Introdução
Na primavera do ano de 2016, o Brasil se deparou com um amplo movimento nacional de ocupações estudantis. Essa onda de lutas radicalizadas das e dos ocupas ocorreu em nível nacional, no contexto imediato ao golpe que retirou Dilma Rousseff da presidência e do posterior anúncio de contrarreformas que levaram, entre outros aspectos, ao congelamento por vinte anos dos recursos das políticas sociais básicas (aprovada como Emenda Constitucional 95/2016) e à tramitação do projeto de Reforma Ensino Médio (aprovado pela Lei 13.415/2017 que altera radicalmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação). A jovens estudantes, tais medidas enunciaram a intensificação da deterioração das suas condições de vida, especialmente com a precarização da educação de nível médio.
Como parte da pesquisa nacional Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: formação e auto-formação das e dos ocupas, o presente artigo trata dos movimentos de ocupação estudantis ocorrido no Espírito Santo (ES). Para tanto, foram feitas oito entrevistas com jovens que participaram das ocupações de escolas, por meio de roteiro que tem sido adotado em todo o país nessa pesquisa. A partir das entrevistas, foi possível identificar o perfil das e dos ocupas, as características do movimento no ES e os impactos das ocupações nas trajetórias escolares e políticas de quem participou delas.
O artigo se justifica pelo fato de que poucos trabalhos acadêmicos trataram do caso do Espírito Santo (ES), apenas três, um artigo (Alvim; Rodrigues, 2017) e dois capítulos de livro (Stocco; Moraes, 2018; Losekan, 2019). São trabalhos importantes e que apoiam nosso olhar histórico sobre as ocupações no ES.
O artigo apresenta seus dados e seus relatos em cotejo com algumas categorias analíticas que têm sido importantes para a pesquisa, quais sejam, a geração segundo Karl Manheim, a dialética da condição juvenil e a subjetivação política segundo Jacques Rancière, em diálogo com ideias de Alberto Melucci e Geoffrey Pleyers acerca de movimento social e juventude.
As Ocupações no Espírito Santo (ES) e a Geração Juvenil
As ocupações por estudantes secundaristas ocorridas no ES se incluem na onda nacional de ocupações do segundo semestre de 2016, que, tendo tido início no Paraná, em outubro, afetaram outras 22 unidades da federação até dezembro. No ES, a repercussão das pautas mobilizadoras da onda nacional também foram os principais fatores que mobilizaram as lutas estudantis, a saber: o combate ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, depois a PEC 55, ao tramitar no Senado, que previa o congelamento de gastos primários (aprovado como Emenda Constitucional 95/2016) e o Projeto de Reforma do Ensino Médio decorrente da Medida Provisória 746/2016 (aprovada pela Lei 13.415/2017).
O estopim da luta de secundaristas no ES decorre da convergência dessas pautas nacionais com pautas e insatisfações locais, explicitadas no cotidiano escolar, como a falta de estrutura das escolas, a implementação do Programa Escola Viva1 e a convivência hostil com a direção escolar. Outra pauta específica do estado foi a demanda por uma universidade estadual, ausente no ES. Ocupas ressaltaram, ainda, que as ocupações também foram oportunidades políticas de canalização de suas incipientes tentativas de organização sociopolítica, fruto dos debates que vinham fazendo sobre a conjuntura política, fosse de forma autônoma ou conduzida pela escola, pela identificação com a luta feminista, dada a participação em protestos anteriores. Tais processos contribuíram com a articulação de pequenos grupos de estudantes secundaristas para a condução do processo inicial de ocupação das escolas.
Alvim e Rodrigues (2017, p. 17), ao destacarem esse elemento organizativo autônomo prévio às ocupações, tratam do movimento Legaliza o legging, organizado por coletivo feminista em Instituto Técnico Federal de Linhares, bem como do Cineclube Nome Provisório, em tradicional colégio de Vitória. Duas ocupas que entrevistamos trataram dessas ações. Enquanto Esperança contou que o movimento Legaliza o legging também se deu em sua escola, Autonomia Estudantil, que participou do cineclube, falou sobre o fechamento do cineclube e sua reabertura fora da escola. Segundo ela, uma reunião do Conselho da Escola foi convocada, mas os membros que possivelmente ficariam contra o fechamento não foram avisados da reunião:
O cineclube por voto unânime foi expulso, não poderia mais fazer sessões. Mas não parou por aí, os pedagogos começaram a ligar para os pais que participavam do cineclube dizendo que esse movimento estava ensinando seus filhos a ficarem rebeldes, a serem gays. […] Os pais, querendo ou não, são mais influenciáveis, acreditaram totalmente e proibiram o filho de ir no cineclube, porque o cineclube começou a fazer sessões fora da escola, começou a fazer em outras escolas (Autonomia Estudantil).
Losekan (2019) traz estimativas sobre as unidades de ensino ocupadas no ES em outubro e novembro de 2016, as quais oscilam entre 50 e 62. Uma delas afirma que as ações judiciais atingiram 57 escolas e instituições. A maioria das ocupações se deu na Grande Vitória (Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica e Viana), mas também há registros nas cidades de Cachoeiro do Itapemirim, São Matheus e Colatina (Stocco; Moraes, 2018). Apesar da maioria das unidades ocupadas serem escolas estaduais de Educação Básica (EB) que ofereciam o Ensino Médio (EM), a primeira ocupação no ES ocorreu em um Instituto Técnico Federal, em São Mateus, em 11 de outubro. A primeira escola estadual ocupada foi uma importante instituição em Vitória, que, dez dias depois, serviu como o verdadeiro estopim das ocupações no ES, inclusive com a adesão de estudantes da universidade federal, em campi em Vitória e São Mateus. Assim como nas demais unidades da federação, secundaristas tomaram a dianteira na oposição às medidas regressivas de Temer:
O movimento estudantil secundarista deu um show, um tapa na cara de todo o movimento social do Espírito Santos, foi um show porque ninguém esperava […] que quem começaria o processo de embate das reformas do Michel Temer […] seriam os secundaristas. […] todo mundo esperava que os estudantes universitários da universidade federal fizessem, e não, dessa vez não foi assim (Esperança)2.
Uma característica marcante das ocupações no ES foi a sua severa judicialização, tendo o governo estadual e o Ministério Público Estadual tomado a frente desse processo ao tornar a ocupação algo ilegal. Em sentido diferente, atuou a Defensoria Pública do ES, que buscou mediar as relações entre estudantes e poderes públicos, como nos bem-sucedido acordos que permitiram realizar o 2º turno das eleições municipais em escolas ocupadas, em 30 de outubro (Losekan, 2019). Tendência semelhante, no que se refere à garantia da realização das eleições, se observou em outros estados do país.
O mesmo não se deu com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O Ministério da Educação e Cultura (MEC), em todo o país, sem qualquer tentativa de diálogo, na intenção de deslegitimar e minar o movimento, com o aval da mídia comercial, mudou as datas previstas para a aplicação do ENEM nas escolas que estavam ocupadas. Organizações e movimentos de direita e extrema-direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e apoiadores do Escola sem partido, passaram a atuar sistematicamente também no ES, com ameaças, agressões e tentativas de invasão de escolas (Stocco; Moraes, 2018).
A despeito da Defensoria, diante do aumento do número de ocupações, o Ministério Público e o governo estadual abriram vários processos na Vara da Infância e Juventude e em Varas da Fazenda Estadual contra as e os ocupas. Conseguiram decisão judicial por desocupação parcial em 3 de novembro: a expulsão de ocupas que não eram estudantes da escola e retorno das aulas, ao lado da ocupação. Finalmente, em 11 de novembro, decisão judicial ordenou a completa desocupação em até 24 horas, que deveria ser acompanhada pela Secretaria Estadual de Educação (Sedu) e pela direção da escola - o que não foi respeitado em todos os locais. Essa decisão judicial também gerou grande medo, ao mencionar a possibilidade de responsabilização de pais e responsáveis, com a aplicação de multas.
Surgiu uma liminar da justiça obrigando a desocupar e falando que ia ter multa e tal, aí nisso já desestabilizou o movimento, além de toda pressão que já estava sofrendo, e aí a gente começou a desanimar mesmo. […] um dia a Sedu foi lá na escola […] e aí ficou decidido que a gente ia desocupar nessa reunião com a Sedu e com a direção da escola (Revolução).
Um grupo de estudantes decidiu, então, ocupar a própria sede da Sedu em 18 de novembro, um evento dramático que se encerrou com nova decisão judicial, em 25 de novembro. Estudantes ficaram ao relento, mesmo com forte chuva, sem acesso a banheiros e água potável, o que causou adoecimentos e, inclusive, uma hospitalização por hipotermia. Chegaram a entregar pauta de reivindicações ao secretário estadual de direitos humanos, antes da desocupação pacífica da Sedu, que encerrou o movimento no ES.
O movimento das ocupações secundaristas são parte de um ciclo de protestos juvenis, de caráter mundial, iniciados com a primavera árabe de 2011, ao lado de movimentos como Occupy Wall Street e Indignados, cuja primeira expressão no Brasil foram as Jornadas de 2013 (Pleyers, 2018). Trata-se de expressões políticas que ajudam a revelar parte dos contornos da atual geração jovem.
Parece relevante conhecer o conceito de geração de Karl Mannheim (1982) para compreender os sentidos das expressões políticas atuais das juventudes. Para Mannheim, uma geração se forma a partir de experiências sociais e históricas vividas em comum por um conjunto de pessoas durante sua juventude. Essas experiências geram um conjunto de memórias e vivências compartilhadas por indivíduos de idade semelhante, as quais serão mobilizadas para tomadas de decisão e atitudes ao longo de toda a vida.
A experiência geracional compartilhada, entretanto, não provoca uma resposta única ou uma geração uniforme. Na verdade, costuma produzir diferentes unidades de geração, algumas delas podendo se expressar ativamente na esfera política (Mannheim, 1982; Corrochano; Dowbor; Jardim, 2018). É o caso da geração jovem que tem vivido essa onda de protestos dos anos 2010, formada em meio a uma crise financeira mundial que se arrasta ao menos desde 2007, expressão da crise estrutural do capital, e que tem dado ensejo a um novo ciclo de reformas neoliberais, aprofundando a flexibilização do trabalho e a precarização das formas do emprego da força de trabalho, ao lado da crise da democracia representativa em vários países do mundo, incluindo o Brasil.
Esta geração parece ter dado origem ao menos a duas unidades de geração no Brasil, cada qual com concepções ético-políticas muito distintas. Apesar de suas enormes diferenças ideológicas, ambas parecem ter emergido durante as Jornadas de 2013. Uma dessas unidades de geração tem caráter progressista e apareceu nos primeiros eventos de 2013, em torno de demandas por mobilidade urbana e contra o aumento das tarifas de transporte público. Outra unidade de geração, cada vez mais ganhando contornos conservadores e de extrema-direita, passou a ir às ruas em um segundo momento das Jornadas, quando as Jornadas ampliaram enormemente suas pautas e número de participantes e quando a mídia comercial passou a apoiar a mobilização, mas tentando dotá-la de uma configuração antipartido, moralista e nacionalista.
A unidade de geração progressista vai se expressar novamente nas ocupações estudantis, iniciadas em dezembro de 2015, em São Paulo, que duraram até dezembro de 2016, reaparecendo nas manifestações de setembro de 2018 contra a candidatura presidencial de extrema-direita (o #elenão), em atos contra os cortes na educação em maio de 2019, em protestos antifascistas em junho de 2020 e na paralisação dos entregadores de aplicativos realizada em julho. Já a unidade conservadora e de extrema direita, bastante apoiada por diversas frações da burguesia, como fundações empresariais, lideranças religiosas fundamentalistas e políticos profissionais, se organizou em movimentos liberais como o MBL (Movimento Brasil Livre) e iniciativas como o projeto de lei Escola sem Partido; reocupou as ruas em manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2015 e 2016; e foi ativa na campanha que deu a vitória a um obscuro candidato de extrema-direita nas eleições presidenciais de 2018.
A unidade de geração que vai se expressar nas ocupações secundaristas, inclusive no ES em outubro e novembro de 2016, para ser compreendida, precisa considerar outros marcadores sociais para além da idade. Na verdade, as duas unidades de geração acima guardam correlações marcantes com indicadores como classe social, gênero, raça, orientação sexual e religião. No que tange às ocupações, como retomaremos adiante, elas foram um conjunto de protestos largamente popular e feminino. As ocupações não se concentraram apenas em escolas centrais e em bairros de classe média, mas foram muito fortes nas periferias e bairros populares, onde, na verdade, estão a maioria das escolas de ensino médio e do seu corpo discente. Não à toa, também expressaram largamente um feminismo popular e secundarista, sem esquecer a grande presença de pessoas negras e de orientação não heterossexual. Enquanto isso, a tendência dos meninos secundaristas, mesmo nas periferias, com base em estudo de Pinheiro-Machado e Scalco (2018) sobre adolescentes de Porto Alegre, foi a de apoiar o candidato vencedor de 2018.
Podemos considerar que tanto a unidade de geração progressista quanto a de extrema-direita ajudaram a atualizar a chamada dialética da condição juvenil (Groppo; Silveira, 2020). Segundo esta, a juventude apresenta dupla e contraditória face: de um lado, agências de socialização - inclusive as escolas - constituem coletivos homogêneos por idade, na intenção de dar determinado sentido à transição para a maturidade; de outro, os próprios sujeitos jovens podem constituir seus grupos, recriar valores e repensar trajetórias pré-determinadas, dando novos e por vezes divergentes sentidos à própria idade juvenil.
A unidade de extrema-direita também se considera como antissistema, inclusive ao apoiar um político aparentemente antipolítico, mesmo que ambos, a unidade de geração e o presidente eleito, estejam servindo muito bem como instrumentos para sedimentar um projeto antipopular e altamente regressivo em matéria de direitos sociais, políticos e ambientais. Já a unidade de geração progressista expressou nas ocupações uma tentativa de radical, ainda que temporária, ressignificação da condição estudantil e adolescente, assim como da escola e do sentido do ensino. Este empenho, como veremos adiante, foi tão importante quanto a pauta nacional antiregressiva do movimento no segundo semestre de 2016.
Estudantes e as Ocupações
Para compreender o sentido das ocupações para seus protagonistas, foram feitas 8 entrevistas no 2º semestre de 2019, de forma presencial, pela equipe do ES da pesquisa. A equipe conseguiu o contato e o aceite, em especial, de ocupas que estavam na universidade federal capixaba, em sua capital, o que ajuda a explicar que 7 estavam cursando graduação. Eles tinham 16 ou 17 anos quando ocuparam suas escolas em 2016. Refletindo melhor as características de gênero, raciais e de orientação sexual que marcaram as e os ocupas, temos 6 mulheres, apenas duas pessoas autodeclaradas brancas e apenas uma heterossexual. A ocupação de Terra, segundo ela, foi “[...] incrível, era uma ocupação feminina e LGBTI+”3.
Do ponto de vista socioeconômico, as entrevistas refletiram as características da própria discência de EM pública em todo o país, a saber, marcadamente popular, já que são filhas e filhos de diferentes frações da classe trabalhadora. Buscamos, enfim, certa diversidade nos municípios, tipos de escola e formas de participação: 4 municípios (Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória); escolas periféricas e centrais; ocupas com diferentes tarefas e graus de participação; ocupas independentes, militantes ou que se tornaram militantes após a ocupação. O quadro 1 apresenta esses e outros dados.
Pseudônimo | Caracterização | Escola ocupada | Atuação na ocupação | Situação atual |
---|---|---|---|---|
Revolução | Homem, branco, homossexual, 19 anos de idade quando entrevistado. Renda familiar (RF) de 1,5 Salários Mínimos (SM) | Bairro de classe média em Cariacica | Em escola sem grêmio, participou de comissão geral que organizou a ocupação. Também ocupou a Sedu e esteve em ato em Brasília contra a PEC55. | Cursa Enfermagem. Participa do Diretório estudantil. Tem simpatia pela União da Juventude Comunista (UJC), mas tem adiado filiação. |
Descoberta | Mulher, preta, heterossexual, 20 anos de idade. RF de 2 S.M. | Mesma escola de Revolução, Cariacica | Exerceu várias tarefas, destacou a de diálogo com juiz eleitoral e Ministério Público. | Cursa graduação. Participou da UJC por algum tempo. |
Esperança | Mulher, preta, lésbica, 19 anos de idade. RF de 1 SM. | Escola central em Vitória, primeira estadual ocupada. | Atuou principalmente na comissão de segurança. Também ocupou a Sedu. | Cursa Pedagogia. Milita nas Brigadas Populares. |
Terra | Mulher, branca, lésbica, 20 anos de idade. RF de 1 SM. | Escola central em Serra, onde estudava, e escola central em Vitória (a mesma de Esperança). | Militante do Levante Popular da Juventude (LPJ), ocupação aconteceu durante esforço de recriar grêmio na escola. Atuou na articulação política e comunicação. Também ocupou Sedu. | Cursa Ciências Sociais. Aprofundou militância no LPJ. |
Autonomia Estudantil | Mulher, negra, bissexual, 20 anos de idade. RF de 1,5 S.M. | Bairro de classe média de Vitória | Escola sem grêmio. Funções de liderança na ocupação. | Cursa graduação. Se aproximou de coletivo negro. |
Coletividade | Mulher, negra, bissexual, 20 anos de idade. RF de 1,5 S.M. | Em periferia de Serra | Em escola sem grêmio, atuou em várias tarefas, como organização de atividades, segurança e contatos jurídicos. | Cursa Serviço Social. Participa da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO). |
Transformação 1 | Homem, pardo, homossexual, 20 anos de idade. RF de 4 S.M. | A mesma de Coletividade, em Serra | Exerceu várias tarefas (alimentação, limpeza, organização de atividades). | Cursa Ciências Biológicas, atua no Centro Acadêmico. Tem simpatia por partidos de esquerda, mas não se filiou. |
Transformação 2 | Mulher, negra, lésbica, 20 anos de idade. RF de 4 S.M. | Escola periférica, onde estudava, e escola central, ambas em Vila Velha | Grêmio de sua escola foi contra a ocupação. Ocupou sua escola durante 1 semana. Atuou na comunicação (produção audiovisual). | Começou Teatro e Letras, mas evadiu. Se aproximou do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), sem se filiar, bem como de coletivo feminista, por algum tempo. É a única que trabalha atualmente, em setor cultural público. |
Fonte: Equipe ES da pesquisa.
A Dinâmica das Ocupações
Diante dos primeiros dados da pesquisa nacional sobre as ocupações secundaristas, esboçamos uma tipologia das escolas públicas ocupadas, criando 3 tipos. Cada tipo de escola parece influenciar largamente a dinâmica própria da sua ocupação:
a) Escolas periféricas, que em muitos casos foram pioneiras no movimento em seu estado ou município, mas que tenderam a receber menos apoio material, pedagógico, político e jurídico de organizações e pessoas apoiadoras, assim como menos atenção da mídia. A relativa inviabilização dessas ocupações tem tornado mais difícil, inclusive, encontrar contatos para as entrevistas. A escola de Coletividade e Transformação 1, em Serra, e a escola de Transformação 2, em Vila Velha, se incluem nesse tipo.
b) Escolas centrais ou em bairros de classe média, que, dada sua proximidade social ou espacial, ou por interesse político, receberam bem mais atenção de organizações e pessoas apoiadoras, ajudando, em muitos casos, a fazer da ocupação uma coalizão entre estudantes independentes e representantes de diversas organizações (juventudes partidárias e entidades estudantis). As demais 4 escolas das pessoas que entrevistamos se enquadram nesse tipo.
c) Escolas prestigiosas, cuja tendência foi a de ter a ocupação organizada e liderada por uma dada entidade estudantil e/ou juventude partidária, tanto por já estarem enraizadas na instituição, quanto pela visibilidade política que poderiam auferir com a ação. Numericamente, é o tipo com menor frequência, ainda que haja uma tendência de terem ganhado grande atenção da opinião pública e da mídia. Nenhuma das escolas das pessoas que entrevistamos se enquadrou nesse tipo. No entanto, pelas informações obtidas, parece ter sido o caso, ao menos, do instituto federal em São Mateus e de tradicional colégio estadual de Vitória.
No ES, encontramos em destaque outro dado importante acerca das escolas, a saber, a influência das diferentes culturas da escola, que guardam certa relação com os tipos de escolas citados acima4. Esse dado marcou escolas centrais e mais antigas (tradicionais), como o conservadorismo da escola de Autonomia Estudantil em Vitória, ou a busca da excelência acadêmica da primeira escola estadual ocupada em Vitória, de Esperança. Por sua vez, as escolas periféricas tenderam a ser caracterizadas como tendo estrutura precária, mas com a atuação de docentes tendo grande impacto formativo e político.
Foi uma escola de freiras historicamente, então, ainda tem essa questão religiosa. A própria diretoria, a coordenação, o corpo pedagógico tinham esse teor religioso na forma deles de educar, na forma deles de tratar sobre certos assuntos (Autonomia Estudantil).
A escola não tinha tudo, sempre faltava alguma coisa, o professor tinha que improvisar essas coisas, mas foi uma formação boa, porque os professores de lá eram bem empenhados e mostravam sempre interesse com que a gente aprendesse. […] o corpo docente de lá era muito engajado com coisas sociais, assim, então eles sempre estavam expondo coisas que aconteciam no cotidiano, eles sempre comentavam com a gente sobre, instigavam a gente a ter um senso mais crítico (Transformação 1).
Esses dados sobre tipos de escola ocupadas e diferentes culturas da escola ajudam a entender as pautas específicas ou mais marcantes em cada ocupação. Deve ser levado em conta, também, as reações das direções das escolas que, mesmo quando tinham tendência progressista ou democrática, se viram amedrontadas diante do risco de retaliação por parte dos poderes públicos.
Pautas relativas à infraestrutura da escola, sempre ao lado das pautas mais gerais, tenderam a marcar as escolas periféricas, assim como a escola de Revolução e Descoberta em Cariacica, que vinha funcionando em prédio improvisado durante a reforma do antigo prédio. Já na escola de Transformação 2, em Vila Velha, diante da atitude da direção, que fechou a escola sem qualquer aviso, dado seu receio de que estudantes estivessem preparando a ocupação, o movimento se precipitou, tendo aí, como pauta principal, a substituição da direção. O caso da Vila Velha também é interessante porque docentes, ainda na rua, diante dos portões trancados, começaram a explicar a discentes os motivos do movimento, esclarecimento que teve continuidade no dia seguinte, já em assembleia dentro da escola, que veio por decidir pela ocupação. Outras justificativas para a mobilização são muito relevantes, explicando a própria forma da ação coletiva: fazer parte do movimento nacional, apoiando outras escolas já ocupadas em Serra e no estado (Coletividade); comprovar a maturidade das e dos ocupas e a autenticidade do próprio movimento, ou, conforme Autonomia, “[...] mostrar que a gente tinha autonomia cognitiva”.
Para Losekan (2019), ocupas fizeram jogos de subjetivação entre dois papéis: de um lado, contestavam a autoridade (dos governos, da direção da escola, de docentes e até da família, quando essa era contra a ocupação); de outro, demonstravam seriedade na busca de legitimidade para o protesto. A autora destaca a preocupação das e dos ocupas de não ver o protesto associado à baderna e vandalismo, buscando, a despeito de suas idades e certas expectativas sociais, demonstrar maturidade, estabelecendo rotina ordeira e exibindo boas maneiras - como a proibição de bebidas alcoólicas e a divulgação de regras nas redes sociais. Se buscavam exercer a rebeldia criativa e transgressora, temiam o ridículo por não serem vistas e vistos com seriedade. O relato de Esperança referenda essa análise:
Eu queria seguir todo um padrão pra que não afetasse as ocupações, porque eu acho que a gente tem que ter disciplina, sabe? Não em todos os momentos, às vezes não ter disciplina é importante também. Mas eu acho que a gente precisa ter disciplina em determinadas coisas. Naquele espaço, se a gente não tivesse disciplina, por exemplo, pra saber que a gente não podia fumar cigarro lá dentro, que era uma escola e tinha várias pessoas menores de idade lá dentro, isso poderia prejudicar o processo de ocupação (Esperança).
A lúcida análise de Losekan (2019), passo a passo reiterada pelo relato de Esperança, parece oferecer novas perspectivas à dialética da condição juvenil. As instituições sociais, elas próprias, têm algumas imagens caricaturais que classicamente são mobilizadas diante dos protestos juvenis. Desde as Jornadas de 2013, com o apoio da mídia comercial, se buscou um amálgama entre a imagem do adolescente delinquente e a do jovem radical: o vandalismo. Os sujeitos do protesto social passavam a ser chamados de vândalos, e as câmeras e os discursos políticos buscavam com afinco exemplos de depredação e violência vindos de manifestantes. Não foi diferente com as ocupações secundaristas, com o agravante de que a idade adolescente reforçava a caricatura da delinquência e reiterava a suposta puerilidade do movimento.
Contra o sentido usual dado pelo cotidiano social e escolar, mas também contra as reações das mídias e poderes constituídos, as e os ocupas buscaram reconstruir a imagem da adolescência e da condição estudantil nas ocupações. Na verdade, desde a grande repercussão dos rolezinhos, em 2014, mas, principalmente, com o movimento das ocupações secundaristas, temos no Brasil uma nova ascensão de um sujeito político que tendia a ser pouco valorizado ou visibilizado: adolescentes e estudantes do Ensino Médio.
Jovens pobres das periferias não tinham a intenção de criar um fato político com seus rolezinhos, queriam apenas se divertir e socializar. No entanto, a repressão policial, inicialmente legitimada por setores sociais ofendidos com a ocupação do espaço de consumo antes restrito às classes médias e elites, acabou criando um importante debate público (Barbosa-Pereira, 2016). Já as ocupações, largamente protagonizadas por aquelas que, nos rolezinhos e bailes funk, eram chamadas de vedetes, tinham objetivos conscientemente políticos (Pinheiro-Machado; Scalco 2018).
Ambos os eventos, em especial as ocupações, desafiaram a noção comum da adolescência. A condição adolescente tende a ser associada a um estado pré-político e até pré-social, de valor tão somente propedêutico, preparatório, momento em que as pessoas tão somente teriam aprendizados e treinamentos para se tornarem, apenas quando adultos, cidadãos ou sujeitos políticos (Castro, 2009).
Trata-se de mais um sujeito que, pelo olhar da ordem policial vigente, nos termos de Rancière (1996), não teria voz nem capacidade de ação na esfera pública. Essa exclusão já foi feita no passado, e por vezes volta a ser no presente, em relação a pobres, operárias e operários, mulheres, pessoas negras e imigrantes, entre outras e outros. As e os ocupas foram a transfiguração de pessoas que somavam diversos marcadores da exclusão da esfera pública: eram adolescentes, estudantes de Ensino Médio, de escolas públicas, em grande parte de periferias e bairros pobres, filhas e filhos das classes trabalhadoras, em sua maioria, mulheres e com grande participação de jovens negras e negros e LGBTI+. Em especial no segundo semestre de 2016, pessoas que somavam vários atributos da exclusão do mundo político se tornaram, ainda que por um momento, os principais sujeitos políticos, protagonizando a maior mobilização contra as medidas regressivas do governo Temer, governo ele próprio seriamente ilegítimo.
Mas, para Rancière (1996), é justamente a manifestação política dos que não são considerados como seres políticos que instaura a verdadeira política, ou seja, a política como manifestação do dissenso, uma ação e discurso que desestrutura, ainda que por certo tempo, o mundo sensível ou a ordem das coisas. Ao mesmo tempo, a política como dissenso dissocia, separa ou desloca a coincidência entre a subalternidade da pessoa na ordem social e econômica e a sua exclusão da esfera pública e das decisões coletivas, já que ela faz dos desiguais na vida socioeconômica como iguais durante o tempo do dissenso.
É por isso que pessoas adultas confrontadas pelas ocupações - como autoridades políticas e escolares - foram forçadas a dialogar com estudantes que, até então, tendiam a considerar como seres pré-políticos ou menos racionais (já que eram adolescentes em estágio de desenvolvimento), ou, pelo menos, foram obrigadas a argumentar a respeito das pautas das ocupações.
No entanto, mesmo os sujeitos apoiadores tiveram que se render à irresistível dinâmica igualitária que as ocupações, em sua maioria, adotaram. Militantes, jovens ou não, de partidos de esquerda e sindicatos, tiveram de se submeter à autonomia de cada ocupação, levada adiante por estudantes independentes, e se colocarem a serviço das e dos ocupas, sob o risco de expulsão da escola. Apesar de ao menos duas ocupações afirmarem ter orientação das entidades estudantis (instituto federal e prestigioso colégio da capital), no ES, como em todo o país, a grande maioria das ocupações teve cunho autonomista, incluindo a primeira escola estadual ocupada em Vitória, que, inclusive, impedia bandeiras de partidos e entidades, mas não a presença de militantes (Stocco; Moraes, 2018).
Todas as entrevistas afirmam que as e os ocupas foram os protagonistas dessa luta, que as ocupações tinham autonomia em relação às organizações políticas tradicionais (entidade estudantis, partidos e sindicatos), mas não o isolamento, ao contrário. Diversas organizações políticas estabeleceram relações de apoio, seja estrutural, importante para a permanência nas escolas (especialmente a alimentação), seja no campo político-organizativo, no que diz respeito às sugestões para o aprimoramento da ação política, bem como orientações jurídicas. No entanto, as tentativas de aparelhamento foram recusadas por ocupas.
Entre estes movimentos tradicionais foram citados: juventudes políticas ligadas a partidos políticos de esquerda - UJC (ligado ao Partido Comunista Brasileiro [PCB]), LPJ (orientado pelo partido não-eleitoral Consulta Popular) e União da Juventude Socialista (UJS, orientada pelo Partido Comunista do Brasil [PCdoB]); partidos do espectro progressista, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL); sindicatos, como o Sindicato dos Bancários e o Sindicato de servidoras e servidores da universidade; uma central sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT); e, menos presentes, mas não ausentes, entidades estudantis oficiais, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Como dito, escolas centrais tiveram grande apoio dessas organizações, especialmente as de Vitória, mais próximas dos centros de articulação política. Por sua vez, na escola periférica de Coletividade, em Serra, “[...] nenhum coletivo organizado, partido político, contribuiu, até por ser uma escola que não era muito conhecida e de periferia, ou era mais longe”. Nessa escola, foi fundamental o apoio conquistado da comunidade local, algo que nem todas as escolas conseguiram, ou conseguiram apenas em parte.
Ainda se destaca o apoio de parte de docentes das escolas que, em alguns casos, se entusiasmaram com a realização das ocupações, assim como auxiliaram por meio de doações financeiras e de alimentos. Pais e responsáveis, em diversos casos, também mobilizaram recursos para a permanência de ocupas nas escolas. Docentes e estudantes da universidade federal também prestaram apoio por meio de doações financeiras e de atividades formativas. O Conselho Tutelar, a Comissão de Justiça e Paz (CJP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Centro de Direitos Humanos (CDDH) foram listados como apoiadores, em especial por meio de orientações jurídicas relativa a direitos, cuidados e (im)possibilidades num processo dessa natureza.
É claro que foram importantes o apoio material e a orientação das organizações formais às e aos ocupas, algo reconhecido pelos sujeitos da ação onde isso aconteceu, ou seja, nas escolas não-periféricas. Mas é possível prever outro efeito recorrente dos movimentos sociais sobre as instituições sociais e políticas: a possibilidade de inovação. Melucci (1994), ao elencar os possíveis efeitos dos movimentos sociais sobre o sistema político e a sociedade, já destacava os impactos indiretos e difusos das ações coletivas sobre as organizações políticas e sociais, como a criação de novas lideranças políticas e a produção de novos modelos organizacionais, que são incorporados até mesmo por empresas, serviços públicos e escolas. As ocupações, com suas formas organizativas não-hierárquicas e processos decisórios participativos, podem inspirar não apenas a renovação das instituições escolares, seus currículos e metodologia, como veremos, mas as próprias organizações políticas, e não apenas as que representam formalmente as e os estudantes, mas também partidos e sindicatos.
Conflitos e Desafios
No ES, a movimentação no campo jurídico foi minando por dentro as ocupações, protagonizada pelo governo estadual, que chegou também a cortar água e luz em algumas escolas ocupadas. Nos relatos, o medo de que pais ou responsáveis recebessem multas foi recorrente. Terra relata que representantes da Sedu chegaram a ligar para pais de ocupas. Em especial nas escolas periféricas, a pressão policial era constante, ao lado da necessidade de negociar com o tráfico. Em relação à polícia, são citadas atitudes de intimidação, inclusive com sirenes ligadas durante a madrugada, além de agressões durante a desocupação em escolas de Vila Velha. O medo foi certamente um fator desestabilizador. Terra relata a pressão sobre a sua saúde mental, enquanto Transformação 2 conta: “[...] eu não fui agredida fisicamente, só psicologicamente, o meu emocional ficou bem ferido”.
No processo de condução das ocupações, são narradas algumas divergências e desentendimentos, causados por inexperiência em ações políticas e o próprio cansaço diante da duração do movimento e dos temores, mas que tendem a ser narrados como problemas menores e logo resolvidos. Em escolas de periferias, por outro lado, foram mais recorrentes as dificuldades com alimentação. Houve casos em que escolas mais centrais repassaram parte de suas doações a escolas periféricas.
Mais fortes foram as tensões e conflitos ocorridos com direção e parte do corpo docente e discente, que manifestaram contrariedade às ocupações, inclusive por meio de ataques em redes sociais. Em algumas escolas, a comunidade, incluindo parte relevante de pais e responsáveis, se voltou contra o movimento, o que se colocou como um desafio para a permanência da ocupação. Segundo Terra, houve casos de pais que expulsaram filhas e filhos ocupas de casa. Três ocupas citam a atuação do movimento de desocupação, composto inclusive por estudantes de sua escola, que a invadiram e agrediram meninas ocupas.
Quando ocupas falaram de suas frustrações, destacaram esses elementos, como a atuação da polícia, as agressões pelo Desocupa, a opressão da direção e de parte do corpo docente e as ameaças de invasão e de aplicação de multas. Também foi citada a falsidade da democracia representativa (ao não representar realmente os interesses da maioria das pessoas) e o pouco apoio das entidades estudantis (na escola de Revolução).
Outro momento doloroso foi o da desocupação da escola. Segundos os relatos, o processo de desocupação foi tenso, triste e rápido: na escola de Revolução, a decisão da justiça causou medo, dada a ameaça de multas, desestabilizando a ocupação; na de Terra, apesar da tristeza diante da liminar, encerraram a ocupação com um sarau, com rap e poesia; na de Descoberta, diante da liminar, ocupas foram até a universidade federal para buscar orientações e se organizar, mas encontraram a escola já desocupada quando retornaram; em uma das escolas que Transformação 2 ocupou, a polícia fez uso da violência e arrastou alguns meninos.
Estes conflitos, desafios e frustrações nos levam a recordar que, segundo Pleyers (2018), o ciclo de protestos juvenis dos anos 2010 sempre teve em sua esteira, primeiro, a formação de contra movimentos antiprogressistas e, segundo, enfrentaram maior repressão por forças policiais em comparação com o ciclo anterior, o do movimento antiglobalização dos anos 1990.
Os alter-ativistas da década de 2010 mergulharam na batalha por um mundo melhor em um contexto histórico particular e enfrentaram forças amplamente subestimadas no início da década. Sete anos após o início de uma onda global de movimentos sociais em prol da democracia, o panorama político e social está longe das esperanças democráticas que mobilizaram milhões de cidadãos. Não apenas os movimentos progressistas não conseguiram derrubar os poderes aos quais se opunham, mas também enfrentamos um fortalecimento da repressão, do autoritarismo e do conservadorismo. Com essa mudança de situação, surge uma nova onda de questionamentos sobre as perspectivas dos movimentos sociais, que se encheram de otimismo ao ver surgirem tantos atores progressistas. O fenômeno acima não invalida a centralidade dos movimentos sociais nesta década de 2010, mas nos lembra que não podemos focar analiticamente apenas nos atores progressistas, mas também é fundamental incluir melhor os atores conservadores e os promotores do capitalismo financeiro global entre os movimentos sociais que estudamos (Pleyers, 2018, p. 16).
No caso das ocupações do ES, ainda poderíamos acrescentar ao segundo elemento uma presença mais ativa de outros sujeitos da sociedade política, em especial o judiciário, por vezes defendendo os movimentos, mas, em geral, atuando para deslegitimá-los e até criminalizá-los. Ao longo do movimento das ocupações, os poderes políticos aprenderam como minar as ocupações de diversas formas: por meios judiciais, tanto fazendo uso da suposta defesa do patrimônio, quanto a ameaça de multas a responsáveis por abandono de incapaz; ações em articulação com a mídia comercial, como o adiamento do ENEM em escolas ocupadas; ou, ainda, a articulação com movimentos de extrema-direita, em especial o MBL, destacando-se o Desocupa no Paraná, com inúmeras ameaças e invasões de escolas em vários estados, de forma muito agressiva. Enfim, ocupas que participaram de atos em Brasília e outras capitais contra a PEC55, em novembro de 2016, sofreram enorme repressão policial, a qual se repetiria em abril 2017, em protestos contra a Reforma Trabalhista.
Há, ainda, como visto, um terceiro elemento deste ciclo de protestos juvenis, que são os seus parcos resultados políticos concretos e imediatos, o que tende a causar enorme frustração e angústia às e aos manifestantes. Esta frustração tem marcado, até o momento, mais as entrevistas das e dos sujeitos das ocupações do segundo semestre de 2016 do que as ocupações de caráter estadual, ocorridas entre dezembro de 2015 e julho de 2016.
Formação e Aprendizados
No roteiro de entrevista, a pergunta sobre o que foi mais gratificante nos leva ao tema da formação política e pessoal propiciada pelos aprendizados durante a inserção no movimento. Esperança mesmo destaca o caráter pedagógico do movimento, em meio a outros relatos que também afirmam que o sentimento inicial de tristeza foi dando lugar, com o tempo, à sensação vitoriosa de terem conseguido amadurecer individual e coletivamente, bem como de terem adquirido autoconhecimento, de saberem dos próprios direitos e de descobrirem que as pautas da periferia têm potência para eclodir um movimento nacional.
Isso se repete a respeito dos objetivos da ocupação, se eles teriam sido alcançados ou não. As respostas tratam de conquistas subjetivas e coletivas. Entre as coletivas, a organização, a mobilização geral e a capacidade de expressar a indignação: “Conquistamos uma Primavera secundarista” (Esperança); “Mostramos que um bairro comum de periferia consegue participar de um movimento nacional” (Transformação 1). Entre as conquistas subjetivas estavam o amadurecimento, a realização e crescimento pessoal, o conhecimento da política e dos direitos, a possibilidade de conhecer pessoas e fazer amizades e informações sobre a Educação Superior pública.
A gente amadureceu, a gente aprendeu a conviver ali dentro, a gente cresceu muito como pessoa, como cidadão, a gente teve muito conhecimento além do convencional que é ensinado na escola. A gente aprendeu a botar a mão na massa e cuidar da escola, a fazer as coisas, capinamos a escola, e ter voz também, tipo, a gente conseguia dialogar com o juiz do tribunal eleitoral regional (Revolução).
Temos encontrado nas entrevistas e bibliografia sobre as ocupações, atividades formativas em profusão e diversidade. Temos classificado essas atividades em dois grandes tipos, as oficinas e os aulões. No ES, se destacaram, como ministrantes, docentes e discentes das instituições públicas de ensino superior, mas também militantes de partidos e coletivos juvenis.
As oficinas adotaram metodologias bastante participativas e que aproximavam ministrantes de sujeitos educandos, assim como aproximavam conhecimento e prática. Tenderam a abordar conteúdos não curriculares ou conteúdos curriculares que, por seu caráter político ou polêmico, têm sido negligenciados: questões sociais e políticas, Reforma do Ensino Médio, literatura, música, artes plásticas, zumba, ioga, fotografia, mecânica de bicicleta, feminismo, machismo, solidão da mulher negra, juventude negra, LGBTI+, homofobia, saúde mental, educação superior e universidade.
Quanto aos aulões, tenderam a recriar metodologias tradicionais e conteúdo mais usual, em especial como preparação ao ENEM. É possível citar ainda as orientações políticas e jurídicas, em momentos semelhantes a aulas ou palestras, ou durante assembleias, feitas por militantes de juventudes partidárias e entidades estudantis, bem como por profissionais do Direito com ligação com sindicatos e até mesmo de órgãos públicos, como a Defensoria. E, enfim, é importante citar atividades culturais e de lazer, como a exibição de filmes pelo cineclube e peças de teatro, bem como apresentações musicais, inclusive de nomes conhecidos regionalmente.
Ocupas destacam também o impacto formativo ensejado pela própria organização e condução da ocupação. Transformação 2 trata da desconstrução do machismo pelos meninos, não apenas pelas oficinas, mas pelo fato de que, na ocupação, tiveram de fazer tarefas tradicionalmente associadas ao feminino. Por sua vez, Esperança trata do processo de afirmação das meninas, de que é possível um processo educacional mais livre e democrático e reconhece o quanto deve à ocupação, inclusive em sua escolha profissional:
Eu acho que todo mundo saiu feliz da ocupação, com a construção pessoal legal e tal, mas acho que para os meninos foi uma experiência muito foda, porque, quando a gente fala de machismo, eu entendo que o machismo afeta primeiro os homens, pra depois afetar as mulheres […]. Desde criança, o menino é reprimido o tempo todo pelo machismo, tipo, homem não chora, homem não brinca de boneca […] e aí os meninos chegam lá e […] eles têm que ajudar a cozinhar, eles têm que ajudar a limpar, eles têm que ajudar em coisas que desde pequenos eles aprenderam que é pra mulher fazer. Eu acho que a maior troca que a gente teve foi entre nós, não foi uma pessoa que veio de fora, não foi um professor que tem doutorado e falou, mas foi a troca que a gente teve, assim, um com o outro de experiências (Transformação 2).
A ocupação proporcionou espaços de debates muito reflexivos, […] muito politizados, então, quando acabaram as ocupações, aquelas pessoas não eram mais as mesmas. Muitas meninas […] que ainda estavam enjauladas com esse sistema machista pra caralho, patriarcal pra caralho, depois das ocupações, elas eram muito mais livres, por causa de tanto debate. […] Foi um momento muito transformador e muito pedagógico. Eu agradeço às ocupações por me mostrarem que há possibilidade de fazer um processo de ensino e aprendizagem saudável, participativo, democrático, dialético, pedagógico mesmo. E as ocupações foram fundamentais para a escolha da minha profissão e para a forma que eu vejo minha profissão hoje (Esperança).
Por sua vez, Revolução destaca o quanto a ocupação foi importante para a autoaceitação de sua orientação homossexual: “A ocupação teve muito a ver com a minha autoaceitação da sexualidade, minha orientação sexual. Eu já sabia quem eu era na verdade, mas a ocupação fez eu perceber que está tudo OK, tipo, nada demais, a diversidade existe, está tudo bem ser assim”.
Na lista dos aprendizados e impactos formativos que ocupas narram, reencontramos o autoaprendizado do feminismo periférico secundarista, da desconstrução do machismo enrustido, do direito a participar, da capacidade de dialogar e do valor da autonomia. Deste modo, neste aspecto chegamos a uma conclusão semelhante à de Alvim e Rodrigues (2017, p. 1): “[…] as lutas estudantis produzem contornos de um ensino, uma aprendizagem e uma convivência autônomos, envolvendo a construção de uma educação horizontal, prefigurando formas coletivas de liberdade e responsabilidade direcionadas pela horizontalidade de processos decisórios e ensaiando uma cultura educacional democrática”. Mas essa ênfase na autonomia não impediu que houvesse também processos de coaprendizado ou de ressignificação - no diálogo com militantes, ativistas, docentes e profissionais do direito - de aspectos muito diversos, desde os direitos políticos e sociais à legitimidade da orientação sexual não heteronormativa, passando pela prática de outras formas educacionais e a elaboração de projetos pessoais na educação superior e profissionais.
De toda forma, o movimento das ocupações é mais um exemplo da enorme capacidade criativa dos movimentos juvenis, de seu potencial revelador e desnaturalizador do que as pessoas adultas tendem a considerar como natural, imponderável ou mais racional: “Enquanto nós aplicamos e executamos o que um poder anônimo decretou, os jovens perguntam para onde estamos indo e por quê” (Melucci, 1997, p. 13).
Não à toa, Alberto Melucci (1997, p. 12) vai dizer que as ações coletivas, em especial as que envolvem jovens, são capazes de “[...] revelar o que o sistema não expressa por si mesmo: o âmago do silêncio, da violência do poder arbitrário que os códigos dominantes sempre pressupõem”. A principal mensagem destas ações coletivas juvenis é a sua própria existência, a saber, o anúncio de que outros caminhos estão abertos. Elas fazem isso ao implodir a distinção entre o significado instrumental e o sentido expressivo das ações, pois, nos movimentos sociais “[...] os resultados da ação e a experiência individual de novos códigos tendem a coincidir” (Melucci, 1997, p. 12).
Nas palavras de Reguillo (2013), se trata de ações prefigurativas, que buscam a coerência entre o próprio ato ou protesto e as relações sociais que se desejam instituir. Elas, desse modo, fogem da orientação puramente estratégica típica do partido revolucionário, que faz da ação mera instrumento para alcançar determinada meta. É por isso que a eficácia ou influência do protesto juvenil prefigurativo não se mede somente pelos resultados imediatos no sistema político, ou mesmo pelo alcance de determinada pauta. Por essas medidas, o movimento no ES teria trazido apenas frustração e sentimento de derrota, algo que os relatos, é claro apresentam, mas não exclusivamente. Ao considerar o que os sujeitos das ocupações relatam sobre quais vitórias tiveram - e que transcendem as pautas expressas - e, principalmente, o que aprenderam, temos outra leitura: a transformação de si e o conhecimento do mundo e do poder da coletividade. E isso ainda há de continuar a seguir, quando analisamos os impactos dessa experiência em suas trajetórias.
Trajetórias Políticas e Educacionais
O impacto mais visível nas trajetórias das pessoas entrevistadas se relacionou com a educação superior. Antes das ocupações, elas tendiam a ver a universidade pública como muito distantes de suas realidades, inclusive, algumas acreditavam que teriam que pagar mensalidades. Porém, tendo sido a universidade federal um ponto de encontro das movimentações estudantis no período, boa parte delas e deles descobriu que poderia ocupar esse espaço, que lá também era lugar para mulheres negras, pobres e LGBTI+, que não era só da galera conservadora, elitista, de classe média, que também havia espaço para a educação progressista, diversa e inclusiva.
Quanto à trajetória de participação política, temos alguns relatos a respeito da frustração pela derrota da pauta nacional do movimento. Outros relatos tratam de transformações mais subterrâneas e pessoais, incluindo a entrada na universidade:
Quando acabaram as ocupações, eu entrei numa tristeza muito profunda e num sentimento muito grande de frustração mesmo com o processo. Eu me dediquei muito, eu estive 22 dias dormindo na minha escola e várias pessoas, na verdade, estiveram nessa situação. Eu tive problemas com a minha família. Nossa, eu estava realmente achando que as ocupações iam mudar o mundo e eu ficava pensando diariamente: ‘a gente está fazendo história’ […] De fato a gente fez história, com certeza, mas é que o que eu esperava do processo de ocupação não foi alcançado […]. Só que hoje eu vejo vários saldos muitos positivos, não da política brasileira, mas das transformações individuais que as ocupações proporcionaram. A minha entrada na universidade, com certeza, eu sou muito grata às ocupações por isso. Pude conhecer seres políticos, seres revolucionários, percebi que a minha escola era um ambiente que tinha pessoas incríveis, professores incríveis e alunos incríveis (Esperança).
Entretanto, ao menos entre quem entrevistamos, houve uma (re)aproximação com organizações políticas ou coletivos juvenis, ainda que não necessariamente na forma de engajamento militante, nem de modo permanente, conforme Quadro 1. Em relação às juventudes partidárias, Terra aprofundou sua militância no LPJ e Esperança ingressou nas Brigadas Populares; por sua vez, Transformação 2 se aproximou do PSTU e Descoberta da UJC, mas não se filiaram. Das entidades estudantis, Coletividade ingressou em executiva estudantil e Transformação 1 de centro acadêmico. Dos coletivos juvenis, Autonomia se aproximou de coletivo negro da universidade e Transformação 2 atuou em coletivo de mulheres por certo tempo.
É possível avaliar que, entre as pessoas entrevistadas, esta aproximação com as organizações e coletivos de caráter político foi menos regular e homogênea em comparação com o ingresso na educação superior. No entanto, não há como negar a intensa politização, em sentido democrático e progressista, propiciada pela participação nas ocupações, com a ajuda ainda de dois dados colhidos nas entrevistas: a maioria das e dos ocupas, mesmo quando manifestava algum interesse prévio por política, nunca tivera nenhum tipo de participação política ou envolvimento partidário; e todas as pessoas entrevistadas declararam ter votado em candidaturas de centro-esquerda nas eleições presidenciais de 2018.
As ocupações tratadas como política, no sentido de Rancière, perfazem processos de subjetivação política que, em vez de afirmar ou criar identidades, as colocam em suspenso ou as atravessam. Por isso, Rancière (2014, p. 72) também tem definido a subjetivação política como desidentificação.
Subjetivação política é a elaboração coletiva que se dá pelo reconhecimento de estar ‘entre’ identidades e não a partir da valorização, do fortalecimento ou da cristalização de uma identidade dada. É uma propriedade imprópria que se caracteriza pela sua negatividade (por aquilo que ela não pode ser) e se constitui em uma equação impossível capaz de interpelar, de um lado, a equação aritmética, que equilibra perdas e ganhos, e, de outro, a equação geométrica, que justifica méritos associando uma qualidade a uma posição social (Machado, 2013, p. 271).
Certamente, quando se encerra o tempo provisório da política, as pessoas reassumem identidades preexistentes, ou então, buscam e assumem outras. Mas a experiência de ocupar tem sido marcante, como temos constatado nas entrevistas que temos feito. Ela impacta as e os ocupas, em diferentes graus e de formas diversas, em suas trajetórias educacionais, opiniões políticas, relações familiares, orientação sexual, na religiosidade, entre outros aspectos. Suas reconstruções de identidades sempre serão afetadas por essa experiência.
Ainda, e talvez mais importante, já que estamos tratando de sujeitos adolescentes, em geral das classes populares - que, no retorno da ordem social, tendem a ter menos liberdade para a escolha -, os efeitos da subjetivação política se observam a médio e longo prazo, como uma experiência gravada na memória e no corpo. Trata-se de algo que Rancière (1988) constatara entre sujeitos do proletariado francês no século XIX, eles próprios deixados ao largo da comunidade política então reconhecida. A experiência da subjetivação política pode, a qualquer momento, a depender da oportunidade, sair do estado da latência, ser ressignificada e mobilizada, tanto pela adesão a novas ações coletivas e a abertura a novos processos de subjetivação política, quanto para a necessária reconstrução das identidades conforme se percorrem os ciclos de vida.
Considerações Finais
Esse artigo teve como objetivo analisar o sentido das ocupações e o impacto dessa experiência na voz de ocupas capixabas de 2016. Para tanto, apresentou a inserção de adolescentes dentro de um movimento com pautas nacionais antiregressivas, ao qual se acrescentaram pautas estaduais, relacionadas às formas de fragilização da educação assumidas no ES, assim como pautas locais, que denunciaram, a depender da escola, desde a precariedade da infraestrutura escolar ao autoritarismo da direção.
Também, o artigo buscou compreender o movimento das ocupações como expressão política de uma unidade de geração progressista, fazendo frente tanto quanto sendo combatida por outra unidade de geração, conservadora. Deste modo, temos que a dialética da juventude, se não gera necessariamente grupos, movimentos e valores juvenis autônomos ou rebeldes, quando o faz, não cria produtos necessariamente de esquerda ou progressistas. Podem até surgir mobilizações juvenis conservadoras e até fascistas, mesmo quando se imaginam como contestadoras e inovadoras, tal qual os grupos de extrema-direita que participaram do Desocupa em 2016 e têm sido fonte de apoio do atual presidente.
O movimento de ocupação estudantil, ocorrido no ano de 2016, no ES, teve bastante similitude ao ocorrido em outros estados brasileiros. Tratou-se de um momento de mobilização política e autoformação de extrema relevância para as histórias individuais de quem entrevistamos, mas também para a história brasileira. As e os ocupas do ES construíram o mais forte movimento de luta do estado da última década, demonstrando a força da juventude organizada, especialmente auto-organizada. Esse grupo de jovens conversou diretamente com secretários de estado, profissionais do Direito, representantes políticos de diversos partidos, lideranças de movimentos sociais, polícia militar e mídia local.
A participação de tais adolescentes em uma ação política geradora de dissenso, capaz de desafiar governos, interpelar o poder judiciário e reorientar até mesmo a práxis de organizações políticas de esquerda, constituiu um potente processo de subjetivação política e, portanto, formativo. O processo formativo trazido por essa experiência marca hoje a atuação de tais jovens em outros espaços, seja na universidade, seja em organizações políticas e coletivos juvenis. Esse processo ainda tem impactado a definição de seus projetos pessoais, trajetórias escolares, orientação sexual e identidade religiosa, entre outros aspectos. Mais uma vez, temos que a importância de um movimento social, em especial juvenil, não se pode medir apenas pela vitória de suas pautas imediatas, tendo de se considerar a influência na biografia de seus sujeitos e a inovação social e política que pode promover, ainda que de forma sutil e subterrânea, como o movimento das ocupações secundaristas.