15 de outubro de 2014. Viver 64 anos como quem escreve. Escrever vivendo. Viver a docência por 42 anos (1972 – escrevendo). Reviver na pesquisa. Fabular gostos, desgostos, descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens, poses, figuras, músicas, afectos. Como é, para ela, o que não fala, sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio da generalidade (Corazza, 2014c)1.
02 de outubro de 2017. Aquilo que o nosso ofício compreende não é um significado consistente, um sentido determinado, tampouco um mundo compreensível; mas uma dúvida a formular, um texto a escrever, uma abertura estilística que ultrapassa o princípio de realidade, forçando passagem além dos próprios limites, do peso dos dados mobilizados, da violência desreguladora dos signos e da ousadia da mão que sonha (Corazza, 2017)2.
13 de junho de 2019. Esta palestra trata da docência como potência vital, isto é, como forma de existência, capacidade de persistência, enlaçamento com uma certa tristeza e fascinação pelas pequenas alegrias. Docência como tarefa esperançosa de não ser engolida pelo caos e como agitação do lado menos feio do humano. Docência como poética, que insiste e perdura feito um castelo no ar. Docência de Sheherazade que, por não encontrar propriamente função no mundo real, oferece-se como uma fantasia, prestando-se melhor para o desfrute (Corazza, 2019a)3.
18 de maio de 2020. Eis que, mais uma vez, a história se faz. Tudo o que a professora construiu na vida foi feito não apenas de letras ou de frases ou de tinta, mas dela... e de tudo que ela nem sabia que dentro dela havia (Munhoz; Costa; Lulkin, 2020)4.
Nada está dado
De fato, nada está dado na docência. Talvez se trate mesmo de uma experiência em gestos que nos permite abandonar o que somos para nos tornarmos outro. Um exercício de experimentar-se a si mesmo como dissolução de uma identidade docente em defesa de um modo de existir no mundo. E novamente, nada está dado, pois “[…] existir é sempre existir de alguma maneira” (Lapoujade, 2017, p. 89), o que implica encontrar “[…] uma maneira especial, singular, nova e original de existir” (Lapoujade, 2017, p. 89).
Uma docência existe na relação com o mundo. Outrossim, não existimos fora de um mundo. Existimos com e no mundo, o que envolve a relação entre uma existência e a existência do mundo. Tomar uma docência nessa perspectiva, parece estar relacionada ao que lembra Hanna Arendt (2016), ao mencionar a educação como um amor ao mundo, um amor às crianças e a possibilidade de fazer continuamente novos começos no mundo.
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele [...]. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não as expulsar de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos
(Arendt, 2016, p. 146).
Não é sem razão que, para Arendt (2016), há uma impossibilidade de permanecermos mestres únicos do que fazemos, uma vez que, mais do que abrir começos aos outros, encontramo-nos diante de um compromisso ético de como os outros continuarão os nossos começos, os repetirão, produzirão novos começos. Atitude atrelada à docência, diante do fato de todos nós “[…] virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento” (Arendt, 2016, p. 146). Daí decorre o modo como dedicamos o nosso amor ao mundo, afinal, “[…] o mundo é, exatamente aquilo que impede de nos fecharmos sobre nós mesmos e nos possuirmos absolutamente” (Lòpez, 2015, p. 229). Se estamos falando da docência, isso diz respeito a ocuparmos um determinado lugar no mundo e desse ponto, partilhá-lo. Escolher tal lugar, de onde o partilhamos, é uma escolha. A afirmação de uma maneira de existir. Talvez tenha a ver com uma pergunta feita pelo filósofo Peter Sloterdijk (2016, p. 29), “[…] onde estamos quando estamos no mundo?”
Uma docência consiste num modo de existir. Nada está dissociado de uma existência, mesmo que, como afirma Étienne Souriau (2020, p. 7), “[…] vemos a existência ora desabrochar em múltiplos modos, ora voltar a ser uma”. Segue-se o fato de que um modo de existir é inseparável de um processo de subjetivação e não pode se confundir com um sujeito, “[…] a menos que se destitua este de toda a interioridade e mesmo de toda a identidade” (Deleuze, 2007, p. 123). Nessa direção, se tomarmos a docência como um modo de existir, ela estaria vinculada não apenas a determinadas práticas de ensinar e aprender, mas também a modos inéditos de ser e fazer em meio a um espaço comum. Isso porque, embora o âmbito da existência seja singular, ele não se dá isoladamente, mas se esculpe num território comum. Tal modo inédito de existir, exige um investimento feito no campo da própria experiência subjetiva, de maneira que, o que um professor ensina não estaria separado da forma como encarna aquilo que ensina. Portanto, um modo de existir é inseparável da maneira como vivemos, pensamos, agimos. “Dizemos isso, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? [...] São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro” (Deleuze, 2007, p. 126). Mas por que motivos é tão difícil existir diferentemente no campo da educação? Por que os discursos acerca da educação ou mesmo as práticas pedagógicas se constituem de modo tão semelhante e identitário? Foucault (2004) nos ajuda a pensar que ao produzir e legitimar determinados discursos, também moldamos modos de existir e agir. E voltamos às palavras de Souriau (2020, p. 9): “[…] quanto mais esses seres tornam-se multidão, mais seu status existencial torna-se semelhante e único”. Produzimos assim modos de ser professor relacionado a determinadas maneiras de agir, de organizar uma aula, de regular as práticas docentes. Mas Deleuze nos pergunta: “Quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida, ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos constituirmos como ‘si’, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente ‘artistas’, para além do saber e do poder?” (Deleuze, 2007, p. 124). Existir como docente não significa ser idêntico a si mesmo, mas antes estar do lado de fora de si, liberando-se das formas da representação. Trata-se, portanto de um movimento de se experimentar a si mesmo, produzindo torsões a tudo aquilo que limita a um modo único de existência docente. Um exercício ético e estético sobre si mesmo, marcando a existência de mundos singulares. Há que se buscar vias de acesso à potência de criação em si mesmo, um trabalho de experimentação sobre si que demanda uma atenção constante, definindo se podemos “[…] existir um pouco, muito, apaixonadamente, de modo algum…” (Souriau, 2020, p. 18).
Uma docência subsiste na criação de gestualidades. O que o professor ensina, mais do qualquer saber, é o modo de fazer a sua prática enquanto docente-pensador, implicado num modo de existir. De certa maneira, trata-se de criar uma espécie de memória invisível (Rolnik, 1993), composta por encontros que instauram uma abertura para a existencialização da diferença. Essa memória invisível é, portanto, onde se produzem os devires, os modos de existência singulares de uma docência. São gestos menores, marcas vividas no corpo, no encontro com outros corpos, arrancando-nos do lugar identitário do professor. Um modo de existir “[…] que se faz visível através de formas particulares e gestos precisos” (Larrosa et al, 2021, p. 12). Por tal razão, talvez digam mais de uma askesis – uma certa relação prática consigo mesmo – do que de uma memória pessoal, encarnada em um sujeito.
Uma docência exige um ponto de vista criador. Desse ponto de vista criador, o professor produz seu trabalho com o pensamento. Mas uma docência só será atravessada pelo ímpeto da criação se desprender-se da perspectiva de uma prática que se pauta em uma inércia pedagógica, em meio a qual, o que mais vale é o ensino de um saber. Uma docência criadora raspa os clichês das formas estratificadas e propõe-se a experimentar e perguntar: de que modo, em meio a textos, teorias, fragmentos literários, escrituras, imagens, práticas corporais, reinventar a cada dia uma prática docente? Mas o que ensina um professor? Algo que resiste a um legado, que se faz repertório no arquivo da docência, em meio ao qual tal professor pesquisa, seleciona e rearranja seus materiais, estuda, ensaia e oferece a matéria aos seus estudantes. E o que ele oferece? O seu trabalho de pensamento, de tradução e criação, transformado em matéria viva.
Uma docência persiste em dobrar determinada noção de formação. Logo, “[…] não se trata da noção de sujeito estável, essencialista, passível de ser emancipado e nem de uma formação cuja finalidade esteja predefinida ou com um ponto de chegada preestabelecido” (Loponte, 2013, p. 36). Pelo contrário, trata-se de uma formação que lança mão das formas que se adquiriu como sujeito e abre-se àquilo que está em vias de se tornar, o que envolve não se identificar com um perfil, ou forma de professor, mas com um movimento de se diferir de si, constituindo modos singulares de existir na docência. Certo é que não aprendemos um modo de existir na docência em nenhum curso de formação, o que não significa que a formação docente, em seus diferentes níveis, não seja importante. Mas para além dela, percebe-se que há um mundo fora de seu próprio mundo ou dos limites do mundo vigente. “Essa transformação é o que queremos referir como formação. Esse novo ‘eu’ é acima de tudo um eu da experiência, da atenção e da exposição a alguma coisa” (Masschelein; Simons, 2018, p. 48). É um modo de existência que se transforma na experimentação e na criação de uma docência, pois “[…] fazer existir é você fazer existir alguma coisa que você não empresta do existente” (Deleuze, 1983, s.p., tradução minha). Nesse sentido, existir de um determinado modo na docência só pode ser produzido no próprio exercício da docência. Afinal, só se pode dizer o que se é quando já se viveu.
Uma docência insiste em resistir. Resistir às forças que buscam despersonalizar os modos docentes de existir. Esvaziar a docência de toda a singularidade, imprimindo modos generalizáveis de um pensar e fazer pedagógico. Entre outros fatores, que não serão abordados aqui, pode-se compreender que essa despersonalização da docência decorre da ascensão de uma lógica da aprendizagem, a qual segundo Gert Biesta (2020, p. 22), “[…] transformaram o professor, que era o ‘sábio-no-palco’ e o tornaram um ‘guia-que-anda-junto’ – um facilitador da aprendizagem”. Essa lógica da aprendizagem, presente nas pedagogias contemporâneas, desvia a atenção no ensino e no professor em defesa de uma construção ativa do conhecimento por parte do estudante. Logicamente que essa aposta em uma sociedade aprendente está a serviço de uma economia capitalista global que necessita de força de trabalho flexível, adaptável e ajustável. É nesse sentido que resistir é colocar-se em exercício de suspeita frente ao que está dado, ao que já foi pensado, ao que insiste em perdurar como verdade na docência.
Uma docência traduz-se em potência de vida. Portanto, nos afastemos dos afectos tristes, pois aquilo que nos desola também é a força que se transforma em um canto de alegria, em uma potência de mais vida na docência.
Dos Ensinamentos de uma Docência
A ideia da docência parece já haver ultrapassado a sua ênfase tecnicista, humanista, marxista, construtivista, psicanalítica, crítica ou pós-crítica, de maneira que o processo de pensá-la é hoje, quando muito, de revisão. Talvez por isso nos obstinemos, antes de buscar a elaboração de novos problemas, na exposição ou na refutação daquilo que já dissemos, percebemos e sentimos, de modo que a questão da docência seja discutida em função de um erro anterior, de uma inflexão passada, de uma verdade já coadjuvante. Curioso método negativo, exercido sobre uma matéria que, inobstante, nos daria o que pensar, diante da urgência de reinventá-la
(Corazza, 2019b, p. 3).
A exaltação de um furor pedagógico marca a trajetória de Sandra Mara Corazza (SMC) na educação. Dentre muitos temas estudados e pesquisados, a docência talvez seja a que mais tenha ocupado a sua vida e as suas linhas de escrita.
Através da decomposição das formas que compõem os códigos e cânones da docência, SMC fabula noções, conceitos, compõe neologismos, palavras-valises, cria novos problemas para a docência, inventa gestos que lhe são próprios. Muitos deles movimentam o pensamento da docência de muitos professores e pesquisadores, provocando inquietações, humores, non-senses, na mesma medida em que os desafiam ao rigor de uma docência e às possibilidades de sua criação.
Nos excertos que iniciam esse texto, pode-se ler, por meio das palavras de SMC, uma docência que não se esgota em repetir discursos-clichês do campo da educação. Atravessada por pensadores da Filosofia da Diferença, mas também por literários, poetas, artistas, tradutores, SMC sempre se colocou contra as generalizações do pensar, criando um modo singular e poético de existir na docência.
Mas poderíamos indagar: de onde essa poeta-professora extraiu sonhos para criar uma docência poética? (Corazza, 2019b). Pois Ela mesmo responde: “[…] a docência poética não requer sentido, significação abstrata, juízo de valor, ruminação sobre a natureza do professor, pois ser um sonhador de aulas é viver nesse mundo e, a um só tempo, projetar uma cidade de sonhos” (Corazza, 2019b, p. 8)
SMC não só projetou a sua cidade de sonhos, mas também viveu nela de modo intempestivo. As suas aulas eram a prova disso. Em cada aula, percebia-se a experimentação do pensamento, o trabalho de pesquisa, a criação de procedimentos, a invenção de uma língua própria, o exercício de tradução e de escrita, as traduções das matérias da vida e do currículo. E tudo ocorria em meio a uma gestualidade própria fazendo vibrar os corpos que nas aulas se encontravam. Ademais, para viver o seu sonho de docência, criou e fabulou inúmeras noções e conceitos, os quais estão distribuídos em várias de suas obras. Interessante perceber que os conceitos/noções se movimentaram, foram acrescidos de intercessores, rearranjados em outros agenciamentos, compostos com outros elementos, perfurados por imagens e figuras, mantendo assim a força da disrupção. Isso porque SMC sabia que em educação não se recomeça do zero, mas é sempre de um arquivo que se parte.
Destacaremos algumas dessas noções/conceitos com a ressalva de que, para este texto, pouco importa em que momento cada conceito/noção foi criado, colocado em operatividade, abandonado, repetido ou transcriado. Tampouco há qualquer pretensão em esgotar os sentidos, as conceituações, as experiências provocadas por cada um deles. O propósito é apenas, de forma breve, dar a ver alguns desses conceitos/noções que percorreram os seus estudos e pesquisas acerca da docência.
Docência Crítica
O compromisso com a educação pública marcou fortemente o início da vida docente de SMC. A partir dos estudos críticos, de base marxista e freireana, SMC tomou a docência como campo político e território de lutas. Período preparatório, temas geradores, dialética, currículo oculto, Estudos Culturais ocuparam os seus estudos, nesse período. Contudo, desde seus primeiros textos, já mostrava que a docência não está separada da vida e de modos de ler o mundo. Na realidade, sabia que a docência se compunha de uma força capaz de transgredir o existente e inventar o novo, fabricando “[…] o que ainda não existiu nem existe, mas que nós podemos fazer existir, justamente porque temos uma história que dá sustentação para isso” (Corazza, 2005, p. 12). Pode-se dizer que, desde logo, o seu compromisso com a docência nunca foi o de negar as nossas heranças, mas transformá-las em “[…] outras coisas, diferentes, inéditas, novidadeiras, para também deixá-las de herança àqueles que virão depois de nós” (Corazza, 2005, p. 12).
Uma Vida de Professora
Uma vida como imanência (Deleuze, 2016). Nem sujeito, nem objeto, tampouco algo entre eles. Uma vida, não a vida. Não a vida docente – prescritiva, essencialista, identitária, narcísica. Mas uma vida docente “[…] impessoal, que precede hábitos, rotinas, regularidades, posições de sujeito, objetos reconhecíveis, valores instituídos, normas legitimadas, ordens estabelecidas, verdades transmitidas” (Corazza, 2013b, p. 163). Trata-se um artigo indefinido – uma vida - e tal como sugerem Deleuze e Guattari (1996, p. 28), “[…] ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado, mas exprime a pura determinação de intensidade, a diferença intensiva. O artigo indefinido é o condutor do desejo”. Nessa perspectiva, a ideia de uma vida docente, cunhada por Corazza (2018), diz respeito a uma docência que não se iguala a nenhuma outra e por isso precisa ser criada, “[…] com o que nela existe de mais notável: o mínimo de sugestão prescritiva” (Corazza, 2018, p. 12). A docência, portanto, é tomada como uma assinatura intraduzível, pois afirma a autora, “[…] um docente, assim, não é este docente (um ente particular); nem é o conjunto dos docentes (uma multiplicidade de entes particulares); tampouco pode ser confundido com o conceito Docente (um universal)” (Corazza, 2013b, p. 127). Em suma, trata-se de uma vida docente feita de singularidades, acontecimentos, fluxos. Uma vida docente em devir, pois “[…] o docente, com os seus devires, converte-se em índice da mais alta potência: a evidência da singularidade não perecível e insubstituível de uma vida de docência” (Corazza, 2013b, p. 138).
Docência como Vontade Criadora
Vitalismo de toda criação. Vontade criadora de tudo aquilo que é vivo. Força de vida imanente a todas as coisas. Pulsação vital. Relações de força exercendo-se sobre uma linha de vida e de morte que não cessa de se dobrar e de se desdobrar, traçando o próprio limite do pensamento […]
(Corazza, 2013a, p. 163).
A noção de docência como vontade criadora é transcriada, por Corazza, do conceito de vontade de potência de Nietzsche, o qual afirma: “[…] a vontade de potência é a vontade de durar, de crescer, de vencer, de estender e intensificar a vida. É a vontade de Mais” (Nietzsche, 2017, p. 110). Em meio à afirmação de uma vontade ativa e criadora da docência, SMC nos provoca a pensar: qual é o motor político e a alegria subjetiva da nossa profissão? Qual é a força de trabalho que traz vitalidade às nossas existências (Corazza, 2016, p. 1314)? A vontade criadora consiste em uma potência disparadora da vontade de educar, mas também é a aposta em uma nova ética de trabalhar e viver a docência, na contramão das forças que apequenam a vontade inventiva. Trata-se de uma vontade de vida que quer se afirmar com alegria, fazendo que uma docência seja vivida poeticamente. É essa vontade criadora da docência, que nas palavras de SMC, “[…] estimula os acontecimentos, as novidades e o pensar no pensamento educacional, fazendo nossa profissão ser vivida como poesia e dotando-a de uma disposição trágica: isto é, da capacidade que temos de nos decidir politicamente pela responsabilidade vital de educar” (Corazza, 2017, p. 112).
Artistagem Docente
Como criar uma artistagem docente? Pergunta-nos Corazza (2013b, p. 119). E em seguida já postula uma saída “[…] engendrar, encontrar e seguir alguma resposta de tristeza ou de alegria, de juventude ou de velhice, de ânimo ou de cansaço, de vida ou de morte, é o que configura a covardia ou a coragem de cada docente artistador” (Corazza, 2013b, p. 119). A ideia de uma artistagem docente ou de um docente artistador foi inicialmente o tema de seu livro, publicado em 2016, intitulado Artistagens: Filosofia da diferença e educação (Corazza, 2007). Mais tarde, em 2013, em uma entrevista publicada na Revista Artifícios, SMC responde a Thiago Oliveira: “Se imitar, copiar, fazer decalque, chafurdar nos clichês, repetir o mesmo não funciona mais, por termos explodido os cercados e as segmentações territoriais do currículo, só nos resta artistar, não é mesmo?” E ainda na mesma entrevista: “A lei da vida docente vívida, e que vale a pena ser vivida, poderia ser: artistar, de vez em quando, ao menos, para continuar vivo” (Oliveira, 2013, p. 5). Ora, é disso que se trata, insistia SMC. Se há algo que desde logo SMC defendeu é que, ao exercer a docência, o professor cria, inventa, se experimenta, pois sabe que “[…] toda didática criada não pode ser menos do que resultado de alguma artistagem, dedicada a verter elementos que valem à pena” (Corazza, 2013b, p. 190).
Docência-pesquisa
Em um dado momento, a noção de docência-pesquisa também ocupou as linhas de escritas de SMC. Daí decorre a defesa corazziana de que “[…] todo professor é um pesquisador; possui um espírito pesquisador; entra em devires-pesquisadores, enquanto educa. Caso não fosse assim, como ensinaria? O quê e como ensinaria?” (Corazza, 2011, p. 14). E, uma vez mais, SMC discorre sobre uma docência que, ao pesquisar, rejeita às verdades, os resultados fixos, as certezas instituídas. Afinal, afirma SMC (2011, p. 15), “[…] para educar, pesquisamos, procurando e criando, para ensinar; ensinamos, pesquisando, para procurar e, também, para criar”. Mas, o que é que procuramos? Diz ela: “Nós fazemos a pesquisa-que-procura e ensina” (Corazza, 2002, p. 54) e “[…] experienciamos esta pesquisa-ensino, porque já não podemos mais receber e aceitar os conhecimentos, linguagens, formas de raciocínio, técnicas normativas, tipos de experiência da docência moderna… sem questioná-los” (Corazza, 2002, p. 56). Portanto, para a autora, não há docência sem pesquisa “[…] docência sem pesquisa não existe, nunca existiu, nem existirá” (Corazza, 2011, p. 13); logo, a docência sempre foi pesquisa e a pesquisa sempre foi e sempre será docência.
Docência Escrileitora
Escrileitura é palavra-valise criada por Corazza, a partir da qual ela afirma: “[…] ler-escrever é fazer escrileituras” (Corazza, 2020, p. 9). Proposto desde o seu livro Cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação (Corazza, 2008), a escrileitura configura uma escrita-pela-leitura ou uma leitura-pela-escrita, o que também implica ler-escrever uma vida docente. É de seu agenciamento com Roland Barthes que decorrem vários movimentos escriturais – Vidarbo. Biografemática. Do prazer de ler ao desejo de escrever. Fantasias de escritura. Ler-e-escrever uma aula. Desse lugar, SMC inscreve: “Viver como quem escreve. Escrever vivendo. Viver escrevendo. Reviver […]. Fabulação de gostos, des-gostos, descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens, poses, figuras, músicas, afectos” (Corazza, 2014b, p. 61). O que se pode dizer é que, a partir daqui, amar + escrever compuseram o gesto docente de SMC, de modo que a docência não poderia mais ser pensada fora da escrita e vice-versa.
Docência Transcriadora-tradutória
O que se transcria em educação? (Corazza, 2013b) O que fazemos criadoramente como professores? (Corazza, 2019b, p. 3). Tomando como intercessores Haroldo e Augusto de Campos, Corazza (2014a) relaciona a prática do educador com a do tradutor, transformando a imagem do educador como aquele que se situa em um mero transmissor da matéria original. Nessa medida, SMC propõe pensar que
[…] o professor não se obriga a transmitir o conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos originais […], não faz cópia, dublagem ou fingimento; não é um bufão, escravo ou ladrão dos autores e obras que traduz; não busca a autenticidade textual; não preserva a essência dos originais […]
(Corazza, 2013b, p. 191).
No avesso disso, em meio a uma didática de tradução, o professor transcria a matéria a sua maneira, o que só se torna possível quando o professor domina a tradução colocando o “seu próprio ser dentro dela” (Corazza, 2013b, p. 195). Assim, a docência inventa currículos e didáticas por meio da tradução transcriadora. “Tradução que se, por um lado, transmite, recupera e preserva a tradição; de outro, transgride os cânones científicos, artísticos e filosóficos, ao transcriar obras, autores, fórmulas, funções, valores, maneiras de existir e modos de subjetivação” (Corazza, 2020, p. 20). Seja como for, a tradução é sempre um gesto antropofágico, um ritual que inicia quando experimentamos o pensamento, tornando “[…] indiscerníveis as fronteiras entre os nossos textos e os de outros” (Corazza, 2008, p. 230). Não é por acaso que a docência, para Corazza, é uma artistagem, em meio a qual o educador fabrica uma Didática-Artista, movimentando os seus processos de pesquisa, criação e transcriação tradutória, os quais, por sua vez, invadem a didática e o currículo. “Ora, Didática é artista; além disso, não é nada menos que tradução” (Corazza, 2012, p. 15). Em outras palavras, diz SMC:
O encargo artistador da docência tradutória é possibilitar as suas próprias condições de invenção; o que implica engendrar um solo comum para criações originais. Docência, como abertura direta para o jogo da diferença das matérias, engajada num processo de desdobramento contínuo. Docência pensada como oxímoro de criação absoluta, enquanto tradução para várias línguas ao mesmo tempo. Docência que consiste, ao mesmo tempo, em uma arte, um saber e uma technai da tradução, liberta da oposição entre conhecimento arraigado e conhecimento adquirido. Docência, que toma a tradução não como modo de representação, mas como medium de formas – afirmação explícita, insinuação, alusão codificada –, que revela a sua natureza poética e onírica, sem remissão à eternidade da matéria. Docência que realiza construções autônomas, aglutinando momentos de véspera com cenas de anteontem, e expressando o eterno retorno da diferença em seu caráter infinitivo
(Corazza, 2021, p. 13).
Traduzir – A-traduzir o Arquivo Da Docência
O arquivo da docência é a matéria que nos dá a traduzir. Portanto, expressa Corazza (2021, p. 5): “[…] traduzir é um trabalho feito com a matéria daquilo que o Arquivo da Docência é para mim, no sonho de uma vida inteira de professora-pesquisadora, como poeta tardia e autora estrangeira que sou desse mesmo sonho”. A tradução do arquivo docente é uma tarefa constante, parte de um fazer da docência em meio a qual a matéria de uma aula é produzida, atualizada, reinventada por uma didática, combinada, reorganizada e disposta em um currículo. Mas há uma parte criadora da matéria que resiste à tradução organizada, permanecendo na condição de a-traduzir. Trata-se de “[…] imagens impensadas, signos desconhecidos, lugares inexistentes, tempos indefinidos, ideias inominadas, assinaturas, nomes próprios, poemas e sonhos” (Corazza, 2021, p. 8). Assim, “[…] traduzir a matéria intraduzível é participar de uma relação com outros; na qual, a cada tradução, é inventada a nova e única matéria. Porém, se insistirmos demais em traduzir o intraduzível, corremos o risco de criar a prioris, aporias e axiomas” (Corazza, 2021, p. 9). Com efeito, a docência, no exercício de sua profissão, opera entre os movimentos de traduzir e a-traduzir, o que compõe uma
[…] equação da traduzibilidade/traductibilidade e da intraduzibilidade/intraductibilidade; traduzível como ilusão de tradução; traductível como a tradução que renegocia com a matéria de origem; a-traduzir como a ruína, o que escapa, o que cai, o que foge, o que acontece, o que prenuncia a morte
(Corazza, 2021, p. 7).
Esse lugar indecídivel entre traduzir e a-traduzir, é para Corazza (2020, p. 154) “[…] o lugar por excelência dos professores e pesquisadores”.
Sonho da Docência
Por último, o sonho. O direito de sonhar na docência. “Em nosso caso de professores, o sonho é aquilo que tangencia, que toca, que espaça e que inscreve a Docência; logo, o Currículo, a Didática e a Aula” (Corazza, 2021, p. 3). O sonho é intraduzível, de modo que “[…] nada que não exista no sonho existe” (Corazza, 2021, p. 4). Mas em coro com Corazza, poderíamos afirmar que a vida é sonho? Ou que sonhamos a vida? “O sonho nos põe diante de questões que clamam por sentido e por respostas, que costumam não chegar. Isso se não for o próprio sonho a questão indecidível” (Corazza, 2019c, p. 18). As ideias docentes são como sonhos, mas temos acesso a esses sonhos? Temos direito ao sonho da aula? Desejamos sonhar esses sonhos? “Eu sonho, eu sonho, tão amiúde, que me vejo a-traduzir o Arquivo, por excelência, da Docência”. (Corazza, 2019c, p. 14). O sonhar da docência é o trabalho de uma vida inteira de SMC ‒ “[…] feito com a matéria daquilo que o Arquivo da Docência é para mim, no sonho de uma vida inteira de professora-pesquisadora, como poeta tardia e autora estrangeira que sou desse mesmo sonho” (Corazza, 2021, p. 5)
Em um de seus últimos textos, Corazza (2020), anuncia que trabalhou com cinco conceitos/sentidos e cinco proposições sobre a docência, talvez como um modo de organizar tais conceitos/noções, os quais percorreram as suas últimas obras.
Conceitos/Sentidos
Arquivo: como tradução (canto, sonho, poética) da tradição.
Traduzir + A-traduzir: equação da operância vital da docência.
Currículo & Didática: como sonho de arquivo
Aula: espaço-tempo tradutório por excelência do currículo e da didática
Docência: como direito de sonhar e de poetizar
Proposições
Primeira Proposição: – É necessário traduzir.
Segunda Proposição: – Não tocar na matéria original
Terceira Proposição: – Preservar a singularidade do intraduzível.
Quarta Proposição: – Deixar a tradução contaminar a Docência.
Quinta Proposição: – Como tarefa impossível e aporética, a Docência requer traduzir e ser traduzida.
Da Docência na FACED/DEC/PPGEDU
Após alguns anos lecionando e alfabetizando em escolas de periferia da Rede Estadual do Rio Grande do Sul, SMC inicia sua vida docente no Ensino Superior. Primeiro na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (1987-1989), depois na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (1990-1994) e, em 1992, na Universidade Federal d Rio Grande do Sul (UFRGS), ingressando como professora substituta da Faculdade de Educação. Em 1993 realiza concurso para o Departamento de Ensino e Currículo (DEC), área “Séries Iniciais e Educação Infantil”, sendo efetivada como Professora Assistente da Faculdade de Educação (FACED), categoria em que permanece até 2014, quando promovida à professora titular.
Currículo e didática sempre foram temáticas presentes nas disciplinas que ministrava na graduação. No memorial que elabora para promoção à professora titular (Corazza, 2014b), é possível perceber as variações que propunha a cada nova oferta de disciplina, reinventando as suas súmulas. A criação de uma didática, defendida em seus inúmeros textos, era atualizada, na medida em que trazia novos problemas às matérias ensinadas. Foi assim que, antes de sua aposentaria, SMC faz a proposição e elaboração de uma nova disciplina na área de didática, oferecida a diversas licenciaturas, a qual intitula Docência, pesquisa – aula, método e educador e que, segundo Costa (2022), “[…] é um gesto definitivo de SMC na sua história como professora de graduação”. Trata-se de uma disciplina que deixa como herança toda a sua obra. Para Costa (2022), o modo como as unidades analíticas de aula, método e educador são propostas nessa disciplina – a qual SMC lutou, sonhou, fabulou, fez força para que entrasse no currículo – estão diretamente vinculadas a forma como ela entendeu a formação e a prática docente, no vínculo imanente entre docência e pesquisa.
Já no Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS (PPGEDU/UFRGS), SMC ministra o primeiro seminário em 2000/1 e o último, em 2020/2. Mesmo após a sua aposentadoria, em 2019, mantém-se como professora convidada, compondo a Linha de Pesquisa 09 – Filosofias da Diferença da Educação. O arquivo de seus seminários, oferecidos no PPGEDU, mostra os estudos que a acompanharam durante essas duas décadas. São encontros com diferentes autores, conceitos e problemas, assim como a invenção de métodos e procedimentos que eram operados nas pesquisas com seus orientandos. Os códigos embaralhados entre Filosofia, Arte, Ciência, Literatura e Educação se transformavam, a cada semestre, em lições aterradoras e inquietantes. O Quadro 1 abaixo apresenta os 91 seminários ministrados por SMC no PPGEDU, no período de 2000 a 2020.
Seminário Especial (SE): Los caprichos de Goya e Breviário dos sonhos em educação – 2020/2 | LD: Diferença e Repetição: pensamento da agressão – 2011/1 |
Práticas de Pesquisa (PPE): Sonhos em Educação – 2020/2 | PPE: Didaticário de Criação: Oficinas de Escrileitura – 2011/1 |
Leitura Dirigida (LD): A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular – 2020/2 | SE: Educação dos Sentidos, Pedagogia do Problema – 2010/2 |
PPE: Docência-pesquisa – 2020/2 | PPE: O que é ter uma ideia em educação? – 2010/2 |
PPE: Sonhos em Educação – 2020/1 | SE: Pensamento da diferença: filosofia, educação, literatura – 2010/2 |
LD: A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular – 2020/1 | SA: O que é o ato de criação? Método Valéry-Deleuze – 2010/2 |
SE: Aula: escrileituras em sarau – 2019/2 | PPE: Método de Escrileitura: “Há sempre um drama sob todo LOGOS” – 2010/1 |
LD: Operações imagéticas em quatro proposições expressivas – 2019/2 | SA: O método de dramatização na comédia do intelecto: Valéry & Deleuze – 2010/1 |
PPE: Docência-pesquisa – 2019/2 | PPE: Escrita de Vidarbo – 2009/2 |
Seminário Avançado (SA): A-Traduzir o Arquivo em Aula: sonho didático e poesia curricular – 2019/1 | SA: Introdução ao método biografemático – 2009/2 |
PPE: A-Traduzir o Arquivo da Docência-Pesquisa – 2019/1 | SA: A Biografemática: escrileitura de vida – 2009/1 |
SE: Paul Valéry: aula como poética espiritográfica – 2018/2 | PPE: Biografólogos: atores de escrita – 2009/1 |
PPE: A-Traduzir o Arquivo em Aula: sonho didático e poesia curricular – 2018/2 | SE: Oficinas De Escritura Vita Nova (Oevn) – 2008/2 |
LD: Platão e o Simulacro em Aula – 2018/1 | PPE: Fantasias de escrituras – 2008/2 |
SE: Os homens do Lobo: Freud, Lacan, Deleuze, Guattari – 2018/1 | SA: Em busca do romance perdido: a obra como vontade, a vida como obra – 2008/2 |
PPE: Arquivo e Poética de Aula – 2018/1 | PPE: Fantasias de escrituras – 2008/1 |
SE: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia – 2018/1 | SA: Nova Prática de Escrita: para entrar vivo na morte, deixe os mortos – 2008/1 |
SE: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia – 2017/2 | PPE: A Crítica-escrileitura na Pesquisa em Educação: R.B.- 2007/2 |
PPE: Didática e Currículo: arquivos EIS AICE – 2017/2 | SA: A Crítica-escrileitura em Educação: deve-se queimar Roland Barthes? – 2007/2 |
LD: Signos transcriadores: o tempo e a verdade – 2017/2 | PPE: Scripturire em Educação – 2007/1 |
LD: O Espaço Eisaiceano: com Bachelard, Deleuze e Guattari – 2017/2 | SA: Fantasias de Escritura: Deleuze, Blanchot, Barthes – 2007/1 |
SE: E então, o que te traz aqui? – 2017/1 | PPE: Levar a língua para o deserto – 2006/2 |
PPE: Escrileituras da Diferença – 2017/1 | SA: Literatura menor em educação: função K. – 2006/2 |
SA: Docência-pesquisa da diferença – 2017/1 | SA: Monstros, Ciborgues e Clones: a Educ. nos limiares da Subjetividade – 2006/2 |
SA: Currículo e didática da tradução: toda invenção precisa de um arquivo – 2016/2 | PPE: Escrever: estratos, estratégias, dobras – 2006/1 |
PPE: EIS AICE – 2016/2 | SA: O Foucault de Deleuze: arquivo, diagrama, topologia – 2006/1 |
SE: Método de Transcriação Didática: a potência dos signos – 2016/2 | PPE: Geopesquisa: filosofia, ciência e arte – 2005/2 |
SE: Ensaios transdutores de um método: possibilidades de maquinações – 2016/2 | SA: O que é a filosofia da diferença? – 2005/2 |
PPE: Didática da tradução, transcriação do Currículo: escrileituras da diferença – 2016/1 | SA: O Anti-Édipo e a Esquizoanálise: uma Criança não Brinca apenas de Papai – 2005/1 |
PPE: EIS AICE – 2015/2 | PPE: Esquizopesquisa: Pensamento Nômade – 2005/1 |
SA: O professor-tradutor de EIS AICE: currículo e didática – 2015/2 | SA: Nietzcheducar por Deleuze – 2004/2 |
LD: Didática da tradução, transcriação do currículo: escrileituras da diferença – 2015/2 | SA: Deleuzeducar por Nietzsche – 2004/1 |
PPE: Escrileituras – 2015/1 | PPE: Pesquisar o Acontecimento: do Currículo, da Infância – 2004/1 |
SA: Tradução/Transcriação/Transculturação: aula/currículo/didática – 2015/1 | PPE: Aventuras em Pesquisa: Aion da Infância, Lógica do Currículo – 2003/2 |
PPE: Escrileituras: didática e currículo – 2013/2 | SA: Infancionática do Currículo: (Com Deleuze) – 2003/2 |
SA: Didática da Tradução, transcriações do currículo: escrileituras – 2013/2 | PPE: Pós-currículo, diferença e subjetivação de infantis – 2003/1 |
SA: Pedagogia da imagem e dos signos: aparições de Deleuze no cinema – 2013/1 | SA: Paradoxo da infância, diferença do currículo: no meio Deleuze – 2003/1 |
PPE: Pedagogia, didática e pesquisa da imagem e dos signos – 2013/1 | SA: Para educar as crianças de Deleuze: ideias problemáticas, pedagogia – 2002/2 |
SA: AICE no Cinema: signos do movimento e imagem-tempo – 2012/2 | SA: Encontro Deleuze: velocidade da infância, lentidão do currículo – 2002/2 |
PPE: Pesquisa de AICE: uma questão de imagem – 2012/2 | SA: Para uma Fil.do Inferno na Ed: Nietzsche, Deleuze & outros malditos afins – 2001/2 |
PPE: Dramatização na Comédia Intelectual de AICE: método Valéry-Deleuze – 2012/1 | SA: Para uma Filosofia do Inferno na Educação: Estranhos, Grotescos, Bárbaros – 2001/1 |
SA: Imagem-Movimento de AICE (Autor-Infantil-Currículo-Educador) – 2012/1 | SA: Governo e Subjetivação de Infantis – 2000/2 |
SE: Educação, arte, filosofia: Deleuze e o abecedário – 2011/2 | PPE: O Que Quer um Currículo? Pesquisa Pós-Críticas em Educação – 2000/2 |
PPE: Criação e Pensamento, na Pedagogia da Sensação: imagem, figura – 2011/2 | SA: Pós-Currículo: Governo, Subjetividade, Identidade – 2000/1 |
SA: Roland Barthes e a Educação: cenas de escritura – 2011/2 | SA: Currículo e Pós-Estruturalismo: modos de subjetivação do infantil – 2000/1 |
SE: Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio à vida – 2011/1 |
Fonte: Material fornecido pela Secretaria do PPGEDU/UFRGS.
Das Gestualidades de uma Docência
Nessa última seção, destacam-se alguns fragmentos extraídos da seção SMC por, do livro SandraMaraCorazza: obra, vidas, etc., organizado, postumamente, por Júlio Groppa Aquino, Claudia Regina Rodrigues de Carvalho e Paola Zordan (2022) e escrito por alguns tantos que compuseram o bando de SMC. Os fragmentos extraídos não estão nomeados, não seguem nenhuma ordem e foram recortados de sua forma original, pois a intenção é que funcionem apenas como forças impessoais, mostrando a potência de existir de uma docência afirmativa. São rastros, ressonâncias, afecções, vibrações, desejos, devires, gestualidades. Talvez tenham a ver com a pergunta: o que lembramos de nossos professores? Quais as marcas que deixaram em nós?
Voz aguda, timbre singular de um devir imperceptível. Onda sonora de um sismo que arrasta corpos. Corporeidade ágil suficiente para não deixar marcas e, sim, suspensões. Imenso plano a povoar-se de imagens, signos, infâncias, educadores, artistagens. Feitiço, uma multiplicidade encantadora de línguas. Ser de fusão, confluência de pessoas, teorias, pensamentos, post-it. Som agudo e penetrante que empurra para frente e para trás as membranas semitransparentes, elásticas e finas dos tímpanos. Um misto de rigor e alegria. Sedução de convocar o outro para estar e seguir perto. Natureza pneumática, afirma uma política de pensamento que atravessa uns e outras. Artisteira de um pensamento sobejo. Sem ouvir respostas, traduz o infinito. Vigor e rigor na vida-docência. Ninguém conseguirá definir ao passo que exigiria limitá-la. Rapidez de pensamentos, pela beleza e ousadia do que dizia. Linhas de escrita [...] linhas de questões [...] que se prolongavam e misturavam-se com linhas noturnas e etílicas na Cidade Baixa. Mão de bruxa arcanista, movimentos encantatórios, como que a escrever no ar, em um idioma fabuloso, a tradução do instante. Mãos pequenas e inquietas. Nunca andava sozinha. Pensava, artistava, escrevlia, sempre acompanhada de bandos-intercessores. Era do indizível. Mulher vigorosa, sem meias palavras, de um estilo próprio e intenso, de reflexões cortantes e potentes. De um lado, a experimentação e a linha de fuga; de outro, o jogo de cintura e a sobriedade Integra e difere. Sorri e faz chorar. Quando adentra sala, a coisa se instaura. Cada encontro um arrebatamento. Uma mistura belicosa que produz aumento de potência, amplificação da ação. Voz seca e cortante [...] plateia silenciosa e extremamente atenta. Vaidosa, dedicada, apaixonada. Impiedosa. Força propulsora de sonhos. Uma genialidade-trovoada. Praticante de uma língua fina, astuta, engenhosa. Entoadora de Lautréamont, em vestido de festa, faz tremer a acídia de indecisos com mirada medusina e perfume francês. Fazedora de pactos in(can)decentes, embaralhadora de códigos. Olhos de alquimista verde-esmeralda nas aulas e marejados em bancas. De repente uma pergunta. Desconcerta. Sabe o caminho e ao mesmo tempo o perde, dentro de si. Fala que nunca parou na palavra, escrita insone e arrebatadoramente sensível. Garras, gestos, palavras: afiadas. Ímpeto e furor revolucionário. Pensamento estranhado. Sensibilidade ácida. Delicada. Coração infinito. Personalidade marcante, voz inconfundível. Observadora, perspicaz, incentivadora, irônica, temida. Feiticeira das palavras. Entoadora de versos de ensino. Da ausência do seu ser, rastros e palavras. Legado de uma imensa generosidade intelectual. Redenção de nada e de nenhuma ordem, nem de ninguém, nem de nós mesmas. Dinamite. Explosão. Escrilevente. Movente. (Ins)piração. Uma admirável chama (sempre) acesa. Vivia no tempo presente. Nunca será passado. |
Fonte: Aquino, Carvalho e Zordan (2002).
Considerações finais
O propósito deste texto consistiu em evidenciar o legado de SMC no que diz respeito ao seu modo de existir na docência. A criação de conceitos/noções, as gestualidades, os movimentos do pensamento, a sua atuação na UFRGS, os traços inscritos em seus alunos e orientandos são o testemunho de uma vida-obra docente.
Se, ao iniciar o texto, afirmamos a relação dos modos de existir com/no mundo e, sobretudo a docência como um modo de existir, talvez possamos finalizá-lo, indagando: o que deixamos para o mundo? O que nossa docência importa/importou para o mundo?
Sem dúvidas, SMC deixou uma herança ao mundo, pois percorreu uma vida docente, não sobrepondo os seus pés sob pegadas de outros. Ela criou novas pegadas, ainda que isso implicasse em riscos. O legado de SMC está nos arquivos escritos, mas também na força de seu pensamento, na espessura da vitalidade de seu corpo. Por isso, é com Marguerite Duras que finalizamos este texto: “Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. Uma coisa estranha, sim. Não é apenas a escrita, o escrito são os gritos dos animais da noite, de todos, os vossos e os meus, os dos cães” (Duras, 1994, p. 23).