Abril é o mês de conscientização sobre o autismo,
doença que há anos vem sendo estudada,
mas até hoje não tem cura.
Desde que foi descrito por Leo Kanner, em 1944, o autismo foi constituído por meio de diferentes verdades, materializadas por uma multiplicidade de discursos, produzidos a partir de distintos campos do conhecimento. Inicialmente caracterizado pela área médica como sintoma da esquizofrenia, passou a ser posicionado como pertencente ao grupo das psicoses, dos distúrbios e transtornos do desenvolvimento, para enfim se tornar um grupo amplo, compreendido como um espectro que engloba o que, por décadas, era entendido como quadros patológicos distintos.
A análise sobre as diferentes caracterizações que autistas receberam historicamente e sobre como cada uma das maneiras de nomear esses sujeitos foi construída sobre práticas discursivas que refletiam verdades produzidas sobre eles, inclusive no seu processo de inclusão escolar, possibilitou o questionamento sobre os modos como cada uma dessas caracterizações poderia (ou não) impactar a prática pedagógica e a perspectiva que os docentes têm sobre alunos com autismo. A partir desses tensionamentos, este estudo, que apresenta as diferentes nomeações recebidas por autistas nas áreas da educação e da saúde, tem como objetivo compreender como as formas de nomear impactam no processo de escolarização desses sujeitos.
Cabe destacar que, apesar de ser descrito por diferentes nomeações, o autismo sempre foi apresentado por termos que o representavam como doença, síndrome, patologia, anormalidade. É por meio do conceito médico de deficiência que o autismo é representado nas políticas públicas brasileiras. Essa forma de conceituar entende a diferença como falta, déficit, e parte da premissa de que a discriminação e a exclusão da pessoa com deficiência são processos naturais, consequências do encontro entre um corpo com lesão, considerado imperfeito, com a sociedade (Diniz, 2012).
Este artigo tem como metodologia uma pesquisa documental, que teve como materialidade as políticas públicas brasileiras e os documentos publicados entre 1994 e 2020. Foram analisados documentos como leis, decretos, políticas, cartilhas e outros documentos orientadores publicados pela Presidência da República, Ministério da Educação (MEC), Ministério da Saúde, Câmara dos Deputados, e materiais elaborados por órgãos oficiais, como a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) e Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), em parceria com associações de pais, como a Associação de Amigos dos Autistas (AMA), por exemplo. Foram selecionados apenas materiais que abordaram especificamente a temática do autismo.
A seleção dos materiais aconteceu por meio de busca na internet, a partir da página eletrônica do Google, por legislações e documentos oficiais relacionados ao autismo. As palavras utilizadas para a seleção inicial dos documentos analisados foram definidas por designações históricas recebidas pelo autismo no ano de publicação dos documentos. Dessa forma, as palavras-chave definidas para os documentos analisados entre os anos de 1994 e 2013 foram: psicose, autismo, Kanner, autista, autístico, asperger, condutas típicas, transtornos globais e transtornos invasivos. Na análise de documentos publicados a partir de 2013, ano de publicação da quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (2013), foi adicionada a expressão transtorno do espectro autista. Na pré-seleção dos materiais que faziam alguma referência ao autismo, foram excluídos documentos que apenas citaram alguma das palavras-chave, sem trazer qualquer conceito ou caracterização que as definisse, o que resultou num total de 32 documentos para análise.
Publicados pelo Ministério da Educação, foram analisados os documentos:
i. Política Nacional de Educação Especial, de 1994;
ii. Projeto Escola Viva: Garantindo o acesso e permanência de todos os alunos na escola. (Alunos com necessidades educacionais especiais: Reconhecendo os alunos que apresentam dificuldades acentuadas de aprendizagem, relacionadas a condutas típicas). O material foi publicado em 2002, e no texto será apresentado como Projeto Escola Viva: Condutas típicas - MEC;
iii. Saberes e práticas da inclusão - educação infantil, dificuldades acentuadas de aprendizagem: Autismo, publicado em 2003 e que no texto será apresentado como SPI: Autismo - MEC;
iv. Saberes e práticas da inclusão: Estratégias para a educação de alunos com necessidades educacionais, de 2003, que no texto será apresentado como Saberes e práticas da inclusão: Estratégias - MEC;
v. Saberes e práticas da inclusão: Avaliação para identificação das necessidades educacionais especiais, de 2006, que no texto será apresentado como Saberes e práticas da inclusão: Avaliação - MEC;
vi. Saberes e práticas da inclusão: Recomendações para a construção de escolas inclusivas, de 2005, que no texto será apresentado como Saberes e práticas da inclusão: recomendações - MEC;
vii. Saberes e práticas da inclusão: Dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitações no processo de desenvolvimento, de 2006;
viii. Documento subsidiário à política de inclusão, de 2005;
ix. Ensaios pedagógicos: Construindo escolas inclusivas, de 2005;
x. Programa Educação Inclusiva: Experiências educacionais inclusivas, de 2006;
xi. Direito à educação: Subsídios para a gestão dos sistemas educacionais: Orientações gerais e marcos legais, de 2006;
xii. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva, de 2008;
xiii. Resolução CNE/CEB n. 4, 2009;
xiv. Nota técnica n. 24, publicada em 2013;
xv. Educacenso: Caderno de instruções. Foram analisados os documentos publicados nos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021. As publicações anteriores não foram analisadas por já serem contempladas nos estudos de Guareschi et al. (2016).
Publicados pelo Ministério da Saúde, foram analisados os documentos:
i. Orientação para os pais, publicado no ano 2000, elaborado em parceria com a associação Casa do Autista;
ii. Risperidona no transtorno do espectro autista (TEA), publicado em 2014;
iii. Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com TEA, publicado em 2014;
iv. Linha de cuidado para atenção às pessoas com TEA e suas famílias na rede de atenção psicossocial do Sistema Único de Saúde, de 2015;
v. Portaria n. 324, de 2016, que aprovou o Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do comportamento agressivo como transtorno do espectro do autismo, que aborda o manejo de crises agressivas em pessoas com autismo.
Pela Presidência da República, SEDH e Corde, foram analisados os documentos:
i. Transtornos invasivos do desenvolvimento, publicado em 2005 em parceria com o médico Walter Camargos Júnior (coordenador), Associação de Pais e Amigos dos Portadores de Necessidades Especiais do Rio de Janeiro (Ames) e Associação Brasileira de Autismo (Abra);
ii. Autismo: Guia prático, publicado em 2007 em parceria com a AMA/SP;
iii. Lei n. 12.764, de 2012;
iv. Retratos do autismo no Brasil, publicado em 2013 em parceria com a AMA;
v. Lei n. 13.861, 2019;
vi. Lei n. 13.977, 2020; e
vii. Autismo: Vencendo esse desafio, publicado em 2015 pela Câmara dos Deputados.
Para a análise dos materiais, fizemos uso do conceito de normalização desenvolvido por Michel Foucault (2008). Para o autor, é por meio do estabelecimento de uma norma que é possível determinar e identificar o normal e o anormal. Foucault (2006) propõe que, com base em um modelo do que é considerado normal, correto, ótimo, saudável, por meio da normalização (tendo a norma como referência), procura-se moldar as pessoas, suas ações, seus comportamentos. A partir daí, é considerado normal aquele que consegue se moldar à norma e anormal aquele que não consegue. Por essa concepção, entendemos que o trabalho educativo, na contemporaneidade, consiste em aproximar todos da norma-padrão. Edwald (1993 citado por Lopes & Fabris, 2013) afirma que a norma serve como parâmetro de comparação, de medida comum, de referência. Ao servir como referência e ser associada a saberes de diversas áreas, como pedagógicos, terapêuticos ou econômicos, a norma produz o tipo de sujeito considerado desejável. Os sujeitos que se encontram aquém desse modelo são caracterizados como anormais e submetidos a tecnologias de diferentes campos, que têm como objetivo corrigi-los e aproximá-los das diferentes curvas de normalidade. Desde as definições de norma para cada campo ou grupo social, são desenvolvidas tecnologias que envolvem diferentes áreas e saberes e têm como principal função trazer o sujeito à normalidade.
A partir das análises dos materiais, tendo a normalização como conceito ferramenta, afirmamos que os diferentes termos escolhidos pela área médica para nomear pessoas com autismo - anormais, pessoas com surdez, pessoas com deficiência intelectual, pessoas com esquizofrenia, psicose, com transtornos ou distúrbios do desenvolvimento -, ao serem pulverizados para outros campos de conhecimento, entre eles a educação, potencializaram estranhezas e incertezas sobre o tema. Além disso, as diferentes nomeações direcionadas ao autismo forjaram representações específicas e criaram tipos de estudantes a corrigir. Nos materiais analisados, pessoas com autismo são descritas como anormais e são transformadas em alvos de processos terapêuticos que buscam a extinção das diferenças que as constituem, objetivando sua cura ou correção, sua normalização. Apesar de, historicamente, sujeitos com autismo ocuparem posições flutuantes, maleáveis e volúveis, sempre foram representados como anormais, por se desviarem do modelo de ser humano considerado padrão, correto, desejável. Ao serem posicionadas como anormais, pessoas com autismo passaram a ser submetidas a distintos processos de normalização que, no Brasil, operam como práticas que constituem as políticas públicas voltadas a esses sujeitos.
Para defender nossos argumentos, na primeira parte do texto apresentamos as diferentes nomeações que a área da saúde tem colocado em circulação em relação ao autismo e mostramos como os diferentes modos de nomear sempre atrelaram o autismo a uma doença, uma patologia, uma condição no campo das anormalidades. Na segunda parte do texto, apresentamos as nomeações e caracterizações utilizadas pela área da educação em relação ao autismo e como a mudança na forma de nomear e a adoção de termos e conceitos da área da saúde causaram estranheza sobre o tema e forjaram práticas corretivas para autistas na escola.
Como nomeá-los? Tensionamentos e desdobramentos na área da saúde
Os termos utilizados para conceituar o autismo variaram desde a sua primeira descrição, feita pelo psiquiatra Leo Kanner, em 1944. No entanto, independente do termo escolhido pela área da saúde para representar a condição, o autismo vem sendo concebido como uma anormalidade e descrito por meio de expressões como doença, síndrome, patologia, quadro clínico, transtorno, distúrbio. Esses termos são pulverizados em documentos oficiais e políticas públicas de diversos campos. Em documentos publicados pela área da saúde, muitas vezes diferentes termos são utilizados para caracterizar a condição, até dentro de um mesmo documento. Um exemplo desse fenômeno é rastreado nos materiais publicados pelo Ministério da Saúde, entre os anos 2000 e 2015, conforme mostra a Tabela 1.
Documento | Expressões |
---|---|
Orientação para os pais (Ministério da Saúde [MS], 2000) | Doença Patologia Síndrome Distúrbio Transtorno de desenvolvimento |
Diretrizes TEA (MS, 2014a) | Patologia Quadro clínico Problema de desenvolvimento Síndrome Distúrbio |
Relatório Risperidona TEA (MS, 2014b) | Distúrbio |
Linha de Cuidado TEA (MS, 2015) | Distúrbio Transtorno mental Síndrome Patologia |
Fonte: Elaboração das autoras.
A indefinição na forma de nomear o autismo pode ser compreendida pela análise sobre como a condição foi abordada pela área da saúde desde 1944 até a última revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), em 2019. Dentro desse período, nos dois principais documentos de classificação e diagnóstico de saúde aceitos internacionalmente, a CID e o manual de doenças mentais (DSM), o autismo só foi reconhecido enquanto entidade nosográfica,1 desassociada de outras condições compreendidas como patologias, em 1979, com a publicação da terceira edição do DSM. Antes disso, apesar de pesquisadores como Leo Kanner e Hans Asperger o compreenderem como entidade nosográfica, a área da saúde o compreendia, nas duas primeiras edições do DSM (1952 e 1968) e na sexta edição da CID (1950), como um sintoma da esquizofrenia, sendo descrito, respectivamente, pelas expressões reação esquizofrênica do tipo infantil, esquizofrenia do tipo infantil e perturbação esquizofrênica (Donvan & Zucker, 2017; Fernandes et al., 2020; Mas, 2018; Salle et al., 2005).
Somente em 1975, com a publicação da CID-9, o autismo é descrito, em documentos da área da saúde, como condição não pertencente ao grupo da esquizofrenia. Entretanto, nesse período ele é posicionado no grupo das psicoses e descrito como psicose infantil, autismo infantil e síndrome de Kanner (Mas, 2018). De acordo com o documento Linha de Cuidado - TEA (MS, 2015, p. 18) “os conceitos de autismo, psicose e esquizofrenia se confundiriam e seriam usados de maneira intercambiável durante muitos anos”.
O termo distúrbio emerge em documentos da área médica na publicação do DSM-3, em 1979 (Mas, 2018). Nesse documento, o distúrbio autista - expressão escolhida para representá-lo - passou a fazer parte do grupo dos distúrbios globais do desenvolvimento, que a CID-10, publicada em 1993 (Organização Mundial de Saúde [OMS], 2016), nomeou como transtornos globais do desenvolvimento. Na CID-10 (OMS, 2016), assim como o autismo, que nomeava distintas condições - autismo infantil e autismo atípico -, faziam parte do grupo dos transtornos globais do desenvolvimento: síndrome de Rett, outro transtorno desintegrativo da infância, transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados, síndrome de Asperger (que seria equivalente à psicopatia autística e ao transtorno esquizoide da infância), outros transtornos globais do desenvolvimento e transtornos globais do desenvolvimento não especificados.
O termo transtorno emerge apenas um ano após a publicação da CID-10, quando o DSM-4 foi publicado, em 1994. Esse documento nomeia como transtornos invasivos do desenvolvimento o grupo do qual o autismo, chamado de transtorno autista, fazia parte. Em 2013 e 2019, com a publicação do DSM-5 (Associação Americana de Psiquiatria, 2013) e da CID-11 (OMS, 2021), respectivamente, o grande grupo dos transtornos globais e transtornos invasivos do desenvolvimento, dos quais o autismo fazia parte, passou a ser nomeado como transtorno do espectro autista, e as distintas condições2 que faziam parte do grupo passaram a ser compreendidas como parte do espectro do autismo. Dizendo de outra forma, as condições que já haviam sido nomeadas como autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, psicopatia autística, transtorno (síndrome) de Asperger, (outro) transtorno desintegrativo da infância, transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados, transtorno esquizoide da infância, outros transtornos globais do desenvolvimento e transtornos globais (invasivos) do desenvolvimento não especificados passaram, a partir da publicação do DSM-5 (Associação Americana de Psiquiatria, 2013) e da CID-11 (OMS, 2021), a serem nomeadas como transtorno do espectro autista.
Educação e autismo: Um caminhar de incertezas
A compreensão sobre os modos como a área da saúde nomeia e compreende o autismo é fundamental para o entendimento de como a área da educação tem abordado a escolarização de estudantes autistas. Ao escolher a adoção de terminologias definidas pela área da saúde e conceituá-las em legislações e documentos educacionais como doença, patologia, condição a ser curada, as políticas públicas brasileiras voltadas ao autismo se distanciam dos saberes educacionais e forjam práticas que podem desresponsabilizar a área da educação pela produção de saberes e pela atualização de metodologias que contemplem a aprendizagem de estudantes autistas. Afinal, se é doença, cabe à saúde o atendimento, a reabilitação, a cura. Atualizam-se, assim, processos de in/exclusão sobre esses sujeitos.
A in/exclusão - conceito criado e difundido por pesquisadores do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão, cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Gepi/CNPq/Unisinos) - caracteriza-se como uma inclusão parcial, marginal, uma inclusão excludente, na qual estudantes com deficiência têm o direito de frequentar a escola regular, mas são convencidos “de suas incapacidades e/ou capacidades limitadas de entendimento, participação e promoção social, educacional e laboral” (Veiga-Neto & Lopes, 2011, p. 131). Para Veiga-Neto e Lopes (2011), a in/exclusão representa um modo contemporâneo de operação em que a inclusão e exclusão não se opõem, mas se articulam de modo a operarem conjuntamente nas práticas escolares.
Um exemplo de como a concepção médica de deficiência pode impactar negativamente e promover a in/exclusão de estudantes com deficiência é descrito por Lockmann (2010), quando a autora reflete sobre a hegemonia discursiva da área da saúde em relação ao processo de escolarização desses sujeitos. Ao procurar identificar as práticas pedagógicas de docentes em relação à escolarização de estudantes com deficiência, a autora, que analisou pareceres descritivos escritos por docentes, afirma que conseguiu localizar não práticas referentes a intervenções de ensino, mas sim um grande número de encaminhamentos para especialistas de diversas áreas, inclusive a saúde, o que a autora descreve como: “silenciamento das práticas de ensino e uma pulverização das práticas de encaminhamento, uma espécie de proliferação discursiva sobre as formas de atendimento oferecidas aos alunos anormais” (Lockmann, 2010, p. 129). Lockmann (2010) também reflete sobre como, ao destinar aos profissionais da área da saúde a expertise sobre estudantes com deficiência, a área da educação pode levar ao apagamento de práticas educacionais no processo de escolarização desses estudantes.
Apesar de a área médica apresentar diferentes nomeações para representar o autismo, no Brasil as concepções forjadas na área da saúde emergiram em documentos educacionais somente a partir da década de 2000, e desde então tem direcionado as formas de nomeação e se apresentado como a área que possui expertise sobre o tema, inclusive em relação a processos educacionais, conforme aponta Felisbino (2022). Entretanto, desde a década de 1970, a área da educação cria políticas públicas que contemplam o público autista. Em 1973, com a publicação do Decreto n. 72.425, que cria o Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), estudantes autistas passaram a ser inseridos como público da educação especial ao serem classificados como estudantes com condutas típicas ou problemas de conduta. O decreto parece fazer emergir o termo na área da educação ao elencar, em seu artigo 2º, o público para o qual deverão ser proporcionadas “oportunidades de educação”: “os deficientes da visão, audição, mentais, físicos, educandos com problemas de conduta para os que possuam deficiências múltiplas e os superdotados” (Decreto n. 72.425, 1973). O documento subsidiário à Política de Inclusão (Paulon et al., 2005, p. 17) reconhece que a expressão condutas típicas já foi utilizada para se referir a estudantes autistas: “tanto crianças com quadros graves de neurose quanto crianças psicóticas ou autistas podem ser consideradas como sendo portadoras de condutas típicas”.
A expressão condutas típicas volta a ser visualizada em documentos da área da educação no Decreto n. 91.872, de 4 de novembro de 1985, que instituiu o “Comitê para traçar política de ação conjunta, destinada a aprimorar a educação especial e a integrar, na sociedade, as pessoas portadoras de deficiências, problemas de conduta e superdotadas” (Decreto n. 91.872, 1985). Entretanto, foi a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), publicada em 1994, que pulverizou a expressão na área da educação. A PNEE descreve como público da educação especial estudantes “portadores de necessidade educativas especiais”, classificados como: “portadores de deficiência (mental, visual, auditiva, física, múltipla), portadores de condutas típicas (problemas de conduta) e portadores de altas habilidades (superdotados)” (Ministério da Educação [MEC], 1994, p. 13).
Ao definir quem seriam os escolares posicionados como estudantes com condutas típicas, a PNEE esclarece que fazem parte dessa condição estudantes com “manifestações de comportamento típicas de portadores de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos que ocasionam atrasos no desenvolvimento e prejuízo no relacionamento social, em grau que requeira atendimento educacional especializado” (MEC, 1994, p. 13). Cabe destacar, entretanto, que essa nomeação não era utilizada para se referir exclusivamente a pessoas autistas, como se pode perceber no documento Projeto Escola Viva: Condutas típicas, publicado em 2002 (MEC, 2002a). O documento afirma que:
O termo “condutas típicas” se refere a uma variedade muito grande de comportamentos, o que tem dificultado o alcance de consenso em torno de uma só definição. Assim, encontra-se, na literatura, diferentes definições e diferentes tipos de classificação para esses comportamentos. A maioria delas, entretanto, pode ser representada por um contínuo, no qual se representa, em um extremo, comportamentos voltados para o próprio sujeito, e no outro extremo, comportamentos voltados para o ambiente externo. (MEC, 2002a, p. 8).
Entre as características de pessoas com condutas típicas definidas como aquelas voltadas para o ambiente externo, são descritos comportamentos que não estão diretamente associados ao autismo, como “agredir, faltar com a verdade, roubar, gritar, falar ininterruptamente, locomover-se o tempo todo” (MEC, 2002a, p. 8). Já como padrão para comportamentos voltados para o próprio sujeito, são descritas algumas características que podem ser apresentadas por pessoas com autismo, como “automutilação, alheamento do contexto externo, timidez, recusa em verbalizar, recusa em manter contato visual” (MEC, 2002a, p. 8). Entre essas características, a que mais se aproxima daquelas definidas pela área médica como critérios para diagnóstico de autismo é o alheamento:
Há crianças que se esquivam, ou mesmo se recusam terminantemente a manter contato com outras pessoas, ou com qualquer outro aspecto do ambiente sócio-cultural no qual se encontram inseridas. Em sua manifestação mais leve, encontram-se crianças que não iniciam contato verbal, não respondem quando solicitadas, não brincam com outras crianças, ou mesmo que mostram falta de interesse pelos estímulos ou acontecimentos do ambiente. Por outro lado, em sua manifestação mais severa, encontram-se crianças que não fazem contato com a realidade, parecendo desenvolver e viver em um mundo só seu, à parte da realidade. (MEC, 2002a, p. 14).
O documento também afirma que, entre as condutas típicas mais comumente descritas, apresentam-se hiperatividade, impulsividade, distúrbios da atenção (que hoje são definidas como características de TDAH), agressividade física e/ou verbal. Além disso, aponta que a expressão condutas típicas é utilizada para se referir a alunos cujo comportamento pode prejudicar suas relações familiares, educacionais e sociais.
Ainda referindo a mesma forma de nomeação, o documento do Projeto Escola Viva procura esclarecer o uso da expressão condutas típicas ao afirmar que outros termos anteriormente utilizados (transtornos de conduta, distúrbios de comportamento, comportamentos disruptivos, desajuste social, distúrbios emocionais) desqualificavam as pessoas a quem eram atribuídos: “os termos distúrbio, desajuste, parece apor ao sujeito assim qualificado, uma característica de menor valia, de defeito, de inadequação humana” (MEC, 2002a, p. 9). Entretanto, ao descrever possíveis causas das condutas típicas, afirma que suas determinantes podem ser “desde as explicações de cunho metafísico, como a possessão demoníaca, até as explicações científicas mais recentemente desenvolvidas” (MEC, 2002a, p. 15). Nesse ponto, é visível a contradição presente no documento, quando num momento procura desvincular pessoas sob o rótulo de condutas típicas de nomeações que possam representar carga negativa ao termo e, em seguida, vincula suas causas ao que chama de possessão demoníaca.
A coleção Saberes e Práticas de Inclusão, publicada nos anos de 2003 e 2005,3 também aborda a PNEE de 1994 e, ao se referir a pessoas com autismo, adota a expressão condutas típicas (problemas de conduta). A expressão está presente nas cartilhas Saberes e práticas de inclusão: Estratégias (MEC, 2003a) e Saberes e práticas de inclusão: Recomendações (MEC, 2005a), que também conceituam a condição de acordo com a PNEE de 1994. A cartilha Saberes e práticas de inclusão: Avaliação (MEC, 2006a) segue a PNEE (MEC, 1994) e adiciona o termo grave ao definir pessoas com condutas típicas: “limitações decorrentes de condutas típicas de síndromes neurológicas, psiquiátricas ou de quadros psicológicos graves” (MEC, 2006a, p. 8). Além disso, esse volume específico da coleção traz à superfície definições de autismo estipuladas pela área médica ao acrescentar a expressão distúrbios invasivos do desenvolvimento associado ao termo condutas típicas: “condutas típicas de distúrbios invasivos do desenvolvimento” (MEC, 2006a, p. 33).
Ainda no ano de 2005, o documento subsidiário à política de inclusão (Paulon et al., 2005) e a cartilha da coleção Saberes e Práticas da Inclusão seguiam utilizando a expressão condutas típicas. Entretanto, faziam crítica ao seu uso ao afirmar que expressões amplas e não definidas dificultam o investimento clínico e pedagógico em pessoas sob o rótulo de doenças mentais: “o uso corrente nesta área de estudos de termos abrangentes como ‘condutas típicas’, ‘transtornos invasivos de desenvolvimento’ ou ‘quadros psíquicos’, ao não fazer referência a estas importantes diferenciações, dificulta a hipótese diagnóstica” (Paulon et al., 2005, p. 32).
Nesse ponto, é importante destacar que o documento subsidiário à política de inclusão visibiliza e expõe como a questão comportamental de pessoas autistas recebe destaque e é tão evidenciada que determina como esses sujeitos são nomeados em documentos educacionais. Ao contrário de outros públicos da educação especial, que eram nomeados de acordo com os fatores orgânicos que apresentavam (deficiência visual, auditiva, física), pessoas com autismo eram nomeadas de acordo com seu comportamento (conduta) que, conforme os documentos já mencionados, era típico de quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos que ocasionavam atrasos no desenvolvimento, dificuldades acadêmicas ou interações sociais.
A partir de 2005, a expressão condutas típicas começou a perder força nos documentos da área da educação, enquanto manuais que determinam a nomeação de doenças da área médica direcionam o modo como autistas são nomeados e concebidos nesse campo. O documento Direito à educação (MEC, 2006b) aponta como essa mudança na forma de compreender o autismo pode ter se desenhado ao afirmar que, em 2003, quando, a fim de ampliar e qualificar o conhecimento sobre atendimento educacional especializado nas escolas brasileiras, o MEC realizou a revisão dos conceitos referentes às deficiências, especificando a identificação dos alunos cegos e com baixa visão, surdos e com deficiência auditiva. Nesse momento, ampliou a coleta de dados em relação ao censo escolar ao incluir a série em que estão matriculados os alunos com necessidades educacionais especiais. No ano seguinte (2004), o censo escolar acrescentou três novos conceitos nas questões referentes à educação especial: autismo, síndrome de Down e surdocegueira, o que fez do ano de 2005 o primeiro a conter o termo autismo para a produção de dados sobre a educação básica - anteriormente, a expressão condutas típicas era citada (MEC, 2006b).
Guareschi et al. (2016) mostram como, em 2007 e 2008, os termos e conceitos utilizados no censo escolar para fazer referência ao autismo ainda eram instáveis. Nesse período é possível perceber a emergência do termo transtorno para conceituar pessoas com autismo. Em 2007, o autismo foi definido no Educacenso como um transtorno invasivo do desenvolvimento e, em 2008, como um transtorno global do desenvolvimento, ambos de acordo com manuais da área médica: CID e DSM (Guareschi et al., 2016). Entretanto, o conceito descrito no documento nos dois anos citados foi o mesmo utilizado para caracterizar o termo condutas típicas na PNEE de 1994: “manifestações de quadros psicológicos, neurológicos, psiquiátricos ou de síndromes que ocasionam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social, em grau que requeira atendimento educacional especializado” (MEC, 2008, p. 37). Ou seja, as condutas típicas ainda conduziam a compreensão que a área da educação apresentava sobre os estudantes com autismo, mesmo que de forma indireta.
No documento do Programa Educação Inclusiva, Experiências educacionais inclusivas (MEC, 2006c), o artigo intitulado “A experiência da gestão político-administrativa da Rede Municipal de Educação de São Luís/MA” (Melo & Ferreira, 2006) também usa a expressão condutas típicas, mas dessa vez ela aparece dissociada do autismo, descrito como um transtorno invasivo do desenvolvimento, conforme DSM-4, de 1994. Apesar de já circular em documentos da área da educação, é a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (Pneepei) (MEC, 2008), ao fazer uso da expressão transtornos globais do desenvolvimento (TGD) para nomear pessoas com autismo, que pulveriza, em documentos educacionais, os termos TGD, autismo e síndromes do espectro do autismo. Ainda em 2006, no documento do Programa Educação Inclusiva, Experiências educacionais inclusivas (MEC, 2006c), o artigo “Educação e autismo: As sutilezas e as possibilidades do processo inclusivo” (Bridi et al., 2006) também se refere ao autismo como TGD.
Para Guareschi et al. (2016), entre os anos de 2010 e 2015, o autismo continuou sendo caracterizado nos cadernos do Educacenso como TGD, havendo alterações em relação às subcategorias do transtorno (que passaram a ser descritas e conceituadas) e ao nome das categorias, como a que era nomeada autismo clássico, que posteriormente foi chamada de autismo infantil (no ano de 2011) e mais tarde somente autismo (em 2014). Em 2016 e 2017, a expressão TGD permaneceu nos cadernos do Educacenso (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira [Inep], 2016, 2017) e somente em 2018 emergiu a expressão TEA, mas ainda associada aos TGD: “a educação especial substitutiva promove o atendimento de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD/TEA)” (Inep, 2018, p. 43).
A expressão TGD ainda é citada no caderno do Educacenso de 2019 (Inep, 2019), mas apenas em referência à meta 4 do Plano Nacional de Educação - PNE (2014-2024). Já nos cadernos publicados em 2020 e 2021, a expressão TEA se consolida e é a única utilizada para se referir a pessoas com autismo (Inep, 2020, 2021a). A publicação Glossário da educação especial (Inep, 2021b) esclarece que a utilização da expressão TEA aconteceu em concordância com a Lei n. 12.764/2012 e o DSM-5. Nesse ponto é importante destacar que, apesar de, no ano de 2013, o MEC ter publicado a Nota técnica n. 24, 2013, que já apresentava o autismo como TEA, a nomenclatura utilizada nos censos escolares seguiu em desacordo com essas publicações até o ano de 2019, de maneira que diferentes documentos, publicados nos mesmos anos, pelo mesmo órgão (MEC), apresentam o autismo sob nominações distintas. Essa descontinuidade com que a área da educação nomeou e concebeu o autismo também foi percebida na tentativa de alteração da Pneepei, pelo Decreto n. 10.502/2020 (revogado pelo Decreto n. 11.370/2023), que volta a utilizar a expressão TGD para nomear a condição (Inep, 2020), e durante a análise das coletâneas do Projeto Escola Viva e Saberes e Práticas da Inclusão. O detalhamento sobre as formas de nomeação utilizadas pela educação será apresentado na Tabela 2.
Ano | Legislação/documento | Nomeação |
---|---|---|
1973 | Decreto n. 72.425 | Problemas de conduta |
1985 | Decreto n. 91.872 | Problemas de conduta |
1994 | Política Nacional de Educação Especial | Condutas típicas (problemas de conduta) |
2002 | Projeto Escola Viva: condutas típicas | Condutas típicas |
2003 | Saberes e práticas de inclusão: Estratégias - MEC | Condutas típicas Problemas de condutas Condutas típicas de síndromes |
2003 | Saberes e práticas de inclusão: Autismo | Autismo Autismo infantil Síndrome do autismo |
2006 | Saberes e práticas de inclusão: Avaliação - MEC | Condutas típicas Condutas típicas de distúrbios invasivos de desenvolvimento |
2005 | Censo escolar | Autismo |
2006 | Programa Educação Inclusiva: Experiências educacionais inclusivas | Condutas típicas Transtornos invasivos do desenvolvimento |
2006 | Programa Educação Inclusiva: Experiências educacionais inclusivas | Autismo Transtorno global do desenvolvimento |
2007 | Censo escolar | Transtorno invasivo do desenvolvimento |
2008 | Pneepei | Transtorno global do desenvolvimento Autismo Síndromes do espectro do autismo |
2009 | Resolução CNE/CEB n. 4 | Transtorno global do desenvolvimento |
2008 | Educacenso | Transtorno global do desenvolvimento |
2009 | Educacenso | Autismo clássico Síndrome de Asperger Síndrome de Rett Transtorno desintegrativo da infância (psicoses) |
2010-2015 | Educacenso | Transtorno global do desenvolvimento |
2013 | Nota técnica n. 24 | Transtorno do espectro autista |
2016 e 2017 | Educacenso | Transtorno global do desenvolvimento |
2018 | Educacenso | Transtornos globais do desenvolvimento (TGD/TEA) Transtorno do espectro autista |
2019 | Educacenso | Transtorno do espectro autista |
2020 | Educacenso | Transtorno do espectro autista |
Fonte: Elaboração das autoras.
Sobre esse quadro importa marcar, ainda, que, na coleção do Projeto Escola Viva, publicada em 2005, é possível observar essa disruptura em relação ao material publicado no ano 2000. O documento publicado em 2005, ao expor no volume 1, intitulado Iniciando nossa conversa, o que entende como dúvidas mais frequentes de docentes em relação a alunos com necessidades educacionais específicas, traz questionamentos sobre alunos cegos, surdos ou com deficiência física, bem como alunos com características que, nas publicações anteriores, sugerem que sejam nomeados como alunos com condutas típicas. No entanto, não traz o termo ou qualquer outra nomeação que caracterize esses estudantes: “como ensinar a um aluno que tem dificuldade grande de abstração, que não se comunica verbalmente e fica distraído o tempo todo da aula? . . . Como ensinar a um aluno que fica ‘no mundo da lua’ o tempo todo?” (MEC, 2005b, p. 11).
O projeto Saberes e práticas de inclusão, publicado em 2003, enquanto apresentou o autismo como conduta típica na coletânea direcionada ao ensino fundamental, o nomeou como autismo na coleção direcionada à educação infantil. Destacamos que, no fascículo SPI: Autismo, voltado à educação infantil, o autismo é nomeado como autismo, autismo infantil, síndrome do autismo e apresentado como um distúrbio. Essa foi, entre todas as coletâneas do projeto Saberes e práticas da inclusão, a única que trouxe um volume específico voltado ao autismo, que foi excluído da quarta edição, publicada em 2005. Nesse caso, é importante destacar que, enquanto a publicação de 2003 deu visibilidade ao autismo, a coletânea publicada em 2005 parece retroceder e novamente invisibilizar a condição com a exclusão do fascículo. Na área da educação, a ausência de diálogos e proposições em relação ao processo de escolarização de estudantes autistas permanecerá até o ano de 2013, com a publicação da Nota técnica n. 24 (2013).
Durante a análise dos documentos educacionais publicados por órgãos oficiais, é visível como a área da educação produz e reproduz atravessamentos e descontinuidades em relação à forma de nomear e abordar o autismo. Como citado anteriormente, foram encontrados desde diferentes documentos publicados pelo MEC abordando o autismo de diferentes maneiras em um mesmo recorte temporal a publicações específicas sobre o tema que não tiveram continuidade em coletâneas que se mantiveram tratando do processo de escolarização de pessoas com outras condições caracterizadas como deficiências. Afinal, se o MEC continuou problematizando e orientando professores e sistemas escolares sobre a escolarização de pessoas com deficiências, por que não o fez em relação ao autismo? A que se deve esse apagamento do autismo e silenciamento do MEC em relação à escolarização desses estudantes? Sobre essas discussões nos deteremos nos próximos parágrafos.
Nomeações e representações: Discussões finais
O autismo sempre foi apresentado como patologia em documentos na área da educação por meio de múltiplas expressões. E então questionamos: até que ponto a nomeação pode alterar a maneira como a condição é representada? Para Veiga-Neto (2002, p. 27), a linguagem pode ser entendida como “instrumento capaz de descrever o mundo e, de certa forma, representá-lo”. Ao afirmar que o que pensamos é instituído por discursos que representam uma realidade, Veiga-Neto (2002) nos possibilitou a reflexão sobre como as diferentes nomeações utilizadas para retratar o autismo podem moldar olhares, condutas e práticas em relação a esses sujeitos. Nesse sentido, defendemos que a maneira como o autismo é descrito em documentos oficiais produz diferentes formas de o professor visualizar estudantes autistas, e pode potencializar ou inibir práticas pedagógicas que objetivem sua inclusão nos espaços escolares.
Em relação ao rastreio e à identificação das formas de nomear o autismo na área da educação, problematizamos dois pontos que julgamos fundamentais no que diz respeito aos processos de escolarização desses sujeitos: i) o estranhamento sobre a condição e o silenciamento sobre estratégias que possibilitem a inclusão; ii) a criação de tipos de pessoas e formas de serem (ou não) geridas pela maquinaria escolar.
Em relação ao primeiro ponto, o estranhamento em relação ao autismo, autoras como Guareschi et al. (2016), Alves (2014) e Lazzeri (2010) já descreveram as diversas nomeações que o autismo recebeu na área da educação e os possíveis impactos que as diferentes conceituações utilizadas para representar a mesma condição poderiam ter sobre o processo de escolarização de estudantes autistas. A análise das autoras apontou alterações nas formas como o autismo foi nomeado e abordado historicamente nos documentos analisados. De acordo com Guareschi et al. (2016), políticas públicas nacionais abordam o TEA de forma pouco clara, tangenciando o trabalho pedagógico voltado a esses alunos. As autoras afirmam, também, que houve um avanço nas políticas públicas para pessoas com TEA nos últimos anos no Brasil, e que o uso da terminologia autismo nos documentos orientadores do MEC “oportuniza pensar as especificidades da escolarização desses sujeitos” (Guareschi et al., 2016, p. 391), o que era mais difícil quando eram categorizados com base em outras nomenclaturas.
Além disso, Nunes et al. (2013) chamam a atenção para o medo que alguns professores sentem na atuação com estudantes autistas e defendem que o medo é associado ao desconhecido, ao inusitado. Goldberg et al. (2005), ao realizarem um estudo exploratório sobre as expectativas de professores diante do processo de inclusão de estudantes autistas, afirmam que os docentes apresentavam medo e ansiedade em relação a esses estudantes. Os autores destacam que, entre as principais preocupações dos docentes, estava a dúvida em relação à agressividade de estudantes autistas, o que chamou a atenção, já que agressividade não é característica presente em todos os autistas e pode ser apresentada por crianças sem deficiência. Camargo e Bosa (2009), ao revisarem a literatura sobre autismo e inclusão escolar, já apontavam que os resultados demonstraram que os docentes apresentavam ideias distorcidas sobre o autismo. Para os autores, “não surpreendentemente, essas concepções parecem influenciar as práticas pedagógicas e as expectativas acerca da educabilidade desses alunos” (Camargo & Bosa, 2009, p. 69).
O estranhamento da área da educação em relação a autistas, que fica claro desde as múltiplas formas de nomear, possibilita a reflexão sobre como, em diferentes períodos, o autismo é representado e, conforme aponta Hacking (2009), cria novas categorias de pessoas. O nominalismo dinâmico, conceito criado pelo autor, defende que classificações e classes, nesse caso, tipos específicos de pessoas, emergem juntas. Para Hacking (2009, p. 123), ao classificar, ao inserir uma pessoa numa categoria específica, se “altera o espaço de possibilidades para se ser essa pessoa”.
O conceito de Hacking (2009) sobre o nominalismo dinâmico nos possibilita relacioná-lo às diferentes formas de nomeação históricas do autismo e à criação de tipos de autistas. Quando definidos pela área da saúde como anormais e classificados por termos como doença, síndrome, patologia, transtorno, são posicionados como sujeitos a corrigir. As características que apresentam, como movimentos repetitivos, dificuldade diante de situações imprevistas, aspectos relacionados à comunicação e interação social, ao serem concebidas como sintomas, passam a fazer parte de um conjunto de especificidades que precisam ser modificadas, melhoradas, extintas, curadas. Posicionam autistas como pessoas indesejáveis, que precisam ser moldadas. São erradas. Se as características apresentadas não se modificarem a ponto de aproximar os sujeitos daquilo que socialmente se admite como possibilidade de ser, são culpados pelo processo excludente que sofrem. São os doentes que a medicina não foi capaz de curar.
Transpondo isso para a área da educação, a nomeação e a apresentação do autismo sob a perspectiva da concepção médica, como transtorno ou doença, culpabilizam o estudante pelos processos excludentes com os quais se depara. Se é doença, como pode a educação atuar? Justificam-se e concretizam-se processos de in/exclusão. A causa do fracasso escolar tem respaldo médico, o sujeito a ser curado se antepõe ao estudante que tem direito a aprender. Ao eleger conceitos médicos para nomear o autismo, a educação cria o sujeito a corrigir e não o estudante que, com desenvolvimento neural diferente, apresenta características diversas e tem direito a suportes que diferem dos oferecidos aos escolares não autistas e a metodologias de ensino diversificadas no seu processo de escolarização. A escolha pelas concepções médicas altera o planejamento das aulas e as possibilidades que autistas podem vivenciar em ambiente escolar.
Tratando especificamente de como autistas foram nomeados no censo escolar, autoras como Guareschi et al. (2016) e Felisbino (2022) rastrearam termos como síndrome, transtorno, psicoses e a apresentação do autismo por meio da concepção médica de deficiência. Popkewitz e Lindblad (2016, p. 732), ao descreverem a fundamentação estatística e a inclusão e a exclusão sociais, já apontavam como a pesquisa sobre determinado tema “dirige a atenção para aquilo que se espera que os professores reconheçam, a fim de organizar a instrução de acordo com os estilos de aprendizagem relacionados com as crianças ‘pertencentes’ às classificações particulares das populações”. Para os autores, “definir como pessoas se ‘encaixam’ em um grupo é mais do que apenas uma forma de classificar” (Popkewitz & Lindblad, 2016, p. 731). Indo ao encontro das reflexões dos autores, Felisbino (2022), ao rastrear políticas públicas direcionadas para autistas, analisou documentos publicados pelo MEC para a formação docente. O material, que apresentava o autismo por meio da concepção médica, relacionando-o a termos como doença, patologia, síndrome e transtorno, dava ênfase não a aspectos relacionados à aprendizagem acadêmica, mas à correção comportamental de estudantes autistas.
Durante a análise do material selecionado, é possível verificar como as múltiplas formas de nomear uma única condição vêm acompanhadas do silenciamento do MEC em relação aos processos de escolarização de estudantes autistas. Essa omissão do MEC, mantida de forma tão consistente a partir do início da década de 2010, é citada por Felisbino (2022), que percebeu o apagamento do autismo inclusive enquanto público da educação especial entre o período analisado para sua pesquisa (1994-2020). Para a autora, esse fenômeno pode ser visualizado no documento Política e resultados: 1995-2002 - Educação especial (MEC, 2002b), que relata ações do MEC em relação aos avanços da educação especial e não faz qualquer referência ao autismo; e no curso de Aperfeiçoamento de Professores para o AEE oferecido pelo MEC em 2007, que aborda o atendimento educacional especializado para deficiência física, mental (sic), auditiva, visual e não aborda o autismo como público da educação especial e do AEE.
As diferentes formas de nomear, acompanhadas pelas lacunas deixadas pelo MEC em relação à inclusão educacional de estudantes autistas nas duas últimas décadas, articuladas à concepção médica de deficiência que dá a tônica das políticas públicas brasileiras para esse público, mais que causar estranhamento, parecem ter dissipado pela atmosfera educacional os saberes construídos pela área da saúde sobre o tema. Entre os documentos analisados, são esses saberes - os terapêuticos - que recebem destaque e direcionam o processo educacional para uma inclusão excludente, o fenômeno da in/exclusão. A in/exclusão permite que autistas estejam presentes na escola, mas que recebam dela um processo de escolarização parcial, marcada pela ausência de saberes pedagógicos voltados a esse público. Nesse sentido, a instituição escolar é vislumbrada não como espaço de educação formal, de acesso a conhecimentos socialmente construídos e fundamentais para o exercício da cidadania, mas como local onde a clínica consegue atuar e corrigir os anormais, sujeitos inadequados e naturalmente inaptos para acessar a escola regular.