Nas instituições de ensino superior, o primeiro dia de aulas costuma ser aquele em que os docentes apresentam o planejamento do semestre, isto é, o documento chamado “Plano de ensino”.1 Para produzi-lo, o docente realizou um extenso trabalho, que envolveu definir temas e bibliografia de cada aula; selecionar materiais de apoio; planejar atividades e avaliações; providenciar equipamentos. Para um curso nunca ministrado, o trabalho é gigante. Para um curso habitual, nem tanto, mas haverá ainda a necessidade de decidir pela manutenção ou substituição de textos, vídeos, atividades, avaliações, além da adequação do cronograma ao calendário acadêmico institucional.
Os projetos pedagógicos dos cursos superiores, que incluem os programas dos componentes curriculares, são recursos fundamentais. Nas ementas, conteúdos programáticos e bibliografias, os programas indicam temas, conceitos, linhas teóricas, autores, linguagens, técnicas que devem ser apresentadas aos estudantes, seja qual for o docente. Resultam de um trabalho coletivo, envolvendo todos os docentes, em diálogo com a legislação vigente e setores pedagógicos. É por conta desses documentos norteadores que os planos de ensino, elaborados a cada semestre, podem incluir perspectivas do docente responsável, mas dentro de um horizonte de expectativa traçado de forma colegiada.
Todos esses cuidados, apesar de legítimos, não devem nos enganar. Os processos educativos não envolvem apenas conteúdos, planejamentos e prazos. A cada novo período, os docentes se veem diante de pessoas desconhecidas, com as quais precisam dialogar e estabelecer, em poucas semanas, uma relação de confiança. Conteúdos, bibliografia, prazos, atividades e avaliações meticulosamente planejadas não são garantia de sucesso. E o apego excessivo ao planejamento pode ser até prejudicial ao processo de ensino-aprendizagem. A afirmação pode soar incoerente, porque, em boa medida, ainda somos influenciados por uma concepção de ensino centrada no conteúdo, como se educar fosse despejar informações sobre mentes jovens que absorveriam as palavras ditas.
Mas, hoje, sabemos que a construção do conhecimento é uma ação realizada por cada estudante, com estímulo dos docentes, materiais à disposição, oportunidades disponibilizadas pelas instituições e interações com colegas e sociedade. E que cada um vive esse percurso em função dos seus próprios interesses, recursos, experiências, da sua subjetividade. Sendo assim, para exercer o papel de mediadores do processo, os docentes precisam buscar conhecer os estudantes, suas histórias, desejos, dificuldades, saberes. Sem saber quem eles são, é muito mais difícil estabelecer conexões, encontrar exemplos compreensíveis, acertar na linguagem, dosar as exigências, apoiar o desenvolvimento de cada um, aceitando as suas especificidades. Como explicam Andréia Osti, Bianca Nogueira e Isabela Pissinatti (2023), não se podem considerar apenas os aspectos cognitivos dos estudantes, pois a dimensão socioafetiva é igualmente relevante e com efeitos diretos sobre a aprendizagem:
O modo como o professor e o aluno se relacionam pode ser determinante para o aprendizado, pois, por meio das relações vivenciadas, sentidas e percebidas, o estudante poderá, ou não, se sentir capaz de aprender. No momento em que um educador incentiva seus alunos, buscando sua aprendizagem, ele está demostrando afetividade. É possível perceber como o professor deixa marcas em seus alunos, e se torna exemplo, mesmo um exemplo do que não ser, ao deixar marcas negativas. A afetividade no processo de ensino e aprendizagem age como um catalisador e intensificador dos interesses dos alunos (Seligman, 2011). Considerando que as relações em sala de aula podem ser positivas ou negativas, pois não há como garantir que sejam sempre positivas, essas podem influenciar e repercutir no desempenho de cada estudante. De um lado, se o aluno tiver uma imagem positiva de si, sua aprendizagem pode ser um processo prazeroso e poderá ser facilitada. De outro lado, se os alunos tiverem uma imagem negativa de si, podem apresentar maiores dificuldades em aprender, pois, para eles, o processo de aprendizagem pode ser doloroso, tenso e conflitante. (Osti et al., 2023, p. 107).
Diante de turmas numerosas, tempo exíguo e inúmeras demandas institucionais, poucos docentes vão além do bate-papo de apresentação da turma na primeira aula. Seja porque não consideram relevante saber mais a respeito dos estudantes, algo exequível no tempo disponível, ou porque não saberiam como fazer. A intenção deste trabalho é relatar e refletir sobre experiências que coloquei em prática nos últimos vinte anos para ter acesso a narrativas autobiográficas dos estudantes, como forma de conhecê-los e qualificar o meu trabalho docente. Descreverei quais as motivações e resultados dessa busca, que recorreram a diferentes formatos de narrativas biográficas: o perfil, que envolve a realização de uma entrevista; o diálogo autêntico, que permite a construção de uma narrativa oral pelo estudante; e a autobiografia escrita. Em seguida, serão analisadas seis autobiografias, que integram o corpus de uma pesquisa mais ampla. Estarei ainda dialogando com pesquisadores que também refletem sobre a necessidade de conhecer os estudantes para que possamos aprimorar o trabalho docente, estabelecendo vínculos afetivos positivos e intera- ções de qualidade.
Sujeitos
Desde o início do século XX, a Antropologia, com a formulação do método etnográfico, saiu dos gabinetes e foi a campo, para observar, conviver, registrar, ouvir os membros dos grupos sociais estudados. A Sociologia, apesar da tendência a um olhar macro para os fenômenos sociais, também se voltou para os sujeitos em muitos momentos. A Escola de Chicago, com a sua microssociologia, é um exemplo. No campo da História, também é no século XX que surge a Nova História, que irá trabalhar com “‘novos problemas’, ‘novas abordagens’ e ‘novos objetos’” (Burke, 1992, p. 2). O interesse deixa de estar restrito às elites políticas, aos homens, aos grandes feitos registrados por escrito. Desenvolvem-se pesquisas sobre excluídos, grupos subalternizados, recorre-se também a registros orais, visuais, cultura material. No pós-guerra, ganha força um campo de estudos centrado nas entrevistas sobre histórias de vida: a história oral. O historiador e jornalista Alan Nevins, da Universidade de Colúmbia, é considerado um dos precursores, pelo uso do termo, criação de arquivos e trabalho que fez, entrevistando ex-combatentes e familiares sobre experiências traumáticas, assim como temas do cotidiano (Meihy, 2005).
Mas é no final do século, a partir dos anos 1980, quando as metanarrativas sociais vão sendo questionadas, que vivemos uma virada, guinada ou giro subjetivo: “Contemporânea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 de ‘guinada linguística’ ou muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, impôs-se a guinada subjetiva” (Sarlo, 2007, p. 18). Um aumento do interesse pelas histórias de vida, biografias, memórias, sujeitos. O que inclui gente comum, miúda, anônima.
Proliferam as narrações chamadas “não ficcionais” (tanto no jornalismo como na etno- grafia social e na literatura): testemunhos, histórias de vida, entrevistas, autobiografias, lembranças e memórias, relatos identitários. A dimensão intensamente subjetiva (um verdadeiro renascimento do sujeito, que nos anos 1960 e 1970 se imaginou estar morto) caracteriza o presente. Isso acontece tanto no discurso cinematográfico e plástico como no literário e no midiático. Todos os gêneros testemunhais parecem capazes de dar sentido à experiência. Um movimento de devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra se expande, reduplicado por uma ideologia da “cura” identitária por meio da memória social ou pessoal. (Sarlo, 2007, pp. 38-39).
O interesse pelos indivíduos e suas narrativas também alcança a educação. A história da educação, a sociologia da educação e a pesquisa (auto)biográfica em educação (Souza, 2020) recorrem frequentemente às histórias de vida dos professores e dos estudantes. Estudos sobre “trajetórias escolares”, “percursos estudantis”, “trajetórias acadêmicas” recorrem a entrevistas e textos com narrativas de si, na busca de entender os fatores que afetam as experiências estudantis, favorecendo o sucesso e o fracasso. Tomando como base a etnometodologia,2 criada por Harold Garfinkel, Alain Coulon desenvolveu estudos que influenciaram muitas pesquisas no Brasil (Coulon & Paivandi, 2023). O seu livro A condição de estudante: A entrada na vida universitária já está na quarta edição.3 Centrado no contexto francês, que passou por reformulações no ensino superior a partir da década de 1980, o trabalho descreve e analisa os desafios e estratégias implementadas por jovens e adultos na busca de tornar-se estudante universitário.4 Essas reformas, que visavam a ampliar o acesso ao ensino superior e diminuir os altos índices de repetência e evasão, em sua avaliação, tiveram êxito parcial, por diversos fatores: “Dessa forma, a democratização do acesso ao ensino superior, incontestável nessas duas últimas décadas, não foi acompanhada por uma democratização do acesso ao saber” (Coulon, 2008, p. 21).
Na abordagem de Coulon, aprender o ofício de estudante envolve prioritariamente duas dimensões: afiliar-se intelectual e institucionalmente. Quando descreve sua produção de dados, ele explica que: observava e escutava os novos estudantes nos primeiros dois meses após a chegada; realizava conversas ocasionais; realizou 105 entrevistas individuais e em grupo ao longo de pouco mais de dez anos; e recorreu a 140 “diários de afiliação”, que eram “diários escritos pelos próprios estudantes do primeiro ano, ao longo do curso que eu ministrava, durante os três primeiros meses que se seguiam à sua entrada na universidade” (Coulon, 2008, p. 58). Parte dessas entrevistas era composta de “entrevistas de orientação”, uma etapa prevista após a reforma do ensino na França: “No final do primeiro semestre, cada estudante devia apresentar-se a uma entrevista de orientação, conduzida por um professor da sua área de formação, para uma primeira avaliação desse período inicial e um exame de seus projetos” (Coulon, 2008, p. 52).
Na França, a “massificação do ensino superior” ampliou a presença, nas universidades, de imigrantes, trabalhadores, pessoas de camadas populares. Portanto membros de famílias frequentemente recém-chegadas à cultura letrada e que buscam as universidades com objetivos diversos. No passado, os universitários eram sobretudo membros da elite, pertenciam a famílias cujos membros também haviam acessado o ensino superior, explica Saeed Paivandi (2014) em uma entrevista. Assim, eram pessoas com recursos financeiros e repertório cultural que favoreciam o estudo universitário. Por outro lado, quando novos grupos acessam o ensino superior, muitas coisas mudam, nas condições de vida, repertório, objetivos e sentido atribuído à universidade pelos estudantes:
Essa geração não vê o mesmo sentido no fato de ir para a universidade. E esses estudantes não estão na universidade pelo amor ao saber. Estão, às vezes, para ter um diploma, para encontrar um trabalho melhor qualificado ou para ser mais bem remunerado no mercado de trabalho. São essas as principais motivações que “empurram” os alunos a irem para a universidade. (Paivandi, 2014, p. 220).
Para ilustrar a diversidade de interesses em relação à vida universitária, cito uma pesquisa de Paivandi, realizada na França, com estudantes de Ciências Humanas e Sociais, durante três anos. Ele buscou entender o que chama de “perspectiva”, isto é, o sentido que o estudante atribui “ao fato de aprender na universidade, ou a perspectiva da aprendizagem, é o que significa a relação com o aprendizado na universidade. A perspectiva estaria em ligação direta com a biografia do estudante, mas, igualmente, com o contexto universitário” (Paivandi, 2014, p. 232). Ele encontrou quatro tipos básicos. Os “verdadeiros estudantes” são os intelectualmente interessados no saber, que investem tempo no estudo, pois a meta principal é compreender. O grupo dos “estrategistas”, o mais numeroso, é formado por estudantes que priorizam o desempenho e benefícios advindos: bolsas, salários, emprego, boas notas, elogios. Os “minimalistas” aprendem de maneira super- ficial, são “aqueles estudantes que tentam fazer o mínimo possível para alcançar seus objetivos” (Paivandi, 2014, p. 233). Como último grupo, os estudantes que “não trabalham suficientemente ou não trabalham de jeito algum”, que seguem nos cursos dependendo da ajuda de colegas, sem compreender o que ocorre nas aulas. Sem adotar uma perspectiva fatalista, Paivandi acredita que docentes e instituições podem afetar e modificar o engajamento dos estudantes. E que é especialmente crucial realizar esforços dirigidos aos mais frágeis:
Ou seja, a universidade precisa desenvolver ações que visem os estudantes que não são muito motivados, os estudantes que não possuem uma trajetória escolar anterior muito brilhante, os estudantes que hesitam sobre o seu futuro, os que não sabem. Isso quer dizer que, principalmente para esses estudantes, um meio ruim ou fraco ou um meio que é mal percebido pode ser uma catástrofe, um golpe fatal, porque quando um meio ou um contexto é mal percebido, o estudante termina por se dizer: “Eu não aprendo, então eu abandono” ou “acho que eu não sirvo para isso”. (Paivandi, 2014, p. 234).
A afirmação, tão repetida nos últimos anos no Brasil, de que novos públicos estão acessando as universidades, especialmente públicas,5 precisa ser entendida em suas várias facetas. Como desafio, oportunidade, complexidade, riqueza. Se, no passado, predominavam os estudantes de classes média e alta, brancos e de centros urbanos, hoje, a diversidade é maior. Assim, é preciso prestar atenção nas trajetórias, experiências, saberes, pertencimentos identitários e modos de ser desses novos estudantes. Principalmente para que as universidades possam se adaptar e aprender a dialogar com sujeitos que antes não as frequentavam. Parto da premissa de que as instituições de ensino superior desejam prestar um serviço efetivo à sociedade, contribuindo para a formação dos jovens. Nesse sentido, é preciso atender da melhor forma os públicos que as acessam. Ou seja, não é possível ignorar as experiências concretas desses estudantes nem é coerente qualificar as suas características como problemas, prejuízos. Refiro-me a aspectos como: a pouca disponibilidade de tempo para o estudo, em função do trabalho; limitação ou ausência de recursos para aquisição de livros e materiais; inexperiência com regras e hábitos do conhecimento científico; ausência de domínio pleno da norma-padrão da escrita, que também repercute na expressão oral; interação centrada na oralidade prolixa e efusiva; comportamentos relacionados a pertencimentos étnico- -raciais, culturais, sociais, religiosos e de gênero. Esses modos de ser, antes raros no ambiente universitário, são um retrato da sociedade em que vivemos, condições de vida que devem ser levadas em conta na relação pedagógica.
Os docentes são frequentemente socializados em uma cultura universitária meritocrática, que encara o resultado como fruto do esforço. Ao mesmo tempo, os vestibulares e outros processos seletivos rigorosos nos habituaram a acreditar que somente estudantes com domínio pleno das habilidades esperadas ingressariam nos cursos superiores. Esses e outros aspectos facilmente nos levam a interpretar as características dos novos estudantes em termos de “problemas”, “carências”, “deficiências”, “dificuldades” individuais. Ou seja, não levamos em conta as experiências socioculturais desses jovens, os saberes distintos que trazem consigo, nem o fato de que não podem dominar plenamente habilidades e repertórios aos quais não tiveram acesso. Também não questionamos o nosso papel e das instituições em relação a essas características. Em seu artigo “Crítica ao conceito de afiliação de Alain Coulon: Implicações para a permanência estudantil”, Maíra Tavares Mendes (2020) reconhece a importância do trabalho de Coulon e do conceito de afiliação, mas também demonstra como, mesmo ele, em alguns momentos, interpreta as características dos estudantes em uma tônica negativa: nível primário, deficiência, problemas de vocabulário. Em sua avaliação, Coulon não aborda suficientemente qual seria o papel das universidades no acentuamento ou solução desses ditos “problemas” estudantis. Nem debate de modo amplo como a origem desses conflitos pode estar em desigualdades de classe, raça, gênero, nacionalidade. Longe de considerar que essa crítica diminui o trabalho de Coulon, acredito que ela apenas demonstra como precisamos estar vigilantes em relação às limitações das nossas perspectivas. E conscientes de que, assim como recomenda o próprio Coulon ao final do seu livro, em outros textos e falas, observar e analisar o universo estudantil só faz sentido se propusermos ações para atender às demandas que identificamos como pesquisadores.
No primeiro capítulo do seu livro L’invention de soi: Une theorie de l’identité, Jean-Claude Kaufmann (2004) busca resgatar a intricada história do conceito de identidade, que, em sua visão, vem sendo usado de forma exageradamente ampla, imprecisa, por grupos diversos (senso comum, movimentos sociais, ciências humanas), com finalidades diversas. Uma explosão de interesse que se dá principalmente no pós-guerra, justamente em função do esgarçamento das antigas relações sociais, estáveis e duráveis, que leva a uma busca por pertencimento. Ou, como diria Bauman (2005, p. 30): “Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso”. Percorrendo contribuições de diferentes autores, como Freud, Erik Erikson e George Mead, alternando um olhar mais próximo da Psicologia com um da Sociologia, Kaufmann demonstra como a noção de identidade pode enfatizar ora aspectos subjetivos, ora aspectos sociais e históricos, em um processo de negociação permanente na busca de resposta à pergunta: “Quem sou eu?”. “É, portanto, impossível separar, de modo rígido, os aspectos individuais e os aspectos relacionais e sociais da identidade”, sintetiza Alberto Melucci (2004, p. 46). Também é Melucci (2004, p. 44) quem afirma que, ainda que possamos tratar de identidade de indivíduos ou grupos, nos dois casos, “referimo-nos a essas três características: continuidade do sujeito, independentemente das variações no tempo e das adaptações ao ambiente; delimitação desse sujeito em relação aos outros; e capacidade de reconhecer-se e ser reconhecido”.
Longe de entender as identidades como estáveis e resolvidas, compreende-se, portanto, que vivemos todos, cada vez mais, em um processo instável e transitório de negociação com os diversos grupos de pertencimento aos quais nos sentimos ou somos compelidos a nos sentir afiliados. E que é dessa imensa colcha de retalhos que precisamos construir uma ideia de quem somos, tão necessária para a estabilidade e a vida social. Um processo que se inicia na infância e segue se fazendo e refazendo. Se as interações no ambiente familiar, inegavelmente, são o começo de tudo, as relações, práticas culturais, interações, normas, códigos, valores a que estamos expostos ao longo da vida vão favorecer novas identificações e o abandono de perspectivas anteriores. “A identidade adulta é, portanto, a capacidade de produzir novas identidades, integrando passado e presente, além dos múltiplos elementos do presente na unidade e na continuidade de uma história individual” (Melucci, 2004, p. 46).
A educadora e pesquisadora Marie-Christine Josso (2007) defende a importância de ir além de um olhar identitário a respeito dos estudantes e buscar individualidades, dimensões da existencialidade. Como sabemos, os pertencimentos identitários nos aproximam de certos grupos, mas não definem com rigidez quem somos, pois iremos sempre experimentar de modo pessoal esse pertencimento, sempre em transformação, além do fato de que conjugamos em nossas biografias variados pertencimentos. Por vezes, até conflitantes. Portanto, ainda que seja inevitável pensar em identidades quando tratamos de histórias de vida, é bom ter cautela com as generalizações.
. . . o conjunto dos trabalhos que tratam explícita ou implicitamente da construção da identidade abordam esta última pelo viés de critérios de rotulação que definem status, papéis e posições numa estrutura social e dos comportamentos individuais que lhes correspondem. A identidade individual é, pois, definida a partir de características sociais, culturais, políticas, econômicas, religiosas, em termos de reprodução sociofamilar e socioeducativa. Mas a questão de compreender a variabilidade no interior desses modelos jamais é abordada e, menos abordada ainda, a maneira pela qual as individualidades vivem do interior esses status, essas rotulações diversas e esses comportamentos conformistas. Nesse tipo de análise, a existencialidade é totalmente ignorada em sua mobilidade e vitalidade, assim como as potencialidades de uma invenção de si, em ruptura e ao mesmo tempo em ligação com o contexto socio-histórico, as heranças socioculturais do fazer, do pensar, do sentir, do agir, do comunicar, etc. (Josso, 2007, p. 417, destaque do original).
Portanto, em uma sala de aula, mesmo que possamos identificar os variados pertencimentos dos estudantes - negros, brancos, homens, mulheres, pessoas trans, com deficiência física ou cognitiva, com necessidades educacionais específicas, de origem popular, de classe média, alta, oriundos de ambientes urbanos, rurais, sudestinos, nordestinos, sulistas, católicos, evangélicos, umbandistas, etc. -, não se pode perder de vista que todos continuarão sendo indivíduos. E é no sentido de uma aproximação com essas existencialidades que podemos recorrer aos variados formatos biográficos na educação. Um movimento que afeta tanto docentes quanto discentes, pois a narrativa de si, sendo um processo de reelaboração de memórias, constrói sentidos a respeito do vivido, de quem somos e apoia o planejamento do futuro. “A história de vida é, assim, uma mediação do conhecimento de si em sua existencialidade, que oferece à reflexão de seu autor oportunidades de tomada de consciência sobre diferentes registros de expressão e de representações de si” (Josso, 2007, p. 419).
Josso (2007) formula um conceito que chama de “dimensões de nosso ser no mundo” e elenca oito dimensões que nos afetam e aparecem nos relatos biográficos estudantis: sensibilidades, ação, emoções, carne, atenção consciente, imaginação, afetividade e cognição. Essa proposta, tão abrangente e que parece, em certo sentido, afastar-se das questões propriamente pedagógicas, parece oportuna para lidar com narrativas biográficas. Isso porque, quando permitimos que o relato biográfico seja construído com autonomia pelo narrador, os temas que surgem podem ser os mais distintos possíveis. Temas que traduzem profundas ambições, angústias, desejos, receios dos estudantes e que, por isso, atravessam as experiências acadêmicas. Ignorá-los é ignorar uma dimensão urgente da existencialidade do estudante. Josso (2007, p. 425) dá um exemplo, citando o “ser de carne”, que aparece em muitos relatos de diferentes maneiras: “a saúde e a doença, a maternidade e a paternidade, a filiação parental, o aspecto físico apreciado ou rejeitado (imagem de si), a sexua- lidade, a alimentação, o movimento através de diferentes disciplinas esportivas ou abordagens corporais, a fadiga, etc.”.
Narrativas biográficas
Por conta de um interesse pessoal e antigo por biografias, que começou em minha prática profissional anterior à docência, resolvi testar formatos biográficos em sala de aula, como recurso pedagógico, seja como formato a ser estudado e praticado, seja como recurso para conhecer melhor os estudantes, características da sua escrita e assim orientar o trabalho docente. Além do fato de que a construção de uma narrativa biográfica promove a reflexividade e afeta aquele que narra: “Ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si: reinventa-se” (Passeggi, 2011, p. 147). Ainda que, nos meus cursos, o primeiro dia de aulas tenha sempre um amplo espaço dedicado à conversa sobre quem somos, percebi que era insuficiente, por variados motivos. A ausência de alguns estudantes na primeira aula. O constrangimento de falar diante de toda a turma sobre aspectos que não parecem relacionados com profissão e estudo. A dúvida sobre o real interesse da docente em saber de outras dimensões da sua vida, etc. O problema é que, muitas vezes, identifiquei semanas ou meses após o início das aulas características e aspectos da vida dos alunos que gostaria de ter conhecido desde o primeiro contato. Conhecimento que teria feito diferença na minha abordagem.
Perfil
A construção de uma narrativa biográfica é um movimento de acessar e permitir o acesso ao nosso mundo interior, o que geralmente funciona melhor em diálogos intimistas. Assim, uma das minhas primeiras iniciativas foi criar a atividade “elaboração de perfil” no primeiro dia de aula, a ser feita em duplas. Além da tradicional rodada de apresentação oral da turma, da professora, apresentação e debate do plano de ensino, reservava o espaço final do encontro para a atividade. José Carlos Fernandes (2022) situa o perfil entre os gêneros do “jornalismo de personagem”, como os depoimentos, retratos e matérias norteadas por indivíduos. O perfil é um formato textual jornalístico de caráter biográfico, comumente centrado em uma história de vida humana.
Gênero nobre do Jornalismo Literário, o perfil é um tipo de texto biográfico sobre uma - uma única - pessoa viva, famosa ou não. Texto biográfico não significa exatamente biografia, que é outro gênero. Nem tudo o que é biográfico é biografia, aliás. A biografia é uma composição detalhada de vários “textos” biográficos (facetas, episódios, convivas, pertences, legados, o feito, o não feito, etc.).
Diferentemente das biografias de mortos, nas quais os autores têm de enfrentar os pormenores da história do personagem - às vezes tendo de contemplar até as suas ances- tralidades e ocorrências póstumas -, o autor do perfil de um indivíduo vivo se concentra apenas em alguns aspectos. A similaridade entre biografia e perfil reside no fato de que, em ambos, tudo gira em torno do personagem central. (Vilas-Boas, 2014, p. 271).
A atividade nunca era pontuada. Ao final do encontro, as produções eram lidas em sala. Tratava-se, em certa medida, de um texto livre. Célestin Freinet era um defensor do texto livre, que, em sua concepção, deveria ser corrigido coletivamente e ter uma motivação efetiva, como um jornal escolar ou correspondência entre escolas. A liberdade, para ele, deveria estar presente desde a própria criação do texto: “Um texto livre deve ser realmente livre. Quer isto dizer que escrevemos quando temos alguma coisa a dizer, quando sentimos a necessidade de exprimir, escrevendo ou desenhando, aquilo que em nós se agita” (Freinet, 1976, p. 21). Em nosso caso, a liberdade estava presente no sentido de que não eram ditadas regras quanto ao formato, a fruição se dava de forma coletiva e havia um sentido claro para a produção: permitir que o grupo conhecesse melhor cada um dos seus membros. A atividade tinha ainda a vantagem de ser interativa, baseada no diálogo entre dois estudantes. Cada um tinha o seu tempo para entrevistar o colega e, em seguida, produzir um perfil sobre ele.
Como recurso pedagógico para favorecer a narrativa biográfica e interação, o perfil era apresentado sem grandes explicações, por ser um formato que lida simultaneamente com a narratividade e a história de vida, dois âmbitos com os quais todos temos experiência e proximidade.6 Um consenso entre quem estuda o desenvolvimento da linguagem ou quem se interessa por narrativas. A importância da narração é clara para educadores de crianças. Tanto que os gêneros narrativos são sempre os primeiros a serem trabalhados. Como se sabe, o desenvolvimento da linguagem na criança explode a partir dos 2 anos. É também nesse momento que começa a surgir o narrador: “PERRONI demonstra que o desenvolvimento do discurso narrativo na oralidade se dá a partir de interações dialógicas entre a díade (adulto/criança) dentro do jogo de contar, a partir dos 2 anos de idade da criança” (Cardoso, 2000, p. 64). Mais adiante, aos 4 anos, diz Cancionila Cardoso (2000, pp. 64-65), “se dá a constituição da criança enquanto narrador, sujeito da enunciação, a partir de um acordo com o adulto que envolve o que, para quem e quando narrar”.
Ao mesmo tempo, partia da premissa de que todos temos contato com relatos sobre histórias de vida, isto é, com vidas narradas como se fossem histórias, o que se dá em relação tanto às vidas alheias como às nossas próprias vidas. A “biografização da experiência” (Delory-Momberger, 2012) equivale a interpretar a própria experiência segundo uma lógica narrativa, o que nos leva a uma atitude mental e comportamental ancorada na ideia de que nossas vidas são momentos de uma história. Como já dizia Pierre Bourdieu (2006, p. 185), tratar as nossas vidas como uma história, como “um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção”, provavelmente, é uma ilusão, pois “o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão”. Ainda assim, insistimos em contar histórias.
A atividade almejava também estimular a empatia dos estudantes em relação aos colegas e aos futuros entrevistados. Na maioria das vezes, essa atividade foi realizada com estudantes de Jornalismo, que têm na entrevista a principal técnica profissional. O objetivo era então deslocá-los do confortável e poderoso lugar de entrevistador, situando-os também na posição de quem se expõe, de um entrevistado que narra a própria vida, que é, em seguida, recontada por outra pessoa. A atividade demonstrou ser muito rica, por variados motivos, inclusive os descritos por Edgar Morin (1973, p. 123): “a entrevista provoca por si mesma (porque é uma intrusão que pode parecer traumática ou agressiva ao entrevistado) um gigantesco sistema de defesa. Mas, ao mesmo tempo, a entrevista faz apelo a uma gigantesca necessidade de expressão”.
A atividade explorava várias dimensões relevantes. E, pelos comentários dos próprios estudantes, além de permitir conhecer melhor os colegas, despertava a reflexão sobre a riqueza das histórias de vida. Como são sempre surpreendentes, como é impactante ter a sua vida narrada, a importância de ser cuidadoso e generoso quando narramos histórias de vida. Ainda assim, percebi que a atividade nem sempre me permitia ter acesso à existencialidade dos estudantes, pois, em alguns momentos, a narrativa construída pelos estudantes sobre a vida dos colegas me dizia mais sobre o narrador do que sobre o perfilado:
O ponto de vista de quem escreve um perfil não é neutro: pode ir da simpatia à irreverência. . . . Os extremos oscilam entre a adulação e a maledicência. O autor de um perfil caminha sobre uma corda-bamba cujos extremos são a piedade e a crueldade. (Chang, 2010).
Diálogo
Um outro recurso a que recorri muitas vezes foi o diálogo. Ou seja, um movimento de voltar-se para o outro, em que busquei enxergar o indivíduo que existia em cada um dos meus alunos e permitir a eles enxergar o ser humano que sou. Para isso, reservava uma ou duas semanas no semestre para conversas individuais, por um tempo variável em função do tamanho da turma, sob o pretexto de comentar a produção textual realizada. Esse momento de contato individualizado, que normalmente só ocorre com orientandos, parecia-me fundamental para estabelecer uma ligação efetiva com os estudantes que também estivessem receptivos ao diálogo. Um modo de acessar outras camadas da vida interior, que não apareceriam em encontros coletivos, de poder ser sincera sem constranger, de demonstrar-me acessível e interessada no acompanhamento da sua trajetória estudantil. Martin Buber dizia que existem três tipos de diálogo. O diálogo técnico, motivado pelo interesse no entendimento de algo; o monólogo disfarçado de diálogo, no qual os interlocutores falam, na verdade, “cada um consigo mesmo”; e o diálogo autêntico, “onde cada um dos participantes tem de fato em mente o outro ou os outros na sua presença e no seu modo de ser e a eles se volta com a intenção de estabelecer entre eles e si próprio uma reciprocidade viva” (Buber, 1982, pp. 53-54).
O diálogo autêntico atinge um campo que Buber nomeava como “tomada de conhecimento íntimo”. Essa “forma de perceber um homem que vive diante dos nossos olhos” (Buber, 1982, p. 41), para ele, diferencia-se de outras, como a observação e a contemplação, pois nessas duas últimas ainda permanecemos distantes daquele que está diante de nós, encarando-o como objeto separado de nós mesmos e de nossas vidas. A “tomada de conhecimento íntimo” envolve ser afetado e afetar. Ela se manifesta quando algo ou alguém “diz algo a mim, transmite algo a mim, fala algo que se introduz dentro da minha própria vida” (Buber, 1982, p. 42). Ele não ignorava a crítica a uma proposta como essa, que parece inexequível para muitos. E a refutava:
Constitui um erro grotesco a noção do homem moderno que o voltar-se-para-o-outro seja um sentimentalismo que não está de acordo com a densidade compacta da vida atual e sua afirmação que o voltar-se-para-o-outro seja impraticável no tumulto desta vida é apenas a confissão mascarada da fraqueza de sua própria iniciativa diante da situação da época; ele consente que esta situação lhe ordene o que é possível ou permissível, em vez de, como parceiro sereno, estipular com ele - como é possível estipular com qualquer época - qual o espaço e qual a forma que ela deve conceder à existência de criatura. (Buber, 1982, p. 57).
Na sala de aula, diante de turmas numerosas, costumamos considerar impraticáveis as opções que nos permitem diálogos individualizados. Entretanto, quando as turmas não são tão grandes, nada nos impede de tentar. São muitas as barreiras entre professores e estudantes, criadas e realimentadas ao longo da nossa escolarização. Aprendemos todos que os professores têm poder, conhecimento, autoridade para punir e premiar. Como então superar estereótipos tão arraigados e fazer do trabalho docente um processo interativo e afetivo de acompanhamento da construção do conhecimento? Acredito que é indispensável se mover em direção aos estudantes, no sentido de conhecê-los em suas individualidades e permitir que nos conheçam, com nossos tropeços e acertos, como gente que somos. Com esses movimentos identificamos um mundo de características, experiências, sutilezas, que redirecionam nossas escolhas didáticas, exemplos, palavras, materiais. Assim como diminuem a barreira em relação aos professores e o medo das suas expectativas, de dirigir-lhes a palavra, de mostrar-se confuso, de apresentar-se como de fato é.
São muitos os fatores que podem gerar entraves nos processos pedagógicos e que não dizem respeito apenas às dimensões da afiliação institucional ou intelectual. Nos diálogos autênticos e individualizados, podemos abordar “dimensões de nosso ser no mundo”, para usar a expressão de Josso (2007). Assim, são um tanto imprevisíveis os caminhos por onde iremos. Questões de saúde mental; problemas na moradia; saudade de casa; necessidades educacionais específicas; baixa autoestima diante do repertório cultural dos colegas; dificuldades financeiras; má alimentação; desafios no ambiente de trabalho ou estágio; desentendimentos com colegas e professores. Em diálogos autênticos, questões como essas aparecem lado a lado com os desafios da leitura e escrita, adequação à norma-padrão, atendimento a prazos, regras, escolhas didáticas de outros docentes.
Longe de acreditar que podemos ou devemos ser terapeutas dos nossos alunos, defendo apenas que os processos educativos precisam envolver abertura, aproximação, afetação. Pois, se cada estudante é um sujeito particular, com experiências, desafios e potências que são só suas, é preciso que eu, como docente, indique a ele que enxergo e valorizo quem ele é. Por isso, insiste Martin Buber, o movimento básico para se viver dialogicamente é voltar-se-para-o-outro, aproximar-se, confiar e conquistar a confiança, estabelecer uma relação Tu e Tu. Mas é importante saber que nem sempre haverá a abertura para esse diálogo. “O diálogo não se impõe a ninguém. Responder não é um dever, mas é um poder” (Buber, 1982, p. 71). Receios, dúvidas, desinteresse, raiva, vergonha. São infinitos os motivos para a recusa ao diálogo. De qualquer modo, parece-me que vale a pena continuar tentando e que, em geral, o convite é bem-vindo. Quando, nesse diálogo, a abertura entre ambas as partes ocorre, atingimos o vínculo “inter-humano” ao qual Buber se referia, que vai muito além de apenas integrar o mesmo grupo, de ter experiências em comum. Após anos, ao reencontrar um desses estudantes, encontramos alguém que deseja saber das nossas vidas e partilhar o que agora sabe, para nos ajudar. Assim como tem a confiança de dividir conosco os percursos, descobertas, tombos e vitórias que experimentou.
Autobiografia
Em 2020, com a pandemia e a obrigatoriedade do ensino remoto, precisei repensar as atividades dos meus componentes curriculares. Em vários momentos, continuei recorrendo ao diálogo individualizado, agora por videoconferência. Por vezes, consegui dialogar com todos os estudantes de uma turma. Por vezes, os diálogos se concentraram em torno de estudantes que escolhi acompanhar mais de perto, por conta de uma necessidade educacional específica, deficiência, dificuldade de convívio com os colegas. Diante da necessidade de conhecer os estudantes, cujos rostos muitas vezes nem sequer vi, pouco a pouco fui introduzindo um novo recurso, um formato biográfico até então praticado esporadicamente: a autobiografia. Sempre como um texto livre, em sua dimensão, linguagem e tópicos abordados.
Biografar é sempre um exercício complexo, para quem biografa e quem é biografado. Segundo François Dosse, a biografia é um gênero impuro, híbrido, situado no meio do caminho entre literatura, arte, ciência, história, jornalismo. Busca lidar com fatos reais e ao mesmo tempo não pode abandonar a fabulação:
Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vivido real passado, segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e talento criador. (Dosse, 2015, p. 55).
O recurso à imaginação seria inevitável, segundo ele, pois “não se pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real” (Dosse, 2015, p. 55). A imaginação completa as lacunas, cria sentidos, transforma uma vida em história. Para quem supõe que são amplas as distinções entre biografia e autobiografia, Dosse (2015, p. 6) afirma: “Entende-se hoje que a projeção do biógrafo em sua escrita é tamanha que as fronteiras se tornam indistintas entre biografia e autobiografia, como se tornam também entre fato e ficção a partir do momento em que proliferam as possibilidades”. Por outro lado, esse hibridismo não equivale a considerar a autobiografia uma mentira ou ilusão:
O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção. . . . não brinco de me inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel à minha verdade . . . . Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade. (Lejeune, 2008, p. 104).
Na autobiografia, quem narra a própria vida usa como matéria a memória. Memória que é uma ação, no presente - guiada pelos interesses, pertencimentos e desejos do presente -, de representação de experiências do passado. Como diversos autores já pontuaram (Meihy, 2005; Pollak, 1992; Sarlo, 2007), a memória é seletiva, imaginativa, reposiciona personagens e acontecimentos em função de motivações nem sempre conscientes. O esquecimento é parte da memória, seja porque é impossível lembrar de tudo, seja porque nossas capacidades se alteraram com o envelhecimento ou adoecimento, seja porque precisamos esquecer para ter saúde mental (Candau, 2012). A memória é ainda indissociável da identidade (Candau, 2020), o que a torna viva, pois, se estamos sempre em negociação com os nossos pertencimentos identitários, múltiplos e fragmentados, estaremos também sempre revisitando e representando as experiências do passado de maneiras diferentes.
“Seria a mesma coisa falar de sua vida ou escrevê-la? De modo algum” (Lejeune, 2002, p. 23). A pergunta e resposta são de Philippe Lejeune, durante uma entrevista. Após anos trabalhando com perfis baseados em entrevistas e diálogos individuais com os estudantes, talvez possa fazer algumas afirmações. Com os perfis, aprendi sobre fatos marcantes e características perceptíveis da personalidade dos estudantes, enquanto os diálogos me permitiam identificar aspectos que afetavam a vida desses jovens naquele momento. Já as autobiografias trouxeram até mim outras dimensões da existencialidade desses jovens, antes não acessadas. Talvez porque, íntimas demais, precisassem da solidão e intimidade que a escrita proporciona. Foi somente nas autobiografias que encontrei com clareza a abordagem de temas como: experiências de violência física e psicológica (como abusos sexuais e assédio moral); deficiências não perceptíveis; convívio com o luto, seja pela perda remota ou recente de familiares ou amigos próximos; histórico de tratamento de doenças mentais (especialmente ansiedade e depressão); transgeneridade, etc. Claro, não existem padrões e alguns textos autobiográficos podem ser bastante lacônicos, o que também nos traz muitos significados, especialmente sobre as relações entre docentes e discentes.
Nos últimos anos, tive acesso a centenas de textos autobiográficos produzidos por estudantes, com dimensões variadas e abordando diferentes aspectos das suas vidas. Irei descrever aqui algumas dessas dimensões dialogando com o conteúdo de seis autobiografias escritas por estudantes que participaram de uma pesquisa mais ampla sobre a afiliação à vida universitária. Para a produção dos dados, a pesquisa selecionou seis estudantes de graduação do segundo período de uma universidade pública do interior de Minas Gerais. Quando produziram esses textos, quatro deles tinham entre 19 e 20 anos de idade. Os outros dois tinham 22 e 25 anos. Os nomes serão omitidos, para garantir o anonimato.
Primeiro, foram reunidos dados sobre os 43 estudantes matriculados em componentes curriculares obrigatórios ofertados pela pesquisadora responsável. A busca foi garantir diversidade nesse grupo, isto é, a presença de participantes representativos de características frequentes e relevantes entre os universitários. A segunda medida foi classificar esses dados em função do local de origem: região dos Inconfidentes; outras cidades do interior mineiro; capital mineira; outros estados; outro país. Em seguida, levando em conta informações obtidas nos históricos escolares ou pelo convívio, buscou-se identificar os estudantes pretos, pardos e brancos; homens e mulheres; com coeficiente de rendimento alto ou médio; de classe média e origem popular. E, assim, chegou-se a uma primeira lista com seis estudantes a serem convidados para participar da pesquisa e nomes dos que poderiam lhes substituir, em caso de recusa.
Os selecionados foram convidados por e-mail para uma conversa individual, quando foram apresentados à pesquisa e ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos aceitaram a proposta e foram depois entrevistados individualmente, seguindo um roteiro elaborado previamente. As entrevistas, que duraram em média 1h30, foram gravadas e transcritas. Os estudantes foram também consultados a respeito da disponibilização dos textos autobiográficos para o corpus da pesquisa. Todos concordaram e assinaram o TCLE.
A análise desses textos tomará como orientação metodológica o conceito de “dimensões do ser no mundo”, elaborado por Marie-Christine Josso (2007). Em nossa análise, recorreremos especialmente às dimensões da cognição, imaginação, afetividade, emoções e ação, que serão definidas nas próximas páginas.
Existir é ser na vida, ser em ligação, em relação com... vem daí o conceito das dimensões de nosso ser-no-mundo.
A construção desse conceito mostrou-se necessária quando organizamos, em maio de 2000, em Crêt-Bérard (Vaud, Suíça), um simpósio sobre o sensível na formação a partir de nossas “histórias de vida”. Efetivamente, era-me impossível avançar na concepção desse encon- tro sem me questionar sobre o que as histórias trabalhadas até então (já várias centenas em 20 anos) nos ensinavam sobre o conjunto das dimensões articuladas ao sensível (ver esquema a seguir).
Eis o esquema que representa o estado atual da pesquisa:
→ Ser de sensibilidades
→ Ser de ação
→ Ser de emoções
→ Ser de carne
e
→ Ser de atenção consciente
→ Ser de imaginação
→ Ser de afetividade
→ Ser de cognição. (Josso, 2007, pp. 424-425).
Sobre o trabalho com autobiografias, é preciso lembrar que nem todos os estudantes estarão dispostos a escrever sobre si mesmos. Entre os que escrevem, alguns relatam como é difícil executar a tarefa. Podemos inferir os variados motivos para a opção de não realizar a atividade, como desconfiança, insegurança, esquecimento, estratégia (uma vez que a atividade não é pontuada). Uma das seis autobiografias indica que os estudantes podem até duvidar do real interesse do docente em conhecê-los e ler os seus textos: “às vezes sinto que os professores não ligam para essas coisas ‘frívolas’, então sempre me desanimo em fazer algo que não vai ser lido. Mas percebi na aula da segunda que você não aparenta ser desse tipo” (Estudante B). Em alguns casos, o estudante pode decidir escrever a autobiografia após meses de aula, somente quando passou a confiar no professor. Portanto convencê-los a participar da atividade, em alguns casos, é uma conquista.
O modo como será feito esse mergulho nas experiências do passado, nos variados pertencimentos, de modo a construir uma narrativa de si, é sempre variável. Como é de se imaginar, uma forma recorrente de construção da narrativa é tomar a profissão como fio condutor: motivações para a escolha, impressões do curso e planos para o futuro. As motivações começam muitas vezes na infância. São citados interesses, brincadeiras, habilidades que já prenunciavam a relação com a profissão. Cria-se uma cadeia explicativa. O “ser de cognição”, segundo o termo proposto por Josso (2007), é convocado com frequência, pelas referências a práticas de linguagem, do pensar disciplinado, de expressão.
O Ser de cognição é, bem entendido, totalmente solicitado num trabalho que vise analisar, compreender e interpretar os processos de formação e de conhecimento que fazem parte da vida contada. Ele é, por assim dizer, convocado a criar laços onde ainda não existiam, a desatar os nós de acontecimentos bem “atados” pelas interpretações feitas há mais ou menos tempo, a procurar fios condutores. (Josso, 2007, p. 429).
Mas, no contexto de um curso de Jornalismo, isso não está desassociado do “ser de imaginação”, do mesmo modo que Josso (2007, p. 429) identificou em suas pesquisas: “Numerosas narrações abordam a importância das obras artísticas (música, letras, artes plásticas, artes decorativas, dança, etc.), essas realidades imaginárias e, no entanto, bem concretas, como alimento de vida interior”. Assim, não é raro que compositores, escritores, poetas e jornalistas sejam citados nesses textos como aliados na definição do “Quem sou eu”.
Afetividades e emoções são duas dimensões relevantes, seja quando aparecem em destaque ou até dominam os textos, seja quando quase não aparecem. Os estudantes do ensino superior, pessoas jovens, vivem uma fase de transição, com muitas indefinições e experimentações a respeito de quem são. Quando ingressam na universidade, em geral, ainda estão abaixo dos 20 anos, sendo 19 anos uma idade comum. Não é raro também encontrar alguns com pouco mais do que isso ou menos, 18 e até 17 anos. Até o final do ensino médio, em geral são tutelados, monitorados, há controle sobre o ir e vir, o que irão cursar e, portanto, com que pessoas e grupos irão se relacionar. Com o ingresso no ensino superior, especialmente o público, tudo muda radicalmente. Agora é possível escolher matérias e docentes; conviver com pessoas das mais diversas origens; engajar-se em distintos grupos e projetos; ter acesso a debates, pensamentos e conceitos inteiramente novos; participar de formas de interação social cuja existência muitos nem suspeitavam; iniciar o contato com o mundo do trabalho ou assumir novos papéis como trabalhador. Posturas, valores, aparência, tudo é suscetível de análise e reconsideração. Convocados a deixar para trás tudo o que os aproximava da infância, é comum observar transformações: a adoção de novos hábitos e comportamentos, posturas políticas, símbolos estéticos que os conectam com os novos grupos de pertencimento e também um afastamento do contexto familiar. Uma fase, portanto, intensa, que favorece altos e baixos, inseguranças, abalos emocionais e até o sofrimento psíquico.
A afetividade, diz Josso (2007, p. 428), “nos faz entrar no universo dos laços construídos, mantidos ou rompidos”, enquanto a dimensão das emoções nos indica como somos atravessados e modificados pelos afetos, que podem desaguar em irritação, ira, tristeza, frustração, prazer, alegria, encantamento, desapontamento. “Quem é que não constatou, aliás, o caráter às vezes ‘contagioso’ das emoções que acarreta reações simétricas, origem de numerosas dificuldades relacionais?” (Josso, 2007, p. 428). É nesse sentido que familiares, amigos, namorados, companheiros e colegas podem aparecer ou não nessas narrativas. A distância entre o mundo social das famílias e o contexto universitário pode ser tão grande, na perspectiva do estudante, que ele nem sequer cita os familiares. Por vezes, apenas de passagem, quando aborda de onde é, onde vive. Em muitos casos, a universidade e oportunidades profissionais que ela anuncia é, inclusive, uma forma de ir além dos contextos até então conhecidos. A ausência de referência aos afetos pode ainda traduzir dores profundas, como o distanciamento precoce de genitores: “Tenho . . . uma longa história de ausências doloridas” (Estudante F). Por vezes, os estudantes citam um amigo, um parente específico como alguém definidor e inspirador em suas vidas, que contribuiu para sua formação. Existem casos ainda em que familiares e o sentido da vida familiar dominam a narrativa: “cresci numa casa cheia, não só de pessoas, mas cheia de amor, amizade, diálogo, risadas, momentos, carinho, conversas” (Estudante D). Portanto a definição do eu, para esse jovem, passa inevitavelmente pelos afetos e emoções relacionados a ele. Considerando que a vida universitária, em muitos casos, obriga-os a viver longe das famílias, tamanha referência pode indicar saudade, tristeza e estranhamento diante da nova vida. Um processo que pode ser transitório ou acompanhar o estudante ao longo de todo o curso.7
Iniciar o ensino superior também é, em certa medida, uma iniciação à vida adulta. E quando, para estudar, é necessário deslocar-se, mover-se, afastar-se de uns, aproximar-se de outros, transformando-se nesse deslocamento, a dimensão do “ser de ação” (Josso, 2007, p. 430) frequentemente emerge: “O Ser de ação corporal combina, mobiliza, põe em ação todas as outras dimensões do ser, a fim de se completar em seu movimento, em seu deslocamento, em sua transformação desejada”.
Pensei em diversas alternativas de poder sair de casa, mas continuar fazendo o que eu queria e com bolsa. Acabei caindo de paraquedas em XXXXX, e me surpreendi que era essa aventura e impulso que eu precisava para aprender a voar e correr atrás dos meus sonhos. (Estudante B).
O deslocamento é parte central da experiência desses jovens. E do amadurecer, após ter vivido, sobrevivido e aprendido com o perigo que é experimentar o novo.
Larrosa (2002) e Martin Jay (2009) lembram a associação entre experiência e perigo, na medida em que “provar” (expereri) contém a mesma raiz (per) de “perigo” (periculum). Mas, foi a partir da reflexão sobre os termos Erlebnis e Erfahrung, equivalentes de experiência em alemão, que começamos a dar uma atenção especial à ressignificação da experiência e a melhor problematizá-la em nossos estudos.
Erlebnis traduz-se, geralmente, por ‘experiência vivida’ ou ‘vivência’, entendida como uma experiência mais imediata, pré-reflexiva e pessoal; Erfahrung associa-se a impressões sensoriais e ao entendimento cognitivo, que integra a experiência num todo narrativo e num processo de aprendizagem. A palavra Erfahrung compõe-se de Farht (viagem) e pode ser associada a Gefahr (perigo). Nesse sentido, ela remete a uma temporalidade longa e sugere a ideia de aventura. Com base nessas duas noções, a experiência significa ter vivido os riscos do perigo, ter a eles sobrevivido e aprendido algo no encontro com o perigo: ex, em experientia, significa “saída de”. (Passeggi, 2011, p. 148).
Em textos autobiográficos produzidos por estudantes, não teremos acesso às suas vidas e experiências, mas às narrativas construídas por eles que traduzem sentidos atribuídos às experiências avaliadas como “formadoras e fundadoras” (Josso, 2007). Entre essas aventuras transformadoras, a experiência universitária certamente é, na mesma medida, relevante e desafiadora:
Virar gente grande sempre foi um sonho (independência é mesmo um encanto, e voz, que sempre tive para ser ouvidX, só ganharia esse espaço no decorrer do ganhar dos anos), eu só esquecia que, mal protagonista da minha vida, protagonista da vida representada em novela era ainda mais difícil de pôr em prática. (Estudante C).
Considerações finais
Se entendemos a docência como caminhar ao lado, estar presente, acompanhar um trecho do percurso, fica evidente a relevância de entender quem são os nossos companheiros de viagem. Neste texto, expus três recursos pedagógicos - perfis, diálogos autênticos e autobiografias - que podem favorecer a interação entre docentes e discentes. Se, inevitavelmente, em uma sala de aula, o docente ocupa um espaço central, o esforço precisa ser o de favorecer a compreensão de quem são os discentes. Os docentes se expressam de diferentes modos: em seus gestos, roupas, escolhas temáticas, bibliográficas, tom de voz. Mas, entre as dezenas de discentes que povoam as nossas salas, de alguns, nem sempre conseguimos identificar mais do que o nome, o rosto e algumas informações protocolares. E justamente esses podem ser os que mais se beneficiariam de ajustes personalizados.
Para o docente, ter acesso a essas narrativas pode significar identificar dimensões de grande impacto na existência desses jovens. Por vezes, ciente dessas dimensões, é possível adotar medidas, a tempo, que favoreçam a integração, confiança em si mesmo e aprendizado. A flexibilização de um prazo para um estudante com uma doença mental. A adoção de medidas para garantir que um estudante com baixa audição possa acompanhar as aulas. Uma atividade em grupo para integrar um estudante solitário. A indicação de uma vaga de estágio para quem vive refém da dificuldade econômica. Um abraço em quem chora com saudade de casa. O cuidado para evitar um tema muito sensível. Um exemplo dado na aula que valoriza o local de origem de um estudante e seu conhecimento a respeito dele. Um exercício que acolhe interesses explícitos e projetos de vida. A atenção constante com a linguagem quando nos dirigimos a um(a) estudante trans. Ao mesmo tempo, para o estudante, ter a oportunidade de narrar suas experiências em um espaço educativo como a universidade é a oportunidade de refletir sobre o significado dessas experiências em sua formação. E de, a cada narrativa, ressignificá-las, dando a elas um novo significado, entendendo-as sob uma nova perspectiva, em diálogo com o seu projeto de futuro, sempre em reconstrução.














