Introdução
Neste trabalho, interessa-nos destacar a importância da natureza no bem-estar e na saúde infantil e compreender como as crianças percebem e constroem vínculos com os ambientes, seres e processos do mundo natural (Wells, 2000). Acreditamos ser essa a melhor maneira de alertar acerca dos prejuízos para as pessoas, especialmente para as crianças, da escassez de seres vivos não humanos nos contextos de vida urbanos.
A urbanização dos espaços de vida é uma realidade global: estima-se que, até 2050, duas, em cada três pessoas, viverão em cidades ou centros urbanos (UNFPA, 2017). O Brasil acompanha a mesma tendência, pois, atualmente, mais de 80% dos brasileiros vivem em áreas consideradas urbanas (IBGE, 2010). Decerto que as ruralidades e urbanidades não são realidades alheias, ao contrário, revelam que o campo e a cidade estão presentes um no outro (Santos, 2006; Jacinto; Mendes; Perehouskei, 2012). Desse modo, em maior ou menor grau, a natureza está cada vez mais distante das pessoas. As crianças passam a maior parte de seu dia em lugares emparedados e interagindo com dispositivos eletrônicos. Mesmo as que não vivem em centros urbanos densos e cimentados têm passado muito de seu tempo entretidas com fascinantes celulares e tablets, seus jogos, fotos e redes sociais. Ainda não temos a distância temporal necessária, nem os meios para avaliar o impacto dessa absorção por telas e por interações virtuais no desenvolvimento humano. Contudo, sabemos que o desenvolvimento infantil, compreendido como processo de dimensões biopsicossociais (Bronfenbrenner, 2005) é diretamente afetado pelas condições dos sistemas sócio-ecológicos nos quais se desenrola (Walker; Meyers, 2004), seja no campo ou na cidade. Nesse contexto de acelerada urbanização, a natureza perde espaço físico e importância no cotidiano das pessoas; as áreas naturais não são apenas abandonadas, mas substituídas pelas atividades de alto impacto sobre os ecossistemas e sua biodiversidade; os seres, processos e elementos da natureza são percebidos como matéria-prima morta para a produção industrial (Mies; Shiva, 1997; 1998) e transformados em recursos para atender às demandas dos mercados, sempre em expansão (Cosenza; Kassiadou; Sánchez, 2014; Loureiro, 2012a; 2012b).
Apesar de a urbanização ser um fenômeno global, os critérios de categorização de uma zona como rural ou como urbana não são uniformes entre os países (IBGE, 2017). No Brasil, muitas áreas, cuja paisagem é de dominância natural, são ditas urbanas quando há a presença de equipamentos urbanos, como escola e posto de saúde. Assim, temos um mosaico de ambientes naturais mais ou menos antropizados, o que significa que nem todas as pessoas dos contextos urbanos vivem em um ambiente totalmente isolado da natureza e emparedado. Entretanto, em grandes centros urbanos brasileiros e também nos municípios de médio porte, fatores como violência e falta de adultos disponíveis para o cuidado das crianças têm implicado em redução de seu espaço de movimentação ao ar livre e em significativo aumento da utilização de dispositivos eletrônicos. Por outro lado, a escola, lugar obrigatoriamente frequentado pelas crianças a partir dos quatro anos, oferece poucos espaços e tempos para as atividades em espaços abertos, em contato com a natureza. Essa é a questão que nos desafia: como intervir em um cenário onde o distanciamento da natureza expressa fortemente a perspectiva antropocêntrica ocidental?
Neste trabalho, apresentamos, inicialmente, os participantes, os contextos e os caminhos pelos quais, desde 2009, temos buscado compreender como a natureza é vivenciada por crianças que vivem em contextos indígenas e urbanos. A seguir, trazemos as referências conceituais espinosanas que nos auxiliam na compreensão da importância da natureza para o desenvolvimento e o bem-estar das crianças, argumentando em defesa da proximidade do mundo natural como direito humano. Em seguida, apresentamos dados de pesquisa-intervenção realizada com crianças de núcleos de educação escolar indígena que integram o Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Olivença (CEITO) (Ceito, 2013) e discutimos seus resultados, com apoio dos referenciais teóricos adotados e confrontados com estudos exploratórios realizados junto a grupos infantis da etnia Mura, do Amazonas e de Nova Iorque, nos EUA. Finalizamos trazendo considerações sobre o tema das vivências infantis na natureza e apontando possíveis direções para pesquisas futuras.
Participantes, Contextos e Caminhos da Pesquisa
Nosso contato com os Tupinambá se deu no contexto do projeto Tendências de políticas de transição em comunidades rurais, indígenas e de fronteiras, Organização dos Estados Americanos (OEA), Ministério da Educação e Cultura (MEC) e Coordenação de Educação Infantil (COEDI), cujo objetivo era compreender como as crianças indígenas vivenciam um cotidiano marcado pela transição entre espaços comunitários e espaços formais de educação infantil. Envolvendo Brasil, Colômbia, Chile, Peru e Venezuela, o projeto visou buscar conhecimentos e saberes teóricos e práticos que permitissem apoiar os países membros da OEA em relação à elaboração e à implementação de políticas que qualificassem o cotidiano de crianças e de seus professores, em consonância com os modos de vida de suas comunidades (Tiriba, 2010). Na sequência, outros projetos de pesquisa se desenvolveram, sempre com vistas a conhecer as relações entre crianças e natureza. A partir de 2013, tem início o projeto de pesquisa Infâncias Tupinambá2, estudo de caso sobre interações entre crianças e ambientes naturais em comunidades indígenas (Tiriba; Profice, 2012; 2018). No mesmo ano, inicia-se, na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA), o projeto de ensino Educação Ambiental para Escolas em Comunidades Indígenas e Tradicionais, em atividade até hoje. Ele propõe práticas educativas desenvolvidas por bolsistas de ensino e por educadores, no núcleo Katuana, do CEITO3. E, finalmente, em 2017, tem início o projeto de pesquisa Infâncias em comunidades tradicionais e em áreas de proteção ambiental no Brasil e em Cuba - lições para educação ambiental, com o objetivo de identificar, reunir e sistematizar o conhecimento produzido nas distintas áreas do conhecimento acerca das infâncias brasileiras e cubanas, especificamente, aquelas tradicionais ou vivenciadas por comunidades que vivem em áreas de proteção ambiental, com foco na interação das crianças com os ambientes naturais e seus seres. Esse projeto articula o GEPISA/UESC, a GiTaKa/UNIRIO, a Universidad de Pinar del Río/Cuba e a Associação de Educadores da América Latina e Caribe (AELAC).
Os Tupinambá de Olivença, habitantes do litoral sul da Bahia, nordeste do Brasil, estão entre os primeiros povos a entrar em contato com os europeus, no século XVI. Hoje, aproximadamente 4.300 indígenas vivem em 23 aldeias/comunidades, localizadas nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una. A partir de 2002, reconhecidos como etnia pelo governo federal, suas reivindicações passam a se concentrar em movimentos de demarcação/homologação de terras, como também de afirmação da identidade indígena e de luta por direitos de cidadania, entre eles, saúde e educação. Vale destacar que o território indígena Tupinambá de Olivença foi demarcado em 2009, entretanto, sua homologação pelo governo federal ainda se encontra pendente. O primeiro estudo exploratório (Tiriba, 2010) nos permitiu concluir que as atividades conduzidas pelos educadores nos espaços naturais externos à escola possibilitavam uma continuidade entre as tradições indígenas e as práticas pedagógicas. Ainda que algumas atividades se assemelhem àquelas da escola convencional não indígena, como, por exemplo, a cópia de exercícios do quadro negro para o caderno, parte considerável do tempo é passado ao ar livre, em atividades mais ou menos dirigidas pelos educadores. Como assinalamos, a partir desse contato inicial, organizamos uma pesquisa qualitativa e quantitativa, a ser descrita mais adiante, que envolveu dez núcleos de educação escolar indígena, todos vinculados ao CEITO (Santana; Cohn, 2018).
Por sua vez, o contato com as crianças Mura se deu graças a uma inserção episódica no projeto de extensão Barco Hospital Missionário4, entre 28 de agosto e 6 de setembro de 2015, realizado com crianças das aldeias de Santo Antonio, Moyray, Igapenus e Murutinga, situadas na região amazônica próxima de Manaus, estado do Amazonas. Os Mura são uma etnia indígena brasileira que habita o centro e o leste desse estado. Essa etnia teve participação ativa na história brasileira, remontando ao período da colônia, quando já era citada em documentos, nos quais ficava visível sua personalidade arredia e seu espírito de resistência frente ao domínio da civilização portuguesa. Em 1835, a participação dos Mura na Cabanagem5 tem o sentido de retomada de suas terras e da liberdade perdida. Conforme o último censo, sua população é de quase 13 mil indivíduos (IBGE, 2010). Atualmente, a única língua mura conhecida é a pirarrã, tendo sido extintas todas as outras variantes (Pequeno, 2006).
Por fim, as crianças norte-americanas participaram do estudo por ocasião de um estágio pós-doutoral no New York City College, sob a supervisão do professor William Crain. O grupo infantil era constituído por estudantes de uma escola católica privada no bairro Queens, em Nova Iorque, que cursavam período correspondente ao ensino fundamental brasileiro. A maior parte das crianças pertence a famílias de imigrantes com certa estabilidade econômica, o que lhes permite manter seus filhos estudando em uma escola particular. De modo geral, Nova Iorque é uma cidade altamente urbanizada, apesar da presença de muitas áreas verdes de uso público. Ainda assim, pode ser considerada como um centro urbano, no qual a maior parte das atividades infantis é realizada em conexão constante com dispositivos eletrônicos, em ambientes fechados (Profice, 2018).
O protocolo de pesquisa utilizado com os Tupinambá de Olivença envolveu a realização de sessões de desenhos temáticos, entrevistas e filmagens das atividades realizadas durante o ano letivo em 10 núcleos escolares, entre os anos de 2013 e 2016. Participaram 91 crianças, com idades entre 6 e 14 anos e seus respectivos professores. Cada escola foi visitada, no mínimo, duas vezes pela equipe de pesquisa, composta pelos pesquisadores, mestrandos, bolsistas de iniciação científica e de ensino, geralmente, acompanhada por uma das mulheres indígenas da comunidade. Em um primeiro momento, oferecemos às crianças uma folha branca quadrada (21 cm) e uma caixa com 12 lápis de diferentes cores e pedimos a elas que desenhassem a natureza, o mundo natural do seu entorno. Em seguida os participantes foram entrevistados, respondendo a perguntas acerca de seu próprio desenho, de seu sentimento pela natureza e de seu pertencimento indígena. Em um segundo momento, acompanhamos atividades conduzidas pelas educadoras indígenas ao ar livre e as entrevistamos a respeito de suas práticas pedagógicas, como também de suas próprias infâncias, em comparação àquelas das crianças com as quais trabalhavam.
Neste artigo, discutimos os dados referentes à biodiversidade, trazidos pelas crianças Tupinambá em seus desenhos, assim como as respostas dadas a uma das perguntas da entrevista individual, a saber: qual o seu sentimento pela natureza? Descrevemos também, de forma breve, nossas impressões acerca dos desenhos das crianças da etnia Mura, abordadas nas atividades do projeto Barco Hospital Missionário. Trazemos ainda, para efeito de comparação, os resultados obtidos em encontros com as crianças norte-americanas do Queens, em Nova Iorque, que realizaram as mesmas tarefas (desenho e entrevista) em 2016.
A descrição detalhada do método empregado na pesquisa com as crianças indígenas e norte-americanas, bem como uma exposição mais ampla dos dados coletados e a discussão de aspectos estatísticos e qualitativos estão acessíveis em publicações anteriores (Profice; Santos; Anjos, 2016; Tiriba; Profice, 2012; 2014; 2018; Tiriba, 2018; Profice, 2018). Neste trabalho, dedicamo-nos, principalmente, à reflexão teórica acerca do tema e de suas implicações sobre as práticas escolares. No que se refere ao retorno dado às escolas indígenas participantes, os resultados obtidos vão sendo processualmente apresentados e debatidos com as educadoras Tupinambá, por meio de encontros específicos de autoavaliação das práticas escolares em espaços ao ar livre, ou de atividades dos projetos de ensino e de pesquisa anteriormente mencionados. Na escola americana, foi apresentado, ao diretor, um relatório com os resultados do levantamento e sugestões de atividades de promoção da biofilia no espaço escolar e fora da escola.
Referências Conceituais e Diretrizes Nacionais
Para Spinoza (2009), os seres são modos de expressão da natureza que afetam e que são afetados; que vivem em estado de conexão com outros modos e que se potencializam nesse estado de conexão. Como em suas palavras,
[...] o corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto. [...] Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas maneiras. O corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente regenerado (Spinoza, 2009, p. 66).
A capacidade de perseverar na integridade de seu ser (conatus) está relacionada à capacidade de realizar bons encontros: "[...] nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruída, ou retirada a sua existência. E esforça-se assim, tanto quanto pode e está em si, por perseverar em seu ser" (Spinoza, 2009, p. 105).
Distintos em termos de potência, os seres existem interligados entre si, constituindo a teia que é a vida. Vida que se fortalece graças a sua capacidade de realizar encontros que a potencializam, ou que se enfraquece, quando realiza maus encontros.
Somente os bons encontros são geradores de potencia, de alegria! Os bons encontros são aqueles que aumentam nossa própria capacidade de afetar e ser afetado pelos demais seres com os quais interagimos, pois "[...] não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa" (Spinoza, 2009, p. 106).
Segundo o filósofo, na natureza, há uma ordem comum a que estamos submetidos e, segundo a qual, os corpos se encontram por meio de suas partes. Assim, participamos da natureza na medida em que existimos com nossos corpos e pensamos com nossa alma, que percebemos outro corpo quando ele nos afeta e que percebemos nosso corpo quando ele é afetado. Contudo, entre as pessoas, o poder de ser afetado não é constante e sofre variações conforme o momento de vida e o contexto dos encontros. As crianças, especialmente, dependem mais de causas externas do que os adultos, no que diz respeito ao seu poder de afecção. Elas, em seu devir, conhecem sem mapas. Vão traçando-os no percorrer do caminho, no qual os encontros que acontecem deixam nelas suas marcas (Deleuze, 1997; Profice; Pinheiro, 2009). Somos a própria natureza, participamos dos encontros e agenciamentos que se criam e se desfazem entre os seres, em função de seus aspectos próprios e das condições dos sistemas sócio-ecológicos em que se estabelecem.
Conforme Deleuze (1968), ao contrário do pensamento cartesiano regressivo e analítico, que pretende conhecer a causa a partir do efeito, a abordagem espinosana é reflexiva e compreensiva, procurando conhecer o efeito pelo conhecimento de sua causa. De acordo com Spinoza, (apud Deleuze, 1968, p. 243), "[...] mesmo em seus comandos a razão não demanda nada que seja contrário à natureza: ela demanda somente que cada um ame a si mesmo, procure o que lhe é útil e próprio e se esforce por conservar seu ser aumentando sua potência de agir". Escrevendo sobre a visão do filósofo do século XVII, Deleuze esclarece que
[...] o bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: por exemplo, um veneno que decompõe o sangue (Deleuze, 2002, p. 28).
Dizendo de outro modo, o bom encontro acontece quando entramos em contato com alguém ou com alguma coisa que aumenta a nossa potência, nos fortalece, nos alegra, nos potencializa; o mau encontro acontece quando a interação nos fragiliza, nos entristece e nos despotencializa.
Com base nessas ideias e na perspectiva de cumprir o que a lei define como direito das crianças - explicitado na Constituição Brasileira e, posteriormente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - entendemos as instituições escolares como espaços de produção de potência. Assim, obrigatoriamente, elas se pautariam em uma ética que seja "[...] necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão triste é sempre impotência" (Espinosa, 1983, p. 34).
É nesse sentido de busca pelo que alegra e potencializa que vimos interpretando o movimento das crianças em direção aos espaços onde podem brincar com a natureza. As pesquisas por nós realizadas (Tiriba, 2005; 2018; Rosa, 2014; Profice; Santos; Anjos, 2016) evidenciam o que é visível a olho nu, nas escolas, nas praças das cidades, em áreas urbanas, praianas, rurais a que as crianças têm acesso: sua atração pelo mundo natural e por seus processos, a busca pela terra, pelas águas, pela areia, pelas árvores, pelo vento, pelas marés...
Com base na filosofia espinosana, concebemos as crianças como seres da natureza e simultaneamente da cultura! Elas são a espécie que se renova sobre a Terra, seres cujo desenvolvimento se dá na interação com outros humanos (Vygotski, 1989), em estado de acoplamento estrutural (Maturana; Varela, 1995) com os ambientes naturais, entendidos como aqueles que são constituídos por todos os seres vivos, humanos e não-humanos, mas também por seus componentes e processos físicos como o ar, as montanhas e os fenômenos climáticos (Tiriba; Profice, 2014). Nessa linha de compromisso com o desenvolvimento pleno das crianças, possibilitado pelo exercício das potências de autoexpressão e autoexpansão, as escolas são concebidas como espaços de viver o que é bom, espaços que alegram e potencializam a existência.
Outro conceito que norteia nossas reflexões é o de biofilia, concebida como uma condição humana que faz as pessoas se sentirem afiliadas à natureza e que induz à busca de relação com os demais seres vivos e processos naturais (Wilson, 1984). A condição biofílica dos humanos, especialmente das crianças, estabelece-se como aspecto fundamental para seu pleno desenvolvimento e bem-estar e tem suas raízes no longo processo de evolução humana, em coevolução com os demais seres e sistemas vivos (Kellert, 1993). Contudo, o contexto sócio-histórico e a cultura podem promover ou inibir a biofilia: comunidades que vivem em interação direta e cotidiana com seres vivos e processos da natureza têm mais oportunidades de promoção da biofilia do que aquelas que se situam em contextos urbanos, onde os ambientes naturais são mais raros e distantes.
Ainda que controverso e objeto de muitas críticas, o conceito de biofilia tem sido evocado desde o seu surgimento (Wilson, 1984) como ideia explicativa para o efeito positivo da natureza e do verde sobre a recuperação de pacientes em contextos de saúde (Tidball, 2012; Ulrich, 1984) e sobre o bem-estar e o desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças (Kahn Jr., 1997; Kaplan; Kaplan, 1989; Kellert, 1993; Profice, 2016; Wells, 2000). Alvo de ataques tanto por parte dos culturalistas, que torcem o nariz para qualquer pré-disposição biológica das pessoas, como por parte dos biologicistas, que tendem a subestimar o papel dos contextos sócio-históricos e da cultura, conferindo primazia aos fatores genéticos, a biofilia busca superar essa armadilha dicotômica da compreensão do fenômeno e se coloca como integrada em um sistema sócio-ecológico, abrindo a discussão para um cenário de colaboração interdisciplinar e de consciliência (Wilson, 1999), termo que indica a possibilidade de uma ação conjunta de distintos ramos de conhecimento na compreensão de fenômenos complexos, como a biofilia e os sistemas sócio-ecológicos. Nessa direção de ampliação das interfaces entre os aspectos sociais e biológicos, Humberto Maturana considera que o amor
[...] é a emoção central na história evolutiva humana desde o início, e toda ela se dá como uma história em que a conservação de um modo de vida, no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto. Num sentido estrito, nós, seres humanos, nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor (Maturana, 2002, p. 25).
Maturana e Varela (1995) consideram que a nossa natureza natural altruísta foi o que permitiu um desenvolvimento social tão complexo e sofisticado entre os humanos. Conforme os autores, "impulsos altruístas, presentes desde o começo de nossa vida de seres sociais (centenas de milhões de anos atrás), são a condição biológica de possibilidade do fenômeno social: sem altruísmo não há fenômeno social" (Maturana; Varela, 1995, p. 23). Afastando-se daqueles que consideram a evolução da cultura como um processo de distanciamento da natureza, os biólogos chilenos nos dizem o contrário: nossa inclinação biológica diante das outras pessoas e comunidades segue em direção à cooperação e ao altruísmo; a destruição do outro e a aniquilação dos povos dos quais não fazemos parte são, na verdade, uma anomalia cultural que deve ser superada por meio da consciência crítica de que a segregação e a dominação, como padrão interativo, estão na contramão da vida. A colaboração entre os seres é o processo dominante. Isso não significa que, nas interações, não existam violência e morte. Elas existem, mas não como padrão e sim como evento circunstancial de regulação da vida. Destituir qualquer pessoa ou grupo de seu lugar de legítimo outro, no contexto dos sistemas sócio-ecológicos significa objetalizar o outro humano, do mesmo modo que fizemos com a natureza ao transformar seus seres em recursos naturais. Nessa direção, eles também nos alertam para o perigo de se objetalizar o que queremos conhecer, diferenciando-nos de nossa própria percepção, como se pudéssemos perceber e refletir esse objeto, que existiria independente de nossa percepção. Assim, ao percebermos a natureza, não podemos nos desvincular de nossa própria vivência para descrevê-la como ente do qual não somos parte, dado que somos natureza, nossos corpos e nossas mentes. Conforme afirma Deleuze (1968, p. 116), "[...] basta saber para saber que sabemos".
É por meio de bons encontros com a natureza, seus seres e seus processos que potencializamos a capacidade das pessoas, das crianças, de afetar e serem por eles afetados, o que significa que a biofilia age por meio de vivências significativas nos contextos sócio-ecológicos. Vygotski (2010) sustenta que a vivência se constitui como uma unidade de relação entre a criança e o ambiente e não como o fenômeno de interação entre dois elementos preexistentes e distintos. Como define o autor,
[...] a vivência de uma situação qualquer, a vivência de um componente qualquer do meio determina qual influência essa situação ou esse meio exercerá na criança. Dessa forma, não é esse ou aquele elemento tomado independentemente da criança, mas, sim, o elemento interpretado pela vivência da criança que pode determinar sua influência no decorrer de seu desenvolvimento futuro (Vygotski, 2010, p. 683-684).
A vivência se dá no encontro, na situação vivida e no modo de se afetar por ela. Portanto, partimos da ideia de que as vivências das crianças na natureza fortalecem seu vínculo com o mundo natural bem como fomentam o conhecimento local acerca dos ambientes, dos seres e dos processos naturais.
Quando as sociedades eliminam a natureza de seus espaços de vida, as crianças, privadas de vivências com os seres e os processos naturais, têm sua biofilia interrompida ou, no mínimo, fragilizada, acarretando prejuízos severos ao seu desenvolvimento, a sua saúde e ao seu bem-estar (Crain, 2014; Zhang; Goodale; Chen, 2014). Visto que o desenvolvimento é um processo biopsicossocial (Bronfenbrenner, 2005), as vivências das crianças se dão em um dado sistema sócio-ecológico, que pode fomentar a biofilia ou dificultar a sua realização. A dimensão microssistêmica dos contextos de desenvolvimento, na qual interagimos direta e cotidianamente com pessoas, seres naturais, objetos e paisagens, ganha especial relevância. Conforme Bronfenbrenner (2005, p. 147), "um microssistema é um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais vivenciadas pela pessoa em desenvolvimento em um dado contexto face a face com aspectos físicos e materiais particulares". Se, em contextos de vida como a vizinhança do entorno de sua casa e da escola, a natureza não se faz presente, a biofilia não se realiza/fortalece nas vivências cotidianas e significativas das crianças. Isso pode não apenas comprometer seu pleno desenvolvimento biopsicossocial, como gerar um sentimento de distância em relação à natureza que, por sua vez, torna as pessoas cada vez menos sensíveis à necessidade de protegê-la. Em síntese, acreditamos que a natureza aumenta a potência de afeição e de ação das crianças! Seus encontros com as plantas, os bichos, a água, a areia são vivências plenas de sentido que agem sobre seu desenvolvimento biopsicossocial e reforçam a sua biofilia, como reforçam sentimentos de apego e a necessidade de proteção do universo biótico e abiótico que integram.
Referindo-se a Humberto Maturana ao debate, em pesquisa realizada no contexto de uma comunidade rural do estado do Rio de Janeiro, sobre a relação de proximidade que as crianças estabelecem com tudo que é vivo, Mariana Rosa (2014), escreve que o biólogo chileno
[...] associa a ideia de ser vivo à qualidade de relações que um organismo é capaz de estabelecer. Isso quer dizer que quanto mais e melhor um indivíduo de uma espécie se relaciona com outros indivíduos de sua mesma espécie e de outras espécies (acoplamento estrutural), mais apoiada e sustentada está a sua própria potência de vida. Em sentido oposto, quanto mais isolado se encontra um indivíduo humano, ou um organismo de qualquer espécie, menos estável é o seu sistema de suporte à vida [...] (Rosa, 2014, p. 143).
Entendendo que a alegria que as crianças demonstram em espaços ao ar livre, em contato com elementos do ambiente natural, revela a sensação de plenitude biofílica, o sentido de nossa intervenção é o de defender a proximidade como direito humano, pois, na perspectiva espinosana que vimos defendendo, os humanos, como os demais seres, afetam e são afetados pelo universo circundante. Todos são dotados da potência de se manterem integrados a esse universo. Se o exercício dessa potência é o que assegura a possibilidade de perseverarem em sua integridade de ser, a conexão com a natureza é um direito das crianças (Tiriba; Profice, 2012; 2014; 2018). O movimento em direção a ela tem o sentido de assegurar que se cumpra a necessidade de perseverarem e manterem-se como seres que se constituem na/da substância única que é a vida; da mesma forma, como ensina Maturana, de manter-se mais apoiada e sustentada a sua potência de vida. Assim, o livre acesso ao mundo natural é um direito seu. A defesa desse direito se dá não apenas por respeito aos indivíduos humanos, mas porque a saúde do planeta depende da manutenção dessa conexão. Para tratá-la amorosamente, é preciso que tenham vivências amorosas com a natureza (Guimarães; Prado, 2014; Boff, 1999; Grün, 2003).
As crianças são definidas, pela Constituição Brasileira (Brasil, 1988), como sujeitos de direitos. Assim, do ponto de vista legal, é dever das escolas incorporar a seus projetos político-pedagógicos a escuta dos desejos infantis de conexão, assim como, oferecer espaços e tempos para a expressão da atração inata das crianças pelo universo natural. Essa atração, alimentada pelos educadores, em sua maioria mulheres, além de potencializar seu desenvolvimento, contribuiria para uma percepção de si como seres que são parte deste universo e, portanto, aumentaria a sua capacidade de agir em defesa dele.
O pleno acesso à natureza é um direto humano (Tiriba; Profice, 2014) afirmado em documentos oficiais da educação nacional, tal como a Política Nacional de Educação Ambiental (Brasil, 1999) e, mais recentemente, as Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2012a), as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Ambiental (Brasil, 2012b) e as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena (Brasil, 2012c).
Com base nessas referências legais, desde 2014, conduzimos dois projetos de ensino que buscam o estabelecimento de relações estreitas com os ambientes naturais como práticas de educação ambiental. O objetivo é destacar, valorizar e incentivar relações pedagógicas em proximidade com a natureza e auxiliar na integração das diretrizes educativas (educação escolar indígena, educação infantil e educação ambiental), de modo que os educadores possam fundamentar suas ações e aprimorá-las. Um dos projetos se desenvolve em área de proteção ambiental, na cidade do Rio de Janeiro; o outro em comunidades/aldeias do povo Tupinambá de Olivença. Neste trabalho, trazemos, especialmente, os resultados obtidos a partir de pesquisas no núcleo Katuana, vinculado ao CEITO.
Resultados
Natureza desenhada
As crianças Tupinambá desenharam 30 tipos vegetais (13,4% genéricos e 86,6% específicos) e 43 tipos animais (86,6% silvestres e 14% domésticos). No desenho de Clarice, podemos ver a biodiversidade em sua paisagem natural. Nele, temos peixes nadando no rio, passarinhos e urubus, tamanduá e saruê na floresta constituída por um coqueiro e por demais árvores frutíferas, como macieiras e laranjeiras (Figura 1).
As crianças de Nova Iorque desenharam 12 tipos vegetais (75% genéricos e 25% específicos) e 22 tipos animais (82% silvestres e 18% domésticos). A paisagem de Chase é segmentada em dois domínios divididos por um rio: um, natural, ensolarado e colorido e outro, urbano, nublado e pálido. As árvores são genéricas, sem sua espécie designada. Esta imagem nos traz com clareza uma perspectiva própria dos países industrializados e ocidentais, na qual natureza e humanos fazem parte de mundos distintos (Figura 2).
Os desenhos das crianças Mura não foram coletados sob as mesmas condições, inviabilizando uma comparação mais apurada entre eles, mas é importante dizer que nos surpreenderam as referências que fizeram, mesmo as menores crianças, de cinco e seis anos de idade, a um grande número de árvores frutíferas e a outras típicas do entorno das aldeias. Sammy trouxe escrito, na sua paisagem, o nome de duas espécies vegetais locais: a Carobera e a Tucumã (Figura 3).
Essa evidente variedade no conhecimento ecológico dos três grupos revela em que medida a natureza participa dos contextos sócio-ecológicos, das vivências e do desenvolvimento biopsicossocial de cada um. As crianças Tupinambá e Mura vivem em reservas indígenas com maior ou menor grau de antropização, situadas nos biomas de Mata Atlântica e Floresta Amazônica, respectivamente, ambos com alto índice de sociobiodiversidade. A natureza e seu conhecimento sobre ela são, em larga medida, compartilhados por todos os membros da comunidade, ainda que especialistas, como os pajés, sejam encarregados de aperfeiçoar os saberes locais e difundi-los pela tradição oral. As vivências na e com a natureza alimentam, cotidianamente, a biofilia e fortalecem o senso de pertencimento, tanto biológico, como cultural. Já as crianças de Nova Iorque - que vivem em um contexto urbano emparedado e altamente conectado a dispositivos eletrônicos e, portanto, têm contatos esporádicos, de lazer ou acadêmicos, com os ambientes, os seres e os processos do mundo natural - trouxeram uma paisagem com baixa variedade de animais, que eram, em sua maioria, domésticos, e com árvores genéricas: elas dizem "é uma árvore", mas não as reconhecem e não as nomeiam como indivíduos vegetais que têm características próprias.
Qual o seu sentimento pela natureza?
Distribuímos as respostas dadas, tanto pelas crianças Tupinambá, como pelas americanas, em cinco categorias e, após tratamento estatístico (qui-quadrado), não foi observada qualquer diferença significativa entre os dois grupos (p < .74), tão pouco foram encontradas diferenças entre gênero (p < .87) e idade (p < .15). A primeira categoria, com 73%, é composta por respostas que remetem a Bons Sentimentos em relação à natureza, tais como felicidade, alegria, beleza, bem, bom, maravilhosa, divertida, paz, calma, lugar bom e interessante. A segunda categoria, denominada Maus Sentimentos, agregou respostas com termos como medo, dor e perigo e obteve 1,4%. A terceira categoria, denominada Fonte de Recursos, organizou respostas que apontavam a natureza como importante para os humanos, animais e plantas e reuniu 2,8%. A quarta categoria foi nomeada Preocupação Ética e Ambiental, trazendo a ideia de cuidado, respeito e proteção e obteve 12,5% das respostas. Finalmente, a quinta categoria, denominada Outros, reuniu 9% das respostas que não se encaixavam em nenhuma das demais. Quando somamos as categorias Bons Sentimentos e Preocupação Ética e Ambiental, obtemos 85,5% de respostas, o que nos permite afirmar que há forte presença da biofilia entre os participantes, independente de seu contexto de vida, gênero ou idade.
O mesmo menino de Nova Iorque, Chase, com 11 anos, deu a seguinte resposta à questão de seus sentimentos: "[...] os humanos deveriam ter mais cuidado com a natureza para assim poder desfrutá-la". Sua colega Eleonor, com 13 anos, nos disse que a natureza é "[...] algo maravilhoso, de que todo mundo deveria cuidar, nós precisamos experimentá-la antes que ela desapareça". A resposta de Sujal, com 11 anos, aponta a consciência de que o afastamento da natureza traz uma condição desfavorável para si e sua família: "[...] bons sentimentos, certo? Eu realmente gosto da natureza, minha mãe também gosta da natureza porque tem árvores... Na cidade não tem, tem sombras".
Entre as crianças Tupinambá, a valorização da natureza está presente ainda que em um contexto biopsicossocial bastante diferente daquele das crianças americanas. Iris, com 12 anos, disse o seguinte acerca de seu sentimento pela natureza: "[...] eu acho ela muito bonita, eu gosto dela, tem um lugar na casa de minha avó de onde a gente pode ver a linda praia. Eu acho a natureza bonita". Tainá, com oito anos, respondeu: "[...] eu sinto assim... eu gosto dela. Eu sinto falta da natureza". Já Nerbert, com seis anos, declarou: "[...] eu gosto da natureza, meu coração bate quando eu corro".
Discussão
Neste trabalho, trouxemos dados e reflexões acerca de como as crianças vivenciam a biofilia em função da presença dos ambientes e dos seres naturais em seu contexto sócio-ecológico e de seu papel no desenvolvimento biopsicossocial. Com o grupo Tupinambá, durante o acompanhamento das atividades escolares ao ar livre, constatamos que ambientes naturais são os espaços das vivências cotidianas tanto fora, como dentro do período e do prédio escolar. Pudemos também constatar que as crianças detêm conhecimentos da biodiversidade local, o que nos levou a concluir que elas participam do conhecimento tradicional local, passado entre as gerações pela oralidade e por meio da observação. Pesquisas exploratórias realizadas junto a grupos de crianças da etnia Mura, habitantes do Amazonas, apontam para a mesma direção de expressivo conhecimento da biodiversidade local e manifesto apego e pertencimento ao território.
Em sentido oposto, a análise de desenhos e entrevistas de um grupo infantil residente no contexto urbano de Nova Iorque revelou parco e limitado conhecimento da flora e da fauna local: os indivíduos vegetais não são discriminados como espécies, mas designadas de modo genérico. Apesar desse desconhecimento do mundo natural tão distante de suas vivências, as crianças americanas se revelaram claramente conscientes tanto dos problemas ambientais, como dos reflexos da escassez de natureza em sua saúde e bem-estar.
Os dados coletados nos permitem afirmar que as crianças Tupinambá têm um forte vínculo com a natureza ao seu redor e um sentimento de pertença ao mundo natural que pode ser identificado em seus desenhos e em suas falas. A biofilia está presente nos sentimentos que expressam em relação à natureza e na forma como acreditam que a interação entre pessoas e seres naturais deva ser estabelecida. A natureza não constitui um mundo à parte, do qual as pessoas retiram energia e insumos, ela é o seu próprio contexto de vida, dado que as comunidades indígenas extraem diretamente dela seu sustento: da natureza vem o abrigo, o alimento e o sagrado. Entre as crianças de Nova Iorque, a natureza é vista como lugar, no qual a humanidade não está e como vítima da ação humana que, segundo elas, deveria ser menos destrutiva e mais cuidadora. A biofilia também se faz presente na relação de apego aos demais seres da natureza, ainda que as vivências, em seus contextos biopsicossociais, sejam dominadas por ambientes emparedados. Ao mesmo tempo, as crianças se revelaram bastante esclarecidas em relação aos problemas ambientais gerados pelo modo de vida capitalista, urbano e industrial (Mies; Shiva, 1997).
A biofilia revela nosso senso de pertencimento ao mundo natural; entretanto, quando essa vivência é clivada, é de apartamento em relação aos seres e aos processos da natureza, o desenvolvimento humano é comprometido. Nessa direção, as crianças participantes tanto as indígenas, como as nova-iorquinas trazem, em suas falas, a ciência dessa condição biofílica e dos impactos, em sua saúde e bem-estar, da falta de natureza no cotidiano. Assim, para ambas, a natureza é a própria vida, sã e/ou adoentada. Enquanto as Tupinambá alertam sobre as ameaças ao mundo natural, como contaminação da água dos rios e desmatamento, as crianças americanas vivenciam problemas de saúde, sobretudo respiratórios, decorrentes da poluição do ar de uma grande cidade. Evidencia-se, assim, a ideia de que os seres humanos estão imersos na natureza, a vida humana se desenvolve em simbiose com ela, a natureza é o fundamento da cultura.
Como modos de expressão da natureza que existem em conexão com outros modos, as crianças perseveram porque sabem que a proximidade é condição para a integridade. O contato significa a oportunidade de bons encontros com os demais seres vivos e processos naturais, mas também com nossa própria natureza viva, pois a vivência não se resume à existência de alguém em algum lugar, o ser e o ambiente não são elementos em separado, não podem ser concebidos como distintos, sob o risco de perderem seu próprio sentido. Se nos afastarmos do altruísmo e da posição de considerar o outro, qualquer outro que não o eu, investido de legitimidade, também nos afastaremos do sentimento maior que envolve todos os seres, do amor fundamental de que nos fala a biologia de Maturana e Varela. Se a natureza não é mais um legítimo outro, mas se torna objeto da racionalidade e de manipulação em larga escala, tudo passa a ser objeto de análise e intervenção, suspende-se a implicação entre as coisas, inclusive entre as pessoas.
Ao se fragmentar analiticamente para penetrar nos entes, o conhecimento separa o que está articulado organicamente na ordem do real; sem saber, sem intenção expressa, a racionalidade científica gera uma energia negativa, um círculo vicioso de degradação ambiental que o conhecimento já não compreende nem contém (Leff, 2012, p. 49).
Por outro lado, o mundo da fantasia, povoado de cenários digitais virtuais e por redes sociais que geram novas expectativas e modos de interação entre as pessoas, toda essa complexidade não substitui o complexo que há no mundo natural. Em realidade, essa fantasia tecnológica, em tema e em forma, deriva sua complexidade da própria natureza. A cultura integra a natureza, contemplada ou destruída, como alimento ou depósito de lixo, reverenciada ou escrutinada, habitada ou possuída, amada ou temida.
Portanto, não se trata, aqui, de defender uma ilusória e romântica ideia de retorno à aldeia, pois há a clareza tanto dos males e maravilhas dos modos de viver e de educar urbanos, quanto das alegrias e agruras vivenciadas por povos indígenas aldeados, em luta por suas filosofias de vida, suas condições dignas de existência, sua saúde e sua educação. Além disso, sabemos que experiências de educação escolar indígena podem reproduzir métodos de educar ocidentais, em função de que os próprios indígenas estudaram nas escolas do branco (Tiriba, 2010).
Em uma perspectiva espinosana, pessoas, animais, plantas, montanhas, ventos e oceanos são seres e processos/coisas da natureza que existem em diferentes graus de potência. Analogamente, nas diversas cosmologias de povos originários brasileiros, latino-americanos e caribenhos, a natureza não é paisagem, o humano não ocupa o centro, nem se constitui como finalidade da existência (Guimarães; Prado, 2014; Ribeiro, 1995). Homens, mulheres e crianças são seres imbricados com outras espécies, que constituem um mesmo mundo, como seres interdependentes. Nessa perspectiva, a filosofia de Spinoza e as filosofias originárias afirmam a conexão, a unidade e a cooperação como fundamentais à preservação da vida (Spinoza, 2009; Boff, 1999).
Essa ideia está presente tanto nos referenciais teóricos adotados, como nos desenhos e nas falas das crianças participantes da pesquisa. Todas são seres da cultura e são, simultaneamente, seres da natureza. Neste trabalho, visamos o realce dessa dimensão humana. Sejam habitantes de cidades ou de ambientes menos antropizados, a defesa que fazemos de seu direito ao contato íntimo com a natureza se relaciona ao fato de constituírem-se como seres cujo desenvolvimento pleno depende dessa proximidade. Assim, o desafio consiste em valorizar, entre as experiências escolares, urbanas ou indígenas, o que é fundamental para a integridade da espécie e do planeta: a conexão entre o humano e o universo natural-cultural do qual é parte.
Considerações Finais
Diferentemente da sociedade ocidental, que busca distinguir o mundo infantil do adulto, entre os povos indígenas as crianças participam das atividades cotidianas e compartilham do conhecimento do grupo. Destacamos que as crianças indígenas são valorizadas como legítimas guardiãs do conhecimento tradicional, sem que se espere por sua maturação cognitiva ou prontidão para a aprendizagem, aspectos tão valorizados pelos sistemas de educação convencionais. Ao contrário, a comunidade Tupinambá permite tanto a interação direta e contínua com os seres e processos do mundo natural, como a participação das crianças nas atividades e nas práticas culturais que integram os elementos da natureza como sujeitos do cotidiano. Por meio de nossas observações, descobrimos que além da exposição contínua ao contexto natural, também o contexto escolar indígena promove a interação entre crianças e ambientes naturais. Nessa referência cultural, a natureza não é apenas a paisagem, na qual se desenrola a cultura, mas é constituída por seres vivos que interagem e interferem na vida humana e em suas decisões. Nesse sentido, a pesquisa reforça a importância da tradição indígena de contato constante com a natureza, especialmente para a manutenção e o fomento do conhecimento tradicional e de suas práticas educacionais.
Consideramos que as escolas das cidades, marcadas por referências paradigmáticas antropocêntricas, têm muito a aprender com as experiências de educação escolar indígena Tupinambá, no que se refere à concepção de ser humano como parte indissociável da natureza, em estado de acoplamento estrutural com ela. Esse modo de compreender a vida está na contramão da lógica racionalista que orienta o modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado na acumulação e na posse de bens materiais que, invariavelmente, são produzidos a partir dos recursos que a natureza oferece a todas as espécies como dádiva (Mies; Shiva, 1997). Esse modelo orienta modos de organização dissociados da natureza, nos espaços sociais mais amplos e também nas escolas, produzindo subjetividades que não se identificam como parte do universo natural e que, portanto, tendem a não se interessar por sua proteção.
Assim, é fundamental afirmar e incentivar o movimento que os infantes humanos fazem em direção aos elementos do mundo natural, porque esse movimento expressa a sua condição de seres que têm uma atração pela natureza e que necessitam de proximidade para manterem-se como parte da substância única que é a vida. As crianças são seres da cultura, é verdade, essa visão é amplamente defendida e difundida em documentos oficiais que orientam a educação básica brasileira. O que não está devidamente enfatizado é que elas são, simultaneamente, seres da natureza. Assim, a conexão é um direito seu e, portanto, deve ser assegurado. Mas essa é apenas meia verdade. As crianças necessitam do universo maior tanto quanto este necessita delas. Porque não se trata de interação entre dois sujeitos - humano e não humano. Trata-se de uma unidade! A natureza perde quando um de seus elementos se afasta e desenvolve sentimentos de indiferença, ou mesmo de desprezo por esse universo infinito. Há relações entre distanciamento e degradação ambiental!
Vivam em espaços urbanos ou em aldeias, as crianças são modos de expressão da natureza interligados com outros modos, que favorecem ou criam obstáculos ao exercício pleno de sua potência. Assim, é importante que os modos de expressão que exercem a função de educá-las - professoras e professores - estejam atentas e atentos, favorecendo seus movimentos em busca de conexão. É da realização desses movimentos que depende a saúde das crianças e a saúde do planeta, no contexto de uma nova cultura de respeito à diversidade cultural, mas também de respeito à biodiversidade. Esse aprendizado poderá ser favorecido pela troca de conhecimentos entre as experiências educacionais urbanas e as de educação escolar indígena.