Introdução
A relação entre avós e netos, no que tange à duração e articulação no tempo, é uma experiência contemporânea. Até pouco tempo, a expectativa média de vida não permitia que muitos avós vissem os seus netos nascer e crescer. No início do século XX, tal índice era de apenas 33,7 anos (Freitas, 2004), o que limitava consideravelmente o convívio entre três gerações. O mesmo acontecia nos Estados Unidos. Naquela mesma época, apenas 4% dos norte-americanos com idade superior a 50 anos tinham a chance de ter o pai ou a mãe vivos. Hoje, esse percentual subiu para 25%, criando um número expressivo de famílias multigeracionais (Hooyman; Kiyak, 2001). Essa realidade também está ganhando corpo no cenário brasileiro. Em apenas cem anos, a nossa expectativa de vida dobrou, passando, segundo dados do último censo, para 73,4 anos (IBGE, 2010). Na Europa, esse quadro não é diferente. Dados da pesquisa SHARE (Survey of Health Ageing and Retirement) mostram que, dentre os países pesquisados, a maior parte das pessoas com idade entre 50 e 59 anos tem ao menos um dos pais vivos, e que entre 40% e 50% dos idosos com mais de 80 anos fazem parte de famílias com quatro gerações coexistindo (Saraceno, 2007).
A maior longevidade tem modificado de forma importante as configurações familiares e os laços entre as gerações. Hoje, os avós não apenas têm a possibilidade de ver seus netos nascerem e crescerem, mas também tornarem-se adultos e, muitas vezes, pais. Ao longo desse período estendido de coexistência, os avós podem assumir diferentes significados na vida dos netos, mudando o tipo de interação estabelecida, assim como a própria intensidade do contato, quando estes são crianças, adolescentes ou adultos. A fase da avosidade dura o tempo de todo um ciclo familiar, sendo redesenhada durante esses diferentes momentos e constelações.
Todavia, é na infância que os laços entre essas duas gerações tendem a ser mais intensos, período em que os avós cuidam com mais frequência dos netos, passando juntos os finais de semana ou parte das férias escolares. Além disso, muitos avós também oferecem ajuda no cuidado das crianças, ocupando um papel indispensável nas redes de suporte familiar (Ramos, 2011). Dados da pesquisa Idosos no Brasil, realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC/SP, apontam que 50% das mulheres entrevistadas cuidavam de seus netos regularmente e 20% afirmavam inclusive criá-los (Alves, 2007).
A maior expectativa de vida, a presença mais duradoura dos avós e bisavós no convívio familiar, a coexistência de múltiplas gerações e os novos papéis assumidos pelos idosos na família e na sociedade fizeram com que o tema do envelhecimento entrasse na agenda de diferentes campos: como na política, com a implementação de leis assistenciais; na economia, com a descoberta do idoso consumidor e de uma série de produtos destinados à chamada terceira idade; na saúde, com a busca por melhor qualidade de vida na velhice; e na educação, com o advento da Gerontologia Educacional e dos novos processos de formação direcionados aos que trabalham com idosos, para o público mais velho ou para a formação da população em geral sobre o processo de envelhecimento (Peterson, 1976). E é justamente a partir de reflexões articuladas a esse último ponto que surge a proposta deste artigo. Partindo do pressuposto de que a literatura é uma pedagogia cultural (Giroux; McLaren, 1995), ou seja, um espaço de (re)produção de conhecimentos, saberes e verdades, pergunto-me: que representações de velhice e avosidade têm sido (re)produzidas nos livros de literatura direcionados às crianças? Em quais contextos os avós aparecem? Como o gênero se articula à identidade de geração nessas representações? O que esses livros têm ensinado a meninos e meninas?
A literatura infantil, assim como a educação, não está dissociada das preocupações e dos acontecimentos do seu tempo (Silveira, 2003), fazendo emergir uma quantidade expressiva de livros que abordem temáticas contemporâneas, tais como a velhice e o convívio entre gerações. Um exemplo que ilustra esse fato é o aparecimento recente no mercado editorial de livros destinados a (1) crianças que têm avós com Alzheimer, como Minha avó tem Alzheimer (2006) e Vovó tem Alzha... o quê? (2007), (2) crianças que têm avós com Doença de Parkinson, como em Vovô agora é cavaleiro (2009), ou (3) crianças cujos avós sofreram acidente vascular cerebral, como em Vovô teve um AVC (2009).
O primeiro faz parte da coleção Igualdade na Diferença, que já no catálogo informa ao leitor que trata dos seguintes temas: "amor, doenças, família, pessoas com necessidades especiais, sociedade" (Scipione, 2013). Na sinopse do livro, a informação: "A avó de Paula sofre do Mal de Alzheimer, doença que afeta 80% dos idosos. Mas o que é essa doença? (...) Uma história sensível, que fala da importância da família, do respeito, da compreensão e da solidariedade" (Scipione, 2013). Tal descrição mostra, já na primeira linha, uma preocupação das autoras em abordar um tema da atualidade: com a maior longevidade, muitos idosos têm sido acometidos por esta doença e agora a família, incluindo as crianças, precisam aprender a conviver com a diferença e os desdobramentos que ela acarreta. Na contracapa do livro está escrito "A avó de Paula não é como a maioria das outras avós, pois está doente" (Mueller, 2006, contracapa).
Já o segundo livro traz, como elenco de temas abordados na obra, "(...) a amizade, o amor, a convivência com idosos, o Mal de Alzheimer, o respeito e a tolerância" (FTD, 2013), o que também é referido de forma similar no terceiro (Scipione, 2013) e no quarto livro (Artmed, 2013). Nas quatro obras, podemos observar, além de uma adequação aos temas da atualidade, uma intenção pedagógica de ajudar as crianças a compreenderem o que acontece com seus avós e a conviverem melhor com a diferença por meio de ações que evidenciem o respeito e a tolerância. Nas sinopses de Vovô teve um AVC (2009) e O avô de Margareth (1990), podemos observar claramente essa intencionalidade:
Vovô teve um AVC é um livro para as famílias com filhos pequenos, oferece informações adequadas e aborda os variados sentimentos das crianças, ajudando-as a manter os vínculos com os mais velhos. Ao final do livro, há uma nota explicativa que orienta os pais a lidarem com a situação (Artmed, 2013, Vovô teve um AVC, catálogo).
O velho, que no Brasil costuma ser um peso para as famílias, é aqui o herói de uma história rica em humanismo. (...) Uma obra definitiva, que precisa estar nas mãos dos jovens, para que eles possam compreender melhor o irreversível momento da velhice (Dias, 1990, (O avô de Margareth), orelha do livro).
Esse intuito de ensinar, de passar uma aprendizagem significativa para o leitor, é bastante recorrente nos livros infantis (Kaercher; Dalla Zen, 2009). Todavia, mesmo quando o livro não tem essa intencionalidade explícita, ainda assim ele se faz educativo e didático, pois produz saberes e verdades que vinculam seus personagens a determinadas formas de ser, de se relacionar e de estar no mundo. Como nos lembram Giroux e McLaren (1995), a pedagogia não diz respeito apenas aos modos e às práticas educacionais escolares, estando presente em qualquer lugar em que o conhecimento seja produzido em qualquer lugar em que exista a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas ao lugar-comum" (Giroux; McLaren, 1995, p. 144). Nesse sentido, o livro infantil possui um estatuto pedagógico (Fischer, 1997) que, ao colocar em circulação determinados discursos, amplia o efeito dos mesmos e, ao repeti-los constantemente, naturaliza-os como desejáveis e verdadeiros. Mas, que representações seriam essas?
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