Introdução
Uhma [Muvlier] só mantinha alguns pontos fixos por comodidade da linguagem de professora; o resto era crise, recessão, medo, pânico, angústia; embora soubesse que não podia permanecer nessa condição, pois tinha de orientar as pesquisas de estudantes de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, mais turmas de Graduação e de Pós-Graduação. Como ela se viraria? Para onde se viraria? Qual viração viria daí?
(Tadeu; Corazza; Zordan, 2004, p. 135-136).
Em Como se faz uma tese, Umberto Eco (1992) oferece uma visão de conjunto, entremeada por alguns momentos irônicos, dos processos formativos no âmbito universitário das humanidades, os quais culminarão, em regra, na apresentação de uma peça final denominada genericamente tese – no caso italiano, o resultado de um trabalho de conclusão de curso de graduação exigido pela universidade italiana à época da escrita do livro. No Brasil, o mesmo modelo escritural é adotado nos relatórios acadêmicos conexos aos demais níveis avançados da formação universitária.
Assim como consta da Apresentação à Edição Brasileira do livro, trata-se do “[…] relato da experiência de um pesquisador traduzida, praticamente, nas fórmulas didáticas de um professor que conhece o ofício” (Ferrara, 1992, p. ix). Com efeito, Como se faz uma tese empenha-se em palmilhar uma prática de todo enigmática para os/as não iniciados/as, desvendando a alquimia, nos termos do próprio Eco (1992, p. xiv), nela contida.
É assim que o pensador italiano – movimentando um sem-número de informações, sugestões e advertências – encarrega-se de desvelar os pilares do gênero textual em pauta por meio de um conjunto de balizas que incluem tanto normativas estritas quanto questões em aberto: a escolha do tema, a pesquisa bibliográfica, a disposição do material selecionado e, por fim, a redação ipso facto do trabalho final.
Um dos tópicos finais do livro apresenta uma discussão singular: sobre a seção dos agradecimentos dos trabalhos. Ali, pode-se entrever uma esfera do processo formativo que, salvo melhor juízo, inscreve-se se não como determinante, ao menos como uma forte contingência dos afazeres acadêmicos: a relação com o/a orientador/a do trabalho.
Diz Eco: “É de mau gosto agradecer demasiado ao orientador. Se o ajudou, fê-lo, em parte, por obrigação” (Eco, 1992, p. 140). É certo que entre as demandas da orientação constam o planejamento conjunto do trabalho bem como a supervisão durante a elaboração deste, convertendo o/a orientador/a em um/a primeiro/a destinatário/a do trabalho. Essa é sua obrigação. Contudo, é possível deduzir que restariam outros atributos possíveis para que um/a orientador/a contasse com a gratidão confessa de seus/suas orientandos/as, já que tal obrigação cumprida seria algo apenas parcialmente meritório.
Uma sinalização quanto a esse foro suplementar desponta quando Eco, ainda em relação aos agradecimentos, cogita a possibilidade de estes incluírem alguém que o/a orientador/a “[…] odeia, abomina, despreza” (Eco, 1992, p. 140). Uma encruzilhada se imporia, então: ou o/a orientador/a é uma “[…] pessoa aberta, que aceita o fato de seu aluno recorrer até mesmo a fontes de que ele discorde” (Eco, 1992, p. 140), ou ele é “[…] um velho rabugento, lívido e dogmático – pessoa que jamais se deveria ter escolhido como orientador” (Eco, 1992, p. 140-141)1. E arremata: “Mas se quiser fazer mesmo a tese com ele porque, apesar de seus defeitos, lhe parece um bom protetor, então seja coerentemente desonesto, não cite o outro, pois optou por ser da mesma estirpe que o mestre” (Eco, 1992, p. 141).
Ora, se o espaço acadêmico encampa diferentes estirpes de pessoas, é possível deduzir que a ambiência da pós-graduação comportará experiências de diferentes envergaduras, as quais encontrarão nas transações entre orientadores/as e orientandos/as uma superfície concreta de efetuação.
Tema relativamente infrequente na produção acadêmica em Educação no país, a atividade de orientação foi objeto de uma extensa coletânea que, após duas décadas de sua publicação, em 2002, persiste como referência capital dos estudos interessados na questão: A bússola do escrever: desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações. Sob organização de Lucídio Bianchetti e Ana Maria Netto Machado, a obra reuniu 19 textos a cargo de docentes-pesquisadores/as de destaque no cenário educacional brasileiro de então – entre eles/as, Sandra Mara Corazza (doravante, SMC).
Tratava-se de esquadrinhar o estado de coisas, sob diferentes recortes temáticos e diretrizes teóricas, decorrente da expansão da pós-graduação brasileira iniciada na década anterior, cujas inflexões foram se multiplicando dali em diante em razão, por um lado, da instalação crescente de novos cursos e, por conseguinte, a inclusão de um número exponencialmente maior de estudantes, assim como, por outro, das políticas gerencialistas decretadas pelos órgãos governamentais da área.
Segundo o texto de Dermeval Saviani (2002) inserido na referida coletânea, a área de Educação contava, à época, com 52 programas reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente, atesta-se a existência de 288 cursos: na modalidade stricto sensu, 138 de mestrado e 95 de doutorado; na modalidade profissional, 52 de mestrado e 3 de doutorado2.
No que concerne ao recorte da orientação, outra autora da coletânea destaca: “O processo interpessoal de aprendizagem mútua e contínua representado pela relação entre um orientador e cada um de seus orientandos é provavelmente a principal novidade da educação e da ciência brasileira dos últimos trinta anos de século XX” (Zilbermann, 2002, p. 335).
Se é bem verdade que a atividade da orientação passou a ocupar posição central entre as atribuições dos/as docentes-pesquisadores/as do ensino superior – ainda mais se se levar em conta a irredutibilidade da tarefa pedagógica que, nessa esfera, lhes compete –, é verdade também que tal prática encerra acontecimentos de múltiplas ordens, próprios de um modus operandi instável, complexo e, não raro, incógnito.
Nessa direção, o presente texto propõe-se a contextualizar o legado de SMC no que se refere à sua atuação como orientadora de trabalhos acadêmicos, tomando como matéria algumas marcas deixadas de maneira tanto direta, via alguns textos de sua lavra, quanto indireta, via as manifestações a ela dirigidas nas teses e dissertações de seus/suas orientandos/as.
Por meio da eleição de tal horizonte fático, crê-se ser possível lograr o arquivamento de um quinhão da experiência vivida e, de pronto, legada pela referida professora; quinhão de difícil sistematização e, convenhamos, quase sempre sonegado quando se trata de dar a ver os modos de existência de um/a docente-pesquisador/a universitário/a.
A Vida de uma Professora-Orientadora
SMC graduou-se em Filosofia em 1973 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu mestrado, na área de Educação, foi realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e a dissertação intitulada O período preparatório na 1ª série do 1º grau em escolas municipais de Porto Alegre: ritual de passagem foi defendida em 1990, tendo Augusto Nibaldo Silva Triviños como orientador. Já seu doutorado, sob orientação de Tomaz Tadeu da Silva, foi concluído em 1998 no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da UFRGS. A tese intitulou-se História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim.
Seu engajamento no mesmo programa, PPGEDU, ligado à Faculdade de Educação (FACED) da UFRGS – onde já era professora assistente desde 1993 – deu-se logo após seu doutoramento, tendo atuado como orientadora por mais de duas décadas. O primeiro trabalho por ela orientado foi defendido em 1999, por Andréia Todeschini Merlo: Psicopedagogia: dispositivo de governo da subnormalidade.
No período em que esteve ligada ao referido programa, foi responsável pela orientação de 21 teses de doutorado e 21 dissertações de mestrado. Entre seus/suas orientandos/as, alguns/as tornaram-se colegas da mesma instituição: Luciane Uberti, Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan, Lisete Bampi, Nilton Mullet Pereira, Máximo Daniel Lamela Adó e Cristiano Bedin da Costa. Outros/as rumaram a outras universidades públicas e privadas.
Reflexões quanto à atividade de orientação permeiam alguns textos de SMC. Dois deles, em particular: Manual infame… mas útil (para escrever uma excelente proposta de tese ou dissertação)3 e Um bravo (dicas para a sessão de defesa da proposta)4, ambos contidos no livro Os cantos de Fouror, de 2008.
Impossível não concordar com Cristiano Bedin da Costa (2022, p. 77) quando afirma que, nos dois textos,
[…] ao invés de uma escrileitora e seu arquivo literário, o que encontramos é uma orientadora arguciosa em ação. Não há dúvida de que uma estava na outra (o olhar astuto, a agudeza crítica e a inteligência plena como atributos comuns e constantes), no entanto, é quando a observação se volta para as questões mais cotidianas, quando a crítica se dedica aos arredores acadêmicos, quando seu olhar prova ver mais, ver melhor, ver um tanto além, é nesses momentos que Sandra dá provas incontestes de sua força intelectual. Há poesia nesses textos. Tão cômicos quanto graves, eles oferecem um suplemento de sentido a espaços rígidos no contexto das pesquisas de pós-graduação.
O caráter poético de ambos os escritos é vetorizado por assertivas sem rodeios, às vezes mordazes, a exemplo de algumas admoestações constantes de Um bravo: não falar muito; não agradecer; não se autoelogiar; não julgar os/as arguidores/as nem discordar deles/as. Outras proposições não usuais, por assim dizer, fazem-se presentes quando, por exemplo, a autora sugere o seguinte:
Antes da sessão, lave os cabelos com um bom xampu, ponha uma roupa limpa, um pouco de perfume, uma camisa bonita, um terninho primaveril, um bom sapato. Claro, você não precisa se endividar por seis meses, mas… Não vale ir de tênis (para os que só usam tênis, tá, mas um tênis novo, então!), jeans sujo (aquele, de todo dia), ou rasgado (sei, estão na moda, mas não vale). […] Não vale ir para a sua sessão de Defesa vestido como se estivesse indo para as aulas de toda semana. Não vale…
(Corazza, 2008b, p. 97).
Nessas horas, impossível não compartilhar com SMC não apenas da dádiva do riso, mas também de certa cumplicidade testemunhal quanto às idiossincrasias do habitat universitário.
Antes de encerrar o texto desejando boa sorte ao/à candidato/a, a autora ressalta:
Você estará só. […] Sua orientadora não deverá interferir em nada da sessão, apenas coordená-la. Ela não pode ser avaliadora, neste momento. E, se for uma pessoa sóbria, não interferirá mesmo, não defenderá, não discutirá as avaliações dos membros da Banca, nem falará durante as arguições, não dará colo. Ao contrário, largará. Confiará. Deixará que você dê conta do recado. […] Você já teve toda a orientação necessária.
(Corazza, 2008b, p. 97).
No confronto com o mundo externo, não é guarida o que se oferece, mas certa confiança mútua derivada de um dever comum cumprido. E é assim que o jogo da orientação encontrará sua mais perfeita tradução, ao se ver instalar um espaço seguro entre os/as jogadores/as, secretado da observância – sem chance de sonegação – de um rol de exigências de que não se pode prescindir, sob pena de a própria potência do jogar esmaecer. Daí que a boa vida acadêmica não se faria a despeito de tais exigências, mas precisamente em razão delas para que, só assim, fosse possível ultrapassá-las. Há de vivê-las com bravura, portanto. E com alguma graça inventiva.
De maneira análoga a Um bravo – dirigido, presume-se, aos/as próprios/as orientados/as de SMC –, Manual infame… mas útil (para escrever uma excelente proposta de tese ou dissertação) endereça-se também ao/à leitor/a comum. Em ambos os casos, trata-se da retomada, sob o olhar sagaz da autora, dos marcos escriturais de um relatório para exame de qualificação. A propósito, o Manual infame teria sido motivado pela impaciência de SMC em razão da reaparição incessante de um conjunto de questões basilares nas sessões individuais ou coletivas de orientação. Daí a proposta de um arrazoado que, de modo provocador, fosse capaz de incitar certa volição criadora, jamais padronização ou engessamento na condução da pesquisa/escrita alheia5.
Com vistas ao descortino dos meandros não apenas dos procedimentos investigativos, mas também dos modos de escrita correspondentes – uma vez que se implicarão mútua e obrigatoriamente –, SMC deslinda seu ponto de vista sobre o ato de pesquisar em educação, por meio de quatro tópicos, assim intitulados: Esqueleto de uma proposta; Outras dicas preciosas; Duas pequenas pérolas; e Receita de uma tese foucaultiana.
Das incontáveis passagens textuais que poderiam ser aqui recuperadas, uma delas ganha vulto, já que incide sobre os acontecimentos alusivos aos/às pós-graduandos/as quando movidos/as por uma tão rara quanto incerta paixão pela escrita – experiência que, salvo melhor juízo, ninguém mais foi capaz de descrever de maneira tão arguta quanto SMC. Um belo momento da literatura educacional, a nosso ver.
Trata-se de quando a autora evoca um dos ingredientes da referida Receita: “1 colher de chá de sal-da-vida” (Corazza, 2008a, p. 90). Vale a pena reproduzir integralmente o extrato.
Enquanto estiver fazendo esta receita, você não viverá, a não ser uma vez por semana – e olhe lá, já é lucro! Só que, aí, já estará tão cansado que, logo, logo, se embriagará, mesmo que não esteja tomando um ‘30 anos’. A comida lhe dará azia, gastrite, até úlcera. O antológico filé de linguado com alcaparras do Gambrinus6 terá gosto de pirão. O filme lhe trará novas – e disparatadas, sempre inúteis! – ideias para adicionar à sua tese. A Bienal do Mercosul lhe mostrará que você não é, nunca foi, não será, não tem a mínima chance de ser criativo. O jazz do Café Majestic7 será ouvido como se fosse pagode e as músicas do Bar do Nito8 como pura perda de tempo. As conversas com os amigos lhe parecerão terrivelmente triviais e os próprios amigos, tremendamente banais. O cigarro terá o amargor do fel, além de você ficar cheio de picumã. O café expresso, que você tanto curte, terá gosto de cevada braba. Você terá de dominar os seus impulsos zoocidas, quando os 3 cachorros e os 5 gatos lhe pedirem comida. O próprio fazer-amor terá sabor de um perigoso suplemento, como diria Derrida, que o desvia de seu verdadeiro amódio atual: a tal da tese. E a maior de todas as desgraças é que você ficará, nesta única vez na semana, com uma vontade imensa, inegociável, quase incontrolável, de regressar aos livros, às notas manuscritas, ao teclado, a seu texto, em suma
(Corazza, 2008a, p. 90).
Uma espécie de ruína dos hábitos cotidianos consistiria no preço a ser pago por aqueles/as que se voluntariassem a duvidar metodicamente daquilo que se pensava, a abrir-se ao impensado, a atingir um quantum variável de esvaziamento. O pensamento como ocasião de desenraizamento e cisma, jamais de assentimento ou subscrição, portanto. Ao fazê-lo, instaura-se um embate ferrenho de si contra si, em que não há vitória, nem repouso, mas apenas pequenas e insistentes derrotas, fundamentais para que o que existia até então seja transtornado, deslocado e, enfim, posto à disposição para uso; uso indeterminado e a fundo perdido, sublinhe-se. É de abandono e, no mesmo golpe, de inauguração existencial que se está a falar aqui. Uma maneira outra de respirar, quiçá.
Em um texto anterior, de 1996 (republicado em 2002) – Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos –, SMC já trazia à baila esse ponto de fusão em que pesquisar e viver se abalroam o tempo todo, transfigurando-se reciprocamente.
Se uma prática de pesquisa está implicada por nossa própria vida, uma outra só será possível caso o pesquisador empenhe-se em fazer sua existência de outro modo, a mudar suas relações precedentes com o saber e o poder, a perder a verdade de sua própria formação identitária para que o si-mesmo seja refeito. Ou seja, a coisa toda da prática de pesquisa é da ordem da criação – ética e estética –, nunca da conversão, muito menos da aderência pegajosa à qualquer mestria
(Corazza, 2002, p. 127).
Se o que está em foco aqui é um giro intempestivo em direção a regiões do pensamento/vida não antevistas, não há que contar com mãos dadas para tanto, renunciando-se, assim, à ilusão de completude que, de modo desavisado, costuma depositar-se na tutela do/a orientador/a. Ao contrário, a tarefa deste/a será, precisamente, a recusa a qualquer gesto de filiação, de fixação de uma suposta linhagem, de delimitação de uma zona inerte de identificação recíproca. Ao contrário, orientadores/as e orientandos/as subsistem como centros de força paralelos que se associam vez por outra, logo antes de se apartarem novamente. A beleza de seu encontro residirá tão somente nessa confluência provisória.
É nesse espaço vacante – ou, se se quiser, de desterro compulsório – que o ato de escrever se instala, colmatando toda espécie de demanda de dependência entre os/as parceiros/as. Estes/as coabitarão um mesmo gesto, não um mesmo lugar. Assim, cada qual a seu modo, despenderão seus dias em favor de uma escrita por vir, e nada além. Há beleza, igualmente, nessa espreita conjunta de algo que não se sabe. Espera-se.
Nesse diapasão, convocamos uma última passagem na breve revisitação das ideias de SMC aqui ensejada. Embora não aluda especificamente aos trabalhos da orientação, Como um cão, texto incluído no livro Artistagens: filosofia da diferença e educação, equivale, em nosso entendimento, a uma pequena obra-mestra. Um primoroso arranjo de formulações, agora com viés expressamente deleuziano, sobre a escrita-artista, tal como SMC a concebeu e a exerceu.
Tudo poderia ser resumido à proposição disparadora do texto: de que o ato de escrever em educação fosse capaz de converter o trabalho de pensar em um grande festejo. Para tanto, torceduras múltiplas e de diferentes ordens são reivindicadas. A começar pela perspectivação de duas modalidades escriturais que esgrimem sem cessar: a representacional e a artista. Trata-se, claro está, de decalcar o contraste entre ambas em favor da potência movente da segunda frente ao caráter inercial da primeira.
À escrita-representacional pergunta-se: – O que quer dizer? À escrita-artista: – Como funciona? Nos dois tipos de perguntas, existem mundos diferentes. De um lado, encontra-se uma escrita da qual se faz exegese ou justificação, algo cognitivo, uma lógica do conhecimento extraperspectivista. De outro, uma escrita para a qual valem apenas funcionamentos posicionais no mesmo complexo educacional, renúncia a qualquer interpretação, opção exclusiva pela utilização operatória. Maquinação de uma escrita, que é somente produtiva, nem expressiva, nem representativa
(Corazza, 2006a, p. 26).
De modo consoante ao seu modus operandi habitual, SMC primeiro ocupa-se de capinar o terreno intelectivo que tomou para si. Trata-se de esvaziar, raspar, escovar, limpar a matéria do pensamento em xeque, com vistas a se desfazer do que já se pensa, possibilitando, assim, que o ato de pensar conquiste um vigor renovado, que novos contornos da coisa pensada possam ali vicejar. SMC obriga-nos a recomeçar do zero, a pensar pela primeira vez, a ter o pasmo redobrado do jamais vu.
De qual escrita, portanto, apartar-se? Daquela territorializada, reprodutiva, circular, progressiva, representacional, narrativa, emocional, figurativa, imitativa, ilustrativa, unívoca, homogênea, indiferenciada, saturante, moralista, otimista, fusional, projetiva, identificatória, internalista, nostálgica, redentora, aconselhadora, messiânica, profética, reativa, sossegada, sensata, exegética, justificadora, recognitiva, expressiva, clara, objetiva, estratificada, monista, bipolar, explicadora, finalista, teleológica, realista, verdadeira.
E a qual escrita se lançar? Aquela pensamenteada, transgressiva, polívoca, intensiva, energética, heterogênea, extrínseca, combinatória, singular, perturbadora, afirmativa, alegre, luxuosa, livre, insensata, violadora, trágica, impulsiva, aberrante, renovada, mal-dita, gloriosa, inventiva, inacabada, imaginativa, anárquica, indiscernível, enigmática, apaixonada, impessoal, pré-individual, transcendental, plural, anônima, despersonalizada, móvel, informe, não estratificada, afectiva, desmembradora, errante, violenta, inesgotável, díspar, dissimétrica, precária, mutante, mutagênica, nômade, esquizo-analítica, micropolítica, pragmática, diagramática, rizomática, cartográfica, transvaloradora, inocente, perspectivista, antiteleológica, anti-substancialista, anti-realista, ficcional, fragmentada, parcial, diferenciada, incontável, inumerável, risonha, comovente, em devir.
Seus artífices, quem serão?
Aqueles que escrevem não porque possuem um projeto de escrita e tentam realizá-lo, mas porque encetam o ato de escrever para ver se existe uma intensidade que produza alguns efeitos. Escritores da inocência alegre de um en-fant que só sabe falar a única palavra ajuizada: – Sim!
(Corazza, 2006a, p. 33).
Uma Vida, desde os/as Outros/as
Entre os textos ainda não publicados de SMC, consta um que condensa, em grande medida, o que se tentou desdobrar até aqui. Trata-se de uma manifestação sua proferida na defesa do mestrado de um de seus orientandos – Cristiano Bedin da Costa – em 31 de agosto de 2007.
Marca fiel do requinte das elaborações de SMC, o escrito intitulado Pro seuchico, ao embaralhar os diferentes estratos da experiência da orientação, resulta em um acerto de contas com a vida que ali se quis e ali se fez: as tantas pessoas que passaram e aquelas por vir; o labor sem trégua; as gesticulações da escrita, computados seus riscos; a alegria dos encontros e a dor das despedidas; a potência de, juntos, existirem por determinado intervalo de tempo. Ei-lo:
AINDA temos muita gente pra orientar
resmas de papel pra escrever
formas de conteúdo aos cardumes
álbuns de expressão a mancheias
enxofres de vulcões de leituras
QUANDO não tivermos mais isso ficaremos à porta
QUANDO faltar o papel nas peles escreveremos
QUANDO não vierem mais orientandos bailarinos
sanguíneos em grupo de risco
orientaremos animais cheios de pelos
balões vermelhos e cigarras no cio
QUANDO o texto biográfico rosa pink irromper
cessarem os jogos literários
restarem nos corpos só velhas cicatrizes
espinhos sem eira nem beira
QUANDO o fim de tarde sem literatura
e a manhã fria sujarem
as pálpebras das palavras
LEMBRAREMOS que o SEUCHICO SILENCIOSO E DISCRETO se foi
E TEMEREMOS a tristeza densa que, esta sim,
não serve sequer pra MATÉRIA DE ESCRITA
que valha a pena
JÁ QUE SEM ELE o nosso BANDO DE ORIENTAÇÃO
ficará musicalmente mais calcinado9
(Corazza, 2007, n.p.).
Obrigatório dizer que um dos feitos de SMC como orientadora foi a criação do Bando de Orientação e Pesquisa (doravante BOP) ligado à linha de pesquisa Linha de Pesquisa Filosofia da diferença e educação e ao Grupo de Pesquisa DIF: artistagens, fabulações, variações da FACED da UFRGS.
No seu Memorial apresentado em 2014, a título de promoção ao cargo de Professora Titular, SMC recuperou uma entrevista sua, de 2013, em que deslindou as linhas de sustentação do BOP: um agregado de estudantes de diferentes procedências e níveis de formação, os quais se uniriam “[…] pela antropofagia: de textos, autores, ideias, humores, risos, festas. Filosófica, literária e educacionalmente (no mínimo), os Bopianos constituem uma vizinhança de amizade intelectual” (Corazza, 2014, p. 220).
Entenda-se que bopiano não poderia ser reputado como um qualificativo, mas como um estilo, um modo de se conduzir, uma disposição de se movimentar em meio à vida.
Bopianos são flecheiros, arremetendo contra tudo que não anda. Gentios, revolucionam multiplicidades, sem unificação. Fazedores de nascituros, não acolhem ideias cadaverizadas, já que o pensar é dinâmico. […] Seus textos, teses e dissertações expressam universos incriados; portanto, não têm especulação, apenas contêm adivinhação, fabulação e beleza, ciência-mor da distribuição
(Corazza, 2014, p. 220-221).
Em outra ocasião, SMC apontou as razões pelas quais eles permaneceriam juntos: “Por camaradagem, mundanidade, maneirismo, amores múltiplos, felicidade vertiginosa” (Corazza, 2010b, p. 8).
Presume-se, assim, que o BOP, foi, além de uma porção substantiva da vida acadêmica de SMC, um continente de experiências de monta, uma paragem onde acontecimentos expansivos tomaram corpo e lugar.
E para os outros integrantes do Bando? O que foi testemunhado por quem ali esteve? E, mais especificamente, o que urgiu ser dito sobre o que ali se passou?
Embalados por tais questões, empenhamo-nos em perseguir – de modo circunscrito, claro está – os ecos da prática da orientação de SMC nos agradecimentos dos trabalhos de pós-graduação por ela orientados.
Entre as 42 teses e dissertações, algumas não apresentam agradecimentos (Zordan, 2004; Pereira, 2004; Dalarosa, 2011; Frichmann, 2012; e Reis, 2019). Outras veiculam-nos de modo sumário, sem justificá-los (Costa, L. B., 2006; Costa, C. B., 2007; Adó, 2013; Matos, 2014; Abdalah, 2018; e Dinarte, 2018).
Há quatro trabalhos que, incluem Hugo Corazza, esposo de SMC, entre as pessoas a quem agradecem (Costa, C. B., 2007; Nodari, 2007; Heuser, 2008; Oliveira, 2014).
Entre as mostras do impacto de SMC sobre aquelas vidas, a evocação mais recorrente refere-se ao seu rigor intelectual, um tipo de sinal imediatamente reconhecível por aqueles/as que com ela conviveram no BOP. Como quis Roos (2005), SMC era uma máquina de pensamento ou, segundo Acom (2015), uma potência motora.
À minha orientadora pelo rigor, pelo refazer de meus pensamentos, pelos preciosos ensinamentos
À Sandra pelo sofisticado trabalho de orientação, bem como pela leitura dedicada e rigorosa, que não me deixou outra saída a não ser escrever
À minha orientadora, Sandra Mara Corazza, pelo rigor e idoneidade no esmero da orientação
(Uberti, 2002);
À minha orientadora, profa Dra Sandra Mara Corazza, remadora incansável, grande emissora de signos. Engendradora de acontecimentos
(Roos, 2005);
À Sandra Mara Corazza […] pela alegria filosófica que mostrou ser muito mais que possível, efetiva: na escrita, nas aulas, no rigor conceitual e no pensamento
(Heuser, 2008);
Agradeço à Sandra Corazza, […] exemplo de rigor e paixão pela pesquisa
À Sandra Corazza, […] pelo rigor e o cuidado de todos esses anos
(Costa, C. B., 2012);
Agradeço à Sandra Mara Corazza, […] pelos exemplos de vida e de rigor com que conduziu esta pesquisa compartilhada
(Campos, 2013);
À Sandra Corazza, pelo rigor alegre e inegociável; pelo carinho e dedicação sem os quais o texto não seria texto
Agradeço à Sandra Mara Corazza […], pela paixão e rigor na pesquisa
(Campos, 2017);
À Sandra Mara Corazza […]; com sua exigência pude realizar o que não desejo ter sido de outra forma
(Olini, 2017);
À Sandra Mara Corazza, […] por não conceder facilmente, por mostrar a importância do rigor intelectual
À Sandra Mara Corazza […]. Rigidez necessária, carinhos mínimos e nos momentos corretos; confiança partilhada
À arqui-feiticeira Sandra Mara Corazza […], pela presença intensa e rigorosa na pesquisa
(Pinto, 2019).
Há momentos que descortinam um horizonte de efeitos forçosos de desacomodação que circularam no convívio formativo com a orientadora. É assim que alguns/as o vocalizaram:
E especialmente a Sandra, por ter acolhido, incentivado, exprimido, empurrado, excitado uma professora de filosofia e, nesse ponto forçoso, doloroso, ter compelido tal criatura a criar
(Cunha, 2006);
À Sandra Mara Corazza […] pelas violências que arrebataram o Eu Ester por meio de malditos e malditas que conheci e aprendi a amar
(Heuser, 2008);
Agradeço à Sandra Mara Corazza, minha carrasca favorita
(Feil, 2009);
Ao “belicioso” viver com a Sandra
À Sandra Mara Corazza, por ter desafiado e encorajado o meu pensamento nesta tese […]
(Olini, 2017);
Sandra: de inferno-paraíso signal-artística
(Sperb, 2017).
No que se asseverou sobre a atuação de SMC, parece haver uma espécie de cabo de força, que inclui desde os desdobramentos apontados acima até uma espécie de potência inversa, em que um acontecimento se destaca entre os demais: a amizade.
À Sandra Mara Corazza, pela múltipla presença – como intelectual, orientadora, amiga, mulher, colega e pelos espaços outrora ocupados e que se refazem pela linha do afeto
(Merlo, 1999);
Para minha orientadora, Sandra Corazza, […] amiga com quem tive o privilégio de conviver: meu eterno agradecimento
Minha orientadora, Sandra Corazza, pelas forças todas e amizade intelectual
(Kroef, 2003);
À Sandra Mara Corazza, pelo Sim, confiança, amizade e carinho
(Heuser, 2008);
Agradeço à Sandra Corazza, minha amiga e orientadora em seis anos de aventuras acadêmicas e de vida […]
À Sandra Corazza, pela amizade […]
Agradeço à Sandra Corazza, […] por anos de convivência e afeto
Agradeço à Sandra Mara Corazza, minha orientadora, companheira de jornada […]
(Campos, 2013);
Agradeço à Sandra Mara Corazza minha orientadora, amiga e companheira
(Campos, 2017).
Soma-se a destreza de se dispor ao outro sem reservas, de oferecer continência às suas “[…] idas e vindas” (Nodari, 2007). Para Cardoso (2001), sua orientadora foi merecedora de sua gratidão em razão da “[…] fraternidade e pela carinhosa acolhida”. Uberti (2002) ressaltou o “[…] investimento e confiança a mim despendidos nessa produção”, ao passo que Santos (2002) viu em sua orientadora “[…] seriedade, competência, dedicação, persistência e que tanto se disponibilizou auxiliando-me a ultrapassar os ‘limites’ desta produção”. Bampi (2003), por sua vez, agradeceu SMC por seu “[…] profissionalismo e pela sua constante disponibilidade”. Também Ramos (2004) destacou: “Muito obrigada, professora Sandra Corazza, porque na tua companhia aprendi coisas de generosidade”. Roos (2005) a agradeceu por lhe ter “[…] acolhido, inspirado e desafiado”. Costa, R. P. (2007) assegurou que “[…] sem seu acompanhamento, paciência, carinho e generosidade, a conclusão deste trabalho não seria possível”. Por fim, com Olegário (2018) – “À Sandra Mara Corazza, pela acolhida, generosidade e confiança no meu trabalho” – e com Martins (2019) – “À Sandra Mara Corazza por todo estímulo de leitura e escrita nos seus seminários anteriores à orientação e, principalmente, pelo árduo caminho com esta orientanda”.
Aos olhos de seus/suas orientandos/as, SMC ensinou:
[…] a escrita vocativa e provocativa
[…] coragem e alegria
(Ramos, 2004);
[…] respeito e admiração
[…] a força da divergência do pensar sobre o pensamento
(Heuser, 2008);
[…] viver junto na academia
(Feil, 2009);
[…] força e paixão pela curiosidade
[…] ensinartistar a arte da pesquisa em educação
[…] vigorosa, atenta e intensa educação
[…] desafios de uma acadêmica-vida compartilhada aventureiramente
(Campos, 2017).
Uma Vida, Muitas Vidas
No intrincado mosaico intelectual talhado por SMC, várias problemáticas foram se desdobrando no decorrer do tempo, desde as discussões germinais em torno de uma educação pós-crítica, passando pelos debates sobre infância, didática e currículo, bem como pelas propostas em torno da escrileitura e da tradução transcriadora, até o tópico derradeiro: os sonhos. Em meio a tal pletora de ideias, é inconteste que os modos de praticar a pesquisa educacional ocuparam o pensamento da autora, mormente de modo frontal.
Prova disso são as produções em que são coligidas as diferentes chaves de endereçamento ao ato de pesquisar em educação operando no BOP e para além dele, abarcando, portanto, além dos/as orientandos/as de SMC, os/as integrantes da Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação (Escrileituras, 2022). Trata-se, além das 10 diferentes versões dos Cadernos de Notas, das coletâneas Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar (Corazza, 2017); Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura (Corazza, 2010a); Métodos de transcriação: pesquisa em educação da diferença (Corazza, 2020); e Notas de Tradutores [N. T.]: escrileituras de um projeto de pesquisa do CNPq (Corazza; Carvalho; Nodari; Monteiro, 2021).
SMC era, decerto, uma pesquisadora atenta à circulação de suas ideias e daquelas tramadas com seus/suas parceiros/as. Novamente, prova disso foi seu compromisso de empuxar publicações coletivas – sempre com a presença de integrantes do BOP. Nessa direção, destacam-se ainda: Abecedário: educação da diferença (Aquino; Corazza, 2009); Dicionário das ideias feitas em educação (Corazza; Aquino, 2011); Aula com… em vias de uma didática da invenção (Heuser; Aquino; Corazza, 2018); e Breviário dos sonhos em educação (Corazza, 2019).
É bem verdade que o teor aglutinador de sua atuação – fosse como orientadora, fosse como professora, fosse também como colega – não se dava sem uma contrapartida austera; ora áspera, ora zombeteira, sempre inusitada. Na homenagem publicada na página eletrônica da FACED da UFRGS por ocasião de uma semana após seu falecimento, bem se expressam os rastros dessa uma vida cruzados aos de tantas outras vidas.
[SMC] deixa um imenso sentimento de gratidão em todos, seja os que ajudou, os que provocou com questionamentos mordazes, os que articulou, os que inspirou, os que espezinhou e fez pensar. […] Quem a conheceu e conviveu com sua presença marcante, teve o privilégio de ganhar a sua marca, alguns dizem, de uma fera; outros receberam a lambada de um rabo de lagarta; alguns ficaram com o trinar de uma ave em revoada
(Sandra…, 2021, n.p.).
De fato, há sinais inequívocos de SMC por onde ela passou, com quem travou contato, no tempo que lhe foi dado viver. Um espírito nietzscheanamente livre, misto de leão e criança. Uma leoazinha, quiçá.
Daí ser correto admitir que as investidas de SMC, com destaque para aquelas atinentes à prática da orientação, constituíram-se como um laboratório de experimentação contínua, arrogando-se um espaço de mais-vida, qual seja: um solo operativo obstinado não apenas com a efetuação de movimentos expansivos de pensar/fazer a educação e, particularmente, a pesquisa educacional, mas, sobretudo, com a criação de modos de existência compositivos e distributivos, já que nutridos por e nutrientes de vidas por vir. SMC era/é legião.
Tal como Fabiano Neu Pinto (2019) afirmou nos agradecimentos de seu trabalho, SMC “[…] pervive nos textos de fogo do arquivo”. Sim, uma presença inextinguível, profusa, florescente. Um micélio.