; Gedes, s.d.). Anteriormente outras pesquisas foram realizadas pelo grupo utilizando a metodologia dos GD e tendo como foco políticas públicas relacionadas à alimentação escolar e à educação em saúde nas escolas (Fonseca et al., 2015).
Além de questionário nacional e de aplicação on-line, foram organizadas cinco edições dos GD: duas na cidade de Recife (PE) e três na cidade do Rio de Janeiro (RJ), congregando 113 participantes (81 mulheres e 32 homens), reunidos a partir de chamada pública para uma formação gratuita de 8 horas corridas sobre o tema “Caminhos da desinformação nas mídias digitais”, entre julho e agosto de 2019. A primeira experiência de GD em formato digital aconteceu em 2020, sob o marco da pandemia e da divulgação do relatório final da pesquisa, reunindo 25 pessoas por 6 horas.
A partir dos resultados preliminares do questionário nacional da pesquisa e da revisão de literatura, foram discutidos e confeccionados os materiais para os GD, entre eles a orientação para o trabalho em grupos durante o GD, uma apresentação formativa sobre a temática (em arquivo de PowerPoint), a pergunta problematizadora e geradora, denominada “pergunta do diálogo”, além dos enunciados de quatro caminhos possíveis para o enfrentamento do problema.
Os enunciados dos quatro caminhos são destrinchados em seus respectivos argumentos favoráveis e contrários, de forma sintética e em tópicos, com intuito de estimular a análise e a reflexão dos participantes sobre a multiplicidade de aspectos subjacentes a cada caminho, movimentando e trazendo complexidade ao exercício do diálogo. Foram elaboradas também mensagens de texto e arquivos de imagens, que sintetizavam cada caminho e suas dimensões, como recurso adicional de consulta que era trocado por meio dos grupos de participantes em aplicativo de mensagens instantâneas.
Foram produzidas as fichas de opinião individual pré- e pós-diálogo, formuladas pela equipe do projeto, para ambas as modalidades de GD - presencial e digital. As fichas foram empregadas como instrumento adicional de registros de pesquisa, permitindo aos participantes avaliar de forma individual cada caminho proposto para a pergunta problematizadora de cada oficina.
Na ficha, há uma escala de 1 a 7 que expressa a importância de cada caminho proposto, na qual a nota 1 equivale a “não muito importante” e a nota 7 corresponde a “muito importante”. Os participantes preencheram a ficha de opinião individual pré-diálogo antes de começarem a etapa dos trabalhos, em grupo, de construção coletiva de saídas e soluções para a pergunta problematizadora de cada oficina. E, ao final da atividade, preencheram a ficha de opinião individual pós-diálogo, depois da conclusão da plenária em que todos os grupos apresentaram as soluções coletivamente construídas. Na ficha final da atividade, os participantes podiam ainda registrar comentários que justificassem as notas atribuídas para cada caminho proposto a partir de sua avaliação individual e do trabalho coletivo de construção de soluções.
Vale ressaltar que, embora os grupos fossem estimulados a iniciar o trabalho a partir da avaliação dos quatro caminhos propostos, os participantes eram continuamente orientados sobre a possibilidade de: escolher um caminho, combinar e/ou inventar novos caminhos, sempre ponderando sobre as consequências e as prioridades das escolhas que faziam na construção de consensos com vistas a responder à questão: “Como podemos enfrentar a crescente disseminação de desinformação no Brasil?”. A estrutura básica da proposta pode ser mais bem compreendida na Tabela 1.
Argumentos favoráveis | Argumentos desfavoráveis | |
---|---|---|
Caminho 1: Defender a livre circulação da informação | As pessoas devem usar do modo como preferem os aplicativos ou compartilhar as informações com seus pares. Quando as redes sociais agem para minimizar os efeitos da desinformação, podem interferir na liberdade das pessoas no uso das mídias digitais. O indivíduo é decisivo no enfrentamento do problema porque é ele quem repassa as informações suspeitas para checagem entre as agências ou o Ministério da Saúde, por exemplo. | O livre acesso à informação é condicionado pelas grandes empresas de comunicação, que monitoram e coletam dados, muitas vezes sem autorização do(a) usuário(a). Nem todas as notícias falsas serão checadas pelas agências. O alcance e a rapidez com que tais notícias viralizam é surpreendente. Ainda mais, no caso do WhatsApp, em que as informações circulam de modo privado, o que dificulta a identificação da desinformação. |
Caminho 2: Investir na capacitação pessoal | O estímulo que se observa à inclusão da educação digital como um aspecto do currículo educacional para que as pessoas possam adquirir ferramentas para lidar adequadamente com as mídias digitais. O incentivo de organizações sociais e governamentais através de campanhas informativas, ações e eventos que tratem de temáticas ligadas a acesso à informação, checagem de conteúdo e canais de denúncia de notícias falsas pode ajudar as pessoas a adquirirem mais autonomia. | A capacitação para identificar notícias falsas não é uma obrigação das pessoas e exige tempo, podendo haver diferenças na adaptação ou na facilidade do uso das tecnologias entre as gerações. A tendência de individualizar a responsabilidade da regulação da informação pode encobrir o papel da ação coletiva da sociedade e das empresas que representam os meios pelos quais circulam as notícias falsas. |
Argumentos favoráveis | Argumentos desfavoráveis | |
Caminho 3: Exigir e pressionar governos e empresas | A disseminação de notícias falsas representa uma ameaça à segurança nacional, à saúde pública e à democracia. O Estado tem papel fundamental na regulação das comunicações para garantir a realização plena dos direitos sociais, como saúde e educação. Os perfis das mídias digitais de políticos inseridos na administração pública, que têm o papel decisivo na opinião e diálogo global, poderão ser mais bem controlados por posturas indevidas, como violência, discriminação e extremismo. | A grande mídia, as redes sociais e o governo, como detentores de poder na regulação da disseminação de notícias falsas, enfraquecem a liberdade de comunicação do indivíduo e do jornalismo livre e independente. A regulação da disseminação de notícias falsas pelos governos e pelas empresas de comunicação e mídias digitais pode estar imbricada com os próprios interesses políticos e econômicos dessas instituições, resultando em prejuízo a outros grupos e ao interesse coletivo. |
Caminho 4: Participar do controle social da informação | O controle social possibilita à sociedade civil organizada monitorar, elaborar e propor políticas públicas que assegurem o direito humano à comunicação, à democratização das mídias e à justiça na circulação de informação. A emancipação da população por meio do controle social é capaz de evidenciar o poder de mobilização das pessoas, tornando-as menos sujeitas a notícias falsas e mais conscientes do seu papel na transformação da realidade que vivemos de crise generalizada de confiança na informação. | A liberdade de imprensa deve ser entendida como um dever ou uma prática inegociável do jornalismo, não cabendo a nenhuma instância, seja da sociedade civil ou do governo, a pretensão de melhorar a qualidade das informações que circulam. O controle social prejudica a autorregulação das empresas de comunicação, sendo que o mercado é suficiente para garantir a qualidade da notícia. Empresas que publicam mentiras perderão público. |
Fonte: Elaboração dos autores.
Para execução das oficinas, foram produzidos materiais didáticos e instrumentos avaliativos. Destacamos uma equipe para o registro audiovisual; outra para as tarefas de secretaria, como credenciamento dos participantes, coleta dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido preenchidos e assinados, emissão de certificados e relatoria dos grupos de discussão, além de uma equipe de logística para assegurar condições de infraestrutura física e almoço aos participantes.
O conjunto dessa primeira edição dos grupos de diálogo rendeu cerca de 40 horas de material audiovisual (voz e imagem), centenas de fotografias, 10 cartazes com a sistematização dos caminhos deliberados pelos grupos, além das 113 fichas de opinião pré- e pós-diálogo.
Outras pesquisas foram iniciadas com foco na investigação de diferentes questões associadas à temática da desinformação, e contemplaram em seu escopo a realização de grupos de diálogo. Entre essas pesquisas, encontra-se a investigação “Desinformação, direitos do consumidor e iteracia: Percepções e propostas para o uso informado das mídias digitais em relação às temáticas da saúde e da alimentação” (2021-2023), de abrangência estadual, com financiamento do Ministério Público. Após revisão bibliográfica e construção de uma nova apresentação formativa, pergunta de diálogo e sugestões de caminhos, foram realizadas duas edições de grupos de diálogo nas cidades de Macaé e Rio das Ostras, no interior do estado do Rio de Janeiro. Tal oferta se deu a partir de parcerias celebradas com os centros/departamentos de formação continuada das secretarias de educação dos municípios e dirigiu-se a toda a comunidade escolar. Esse foi o primeiro exercício de realização de grupos de diálogo com participantes pertencentes a uma mesma comunidade.
A oficina “Desinformação e direitos do consumidor: estratégias para promover a alimentação saudável nas escolas”, realizada em Macaé em agosto de 2022 e em Rio das Ostras em março de 2023, contou com a participação de cerca de 50 pessoas, e resultou em 16 horas de gravação, 6 cartazes de grupo com a sistematização dos caminhos deliberados pelos grupos, além das 48 fichas de opinião pré- e pós-diálogo.
O planejamento do trabalho em conjunto com as secretarias de educação implicou adaptações que fizeram com que fossem adicionados, em momentos posteriores à oficina dos grupos de diálogo, novos conteúdos, acabando por conferir às edições um caráter de curso. A carga horária foi ampliada a partir de encontros remotos síncronos e assíncronos, visando a atender a expectativa mínima de 20 e 30 horas exigidas para atividades de formação nos municípios. Essa inclusão contou com momentos de elaboração e supervisão dos cursistas, com o objetivo de subsidiá-los na realização de uma atividade educativa que oferecesse um retorno multiplicador dos diálogos estabelecidos durante a oficina dos GD em suas escolas.
Entre os resultados dessa experiência destacamos, para fins deste artigo, o site “Alimentar direitos: promover a alimentação saudável e informada” (Gedes, s.d.). O sítio traduz o esforço de utilizar as próprias ferramentas das tecnologias digitais durante a condução dos GD e disponibilizar todos os materiais utilizados com intuito de atendermos às demandas das professoras e professores que gostariam de reconstruir a experiência em sala de aula. No endereço eletrônico é possível reconstituir o encadeamento da oficina dos grupos de diálogo dessa edição, tal qual apresentado na Tabela 1.
Os participantes dessas edições seguiram em contato após as atividades por meio de aplicativo de mensagens instantâneas. Trata-se de um grupo mobilizador em prol da alimentação saudável e informada que vem fortalecendo e trocando experiências a partir das atividades educativas nas escolas. Estima-se que essas atividades posteriores tenham atingido cerca de trezentas pessoas da comunidade escolar.
Essa parceria entre universidade, escola e comunidade escolar vem possibilitando uma série de reflexões. Entre elas, aquela sobre o potencial dos GD não só como ferramenta de pesquisa, mas também como disparador de um processo educacional e pedagógico capaz de fomentar processos dialógicos de mobilização e participação social.
Na esteira dessas reflexões, testamos durante as duas edições de Macaé e Rio das Ostras um piloto de possíveis perguntas problematizadoras que devem guiar, no âmbito da comunidade escolar, a realização, em 2024, de GD no marco de outras duas pesquisas: “Alfabetização digital no âmbito das famílias brasileiras: Mapeamento, perspectivas e estratégias” (2021-2023), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e “Letramento digital, desinformação e desigualdade social: Desafios para a formação em educação em ciências e saúde em cenário de (pós)pandemia” (2021-2025), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Possibilidades e desafios a partir do uso dos grupos de diálogo
Em relação às oficinas presenciais e digitais, ao trilhar uma rota interpretativa que leva em conta os processos coletivos de formação e construção do pensamento, são abordadas as mediações e as elaborações discursivas resultantes do diálogo e da escuta sobre as soluções e consequências para o enfrentamento da desinformação nas plataformas de mídias digitais ou no campo da alimentação e do direito do consumidor, por exemplo.
Durante as oficinas, os participantes vivenciaram os processos de formação e trocas de saberes, e de mudanças de opinião a partir da expressão de ideias e diferentes visões de mundo. Foi observada uma tendência de cocriação de uma proposta de resolução comum que, em geral, mescla aspectos, e pode ainda incorporar novos caminhos diferentes dos quatro caminhos oferecidos para avaliação preliminar dos grupos.
Por meio da linguagem - escrita e falada -, essa elaboração final de cada grupo reflete as negociações e aprendizados construídos na interação dos distintos pontos de vista possíveis dos participantes no curso da oficina, carregando consigo intersubjetividade e formas de expressão típicas dessa modalidade de encontro.
Isso pressupõe considerar, na prática reflexiva sobre os grupos de diálogos, a maneira como se organiza e transcorre um diálogo, a interpretação do que é dito e enunciado pelos participantes e, ainda, o que é produzido nos subgrupos até a expressão final da proposta de resolução comum para o tema abordado em cada oficina.
Tal prática considera esse lugar de encontro e de reconhecimento mútuo, cuja textura se estabelece por meio das relações em busca de um pacto coletivo (Martín-Barbero, 2014). Por essa razão, durante os exercícios de construção de consensos, de diálogos sobre os caminhos preliminarmente propostos e de priorização de soluções para os problemas, é preciso considerar as intencionalidades subjacentes (de onde fala, com quem fala, para que fala), como se apresentam e se delineiam as mediações, examinando e compreendendo outras visões de mundo. Isso também implica desprender-se de algumas perspectivas de pensamento já consolidadas, transladar para outros quadros de compreensão da situação-problema em favor do lugar de encontro e de cocriações instauradas para o momento da realização das oficinas com GD.
Desse movimento resulta a possibilidade de cada participante desenvolver uma perspectiva aprofundada que não seria possível se o tema da oficina fosse examinado a partir de um ponto de vista individual. A compreensão mútua se expressa quando os participantes estão engajados em um propósito comum de diálogo, tornando o terreno propício para a formação de opiniões e para a elaboração de um pensamento representativo que incorpora múltiplas perspectivas (Yankelovich, 1999).
É possível, ainda, sinalizar uma possibilidade analítica para as oficinas, que pode ser complementar à prática reflexiva já apresentada. Trata-se da avaliação da mudança de opinião individual, que considera a importância que cada participante dá aos caminhos na ficha que preenche antes e após os trabalhos e trocas durante a oficina.
Observou-se que, em relação a essa dimensão individual, nas oficinas realizadas presencialmente a avaliação de cada participante, antes e depois da dinâmica dos grupos de diálogo, teve como desfecho a mudança de posição, mas sobretudo a atribuição de uma nota mais alta para o grau de importância de todos os caminhos propostos, revelando o potencial do diálogo coletivo de despertar múltiplos e importantes olhares diante de temáticas polêmicas. Nota-se, na maioria das experiências de aplicação, uma preponderância de atribuição de maior importância ao “caminho 2 - investir na capacitação pessoal” -, compreendido muitas vezes pelos participantes como aquele que enfoca a perspectiva educativa. Além disso, os consensos e trocas construídos nos encontros enfatizaram a necessidade de fomento de espaços diversificados para o compartilhamento de saberes coletivos sobre as formas de comunicação e interação nas mídias digitais (Dias et al., 2020).
Entre os desafios da utilização da metodologia, salientamos a logística exigida para concepção e viabilização de uma ação de formação e pesquisa integrada, cujo tempo de realização é estendido e demanda dos participantes disponibilidade e envolvimento. Do ponto de vista da equipe de pesquisa, destacamos o desafio de analisar os resultados que vão sendo produzidos durante a própria experiência dialógica. Isso inclui a observação das interações e do jogo de mudança de opinião entre os participantes; a produção de relatorias durante a discussão; além da gestão dos instrumentos/recursos da pesquisa, como as fichas pré- e pós-diálogo e a direção da produção audiovisual no processo interativo para a melhor captação de áudio, fotografia e vídeos que auxiliem posteriormente nas análises.
O processo de aplicação da metodologia, tal qual experimentamos no âmbito das pesquisas apresentadas, gera dados de natureza variada. São fichas de natureza quanti-qualitativa; relatorias de grupo; cartazes de síntese das propostas dos grupos; captação de áudio, imagem e vídeo, de modo que também apresenta como desafio o trabalho posterior de decupagem, integração, análise e sistematização dos resultados.
Considerações finais
A metodologia dos grupos de diálogo se apresenta como uma importante ferramenta da pesquisa educacional crítica, atuando tanto como um referencial teórico-metodológico de pesquisa quanto como um disparador de um processo educacional e mobilizador expandido.
O trabalho dialógico desencadeado a partir das oficinas parece poder atuar na reconstrução do capital social, tecendo uma complexa rede de relações de cooperação e apoio mútuo em favor da superação de barreiras institucionais e de crenças pessoais, colocando-nos juntos como comunidades. Com isso, é construído, além da confiança mútua, um terreno comum atrelado a um senso de pertencimento, demarcado por valores como reciprocidade, organização, cidadania e participação social, acolhimento das diversidades e compreensão das distintas visões de mundo.
Os grupos de diálogo, portanto, podem promover a democratização do processo de pesquisa, proporcionando interações mais dinâmicas na construção de enunciados com várias vozes, e auxiliar em processos de estímulo à participação social em agendas de interesse público, como, por exemplo, o enfrentamento da desinformação.