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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 07-Maio-2024

https://doi.org/10.1590/1980531410859 

RESENHAS

A SUBJETIVIDADE DA EXPERIÊNCIA DE SER NEGRO

Agenor Lopes FilhoI 
http://orcid.org/0009-0007-3842-0085

Sônia Regina da Luz MatosII 
http://orcid.org/0000-0002-3946-5628

IUniversidade de Caxias do Sul (UCS), Bento Gonçalves (RS), Brasil;

IIUniversidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul (RS), Brasil;

Andrade, É.. Negritude sem identidade: Sobre as narrativas singulares das pessoas negras. n-1 Edições, 2023.


O livro Negritude sem identidade: Sobre as narrativas singulares das pessoas negras, publicado em 2023 pela n-1 Edições, é de autoria de Érico Andrade, doutor em filosofia e professor da Universidade Federal de Pernambuco. O foco da obra é parte de sua tese, a qual faz uma emergente crítica à noção de identidade colonial, que produz a subjetividade da experiência de ser negro. O texto carrega o leitor para uma narrativa do próprio autor, que é negro, e debate o racismo na filosofia moderna, bem como alguns de seus impactos na produção de identidade da racialização. Partindo da subjetividade para romper com o identitarismo branco sobre o corpo negro, a obra transita entre a filosofia e a psicanálise.

Érico Andrade inicia seu livro com a defesa da negritude sem identidade, apontando para o fato de que a violência imposta pelo racismo, colonizador, denota nas pessoas negras um comportamento reativo, o que as leva a tecer as narrativas de si de forma castrada, sempre pela assimilação de valores culturais brancos. Ou seja, o padrão das narrativas imposto pela modernidade sempre foi expressado pela ideologia da branquitude. Diante disso, o autor faz uma crítica à ideia de identidade colonial e propõe uma ruptura desse modelo de determinação de identidade como fator primordial para recuperar a experiência de ser negro.

Inicialmente, são apresentados argumentos que sustentam a tese de que a filosofia da modernidade fundou uma episteme racista, criando o conceito de raça como identidade ontológica. Érico Andrade acredita que esse discurso identitário segregatório tenha sido fundado a partir do modelo de Descartes, que define a priori o sujeito da modernidade pela alma ou pela razão. À vista disso, o exercício da razão permite ao sujeito moderno o autorreconhecimento; por outro lado, a ausência desse critério reduziria o sujeito a apenas um corpo, o que, para o autor, suscita um modelo discriminatório por instituir um retrato identitário do que é o humano e, por conseguinte, aproxima dos animais aqueles cuja utilização da razão se dava de forma acidental, demarcando diferenças em relação a outros humanos. A partir da construção cartesiana, o sujeito moderno passa a ser o balizador entre o humano e o sub-humano.

Andrade explicita em sua obra discursos de Kant, Hegel e outros filósofos da modernidade que sustentaram, por meio de um projeto de uma filosofia racista, a ausência de espírito nos corpos negros, embasando a criação de sujeitos racializados e, consequentemente, subalternizados pela diferença. Essa produção de pensamento racista contribuiu para legitimar a superioridade da raça pelo viés do conceito de raça como identidade ontológica. Assim, a partir da concepção de que um corpo sem espírito não tem identidade, o corpo negro passou a ser estigmatizado, pois, enquanto o sujeito moderno é espírito, o negro é reduzido a apenas um corpo, e, por ser considerado sem alma, é o próprio fantasma de si. Com isso, segundo a filosofia de Hegel narrada pelo autor, a África não poderia fazer história, pois ela é fruto da produção da razão humana, confiada apenas aos povos europeus. Se o negro é ausente de espírito, o continente africano seria incapaz de fundar um Estado e abrigar uma organização social, por sua condição de irracionalidade.

Para que o negro pudesse se tornar humano, seria preciso lhe incutir valores europeus. Com isso, no Brasil pós-abolicionista, implementou-se a ideia de que o fim da escravidão deveria ser gradual e de que, ao abrir mão de suas tradições africanas e aderir à cultura europeia, o negro viria a se tornar embranquecido. Essa ideologia brasileira não só retardou o processo de abolição do período escravagista, como também serviu de lastro para apagar os rastros da negritude, dando início a um projeto de povoar o país em um processo imigratório de europeus para embranquecimento da população brasileira. O negro não fazia parte do projeto da modernidade brasileira, portanto suas manifestações culturais tiveram de ser banidas de espaços públicos. Para Andrade (2023), o projeto de modernidade brasileiro é racista e teve por objetivo a marginalização do negro, operada pelo discurso de que essa população não servia para o processo de industrialização do país. Tal processo de segregação e subalternização do negro gerou preocupações na branquitude, e o medo da violência negra passou a ser remediado com leis de repressão. O negro, desse modo, foi condenado a um corpo sem vida, e, como alternativa para sua sobrevivência, passou a “vestir a máscara branca e desviar do destino mortal de ser negro” (Andrade, 2023, p. 79).

A partir dessas considerações, no segundo capítulo da obra, o pesquisador aborda o conceito da experiência subjetiva coletiva e individual de ser negro, que se constitui em um processo de racialização dos corpos negros, mas faz surgir uma negritude que se apõe ao padrão colonial. Dessa forma, não se pode resumir a experiência da negritude a uma identidade única, pois, mesmo sendo uma experiência coletiva de dor e sofrimento, ela também constitui uma experiência negra singular. Segundo o autor, essa experiência compartilhada de ser negro é marcada pela hegemonia da branquitude, que institui ao corpo negro o sentimento de inferiorização, uma autopercepção negativa provocada pelo menosprezo da branquitude à raça negra, impondo às pessoas negras uma necessidade de se autoanunciarem negras antes mesmo de se manifestarem como humanos. Contudo essa experiência não confere às pessoas negras a exclusividade do sentimento de sofrer racismo, com exceção dos que habitam o Brasil, onde a prática da racialização procura estabelecer diferenças sociais, precisamente sobre os corpos negros e índios. Essa vivência em comum dos corpos negros que partilham dessa experiência é que atribui à negritude o lugar de fala, justamente por se tratar de uma experiência singular. À vista disso, o autor justifica, com base nos conceitos de Baquaqua (2017),1 que a experiência singular de ser negro é conferida à negritude, cujo corpo é o território da experiência do sofrimento, e que mesmo os abolicionistas, diante da barbárie dos açoites, expressavam ao máximo um sentimento de afeto, mas sem sentir tal sofrimento no corpo, nem sequer impedir o cerne do sofrimento, a saber, o racismo.

Tendo a expressão da sua língua sustada, o negro permanece através do movimento do corpo, da manifestação da estética corporal como resistência à espoliação de seu trabalho, como forma de sobrevivência. Pela ginga, o negro encontrou uma forma de enfrentamento à aculturação imposta pela branquitude. Para o autor, é nessa partilha de experiências em comum dos corpos negros, mesmo diante das diferenças culturais, que se efetiva uma nova noção de negritude como contraponto à racialização.

No terceiro e último capítulo, o autor toma a psicanálise para compor uma narrativa de si, traz sua trajetória e experiência singular em tornar-se negro e aponta que o fato de ser pardo e não pertencer a uma família pobre fez com que ele permanecesse durante boa parte de sua vida em uma posição “entre”, ou seja, nem negro, nem branco. Apesar de não se sentir totalmente negro e de se autodeclarar pardo, ele percebia distinções fenotípicas marcantes ao se comparar com seus amigos brancos. As condições em que vivia, no subúrbio, sem que lhe faltasse nada e apreciando o centro da cidade onde estudava, fizeram com que se sentisse integrante do meio em que estava inserido, e, por consequência, menos ameaçado pelas ofensas voltadas aos negros.

Acerca disso, o autor relata que no ambiente escolar era comum encontrar um humor racial que, de forma menos agressiva e impositiva, infligia realidades e estereótipos aos negros. Mascarar-se de branco era a forma encontrada para neutralizar as ofensas desse humor; ao menos assim, fazia-se crer que sua condição de homem pardo não o integrava àquele cenário de dizeres racistas. Diferentemente de seus amigos negros, o autor vivia às margens da branquitude enquanto se sentia parte dos brancos, para que a violência racial não o atingisse. Ao mesmo tempo, estava inserido no mundo negro, criando vínculo com a parte menos favorecida, que já o olhava com desconfiança.

A visão parda do autor era disseminada por diversas outras pessoas que não se declaravam simplesmente negras. Qualquer margem era justificativa para se autodeclarar pardo, apresentando uma defesa e resistência diante da negrura e afirmando um distanciamento da realidade empobrecida que a sociedade negra vive. Distanciar- -se da sociedade negra era, para o autor, esquivar-se também das tristes realidades da violência exercida contra essa população. Alguns negros, inclusive, encontravam nas igrejas um refúgio, um acolhimento e igualdade que não podiam ser sentidos fora dali, afinal na igreja eram todos irmãos, e se, um negro ali estava, consequentemente, também estaria longe dos problemas e sistemas controversos. O autor traz relatos de cenas violentas resgatadas na memória, das vidas ceifadas de amigos de infância, sem reconhecimento de que havia uma relação entre essas (e tantas outras) mortes violentas e o fato de se acometerem sobre vítimas negras. A compreensão do autor para com seu processo de “tornar-se negro” estaria mais clara, pois ele não aceitava esse mundo de violência disseminada e explícita, nem se imaginava morto como seus amigos.

Andrade ainda promove um debate junto a pensadores negros e negras, como Cida Bento (1952-), psicóloga e ativista brasileira, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert); Neusa Santos Sousa (1948-2008), psiquiatra, psicanalista e escritora brasileira, cuja obra é referência no que se refere aos aspectos sociológicos e psicanalíticos da negritude; e Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo político natural de uma colônia francesa da Martinica, cujas obras tornaram-se influentes no campo dos estudos pós-coloniais. Com essas parcerias intelectuais de pensamento negro, o autor do livro descreve os processos que levam à subjetivação de pessoas negras, apontando a própria psicanálise como possuidora do caráter universal da branquitude e propondo uma revisão da racialidade estrutural incutida no campo. A propósito, por meio da psicanálise o autor encontrou um caminho para se autoconduzir e conduzir outros negros à aceitação da cor e vivenciar a experiência de ser negro, sem, contudo, incorrer no identitarismo branco ou apelar para um essencialismo negro.

A partir dessas considerações, o psicanalista conclui sua obra incitando-nos a acabar com o pacto entre os pardos e assumir a negritude, abandonar as máscaras brancas e a ideologia da branquitude, pondo fim no projeto da modernidade brasileira de apagamento do negro pelo pardo e, por consequência, na expectativa de que o pardo venha a se tornar branco. Isto é, assumir-se negro, ser negro, entregando-se a uma experiência estética que só pode ser vivida pelo negro não reduzido pela identidade colonizadora, sem identidade colonial.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Capes/Prouni pela bolsa de mestrado recebida pelo primeiro autor.

1 Mahommah Gardo Baquaqua foi um homem africano, sequestrado e escravizado por traficantes. Nativo da África Central, trabalhou no Brasil como cativo. Conseguiu fugir para Nova York em 1847.

Como citar esta resenhaLopes, A., Filho, & Matos, S. R. da L. (2024). A subjetividade da experiência de ser negro [Resenha do livro Negritude sem identidade: Sobre as narrativas singulares das pessoas negras, de É. Andrade]. Cadernos de Pesquisa, 54, Resenha e10859. https://doi.org/10.1590/1980531410859

Referências

Andrade, É. (2023). Negritude sem identidade: Sobre as narrativas singulares das pessoas negras. n-1 Edições. [ Links ]

Baquaqua, M. G. (2017). Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua: Um nativo de Zoogoo, no interior da África (L. Furtado, Trad., Org.). Uirapuru. [ Links ]

Recebido: 13 de Janeiro de 2024; Aceito: 24 de Janeiro de 2024

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