Em 2023, a entrada dos primeiros estudantes cotistas em universidades públicas completou vinte anos.1 Em 2022, a Lei n. 12.711 (2012), conhecida como Lei de Cotas, completou dez anos. Após a implementação dessa lei, graças em grande parte à pressão de organizações do Movimento Negro, difundiu-se o entendimento de que a autodeclaração, pré-requisito para pleitear a reserva de vagas de cunho racial, deveria ser fiscalizada, sob a justificativa de que os reais beneficiários fossem contemplados pela política, isto é, para preservá-la de fraudes (Leite, 2020; Marques, 2019). Isso deu origem à consolidação de um mecanismo burocrático: as comissões de heteroidentificação (Dantas & Almeida, 2024; Batista & Figueiredo, 2020; Dias & Tavares, 2018; Marques, 2019).
As primeiras pesquisas sobre essas comissões se dedicaram a definir por que foram instituídas, por meio do estudo de casos de instituições que implementaram o procedimento (Batista & Figueiredo, 2020; Jesus, 2021; Marques, 2019; Silva et al., 2020), a descrever seu funcionamento (Dias & Tavares, 2018; Silva et al., 2022), a analisar os demandantes (Guimarães et al., 2020; Dantas & Almeida, 2024) e a apresentar sua expansão no território nacional (Santos, 2021). Mais recentemente, alguns estudiosos estão buscando compreender o significado desse processo para as relações raciais (Lempp, 2019; Neves, 2022). Trata-se de uma interrogação importante, principalmente tendo em conta as práticas de classificação racial em vigor no país, em que a população historicamente mobiliza diversas nomenclaturas para se autodefinir racialmente em um contínuo de cor (Brandão & Marins, 2007; Sansone, 1996; Telles & Paschel, 2014; Valle Silva, 1999).
Com o advento das cotas raciais, candidatas e candidatos a vagas nas universidades precisam se encaixar nas categorias oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de classificação racial, devendo optar por se autodeclararem como “preto ou pardo” se quiserem ter direito às vagas reservadas. No entanto, se o significado da categoria “preto” é mais amplamente compartilhado, o mesmo não acontece com a categoria “pardo”, que foi construída historicamente pela reunião de miscigenados de todo tipo, sem discernir a ascendência indígena, negra ou qualquer outra (Carneiro, 2011; Piza & Rosemberg, 1999), resultando em uma grande variedade fenotípica e, no contexto das cotas, em uma dificuldade de heteroidentificação. Isso tem gerado um grande debate sobre quem pode se apresentar como tendo direito às cotas em função do seu pertencimento racial (Jesus, 2021). Campos (2013) sublinha as consequências políticas dessa controvérsia no contexto das ações afirmativas, pois a questão da classificação racial é uma dificuldade epistemológica para a compreensão das relações raciais que ainda não foram bem entendidas no Brasil.
No início da implantação das cotas, a Universidade de Brasília (UnB) foi pioneira na implantação de um dos primeiros mecanismos de verificação da autodeclaração proposto pelo coletivo negro da instituição para evitar fraudes (Carvalho, 2005). Naquele período, o procedimento foi cunhado de “tribunal racial”, especialmente por antropólogos contrários a essa prática (Anjos, 2005; Maggie, 2005). A crítica, apoiada também pela mídia hegemônica, não era apenas à verificação, mas sobretudo às cotas raciais, pois promoveria um país racialmente dividido entre negros e brancos (Fry et al., 2007). O movimento favorável, encabeçado principalmente por intelectuais ligados ao Movimento Negro, contra-argumentava que a divisão racial já existia devido ao racismo brasileiro (Munanga, 2006), e as cotas raciais seriam parte da estratégia para que pardos se reconhecessem como negros (Alberti & Pereira, 2006), além de mudar a composição racial das universidades cujos estudantes e professores eram majoritariamente brancos (Carvalho, 2006; Segato, 2006).
Parte dessa polêmica parece ter sido apaziguada em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade das cotas raciais e incluiu o procedimento de heteroidentificação como procedimento complementar para verificar a autodeclaração (Supremo Tribunal Federal [STF], 2012). No mesmo ano, a Lei de Cotas foi promulgada e, mesmo sem uma legislação específica, as comissões de heteroidentificação se expandiram pela maioria das universidades federais (Dantas & Almeida, 2024).
Se a questão parece ter sido apaziguada no âmbito jurídico, ainda sabemos pouco sobre como está sendo equacionada pelas pessoas que são diretamente afetadas. Essa é a questão para a qual nosso artigo pretende contribuir, por meio do estudo da experiência de estudantes pardos que passaram por uma comissão de heteroidentificação. Para tanto, perguntamos sobre a maneira como eles experenciam a exigência de auto e heteroidentificação racial e que sentido dão a essa experiência. A pesquisa que resultou neste artigo examinou o processo de implantação das comissões de heteroidentificação e os processos de racialização que permeiam o fenômeno.
Os dados apresentados neste artigo se referem a uma parte da investigação que teve como foco apenas os estudantes que passaram pela comissão de heteroidentificação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), denominada Comissão de Averiguação (Cavu). O primeiro vestibular com cotas para estudantes pretos e pardos de escolas públicas e privadas2 aconteceu em 2019, e a primeira Cavu foi realizada presencial e remotamente em 2020, a partir da terceira chamada, por causa da pandemia. Já a de 2021 foi totalmente remota. Cada banca da Cavu é composta por pessoas representantes de cinco categorias: presidente (apenas docentes concursados), servidores, estudantes de graduação, estudantes de pós-graduação e membros da sociedade civil. Naquele período, a verificação consistia em uma breve entrevista diante dessa banca, que validaria, ou não, a autodeclaração do candidato.3 O critério de escolha dos entrevistados nesta pesquisa foi: estudantes que passaram pela Cavu nos anos de 2020 e 2021, os dois primeiros anos de sua atuação, por isso não entrevistamos estudantes que ingressaram por cotas em 2019. A pesquisa foi realizada durante a pandemia, quando praticamente todas as atividades da universidade estavam ocorrendo de modo remoto. Isso dificultou bastante o contato com estudantes, realizado por e-mail, redes sociais e aplicativos de mensagens por celular por meio de uma mensagem que convidava estudantes ingressantes por cota de 2020 e 2021 a participarem de uma pesquisa sobre a experiência de entrada na universidade por essa modalidade. Não indicamos o critério da Cavu, pois percebemos, logo no início, que a abordagem dificultava ainda mais a adesão para a entrevista. Um número considerável de mensagens não foi respondido, e alguns disseram não se sentir seguros de conversar sobre o tema. Ao final, sete estudantes aceitaram ser entrevistados, quatro deles autodeclarados pardos e três pretos. A pouca adesão é um limite desta pesquisa, pois sugere que estudantes com uma experiência mais positiva aderiram à entrevista.
As entrevistas foram realizadas por videoconferência a partir de um roteiro preestabelecido dividido nas seguintes seções: (i) opção por cotas; (ii) passagem pela Cavu; (iii) pertencimento racial na família; (iv) experiência de racismo na escola, na família e em outras instâncias de convivência no passado. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas. Neste texto, nos detivemos nas entrevistas realizadas com os quatro estudantes que se autodeclararam pardos.
Na próxima seção, analisaremos a literatura sobre relações raciais que fundamentam as hipóteses e análises. Em seguida, discutiremos os resultados das entrevistas sobre classificação racial. Finalizaremos com as considerações finais.
Cotas raciais e classificação racial
No período que se seguiu à adoção das cotas raciais, poucos estudos empíricos se dedicaram a examinar como elas afetariam a percepção sobre a classificação racial dos estudantes envolvidos (Guarnieri & Melo-Silva, 2017). Um desses primeiros estudos foi desenvolvido por Vânia Penha-Lopes (2013), que entrevistou os primeiros cotistas do Brasil: estudantes que entraram na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) entre 2003 e 2004. Parte do estudo buscava compreender o que tinha acontecido com estudantes que não tinham uma percepção evidente sobre seu pertencimento racial e que, mesmo assim, se beneficiaram das cotas. Ela mostrou que seus depoentes se apoiavam no fenótipo e/ou na ancestralidade para justificar sua escolha. Aqueles que se percebiam como negros haviam construído sua identidade racial a partir de experiências negativas de racismo vivenciadas ao longo de sua vida. Por sua vez, os estudantes entrevistados que não tinham traços negroides evidentes tiveram muita dificuldade em optar pela classificação “pardo” do IBGE, pois utilizavam termos como “moreno” para se autodefinir, constatando que a entrada por cotas levou a uma mudança na autoclassificação para pardos.
Essa mudança do “moreno” para o “pardo” vai ao encontro de estudos anteriores que identificaram diversas classificações que os brasileiros mobilizavam ao serem perguntados sobre sua cor/raça (Brandão & Marins, 2007; Sansone, 1996), escolhendo a morenidade (Valle Silva, 1999) como a representação da mestiçagem brasileira. Tal escolha parece ser explicada pela prevalência da ideologia da democracia racial difundida no início do século XX, pela qual se entendia que o povo brasileiro é constituído pela mestiçagem entre indígenas, europeus e africanos e impedia a autoidentificação como negro. Essa ideologia também alimentaria o tipo de racismo prevalente no Brasil, que preconiza a harmonia entre as raças, apesar das evidências de ocorrência de violência racial, diferentemente de contextos em que a segregação foi implementada por medidas legais, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Essas diferenças entre os países reafirmam o entendimento de que raça é uma construção social, pois, como declara Guimarães (2009, p. 12) “cada racismo só pode ser compreendido a partir de sua própria história”.
Estudos realizados na segunda metade do século XX, como o de Carlos Hasenbalg (1979/2005), cuja estratégia empírica consistiu em associar as populações classificadas como parda e preta em uma única categoria, “não brancos”, demonstraram que o Brasil podia ser descrito como uma sociedade racialmente hierarquizada, o que se refletia, por exemplo, na desigualdade de renda e de condições de vida entre brancos e não brancos (Hasenbalg et al., 1999).
Essas constatações serviram de base para a ação política. Organizações do Movimento Negro, por exemplo, passaram a se apoiar nelas para buscar compensações, como ações afirmativas (Gonzalez, 1982), e a aglutinar os pardos e pretos em uma única categoria, os negros (Osorio, 2003), o que permitiria indicar que a maioria da população brasileira seria, de fato, negra, justificando políticas como as cotas raciais. Assim, sua implantação nas universidades públicas foi uma de suas maiores conquistas (Gomes, 2017).
No entanto a implementação das cotas gerou casos de fraudes denunciados por estudantes e que passaram a ser relatados pela imprensa. Isso parecia indicar que as autodeclarações não seriam suficientes para garantir que a política beneficiasse de fato os grupos que tinham direito a ela. Isso deu origem às comissões de heteroidentificação já mencionadas e às tentativas de se determinarem critérios e limites de definição racial (Dantas & Almeida, 2024).
É preciso fazer uma ressalva ao que se tem chamado popularmente de “afroconveniência”, que consiste no uso da autodeclaração de pessoas lidas como brancas, mas que, ao que se depararem com alguma vantagem social, como as cotas raciais, se declaram como negras, isto é, o uso conveniente de uma ancestralidade africana para obter benefícios. Para Gabriela Rodrigues (2022), a “acusação” de afroconveniência está sendo destinada para negros, pois pardos podem incorporar a mestiçagem, diferentemente de brancos que a performam ilegitimamente para fraudar cotas no contexto das comissões. Essa incorporação da mestiçagem diz respeito à intencionalidade do Movimento Negro, em uma luta histórica, de propor que pardos, que historicamente “fugiam” de uma identificação como negros, viessem a se reconhecer como tal (Gomes, 2017; Piza & Rosemberg, 1999).4
Há dois aspectos da questão que merecem ser destacados. Primeiro, o fato de que a dificuldade da autodeclaração (Brandão & Marins, 2007; Sansone, 1996; Valle Silva, 1999; Telles & Paschel, 2014) permanece como uma característica das relações raciais na sociedade brasileira. Aliás, muito já se discutiu sobre os motivos pelos quais uma parte da população tenta fugir de uma identificação como negro (Gonzalez, 2020; Munanga, 2019, 2020; Souza, 2021). Especificamente sobre os pardos, Verônica Daflon (2017) mostrou que estes, apesar de estarem materialmente perto dos pretos, estão longe de identificar o racismo ou o preconceito racial da mesma maneira que aqueles.
O segundo aspecto a ser considerado é o efeito sobre o pertencimento racial, pois as cotas criam uma situação em que se apresentar como preto ou pardo dá direito a um benefício social importante. Nesse sentido, as cotas podem ser pensadas como um convite ao “enegrecimento”, como propunha o Movimento Negro. Alguns estudos quantitativos já apontam mudança na autodeclaração racial com mais adesão à categoria pardo e preto, levantando a hipótese de que as ações afirmativas e o aumento da escolaridade podem ser o motivo para tal mudança (Francis & Tannuri-Pianto, 2013), o que Letícia Marteleto (2012, p. 356) chamou de “escurecendo pela educação” (darkening with education). Isso parece indicar que, como apostava o Movimento Negro, as ações afirmativas poderiam contribuir para mudanças nas relações raciais ao estimular um maior número de pessoas a se reconhecerem como negras (Alberti & Pereira, 2006; Gomes, 2017; Munanga, 2006, 2019, 2020).
A tensão entre a dificuldade social de autorreconhecimento dos pardos e o processo de se enegrecer não pode ser analisada apenas no campo material, como estudos quantitativos já têm demonstrado. É preciso, ainda, analisar tal tensão pela dimensão simbólica do racismo.5 Uma maneira de entendê-la pode ser por meio do conceito de racismo de denegação, conforme proposto por Lélia Gonzalez (2020, pp. 131-132), pelo qual a ideia do disfarce de uma democracia racial, instrumentalizada pela ideologia do branqueamento, reflete-se na percepção racial, que “demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer” ou de “limpar o sangue”. Parte de sua explicação sobre a operação do racismo de denegação é a seguinte:
Vale recordar aqui um fato muito interessante, que nos remete à ideologia do branqueamento. Como se sabe, ela consiste no fato de os aparelhos ideológicos (família, escola, igreja, meios de comunicação etc.) veicularem valores que, juntamente com o mito da democracia racial, apontam para uma suposta superioridade racial e cultural branca. Vale notar que é justamente por aí, por essa articulação entre o mito e a ideologia, que se deve entender o caráter disfarçado do racismo à brasileira. Daí, se segue que pessoas negras (pretas ou mulatas, porque dá no mesmo) internalizam tais valores e passam a se negar enquanto tais, de maneira mais ou menos consciente. (Gonzalez, 1982, p. 54, grifo da autora).
De forma sucinta, devido à impossibilidade de uma discussão aprofundada no espaço deste artigo, a ideologia do branqueamento foi uma tese defendida por parte da elite brasileira na transição do século XIX para o XX, pressupondo a inata superioridade branca e a inferioridade dos não brancos, os degenerados, baseada nas teorias eugênicas da Europa (Skidmore, 2012). As instituições de pesquisa e as primeiras faculdades que estavam sendo instaladas no Brasil no final do século XIX eram influenciadas por essa concepção (Schwarcz, 1993). Sua recepção por essa intelectualidade que se formava nessas instituições foi feita de forma peculiar no Brasil, pois, em vez da crença da eliminação dos degenerados, como aconteceu na Alemanha nazista, acreditavam que poderiam resolver o problema da degeneração pela miscigenação (Schwarcz, 1993; Skidmore, 2012), isto é, a mistura com os brancos “limparia o sangue” dos brasileiros, embranquecendo a nação. Naquele período, havia um intenso debate e a propagação dessas ideias pelas elites intelectuais do país para promover a concepção do povo brasileiro baseado na brancura (Góes, 2018); isso se estendeu até o início do século XX, nas propostas de saúde e educação que estavam sendo implementadas no governo de Getúlio Vargas a partir da década de 1930 (Dávila, 2006). A virada dessa concepção se deu a partir daquela década, quando se passou a difundir a mestiçagem como a solução, não mais como o problema, para definir o que seria o povo brasileiro (Freyre, 1933/2004).
Contudo Lélia Gonzalez argumenta que a virada representada pela democracia racial6 não eliminou a ideia da superioridade branca difundida pela ideologia do branqueamento, mas promoveu uma articulação entre elas. Para a autora, os diversos aparelhos ideológicos foram os canais de propagação dessas ideias.
Assim, a dimensão simbólica do racismo está sendo aqui entendida como a articulação entre as ideologias do branqueamento (superioridade branca) e da democracia racial (povo miscigenado em harmonia), pelas quais pardos buscam se aproximar do padrão tido como superior, o branco, ainda que, materialmente, estejam próximos dos pretos, tidos como inferiores. Para tanto, precisam negar sua condição racial para ocultar a inferioridade imposta por essa articulação. A democracia racial prega a igualdade entre as raças, ocultando a base material que separa negros de brancos, e a ideologia do branqueamento “estilhaça” a identidade dos negros, pois preconiza a superioridade dos brancos, justificando os melhores acessos das condições sociais. O acesso à universidade pública por meio de reserva de vagas raciais como benefício tensiona essa articulação, pois o pardo precisa se posicionar sobre seu pertencimento racial, que foi construído para fugir da identidade negra, por diversos aparelhos ideológicos, em prol de um ganho material.
Faz-se necessário distinguir como estamos empregando a ideia de pertencimento e identidade racial, no campo simbólico do racismo, para que uma pessoa possa mobilizar a classificação racial oficial do IBGE. Ao estudar a percepção de pessoas negras em ascensão social, Neusa Souza (2021) constatou a prevalência de uma identificação negativa de si, construída a partir do mito do negro que se constrói na inferioridade, na sujidade, na marginalidade em uma sociedade branca que privilegia os valores e os costumes do grupo socialmente dominante. Para ascender, a maioria deles buscava fugir dessa identificação, buscando projetar o modelo do branco, tido como o padrão, o belo, a norma. Contudo, na dinâmica de mobilidade social, pode acontecer a consciência do lugar de subalternidade e construção de uma nova consciência de si, pois “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (Souza, 2021, p. 115).
O “tornar-se negro”, no campo da psicologia, pode ser entendido nas ciências sociais como um processo resultante do letramento racial, o que implica mais do que o reconhecimento do pertencimento racial - muitas vezes negativo -, mas a construção de uma consciência política. Para Munanga (2020, p. 15), “a identidade negra mais abrangente seria a identidade política de um segmento importante da população brasileira excluída de sua participação política e econômica e do pleno exercício da cidadania”. Para o autor, a base para a formação dessa identidade de contraste ao opressor seria entender-se como “negritude”, que implica, primeiramente, a aceitação dos atributos físicos do seu corpo como “sede material” dessa identidade em reconstrução.
Assim, a distinção entre pertencimento e identidade neste artigo se dá pela concepção de que pertencimento racial, saber-se negro por causa do racismo, não implica o processo de elaboração política que constrói uma identidade negra positiva (tornar-se). Podemos ainda sugerir que o “enegrecimento” proposto pelo Movimento Negro é parte do resultado do letramento racial que contribui para a passagem do pertencimento racial, por vezes negativo, para a identidade racial da negritude, que implica, de início, a aceitação do corpo negro e os desdobramentos políticos que tal aceitação impõe.
O trabalho de Penha-Lopes (2013) já assinalava a mudança de pertencimento racial quando morenos passam a se perceber como pardos. No caso da nossa pesquisa, além das cotas, há o processo de verificação de terceiros da autodeclaração. Para nossa surpresa, duas entrevistadas consideraram importante a passagem pela comissão para construção do seu pertencimento racial, como veremos adiante, questão pouco explorada em trabalhos anteriores.
Como já mencionado, Lélia Gonzalez (2020) aponta os aparelhos ideológicos que propagaram o construto ideológico racial brasileiro. Eles serão entendidos, no nosso trabalho, como instâncias socializadoras (Setton, 2002), assim, mais operatórias. Isso nos levou a indagar, em especial, sobre o lugar da família, da escola e de outros espaços relevantes para construção do pertencimento e/ou identidade racial. Por fim, buscamos ainda compreender o que significou passar por uma comissão de heteroidentificação, isto é, por um dispositivo do Estado encarregado de reafirmar a classificação racial oficial.
Assim, uma última faceta da problemática referente à classificação racial oficial no Brasil considerada neste artigo é a definição do negro por meio do fenótipo. Essa construção está fundamentada, principalmente, na proposta de Oracy Nogueira (2006), que diferenciou o preconceito de marca (fenótipo) do preconceito de origem (ancestralidade) ao comparar Brasil e Estados Unidos. Ao cotejar os dois países, notou-se a falsa percepção de que não haveria racismo no Brasil (Guimarães, 2009), visto que a segregação estadunidense foi formalizada por lei. No Brasil, teria prevalecido a ideia de que estaria em vigor uma cidadania ampla para todos, independente da raça, dificultando o reconhecimento da discriminação institucionalizada (Jones, 1973) que separa brancos e não brancos, com grande vantagem material em várias áreas da sociedade brasileira para os brancos (Hasenbalg, 1979/2005), o que tem sido denominado de racismo estrutural (Almeida, 2018; Oliveira, 2021).
A formalização do fenótipo como critério foi validada institucionalmente pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da constitucionalidade das cotas raciais para ingresso nas universidades (STF, 2012) e tem sido usada em outros documentos como a Portaria Normativa n. 4 (2018), do antigo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPDG), que rege o funcionamento das comissões de heteroidentificação para funcionalismo público, amplamente adotado pelas universidades (Dantas & Almeida, 2024).
Assim, parte da hipótese sobre a problemática das classificações raciais que incide sobre as comissões de heteroidentificação teria pelo menos essas duas facetas: a incompreensão ou o campo difuso do que é se autodeclarar como negro e a proposta do critério do fenótipo como norteador para determinar o pertencimento racial. Isso implica refletir sobre a constatação feita por alguns autores de que estudantes pardos não sabem responder sobre seu pertencimento racial no contexto de comissão de heteroidentificação (Miranda et al., 2020) ou, de maneira mais ampla, por que os pardos percebem menos a discriminação, apesar de estarem mais próximos materialmente dos pretos, e por que se identificam mais com os brancos (Daflon, 2017). Se, historicamente, a elaboração racial dos pardos é “estilhaçada” pelo racismo de denegação, o que acontece durante o processo de verificação da autodeclaração pode ser entendido como um reflexo do que acontece na sociedade brasileira.
Pertencimento/identidade racial das entrevistadas e do entrevistado
As entrevistas foram iniciadas pela experiência de ingresso por cotas. Durante o roteiro, direcionávamos a conversa para compreender o pertencimento e/ou a identidade racial dos depoentes. Pressupondo isso como um assunto tabu, nos apoiamos teoricamente naquilo que Bourdieu (2006) descreve como a ilusão biográfica, pois, naquele momento, os entrevistados estavam buscando dar sentido a uma temática sensível, tentando trazer as experiências significativas que pudessem tornar inteligível sua experiência racial. Tais relatos sempre têm seus condicionadores sociais que, para a nossa pesquisa, podem nos ajudar a compreender aspectos da construção racial operante na sociedade brasileira.
Para apresentar as entrevistadas e o entrevistado, é preciso de antemão assinalar que todos, com exceção de uma, preferem se apresentar como negra(o), ou, como uma delas nos disse, “negra de pele clara”. A categoria oficial “pardo” do IBGE é mobilizada em situações oficiais, como a autodeclaração exigida na universidade para se candidatar à vaga. Como veremos, isso já estava mais assentado pessoalmente no momento das entrevistas, o que não era tão evidente antes da universidade para algumas.
Buscamos compreender em que instâncias socializadoras, se na família, na escola, na universidade ou em outros espaços, a compreensão sobre seu pertencimento e/ou sua identidade racial foi sendo construída. Como a passagem pela Cavu se revelou uma experiência especialmente significativa no processo de construção do pertencimento ou da identidade dos estudantes pardos entrevistados para esta pesquisa, exploramos em detalhe neste artigo apenas as(os) estudantes pardas(os) que tiveram sua autodeclaração verificada, deixando de fora da análise pardos cuja autodeclaração não teria sido validada por uma comissão. Os nomes foram trocados e optamos por não indicar o curso, e sim a área, para preservar o anonimato dos entrevistados.
A renda familiar dos depoentes não ultrapassa cinco salários-mínimos (SM). A escolaridade dos responsáveis varia entre ensino fundamental incompleto e nível superior incompleto. Apenas uma das estudantes é egressa de ensino médio privado. Preferimos analisar com base na história pessoal e buscamos fazer a síntese nas considerações finais.
Sidney: “A minha mãe sempre falou que pardo é papel, né?”
Sidney se autodeclarou como pardo na inscrição, mas não gosta do termo. Ele é natural do interior do Rio Grande do Sul. Passou em duas universidades federais, mas decidiu pela Unicamp para fazer um curso na área de tecnologia da informação. Tanto ele quanto a mãe se autodeclaram negros, mas, pela nomenclatura do IBGE, ele se autodeclara pardo e a mãe, preta. O pai é branco. Sua mãe tem o ensino médio incompleto e seu pai, superior incompleto. A renda familiar está entre 3 e 5 salários-mínimos. Ele é filho único. Estudou em escola pública regular. Era representante discente, atuava politicamente na escola, mas não participava de movimento negro. Seu pertencimento racial foi construído na família, que buscava dar uma significação positiva e proteção sobre como se portar como negro, especialmente por parte de sua mãe, que, prevendo o racismo a que ele poderia ser exposto, dava instruções de como se portar no dia a dia.
Sidney - Desde quando eu era criança, a mãe sempre falava assim, “ah, tu é negro”, e às vezes sempre quando vinha falar sobre isso vinha com aquela coisa de “por causa disso tem algumas coisas que é melhor tu não fazer”, “é melhor cortar o cabelo”, “não vai pintar o cabelo”, “não vai andar com a mão no bolso”... É... não sei se vem a partir dessa parte, mas sempre quando tinha alguma conversa, alguma coisa que ia falar, “ah, tu é negro”. E também tem a questão de que meu pai é um alemão do olho azul, né, “ah, se alguém falar alguma coisa na escola, não leva isso para o coração, porque é o teu pai, tu pode ser negro... por mais que tu não seja parecido com ele não tem nenhum problema”. Então eu acho que desde criança, assim, eu sabia que eu era negro.
Verificamos que a experiência do racismo também proporcionou o entendimento de que cotas raciais eram mais do que “um direito” para Sidney, mas também a oportunidade de ocupar espaços que são tradicionalmente negados aos negros em um país com uma hierarquia racial forte e persistente. Ele participou da primeira experiência de verificação presencial da Cavu, por isso não tinha muito conhecimento sobre como funcionaria.
Sidney - Por que que eu optei participar pelas cotas? Foi feita essa pergunta no dia lá da seleção, foi uma pergunta que eu achei um pouco difícil de responder. Porque eu não posso falar simplesmente que é “porque é o meu direito”, porque eu acho que vai um pouco além disso. Eu sou lá do Rio Grande do Sul, que é um estado em que a maioria do pessoal é branco. E aí... vocês acompanham notícias ou... imagino que sim, né? Mas lá é essa coisa, o preconceito racial é um pouco maior. Eu acho que eu poderia... eu optei mesmo porque é um lugar que eu gostaria de ocupar, é um lugar que eu quero estar e que eu quero que outras pessoas da minha cor também estejam, porque a gente sabe que apesar de a gente ser a maioria, nós não somos a maioria nos cargos maiores aí nas empresas, e eu gostaria de também no futuro estar ocupando esses cargos, seja na indústria seja na pesquisa... Por isso que eu optei.
Entrevistadores - E quando você se inscreveu para a Unicamp você já sabia que haveria comissão de heteroidentificação?
Sidney - Eu não sabia, se não me engano foi o primeiro ano que teve, né? Mas não sabia, tanto é que eu até pesquisei bastante para saber o que... como seria esse processo, né? E na época também não tinha tanta informação, tinha acho que alguns vídeos lá e a documentação, o que foi bem interessante, deu para entender mais ou menos o processo, mas só na hora mesmo para saber como ele seria. . . . Eu imaginei que seria algo semelhante ao que ocorreu, mas eu acho que assim . . . ninguém sabe o que tava esperando. . . . Então, quando eu cheguei lá tinha uma menina que sentou do meu lado, que por coincidência ela era do mesmo curso que eu, e o nosso questionamento era: “mano, como é que eu provo? Não sei... Como é que eu provo que eu sou negro?”. Não sei, nunca me perguntaram por que eu sou negro, como é que eu vou responder por que eu sou?
Consideramos que Sidney construiu sua identidade negra, pois compreende as implicações políticas de sua autodeclaração para o ingresso de cotas, para a ocupação de espaços onde a maioria populacional está excluída. Contudo não tinha ideia do que seria pedido na comissão de heteroidentificação, que consistia em uma verificação fenotípica para validar sua autodeclaração. Na sua dúvida, imaginou que seria requerido algum tipo de performance (provar), demonstrando que não tinha o entendimento de que o fenótipo era o critério já estabelecido. A construção da raça criou uma espécie de “tabu” (Guimarães, 2009), em que pouco se discutiu sobre o pertencimento racial no país, deixando, principalmente, os miscigenados em um campo simbólico difuso. O exemplo de Sidney demonstra que ele já se considerava como negro por causa da socialização familiar, mas nunca tinha vivenciado uma situação em que tivesse que “provar” que seria negro.
Perla: “Não tem como você fugir disso”
Perla se autodeclarou parda ao se inscrever para a universidade. Nasceu na capital de São Paulo e teve que se mudar para frequentar seu curso. Seu pai é zelador na região central de São Paulo. Sua mãe, diarista, trabalhou durante um tempo em pensionato de estudantes universitários, por isso levava os livros na esperança de que algum dia Perla também entrasse na universidade. Tanto o pai quanto a mãe não completaram o ensino fundamental. Sua renda familiar está abaixo de um salário-mínimo. Sua mãe se autodeclara branca e seu pai, pardo. Estudou em escola pública e fez colégio técnico. Foi na escola que começou a entender o que significava ser parda. No colégio técnico, mais concorrido por passar por processo seletivo, percebeu de forma mais explícita sua condição racial por ser um espaço mais embranquecido, mesmo tendo a pele clara. Uma experiência marcante sobre o pertencimento racial aconteceu em uma situação de racismo no museu Catavento, em São Paulo, no qual o professor percebeu um tratamento diferenciado para os estudantes de escolas pública e privada, questionando os educadores do equipamento cultural. No dia, ele explicou aos alunos o que aquilo representava e nomeou de racismo.
Ela fez seu primeiro vestibular em 2019, entrando na primeira turma de cotista no curso de licenciatura em exatas, quando a Cavu não havia sido implementada. Nesse primeiro ano se envolveu em um coletivo negro e foi voluntária no cursinho comunitário destinado para “pessoas não brancas”.
O período da universidade foi importante para começar o processo de mudança de pertencimento de identidade racial para negra. Em uma palestra na Unicamp, ela, pela primeira vez, se identificou como negra e não apenas parda. No final do primeiro ano, desistiu do curso de exatas para concorrer a uma nova vaga na área de licenciatura em humanas em 2020, passando pela comissão de heteroidentificação. Na entrevista, quando perguntada sobre seu pertencimento racial, Perla assim resumiu:
Perla - Eu contaria o passo a passo, desde a minha mãe falando que eu era parda, até o meu professor no Catavento explicando pra gente o que a gente sofreu, no ensino médio, o professor falando pra gente: “Vocês são negros, hein!”, até a minha faculdade, quando eu chego numa palestra da Sônia Guimarães7e ela fala: “Quem é cotista levanta a mão”, e a gente levanta a mão e ela fala: “Você é negro, você é negro, você é negro. Não use pardo. Você é negro!”. Então, esse foi o meu processo. . . . Tanto que quando me julgam, me falam: “Nossa, mas você é tão clarinha para falar que você é negra”, eu sempre falo: “Amados, Sônia Guimaraes, 23ª cientista mais influente do mundo, falou que eu sou negra, então, eu vou dizer que não? Vou contrariar ela? Não”.
Entrevistadores - Mas você acha que precisava de ela falar isso pra você?
Perla - Eu acho que eu precisava de um choque de realidade, porque eu ainda estava perdida, porque tem aquele movimento do “Pardo é Papel” e quando a gente se inscreve para ser aluno cotista, tem aquela opção do pardo, então, a gente tá mais seguro. Só que no ensino médio e no fundamental, ainda não tá bem explicado que o pardo e o preto integram o negro. No meu ensino médio, e no meu fundamental, ainda na nossa cabeça, era como se fossem coisas separadas e não como juntas, mesmo falando que tá no IBGE, ok, mas e aí? Não teve essa explicação. Então, eu precisava desse choque de realidade, esse soco na boca, que eu chamo de soco na boca, porque ela não foi explicar, ela foi: “Você é”, pá, “Não tem como você fugir disso”, toma.
Entrevistadores - Entendi. E quando você se inscreveu para a Universidade como cotista, só para eu entender, esse choque de realidade já tinha acontecido?
Perla - Não. Só que quando você se inscreve pra cotas da Universidade, não é cota negra, o nome, né? Porque talvez se tivesse escrito “cota negra”, eu não teria me inscrito por cota. Tá escrito “PPI”, que é pardo, preto, indígena, deixa bem claro: “pardo, preto, indígena”, então, se não tivesse esse pardo no primeiro processo, eu não teria me inscrito, se fosse só negro.
O depoimento de Perla revela alguns pontos de destaque. Um deles é a desinformação sobre a categoria negro como a junção de pretos e pardos. Na sua percepção, essa incompreensão não é apenas dela, mas de outros colegas também. Pelo seu relato, pudemos perceber as etapas pelas quais precisou passar para entender de forma evidente o que significava ser negra e não parda. O campo simbólico das relações raciais no Brasil se apresenta como não entendimento sobre identidade racial que precisa de algum tipo de revelação explícita que confronta o que estava difuso, realocando as crenças à medida que o letramento se constrói. Foi preciso que uma autoridade, uma cientista renomada, nomeasse o seu status para ela entender que era negra. Percebemos que a construção de sua identidade racial se deu fora da família, em instâncias como a escola e a própria universidade.
A estudante relatou que teve muito medo de ter sua autodeclaração invalidada, mesmo depois de entender-se como negra. Contudo o procedimento teve um novo impacto sobre sua negritude. Segundo ela relata, o documento fez parte do seu ciclo final de “comprovação” de que ela era negra, pois havia algo oficial que também validava sua identidade racial. Em 2021, ela se engajou como voluntária na comissão de heteroidentificação da universidade.
Perla - Assim, eu estava aqui, presa, num ciclo de pardo, pardo é papel, mas eu sou parda e eu não saía daqui. Eu estava aqui, ou, o que que eu sou? Aí, quando ela veio e postulou isso, é como se tivesse se criado um outro ciclo do lado, sabe, uma outra rodinha e aí, nesse início do novo ciclo, eu acho que ele se encerra com a Cavu de 2020, que ele passa pelos coletivos, ele passa pelos grupos de estudos, ele passa pelo cursinho Ubuntu, que é um cursinho popular e aí, ele se encerra na banca de 2020, quando tem o documento dizendo, como se validado, eu acho que o ciclo final foi esse, o validado. Tanto que tem uma foto minha, com a minha família, que eu fui fazer a minha matrícula com a minha mãe, com a minha madrinha e com o meu pai, e eu tenho uma foto com documento.
Quando Perla passou pela comissão de heteroidentificação, ela já tinha construído sua identidade racial. Entretanto, por ser negra de pele clara, a passagem pela comissão foi um dilema que ela viveu, pois se sentia insegura se sua autodeclaração seria validada. Ao mesmo tempo, ela utilizou o comprovante da validação, que era dado no mesmo dia da entrevista para ser apresentada na secretaria para matrícula, como uma espécie de documento de validação de sua negritude. A experiência de passagem parece não ter sido negativa para Perla, pois ela se engajou como voluntária para contribuir na execução da comissão do ano seguinte, uma vez que os gestores recrutavam estudantes para prestar serviços como gravação dos entrevistados.
Sarah Lempp (2019) discute como as comissões são um lócus de estudo para compreender como se constroem direitos por meio do corpo, especialmente no que se refere à construção de raça, que, no caso brasileiro, está sendo entendida por meio do fenótipo.
Eliane: “Validado ou não validado, sabe? Parece, sei lá, um jogo, sabe?”
Eliane se autodeclarou parda. Ela nasceu no interior de São Paulo e se mudou por causa do curso. O seu núcleo familiar é composto por mãe e irmã que se autodeclaram pardas. Sua renda familiar está entre 1 e 3 salários-mínimos. Perguntada sobre seu pertencimento racial, disse “é porque minha família toda é parda e tem pessoas negras, também, né, pretas. Então, eu sempre me vi assim, sabe?”. Pareceu mais evidente que havia uma posição sobre seu pertencimento do que a construção de uma identidade racial. Diferentemente de Sidney, sua família nunca conversou sobre questões raciais e, diferentemente de Perla, também não indicou ser uma mulher negra, e sim parda durante toda a entrevista. Desde cedo, sua mãe a incentivava a fazer faculdade, mesmo não tendo curso superior, pois projetava uma carreira futura para a filha na área de exatas por conhecer vários engenheiros, como um dos seus tios. Fez ensino técnico em automação industrial na sua cidade natal e passou no vestibular em um curso de engenharia da Unicamp sem fazer cursinho logo após se formar no ensino médio. Ao falar sobre sua decisão de usar cotas, informou como uma oportunidade e um direito que aumentariam suas chances em conseguir uma vaga, conforme seu relato:
Eliane - Porque eu acho que eu teria mais chances de entrar, utilizando... na verdade, eu tive, até, porque... eu acho que é o seguinte, por eu vir de escola pública e também, usando as cotas, eu ia ter mais chances do que aquelas pessoas que é ampla concorrência, que não usa cota e estudou sempre em escola particular. Querendo ou não, ela tem mais base de quem estudou em escola pública, então, seria uma chance a mais para eu entrar naquilo. E eu sempre pensei assim, por isso que pra entrar na universidade eu também usei as cotas, porque eu vejo isso como um direito e também, porque se eu for para a ampla concorrência, com a base... porque a maioria das pessoas da ampla concorrência fez escola particular. . . . Eu acho que foi meio no automático, como eu falei, como eu já tinha utilizado antes, e também, eu vejo isso como um direito, sabe? E usufruir disso, sabe? Até porque se todo mundo pensar: posso entrar também por renda, meio que tá, mas quem vai preencher as vagas, sabe? Também acho que a gente vive num sistema injusto, tipo, é bem claro isso, então, não sei, eu acho que foi meio que no automático, mas tipo assim, se eu falar que eu pesquisei a fundo, que eu li coisas sobre, não… não, eu não li, eu não pesquisei, mas foi no automático.
Quando questionada se sabia como funcionava a comissão de heteroidentificação, Eliane diz que não conhecia o procedimento. Ela tinha um posicionamento mais crítico sobre a Cavu, próximo às críticas sobre como uma comissão pode “dizer” quem é negro ou não, sobre a subjetividade do “julgamento”, mas ao mesmo tempo concordava que era necessário ter o procedimento por causa das fraudes:
Eliane - Eu pensei: ok, né? Tipo, eu me enxergo assim, e eles aprovaram... eu acho que esse negócio de aprovado e... validado, né, eu acho que é validado, e não validado, eu acho que sabe, como assim, uma pessoa julga você, se você é validado ou não por uma coisa que você mesmo enxerga, sabe? . . . Pensando assim, sendo lógica, tem pessoa que usa isso, e realmente, usa isso, não leva a sério, assim, pessoas que tipo, que são realmente brancas, têm uma condição boa e usa isso, então tem pessoas que realmente brincam com isso, sabe? Então, eu acho que isso é meio sério, também. Por isso que existe uma banca, mas assim, eu acho muito complexo, se a gente parar para pensar, tem muito prós e contras também, então assim, os dois juntos, então é muito complexo pra entender, assim. E também é mais a opinião de cada um, então não tem como aquilo ser certo ou errado, quando é a opinião das pessoas, mas eu acho que isso é meio... de validado ou não validado, sabe? Parece, sei lá, um jogo, sabe?
O conhecimento de Eliane nos pareceu o menos aprofundado sobre cotas e sobre a heteroidentificação. Ela utilizou a reserva de vagas sem muito refletir sobre o que significava, pois percebeu uma oportunidade de ter êxito no ingresso em uma universidade pública, pois sabia que a concorrência com as escolas privadas a deixava em desvantagem. Pareceu que não refletiu muito sobre o que significava a comissão até o momento de ser questionada na entrevista, tendo que admitir que não concordava muito com o procedimento, mesmo entendendo que tinha fraudes e algo precisaria ser feito para coibi-las. Não compreendeu o que significava a verificação da autodeclaração por meio do fenótipo, o que implicava ir além da simples “opinião” de cada membro sobre o pertencimento racial das estudantes que estavam ali para terem suas autodeclarações validadas.
Melissa: “As cotas abriram essa porta, que mesmo que se eu não passasse na universidade, nossa, eu consegui um conforto em casa”
Melissa se autodeclarou parda para ingresso na universidade em um dos cursos mais concorridos na área de saúde da Unicamp. Ela é natural do interior de São Paulo e se mudou para cursar a universidade. Sua mãe é branca e seu pai é negro, e eles se separaram quando ela tinha 3 anos de idade. Depois, sua mãe se casou com um homem branco e teve mais dois filhos com o padrasto, por isso seus irmãos são brancos. Sua infância e juventude se deram em ambientes majoritariamente de pessoas brancas, como relata: “eu sempre fui a morena, a pretinha, a negra da casa, mas era isso, sabe, nunca me questionei o porquê de muita coisa na minha vida”. A mãe tem o ensino fundamental incompleto e o padrasto tem ensino superior incompleto. A família tinha uma boa situação financeira, por isso pôde estudar em escolas privadas, onde era a exceção, pois havia poucos negros. Melissa relata que foi um tempo de muito sofrimento devido ao racismo sofrido na escola por parte de colegas e de professores, como em uma aula de história na qual um professor a apontou como exemplo de pessoa que seria escravizada no período colonial, o que abriu espaço para os colegas a chamarem de “escravinha”. Ela levava como “brincadeira”, mas, em casa, sozinha, sofria muito sem nunca comentar com sua mãe. Fez três anos de cursinho para passar no concorrido vestibular da área da saúde. Nesse período, conheceu um coletivo feminista que a acolheu emocionalmente. A experiência foi tão “revolucionária” que ela já entrou na universidade buscando um coletivo negro para participar. No terceiro ano de cursinho, após ler o edital descobriu o tipo de reserva de vagas para estudantes de escola privada. “Eu parei e falei assim: opa, isso aqui é novo”. Ficou em dúvida sobre se deveria se inscrever ou não, pois entendia que as cotas estavam atreladas à questão financeira. Por isso, passou pelo seguinte dilema, conforme seu depoimento:
Melissa - Quando eu olhava pra dentro de casa, eu falava: beleza, eu sou a pessoa negra da família. E pra mim, tava tudo bem, porque eu via isso na família na parte da minha família materna, sabe? E a questão da não discussão dentro de casa foi muito interessante na hora das cotas, assim, porque nunca foi... eu posso ter começado terapia, ter me entendido, mas nunca foi uma questão para eles, sabe? Aí, quando a minha mãe ficou sabendo que eu ia usar cotas, foi uma questão para ela: minha filha é negra? Foi quando a minha mãe teve que parar e pensar: como assim, minha filha é negra? . . . O meu padrasto, eu nunca tive essa conversa com ele, eu acho que ele simplesmente ficou sabendo, eu nunca me interessei em saber qual era a opinião dele. A minha relação é bem superficial, também. Mas a minha mãe foi engraçada essa questão. E minha mãe fez até a 2ª série, e ela nunca voltou a estudar, quando ela ficou sabendo, ela começou a estudar muito sobre a questão, achei engraçado, porque não era algo que ela fazia, sabe, pegar alguma coisa pra estudar. E ela começou a estudar muito, ela estudou muito sobre cotas, ela estudou muito sobre a questão racial, não sei o que e ela vinha e queria debater comigo, eu acho que foi um ponto muito importante, também pra mim, tipo, mesmo sendo uma pessoa branca, ela se interessou em saber e trazer... então, tinha hora que tipo... quando eu tava toda atribulada com as cotas, o que as cotas representam, minha mãe, como se ela fosse PhD no assunto me explicar sobre essa questão, eu nunca achei que eu iria ter esse tipo de abertura com ela, então foi muito interessante, assim, o processo. E a partir daí ela começou a perceber coisas, também, situações... eu acho que teve uma que ficou muito fixada para ela: “Filha, você lembra quando aquela velha nojenta falou tal coisa pra você?”, e eu não lembrava, sabe, pra mim foi só mais um caso ali que aconteceu, só que pra ela ficou muito marcado, porque foi algo que ela falou: acontece esse tipo de coisa com você. E ela falou: “Já aconteceu isso outras vezes?”, aí eu comecei a contar e ela falou: “Como assim, eu não sabia sobre tudo isso”, porque realmente foi uma parte da minha vida que eu vivi comigo, assim, sabe, o que acontecia tava ali comigo. E foi quando eu consegui levar isso pra dentro de casa, foi muito bom, assim, eu acho que as cotas abriram esse... ter que lidar com as cotas abriu essa porta, que mesmo que se eu não passasse na universidade, nossa, eu consegui um conforto em casa, assim, que eu nunca teria tido, sabe?
O depoimento de Melissa foi bem detalhado, demonstrando alguns pormenores da elaboração racial que ela foi fazendo ao longo de sua vida. Sua experiência pode ser um retrato de como se dá o efeito do estilhaçamento e da fragmentação da identidade racial conforme descrito por Lélia Gonzalez (2020), pois passou sua infância sofrendo sozinha as dores do racismo e só pôde conversar sobre isso pela primeira vez com sua mãe quando optou por cotas, sendo um divisor de águas, indicando um conforto para ela.
Assim como relatado no trabalho de Penha-Lopes (2013), Melissa descobriu-se negra sozinha pelas experiências racistas sofridas, sem elaborar muito bem o que isso significava ao longo de sua jornada. Na época do vestibular, tinha certo conhecimento sobre cotas raciais, sobre as quais tinha aprendido no cursinho. Tal entendimento representava a negociação conseguida na Lei de Cotas em âmbito federal, que associava a reserva de vagas a escola pública e renda familiar, o que não era o seu caso, por isso nunca pensou sobre essa possibilidade. Como a Unicamp permitia que estudantes de escola privada pleiteassem cotas, Melissa teve que pensar sobre o assunto.
O tabu racial mais uma vez foi relatado nessa experiência familiar, na qual não se conversava sobre o assunto. Tanto filha quanto mãe puderam, pela primeira vez, entender o que significava ter uma filha negra e uma mãe branca, mesmo as duas tendo passado por experiências racistas que só conseguiram perceber quando a filha optou por usar as cotas. A vivência de Melissa nos faz refletir de forma mais intensa sobre a ausência de diálogo sobre as questões raciais como resultado da eficácia da internalização do mito da democracia racial. Por mais inusitado que isso possa parecer, a situação demonstra o poder simbólico do racismo de denegação da sociedade brasileira. O processo contrário para desfazer o campo difuso foi o letramento racial, nesse caso também necessário para a mãe branca.
Melissa teve receio de passar pela comissão por ser parda. Ficou três meses com dificuldades para decidir. De forma semelhante à Perla, ela colocou um peso na validação da comissão. Ao perguntarmos se ela sabia que passaria pelo procedimento, ela assim respondeu:
Melissa - Sim, tava no Edital. Eu até fiquei feliz, porque o meu maior medo era passar, assumir um lugar que não era meu, então, na minha cabeça, a Banca era fundamental, até para entender se era mesmo o meu lugar. Então, eu meio que joguei o peso na Banca: a Banca que vai me falar se sim ou se não, porque eu acho que é o nosso entendimento, tipo, eu sei sobre todo o histórico da minha família, sobre tudo que eu passei na minha vida por causa da minha cor de pele e tal, mas assim, leitura geral de sociedade, você não sabe exatamente, sabe? Você não sai perguntando para as pessoas: “Você acha que eu sou branca ou você acha que eu sou preta?”. E se você faz isso é muito engraçado, porque quando é para uma pessoa te humilhar, quando é para a pessoa te apontar com termo jocoso, assim, você é uma pessoa preta, agora se é para falar: “Tô pensando em usar a cota”, você é uma pessoa branca. Isso foi algo que eu percebi muito claramente, assim, pessoas que sempre zoaram a minha cor de pele, assim, quando ficaram sabendo que eu tava pensando em usar cota, falaram: “Mas ela não é branca?”, sendo que sempre me zoou, usava termos super-racistas, como escravinha, não sei o quê, e no momento em que isso ia virar uma outra coisa... porque essas pessoas também estavam prestando, então elas queriam passar.
A ausência de discussão sobre raça em diversas instâncias de sua vida, como família e escola, levou Melissa a colocar-se à prova para ter uma validação institucional do seu pertencimento racial, assim como Perla. Outra discussão que a experiência de Melissa levanta é sobre cotas raciais não vinculadas à questão financeira. A experiência de racismo sofrida por uma pessoa negra de pele clara em ambientes majoritariamente brancos, mesmo que ela tenha uma posição financeira um pouco mais elevada, abre espaço para discutir cotas raciais para estudantes de escolas privadas. Como argumentam Feres e Campos (2016, p. 288):
A legislação que pune o racismo foi uma solução tentada, mas que obteve êxito limitado até agora. As políticas de ação afirmativa racial nos parecem mais bem equipadas a contribuir para essa mudança, ainda que estejam longe de constituir uma solução definitiva.
Considerações finais
Os estudantes que foram entrevistados nasceram entre 1998 e 2003, período em que as cotas raciais estavam sendo debatidas e implementadas no Brasil. A mais velha, Melissa, tinha 14 anos quando a Lei n. 12.711 foi promulgada, em 2012. Que pistas essas percepções podem nos revelar sobre a problemática da classificação racial que o fenômeno impõe?
Todos indicaram a mãe como o membro da família que participou das elaborações sobre o pertencimento ou identidade racial, exceto Melissa. Durante suas infâncias e juventudes, as estudantes pouco ou nada conversaram com suas famílias sobre pertencimento racial, com exceção da mãe de Sidney, que foi a única que agiu intencionalmente para preparar seu filho para enfrentar as vicissitudes do racismo. Perla e Eliane foram informadas pelas suas mães sobre como se autodeclarar como pardas, sem nenhuma elaboração sobre o que isso significava. Enquanto Perla, desde o ensino médio, começou a construir sua identidade racial como negra, Eliane parece não o fazer. A trajetória de Melissa é digna de nota, pois não apenas ela pôde se reconhecer como negra para a sociedade, mas pôde fazê-lo para sua família, especialmente diante de sua mãe, que entendeu que tinha uma filha negra quando ela teve que optar por cotas. Melissa vivenciou seu pertencimento racial de forma solitária e sofrida até conseguir elaborar sua identidade como mulher negra a partir da entrada na universidade.
Verificamos que ainda é complexo o entendimento da proposta de associar “pardos” na categoria negro para todos eles. Partindo do ponto de que esses estudantes são o público-alvo - dispondo de boa qualificação educacional, a qual lhes permitiu ingressar em uma universidade pública de elite -, podemos inferir que a compreensão sobre classificação racial (negro como preto e pardo) e a verificação por meio de fenótipo é um tema que ainda não alcançou de forma mais substantiva a sociedade brasileira.
Também há dificuldade em compreender o que significa um procedimento de verificação de autodeclaração. Nossos dados sugerem que estudantes pardos chegam com dúvidas sobre seu pertencimento e/ou sua identidade racial no contexto da comissão de heteroidentificação, o que pode ser interpretado mais como um problema do racismo no Brasil do que apenas como o procedimento em si. Como verificamos, ainda há um tabu do que significa ser negro no seio familiar, primeiramente. Nos casos estudados, tanto os filhos quanto os pais não compreendiam o que significava ser negro. O processo de tornar-se negro, descrito por Neusa Souza (2021), acontece a partir do entendimento sociopolítico que Munanga (2020) identificou como reconhecimento da negritude, da aceitação do corpo negro e seus desdobramentos. Essa aceitação, no caso de Perla e Melissa, foi mediada por um letramento racial. Nossos dados também apontam para a necessidade de compreender melhor o que acontece com os pardos em ambientes majoritariamente brancos, como no caso de Melissa.
Os dados sugerem que precisamos compreender o que significa a validação institucional, de um órgão do Estado, na legitimação da classificação racial, conforme já apontado por Lempp (2019), como no caso de Perla e Melissa, que utilizaram a validação oficial como parte do seu processo de construção de identidade racial. Não é possível aprofundar tal legitimação neste artigo, o que aponta para a necessidade de mais pesquisas sobre o assunto, mas o fato de as estudantes mobilizarem esse entendimento para a construção de sua identidade, que estava em um campo difuso, é um dado digno de nota. Se estudos anteriores demonstravam a fuga da identidade negra (Daflon, 2017; Souza, 2021), esses dados sugerem que o letramento racial - isto é, a oportunidade de confrontar-se com um repertório sobre identidade racial proporcionado pelo processo de acesso à universidade via cotas - tem permitido que alguns estudantes se reposicionem politicamente quanto à sua classificação racial.
Confirmando nossa hipótese, a escolha por cotas levou alguns desses jovens a se questionarem sobre a questão do pertencimento racial que os beneficiaria. De forma semelhante a Penha- -Lopes (2013), a escolha por cotas desencadeou um processo de letramento racial que promoveu o enegrecimento de algumas estudantes. Se, na pesquisa da autora, os morenos se tornaram pardos, na nossa pesquisa, alguns pardos se tornaram negros.
Evidentemente, também verificamos o sofrimento que o procedimento pode causar, mas, como argumentamos aqui, esse sofrimento pode ser entendido como mais uma faceta do racismo de denegação. O “estilhaçamento” da identidade racial pelas ideologias do branqueamento e da democracia racial, conforme propôs Lélia Gonzalez, se apresenta de forma contundente quando uma instituição pública necessita mobilizar a questão racial para proteger uma política pública por meio de fiscalização. Sem um juízo de valor sobre a forma como foi elaborado o procedimento para que isso acontecesse, no caso atual as comissões de heteroidentificação, nos parece que qualquer outro procedimento traria à tona o mesmo problema sobre classificação racial no Brasil.