Introdução
Quando observamos o panorama geral da filosofia da educação nos tempos atuais, dois movimentos intelectuais de grande importância nas décadas imediatas ao fim da segunda guerra mundial emergem como referência para reflexões de natureza crítica e conceitual sobre os processos formadores educativos. O primeiro deles é a teoria crítica, empreendida por filósofos alemães de acordo com uma metodologia dialética e interdisciplinar, e dedicada a temas amplamente relevantes como a dialética da razão esclarecida, indústria cultural, semiformação, sociedade unidimensional e a crítica ao fascismo. O segundo deles é o pós-estruturalismo, empreendido por pensadores franceses e destinado, em suas linhas gerais, a uma crítica de viés antiuniversalista a importantes categorias conceituais do humanismo e da história da filosofia ocidental. Embora tenham percorrido um trajeto significativamente divergente em seu escopo teórico e metodológico, ambos os movimentos apresentam como ponto comum a qualidade de terem sido movidos por certa má consciência acerca das grandes catástrofes ocorridas nas primeiras décadas do século XX, reveladoras do retumbante fracasso da razão em cumprir as promessas de emancipação outrora estampadas pelo iluminismo filosófico. O prestígio contemporâneo dos dois movimentos intelectuais no campo educativo deve-se justamente ao fato de que as fortes tendências instrumentais da racionalidade que suscitaram eventos como o nazifascismo e a bomba atômica permanecem presentes no mundo atual, notadamente manifestadas nas tendências biopolíticas de controle da vida. Para repercussões no campo educativo, o espectro conceitual e metodológico desenvolvido por teóricos críticos e pós-estruturalistas dispõe aos pesquisadores educacionais, e em especial aos filósofos da educação, duas possibilidades de enfoque diametralmente opostas em sua metodologia. Para os pensadores de Frankfurt, a crise da razão exige a necessidade de uma crítica interna que possibilite perspectivas de superação das próprias contradições da racionalidade, objetivo estampado no título da obra consagrada de Adorno e Horkheimer sobre a dialética do esclarecimento. Para os pós-estruturalistas, pelo contrário, a modalidade de crítica dirigida à racionalidade iluminista exige um enfoque externo, dirigido à desconstrução das próprias estruturas da razão, notadamente em suas pretensões universalistas e fundacionalistas, o que permite caracterizar o trabalho de Foucault como “historicização da ontologia”, e a obra de Deleuze como uma “ontologia antidialética do devir”. Considerando essa distinção nada desprezível entre as duas escolas de pensamento, o presente trabalho destina-se a problematizar a modalidade de crítica dirigida à razão por dois de seus importantes representantes. Mais precisamente, trata-se de refletir sobre a crítica antidialética da identidade empreendida por Deleuze em Diferença e Repetição e seu contraste com o enfoque análogo realizado por Adorno na obra Dialética Negativa. Por meio dessa reflexão, este trabalho pretende expor os riscos e problemas inerentes à crítica pós-estruturalista em suas pretensões antifundacionalistas dirigidas a conceitos fundamentais da filosofia ocidental.
I
O movimento intelectual empreendido por pensadores franceses a partir da década de 1960, convencionalmente denominado como pós-estruturalismo, foi adequadamente sintetizado como antifundacionalista pelo historiador Michael Peters, em virtude de seu caráter acentuadamente contestador em relação a qualquer tipo de essência metafísica ou ontológica. Ainda que sob diferentes perspectivas, tais pensadores apresentaram como ponto convergente uma crítica “às diversas construções filosóficas de sujeito: o sujeito cartesiano-kantiano, o sujeito hegeliano e fenomenológico; o sujeito do existencialismo; o sujeito coletivo marxista (2000, p. 31). No que se refere especificamente à principal obra filosófica de Giles Deleuze, intitulada Diferença e Repetição, o antifundacionalismo pós-estruturalista destacou-se pela crítica incisiva a todas as formas de representação e de identidade. Em um primeiro momento, dirigindo-se a Platão, Deleuze critica os postulados fundacionalistas da metafísica em sua concepção da realidade como oposição entre o mundo inteligível das ideias e o mundo sensível das coisas empíricas, que são reduzidas a meras cópias imperfeitas dos modelos ideais. Para o filósofo francês, a ontologia platônica, em sua primazia das mediações conceituais representativas, produziu o efeito nefasto de negligenciar o caráter multiforme, caótico e irredutível das diferenças puras, as quais são irredutíveis a representações conceituais. Contra Platão, Deleuze defende a primazia do simulacro, de forma que as diferenças puras sejam pensadas em si mesmas, em sua irredutibilidade a mediações representativas. Seu antifundacionalismo dirige-se de maneira igualmente vigorosa contra a dialética hegeliana, devido à pretensão desta de postular a tríade dialética como procedimento suficiente para expressar as diferenças reais. Considerando a diferença como singularidade irredutível a mediações representativas conceituais, Deleuze aponta a insuficiência do princípio de identidade como representação, uma vez que a “diferença é o verdadeiro conteúdo da tese, a obstinação da tese” (2000, p. 60). Nesse sentido, a dialética hegeliana seria apenas uma forma intelectualmente mais elaborada de legitimar o princípio de identidade e ofuscar o brilho da diferença pura, pois “as formas segundo as quais ‘a coisa nega o que ela não é’ ou ‘se distingue de tudo o que ela não é’, são monstros lógicos (...) a serviço da identidade” (2000, p. 58). O argumento central mobilizado por Deleuze contra a dialética hegeliana consiste em afirmar que a mediação negativa, em suas pretensões de potencializar a diferença por meio da negação da identidade estabelecida dos objetos, cumpre somente o efeito de aprisioná-la na similitude e na analogia, pois confunde “o conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença na identidade do conceito em geral” (2000, p. 58).
Se a diferença pura apresenta uma configuração caótica e irredutível à representação platônica e dialética, temos todas as justificativas para indagar acerca de qual poderia ser o procedimento epistemologicamente legítimo para expressar a diferença da maneira mais original e fiel. A resposta dada a essa questão por Deleuze é desconcertante e paradoxal. Desconcertante, pois a diferença é intrinsecamente avessa às epistemes, uma vez que estas não podem prescindir da representação e da identidade. Paradoxal, pois a diferença pura é anterior às representações que a falsificam e a domesticam, mas ela, em si mesma, embora esteja profundamente implicada em tudo que é extenso e sensível, apresenta a propriedade irredutível e enigmática de ser anulada sempre que o pensamento racional procura representá-la. De acordo com uma definição bastante clara de um comentador, “a diferença é o ser de tudo o que é representável e de tudo o que pode ser sentido, mas ela própria não pode ser sentida nem representada” (CRAIA, 2005, p. 77). Para sermos mais precisos, a irrepresentabilidade de algo que está irredutivelmente presente na realidade somente pode ser explicada admitindo-se que “o mundo da diferença não é nem um mundo extenso nem um mundo mensurável, mas sim um mundo intenso e pré-sensível” (CRAIA, 2005, p. 73, em itálico no original). A diferença pura deleuziana é intensidade sensível subjacente a todos os atos da realidade, mas não é percepção sensível no sentido atribuído pelos filósofos empiristas, pois nesse caso seria perfeitamente passível de representação. A captação de seu ser requer um “empirismo transcendental”, termo emprestado da filosofia kantiana para designar a abordagem de algo que é empírico, sensível, caótico e desordenado, mas que não pode ser reduzido a percepções, nem muito menos a representações intelectuais. Para maior clareza filosófica, cumpre esclarecer que, por diferença pura, Deleuze subentende o eterno retorno nietzschiano, em que a diferença pura repete-se infinitamente como eterno devir, e sempre como diferença, nunca como o “mesmo”, movida pela vontade de potência. “No eterno retorno nietzschiano - círculo tortuoso, perpetuamente descentrado - e em sua relação com a vontade de poder entendida como mundo de puras intensidades, Deleuze vem encontrar a mais alta e clara formulação do registro do ontológico” (CRAIA, 2005, p. 84).
A primazia atribuída ao simulacro como possibilidade de libertação definitiva da diferença da camisa de força de paradigmas filosóficos identitários, sejam eles de matriz platônica ou hegeliana, destina-se ao objetivo de romper com a noção linear de progresso, tão cara à filosofia ocidental e ao hegelianismo, uma vez que à diferença é própria a repetição na circularidade do eterno retorno. Além disso, é nítida a ruptura estabelecida por sua reflexão filosófica em relação a modalidades clássicas da metafísica, alicerçadas na referência a essências ontológicas ou absolutas. De acordo com um estudioso de sua obra, ela “deflagra uma forte oposição ética e política a pensadores que têm que postular lacunas, intervalos e um exterior para fundamentar uma política e uma ética baseadas na liberdade” (WILLIANS, 2012, p. 113). Sob esse aspecto, sugiro a possibilidade de pensarmos que o empreendimento filosófico deleuziano é imprudentemente mais arrojado do que os objetivos de autorreflexão dialética propostos por Adorno, tanto na Dialética do Esclarecimento, quanto na Dialética Negativa. Diferença e Repetição e Dialética Negativa foram publicadas na década de 1960, com uma diferença de apenas dois anos uma em relação à outra. Embora as duas obras reflitam notável desconfiança filosófica na capacidade do paradigma identitário de representar a realidade, elas se sustentam sobre olhares antagônicos no que se refere à relação entre conceito e diferença. Essa discrepância foi adequadamente exposta por Alberto R. Bonnet:
“Embora Deleuze convocasse a prescindir da dialética para pensar ‘um conceito de diferença sem a negação’, Adorno convocava a construir uma dialética negativa entendida como ‘consciência consequente da diferença’. Por esse motivo, não é que Adorno desconhecesse as penosas consequências que a redução da diferença à negação acarretariam para o pensamento, mas sim que as considerava o preço que inevitavelmente se deveria pagar por uma operação que a realidade mesma impunha ao pensamento. ‘Contradição é a não-identidade sob o conjuro da lei que afeta também ao não-idêntico’, reconhecia nas primeiras páginas de sua Dialética Negativa” (2007, p. 42).
Assumindo uma posição antagônica ao filósofo francês, Adorno chega exatamente ao problema delimitado por Deleuze no que se refere à insuficiência da identidade para um pensamento que pretenda mais do que uma mera subsunção do objeto pensado a um conceito universal. Assim como Deleuze, Adorno percebeu o caráter ambíguo da síntese dialética em sua propriedade de dar voz ao objeto, mas ao mesmo tempo violentá-lo, impedindo sua abertura para outros sentidos e significados. Porém, diferentemente de Deleuze, que optou pela implosão das estruturas racionais que subjugam o devir aos conceitos identificadores, Adorno, mais modestamente, preferiu apostar na capacidade da razão de compreender seus próprios limites, chocar-se contra eles, integrá-los e superá-los dialeticamente, vale repetir, como “consciência consequente da não-identidade” (2009, p. 13). Dessa forma, considerando a atitude filosófica mais arrojada de Deleuze, proponho uma breve reflexão sobre os problemas por ela suscitados, notadamente quando seu pensamento é repercutido no âmbito educativo, para o qual são muito caros os alicerces universalistas da razão, como também o paradigma da identidade. Considerando tal problema, proponho o exame de uma questão problemática inevitavelmente suscitada quando contrastamos sua reflexão com a do filósofo frankfurtiano: é possível, e mesmo viável, em termos cognitivos, um pensamento que possa estar aberto a horizontes inexplorados de liberdade sem poder contar com os alicerces de uma racionalidade identitária? Em outras palavras, é possível aos homens pensar a diferença pura fora dos limites da representação e da identidade? Previamente ao desenvolvimento dessa questão, apresentarei mais detidamente o contraste entre os dois pensadores no tocante à insuficiência da identidade e da representação para que possamos compreender as diferenças entre as ambas filosofias.
II
Conforme a abordagem até aqui desenvolvida, é possível compreender que as diferenças entre as duas filosofias acerca da dialética resultam de pontos de vista muito distintos sobre o lugar da identidade conceitual como fundamento da razão. Para Deleuze, subsumir coisas a conceitos, enquadrando-as a representações identitárias, implica negligenciar as diferenças puras, cuja natureza é irredutivelmente avessa ao pensamento conceitual. O caminho alternativo proposto pelo pensador francês consiste em buscar compreender a realidade por meio de conceitos filosóficos despojados das pretensões representacionais e universalistas, os quais devem ser associados não mais a tais horizontes, mas sim a um plano de imanência pré-filosófico, associados a parâmetros assumidamente irracionalistas, “à ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências razoáveis, da embriaguez ou do excesso” (1992, p. 58). Considerando a abordagem dos dois pensadores, enquanto Deleuze declara o propósito de implodir o paradigma metafísico fundamentado na identidade e na representação, Adorno, em tom muito mais comedido, limita-se a constatar a insuficiência do pensamento conceitual em sua tarefa de representação dos objetos pensados. Aos dois pensadores é comum o exame da insuficiência da identidade e do pensamento conceitual para representar adequadamente os sentidos e significados das coisas reais. Mas enquanto Deleuze recusa a tríade dialética hegeliana em bloco, denunciando seu aprisionamento pelo paradigma representacional e identitário, Adorno recusa “apenas” a camisa de força da síntese, priorizando o momento negativo de não-identidade com o objetivo de potencializar a autorreflexão da dialética sobre sua irredutível fraqueza. Em sua dialética negativa, Adorno suspende o momento da síntese com o objetivo de preservar a tensão irredutível entre as coisas e seus conceitos, de modo a manter um estado de não-identidade no qual as ideias são preservadas como signos negativos que recusam qualquer união feliz entre as coisas e seus conceitos. No pensamento de Adorno, a manifestação da diferença permanece dialética, circunscrita a modalidades representacionais e identitárias, mas ao mesmo tempo suspensa como expressão de uma síntese conceitual: “a não-verdade de toda identidade obtida é a figura invertida da verdade; (...) o singular é mais e menos do que a sua determinação universal” (2009, p. 131-132). Posicionando-se de maneira contrária à simples absorção do objeto pelo conceito, que conduziria aos problemas denunciados por Deleuze, Adorno propõe um caminho menos arrojado do que o indicado pelo filósofo francês, permanecendo dentro dos limites estabelecidos pela racionalidade identitária, porém preservando um estado irredutível de não-identidade entre as coisas e seus conceitos. O comedimento de Adorno, quando comparado com Deleuze, aponta sua preocupação em produzir um pensamento que seja crítico e autorreflexivo, mas ao mesmo tempo rigorosamente circunscrito aos limites da racionalidade. É importante ressaltar que uma grande diferença entre os dois pensadores está na perfeita consciência explicitada por Adorno de que dar apenas um passo além dos limites da razão representa um risco de recaída na irracionalidade, risco que sacrificaria todo o esforço reflexivo: “a ratio converte-se em irracionalidade no momento em que desconhece em seu progresso necessário o fato de o desaparecimento de seu substrato ser seu próprio produto, a obra de sua abstração” (2009, p. 130).
Para Adorno, a autorreflexão do pensamento acerca de suas próprias insuficiências e contradições é o único antídoto que pode permitir uma reconciliação entre homens e coisas. A passagem há pouco citada evidencia que o filósofo alemão compreendeu perfeitamente a possibilidade de dar um passo além, no sentido de implodir os alicerces da razão, mas recusou essa possibilidade em função de seu risco implícito de irracionalismo. É razoável sugerir que, em uma comparação entre os dois pensadores, o maior arrojamento de Deleuze possa ter consistido justamente em dar esse passo além, que conduziu seu pensamento para fora dos limites da racionalidade, em sua recusa da representação e da identidade. Em relação à identidade, Adorno é igualmente explícito no sentido de caracterizá-la como qualidade intrínseca e inseparável do pensamento racional: “a degeneração da consciência é produto de sua carência de reflexão crítica sobre si. Esta é capaz de calar ao princípio de identidade. Mas sem identificação é impossível pensar; determinar é identificar” (1992, p. 152, grifo meu). Essa citação da Dialética Negativa expressa com precisão a diferença entre Adorno e Deleuze quanto aos limites que circunscrevem a atividade cognitiva e tornam possível o pensamento racional. Ao passo que Deleuze recusa a identidade tanto no sentido platônico quanto no sentido hegeliano, Adorno recusa a possibilidade de que possa haver pensamento que não esteja alicerçado na identidade e na referência conceitual. O grande problema examinado por Adorno juntamente com Horkheimer já na obra Dialética do Esclarecimento, que precedeu em duas décadas o pós-estruturalismo francês, foram as tendências de asfixia da diferença por uma racionalidade consagrada ao domínio metódico e totalitário da natureza. Pela consagração positivista da matematização cartesiana do mundo, o esclarecimento elegeu a diferença como inimigo mortal, fazendo do pensamento uma ferramenta de subsunção das entidades reais a conceitos desprovidos de uma relação negativa e dialética com o mundo. Mediante a identidade, o medo mítico e primevo diante dos poderes naturais reaparece como impotência perante os produtos reificados da ciência: “O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um tabu, por assim dizer, universal.. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte da angústia...” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29). Em sua posterior Dialética Negativa, as tendências totalitárias do pensamento identificante requerem o despertar da consciência crítica acerca da não-identidade como momento irredutível do próprio ato de pensar. É somente pela consciência da contradição entre identidade e não-identidade que a diferença pode ser salva de sua supressão pela atividade autárquica do conceito universal, e não pela simples extinção da identidade conceitual, como pretendeu Deleuze. No âmbito de uma dialética negativa, a diferença é pensada por Adorno não como um dado irredutível da multiplicidade caótica do devir, como quer Deleuze, mas como horizonte potencialmente humano desdobrado entre o singular e seu conceito:
“O momento da não-identidade no juízo identificador é facilmente discernível, na medida em que todo objeto singular subsumido a uma classe possui determinações que não estão contidas na definição de sua classe. (...) O juízo de que alguém é um homem livre refere-se, pensando de uma maneira enfática, ao conceito de liberdade. Esse conceito, contudo, é por sua vez mais do que aquilo que é predicado desse homem, tanto quanto todo homem, por meio de outras determinações, é mais do que o conceito de sua liberdade. Seu conceito não diz apenas que podemos aplicá-lo a todos os homens singulares definidos como livres. Aquilo que nutre esse conceito é a ideia de um estado no qual os singulares teriam qualidades que não poderiam ser atribuídas aqui e hoje a ninguém” (ADORNO, 2009, p. 131).
III
A esse respeito, é importante ressaltar que na Fenomenologia do Espírito de Hegel há indicações precisas acerca da delimitação da atividade racional em seu trajeto de compreensão do mundo. No primeiro capítulo da obra, Hegel dedica-se a expor a ilusão da consciência que se detém na esperança de que seja possível conhecer a singularidade imediata dos objetos reais por meio de um saber imediato que dispensa inteiramente a mediação da universalidade. Ao tentar dizer a verdade de um objeto situado “aqui” e “agora”, a consciência que busca o conhecimento por meio da certeza sensível dos objetos embaraça-se com o fato de que em sua relação imediata com o objeto ela visa a algo que é incapaz de dizer, pois ao tentar dizer sua verdade somente pode fazê-lo pela mediação de categorias universais: o “aqui”, o “agora” e também o próprio “eu”. Segundo Jean Hypollite, “o singular visado pela própria certeza sensível é de fato o seu próprio contrário, o seu universal mais abstrato. Decerto, a consciência visa outra coisa, mas não pode dizê-lo; portanto, não atinge aquilo a que visa” (1999, p. 102). A defasagem intransponível entre o “visar” e o “dizer” expõe os limites da consciência em sua relação racional com os objetos, representando um sério obstáculo para a proposta deleuziana de relação com diferenças puras que não sejam mediadas pela universalidade. A impossibilidade de extrair a diferença do campo representacional e identitário é exposta com clareza por Hegel:
“Entretanto, conforme notamos anteriormente, os que colocam tal afirmação dizem imediatamente o contrário do que ‘visam’ - fenômeno este que é talvez o mais capaz de levar à reflexão sobre a natureza da certeza sensível. Falam do ser-aí de objetos externos, que poderiam mais propriamente ser determinados como coisas efetivas, absolutamente singulares, de todo pessoais, individuais; cada uma delas não mais teria outra que lhe fosse absolutamente igual. Esse ser-aí teria absoluta certeza e verdade. ‘Visam’ este pedaço de papel no qual escrevo isto, ou melhor, escrevi; mas o que ‘visam’ não dizem. Se quisessem dizer efetivamente este pedaço de papel que ‘visam’ (...) isso seria impossível, porque o isto sensível, que é ‘visado’, é inatingível pela linguagem, que pertence à consciência, ao universal em si. (...) Por isso, o que se chama indivisível não é outro que o não-verdadeiro, não-racional, puramente ‘visado’” (1999, p. 94).
Essa citação da Fenomenologia do espírito de Hegel tem grande importância para esclarecer os limites do pensamento em sua relação com os objetos empíricos, pois expõe a impossibilidade de conhecer objetos sem ao mesmo tempo remetê-los à medição da universalidade conceitual. A tentativa de pensar as coisas exclusivamente em sua singularidade, em vez de proporcionar uma reflexão mais pura, despoluída da armadura conceitual, culmina na impossibilidade de expressão racional daquilo que é meramente visado, fortalecendo justamente a identidade conceitual como limite intransponível para o pensamento. Nesse ponto, é importante ressaltar a distinção acerca do que é o “pensamento”, entre Adorno e Deleuze. O filósofo alemão mantém-se rigorosamente dentro dos limites estabelecidos pela dialética hegeliana, que circunscrevem o pensar ao âmbito da identidade conceitual, limitando-se, como vimos, a tensionar identidade e não-identidade no escopo de sua dialética negativa, porém sem transgredir tais limites. Para Deleuze, o pensamento filosófico começa justamente pela violação dos limites hegelianos (e igualmente aqueles estabelecidos por Kant em sua Crítica da razão pura), pois a intensidade sensível e a plasticidade da vontade de potência exigem um pensamento cujo fundamento não é mais a identidade conceitual hegeliana, mas as próprias condições de efetividade da experiência, as quais são anteriores ao momento sensível ou perceptivo da consciência humana. O alvo almejado pelo filósofo francês localiza-se justamente no âmbito de tudo aquilo que para Hegel somente pode ser “visado”, sem poder ser pensado pela razão. É dessa forma que podemos compreender a distância entre Adorno e Deleuze, pois este visa à produção de “imagens de pensamento” que tenham por objeto um “campo transcendental” absolutamente distinto do kantiano, de onde “irrompem singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais, livres de qualquer sujeito fundante (ou Deus), que percorrem tudo aquilo que é vida” (HEUSER, 2010, p. 103). Deleuze aceita correr o risco advertido por Hegel de que aqueles que insistirem em buscar a verdade das coisas na singularidade da certeza sensível poderão ser consumidos pela realidade misteriosa dos objetos sensíveis (HEGEL, 2002, p. 93). É dessa forma que podemos compreender sua concepção de pensamento como atividade rizomática de leitura da diferença pura no âmbito de um plano de imanência que é da “ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências razoáveis, da embriaguez ou do excesso” (1992, p. 58).
Para estabelecermos o contraste pretendido pelo presente trabalho entre os dois filósofos aqui analisados é imprescindível considerar que os problemas inerentes ao trajeto empreendido por Deleuze foram antecipados por Adorno nas primeiras páginas da Dialética Negativa. Nessa obra, o exame do fracasso necessário do pensamento em sua inglória busca de estabelecer uma congruência sem resíduos entre os objetos e seus conceitos, é iniciado justamente pelo apontamento dos problemas intrínsecos aos modelos irracionalistas de resolução do problema. Analisando o pensamento de pelo menos um filósofo inspirador de Deleuze, como Bergson, Adorno prepara o terreno para a justificação do método dialético negativo, examinando os impasses e insuficiências das filosofias que contornam a crise da razão pelo caminho de uma crítica externa de recusa prévia dos pressupostos da identidade conceitual. Para o filósofo, recusar a identidade conceitual, pela mera consideração da “plena multiplicidade do não-contraditório, do simplesmente diverso”, equivale a deslocar “a culpa da coisa para o método”, uma vez que a configuração ontologicamente contraditória do mundo não é uma lei do pensamento, mas sim uma lei da própria realidade (2009, p. 13). Dessa forma, se ao pensamento é inerente transformar os objetos em conceitos inteligíveis, “quem se submete à disciplina dialética tem de pagar sem qualquer questionamento um amargo sacrifício em termos da multiplicidade qualitativa da experiência” (2009, p. 13-14). Partindo desse caráter irredutivelmente dialético e conceitual dos pensamentos que pretendem ser mais do que aventuras intelectuais e irracionalistas, Adorno aponta a insuficiência da reflexão empreendida por Bergson e Husserl, em sua pretensão de substituir o sal “dialético” pelo “fluir indiferenciado da vida”: “o ódio contra o rígido conceito universal fundou o culto à imediatidade irracional, à liberdade soberana em meio à não-liberdade” (2009, p. 15). Para Adorno, a primazia da intuição em detrimento da disciplina conceitual significa humilhar uma vez mais a coisa pensada, como se esta já não fosse suficientemente violentada por uma racionalidade instrumental, por privá-la de uma reflexão consequente e entregá-la ao imediatismo e arcaísmo de reações miméticas (2009, p. 16).
Em continuidade a essa crítica do espontaneísmo romântico das filosofias alicerçadas na primazia da intuição como forma de valorização do não-idêntico e da multiplicidade caótica, Adorno apresenta o mais vigoroso argumento a ser mobilizado contra o pós-estruturalismo em sua vertente antifundacionalista, e igualmente à filosofia da diferença deleuziana. O esforço filosófico de Adorno para fundamentar a dialética negativa como consciência consequente da não-identidade havia sido iniciado duas décadas antes, em sua metacrítica da teoria do conhecimento, obra fortemente crítica às antinomias filosóficas do pensamento de Husserl. Nessa obra, Adorno antecipa a futura inconsistência da ontologia do devir deleuziana, ao apontar os equívocos de Nietzsche ao assumir pressupostos postuladores de uma riqueza indiferenciada e caótica no mundo orgânico, supostamente irredutível à identidade conceitual:
“A oposição do estável ao caótico e a dominação da natureza, nunca seriam bem sucedidos sem a existência de um fator de estabilidade no dominado, que de outra maneira desmentiria incessantemente o sujeito. Ignorar ceticamente e inteiramente esse fator, localizando-o unicamente no sujeito, não é uma arrogância menor do que a absolutização de seus esquemas de ordem conceitual. (...) A desqualificação do mundo pelo espírito como mero caos, em benefício de sua própria onipotência, é tão produto do espírito quanto o cosmo que ele erige como objeto de reverência” (1986, p. 30).
Essa crítica de Adorno, originalmente dirigida a Nietzsche e a outros filósofos do século XIX, pode perfeitamente ser dirigida à concepção deleuziana de um pensar não-conceitual capaz de captar o caráter múltiplo e caótico da diferença pura, uma vez que a concepção de um reino de qualidades caóticas é mediada pelo próprio pensamento identitário cujas limitações se pretende denunciar. De acordo com Peter Dews, “a afirmação ontológica de uma pluralidade irredutível” das alteridades, heterogeneidades e diferenças que caracterizaram fortemente o pós-estruturalismo é inseparável de diversos aspectos problemáticos, conforme explicita a tese de Adorno, de “que a pura singularidade é em si uma abstração, o resíduo do pensamento identificatório” (1996, p. 61). A primazia das diferenças puras enfatizada por Deleuze, em sua pretensão de concretude do imediato, é simples efeito reverso e mediado pelas pretensões totalitárias do pensamento conceitual. Em outras palavras, o percurso antirrepresentacional e anti-identitário realizado por Deleuze em nome da pureza da diferença somente pode ser compreendido não como um trabalho filosófico originalmente espontâneo e não-mediado de libertação da riqueza do singular, mas, antes, como efeito reflexo do insucesso necessário de enquadrar o não-idêntico sob a armadura conceitual. Embora a filosofia da diferença reitere a riqueza incomensurável do singular, tal apelo é inseparável da desqualificação do platonismo e do hegelianismo, eleitos como representantes privilegiados do rolo compressor da representação e da identidade. Em contraste com a filosofia da diferença e sua duvidosa condenação do método dialético, o pensamento de Adorno reage ao caráter totalitário das pretensões autárquicas do pensamento com o esforço de superação das contradições da razão. Diante do fracasso necessário da identidade conceitual, o filósofo alemão valoriza a potencialidade da razão de chocar-se contra seus próprios limites, integrá-los e superá-los como “consciência consequente da não-identidade” (ADORNO, 2009, p. 13). A favor do pensamento dialético fica evidente que as diferenciações e dissonâncias do singular somente são mobilizadas contra o pensamento conceitual quando este procura impor sua frustrada pretensão de totalidade aos objetos da experiência cognoscente. Permanecendo tributária dessa insuficiência, que é precipitadamente assumida como limite irredutível da razão, a filosofia da diferença, assim como o pós-estruturalismo em suas linhas gerais, trai seu caráter mediado apontado por Adorno, não somente pelas armadilhas que são inerentes a toda a crítica dirigida à universalidade, como também em virtude de seu “autodesprezo reativo à autonomia do espírito” (2009, p. 39).
IV
O antagonismo entre Adorno e Deleuze no tocante à ontologia da diferença é complementado por idêntico contraste no que se refere ao tema da prática política revolucionária. O filósofo alemão, em diversas ocasiões, expressou suas reticências em relação ao engajamento político revolucionário como sinônimo indubitável de emancipação e de consciência política. Pelo contrário, muitas vezes a militância política, mesmo que declaradamente de esquerda, pode conter elementos latentes que são contrários ao discurso manifestamente libertário que enunciam, pois “pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados” (1995, p. 129). Para Adorno, o fascismo, sendo entendido como dissolução da individualidade no interior de coletivos organizados, não tem, em si mesmo, ideologia, o que o torna compatível tanto com discursos revolucionários quanto reacionários. O problema fundamental de uma simples erupção descontrolada das pulsões são as tendências de hostilidade à reflexão que muitas vezes as acompanham, o que pode fazer do ativismo uma entrega irrefletida e regressiva ao terror que pretende combater. A política ativista e apaixonada corre o risco de assemelhar-se a seu antagonista: “os fracos, os angustiados, sentem-se fortes de mãos dadas” (1995, p. 226). Por outro lado, em seus escritos com Guattari sobre o maio de 1968, Deleuze postulou uma suposta essência esquizofrênica do desejo revolucionário capaz de rompimento com a repressão burguesa vigente. Bonnet observa de maneira precisa o equívoco de tal elogio da liberação pulsional mediante uma simples observação: o “pressuposto de que um desejo em estado bruto seja revolucionário é tão arbitrário quanto a contrapartida de que esse desejo em estado bruto seja reacionário” (2007, p. 62). O desejo bruto e indeterminado, tanto quanto a diferença em estado puro, quando concebidos sem qualquer mediação que lhes possa atribuir um significado humano, avizinha-se muito mais do fascismo puro e simples do que de uma prática política consciente de si mesma. Enfatizando o irracionalismo de tal elogio gratuito do desejo, Bonnet acrescenta a capacidade de assimilação da razão instrumental que propicia a prévia neutralização dos possíveis potenciais revolucionários do desejo, uma vez que “a sociedade capitalista é capaz de suportar incontáveis manifestações de desejo: as promove inclusive mediante o marketing quando o consumo é seu fim e a mercadoria seu objeto” (2007, p. 62).
Malgrado as significativas diferenças metodológicas entre os dois pensadores abordados neste trabalho, o pensamento filosófico de ambos, parte de uma constatação comum, que consiste no fracasso do projeto civilizador iluminista e suas promessas de emancipação pelo primado da razão esclarecida. Por outro lado, ao desenvolver reflexões críticas acerca das possibilidades de superação da crise da razão, a filosofia de ambos seguiu caminhos diametralmente opostos, uma delas propondo uma crítica interna, dialética e autorreflexiva da razão, e a outra, uma crítica externa e antifundacionalista, ancorada na vontade de poder e sua suposta qualidade rizomática de mobilização de diferenças puras. Diante desse contraste, é cabível indagar sobre a relevância, no campo educativo, da filosofia de Deleuze, em sua proposta de ser um pensamento aberto à exploração de horizontes ainda inexplorados de liberdade, ao mesmo tempo em que renuncia abertamente aos alicerces da racionalidade pautada na identidade e na representação. Para essa reflexão é importante considerar o pressuposto assumido por Adorno segundo o qual, conforme vimos, “sem identificação é impossível pensar” (1992, p. 152). Se assumirmos que ambos os pensadores concordam com o fracasso da razão em sua pretensão de realizar uma identificação sem resíduos entre as coisas e seus conceitos, mas se igualmente concordarmos com Adorno sobre a impossibilidade da produção de um pensamento racional que renuncie à identificação conceitual, a dialética negativa não se mostraria mais consistente em sua abertura para a reflexão das contradições entre identidade e não-identidade? Além disso, se concordarmos uma vez mais com Adorno em sua crítica antecipadora do caráter irrefletido da filosofia da diferença, constataremos que a primazia das diferenças puras no âmbito de um empirismo transcendental é irredutivelmente mediada pelas próprias pretensões totalitárias do pensamento conceitual que ela pretende combater. Em razão disso, podemos uma vez mais indagar se não seria mais razoável assumir pura e simplesmente as deficiências resultantes desse caráter compulsório do pensamento com o objetivo de sua possível superação dialética, sob a perspectiva mais comedida e conceitualmente consistente de Adorno.
Conclusão
Considerando nossa exposição sobre o pensamento de dois filósofos consagrados do século XX, pudemos constatar que, apesar do antagonismo entre Deleuze e Adorno, ambos apresentam como ponto comum a constatação da insuficiência da identidade e do pensamento conceitual para uma representação adequada da realidade. Entretanto, em contraste com a filosofia da diferença deleuziana, que assume uma postura radicalmente contrária à identidade conceitual amparada na universalidade, Adorno aponta para o irracionalismo de um pensamento pura e simplesmente avesso aos alicerces de uma racionalidade amparada na representação e na identidade. Permanecendo coerente com os limites epistemológicos apontados por Hegel, acerca da impossibilidade de se conhecer a singularidade dos objetos reais sem que esta seja mediada pela universalidade, no âmbito de sua dialética negativa, Adorno remete à relevância da não-identidade entre conceito e objeto como forma de pensar a realidade por meio de conceitos sem sacrificar a tensão irredutível entre o particular e o universal.
Tendo em vista a problematização filosófica aqui realizada entre os dois pensadores, tais perspectivas apontam para implicações contrastantes no campo educativo no que se refere ao projeto moderno de esclarecimento por meio da razão. Entre filósofos da educação brasileiros, é cabível destacar dois campos reflexivos adequadamente ilustrativos do grande prestígio adquirido pela filosofia da diferença. O primeiro deles denuncia a ideologia monoculturalista e eurocêntrica representada pelo ideal da maioridade iluminista kantiana, que seria símbolo de uma arrogância universalista (VEIGA-NETO, 2003, p. 6). O modelo ocidental de progresso, em sua pretensão de constituir-se como signo do progresso da humanidade representaria um isotropismo universal potencialmente inimigo da diferença. Um segundo campo reflexivo defende a necessidade de uma pedagogia centrada na crítica política da identidade, com o objetivo de superar abordagens multiculturalistas destinadas a essencializar a diferença (SILVA, 2010, p. 1). Assumindo declaradamente a herança pós-estruturalista, essa segunda perspectiva enfoca a diferença como instância produzida pela linguagem, e, portanto, sendo dotada de primazia sobre a identidade. Dessa primazia deveria resultar uma “pedagogia da diferença”, capaz de desconstruir as identidades existentes. Estas deveriam ser alvo de estratégias pedagógicas que as desestabilizem e sejam capazes de fomentar o “hibridismo, nomadismo, travestismo, cruzamento de fronteiras” (SILVA, 2010, p. 10).
Esses dois campos argumentativos favoráveis à incorporação da filosofia da diferença na educação repercutem o antifundacionalismo pós-estruturalista, em especial sob a perspectiva de uma implosão dos alicerces universalistas da razão. Diante de tal diagnóstico crítico aos parâmetros universalistas da razão, devemos nos perguntar se o modelo dialético, em especial segundo a vertente adorniana da dialética negativa, permaneceria válido para um pensamento capaz de resguardar a integridade do particular contra sua anulação pelo enquadramento conceitual. Responder a essa questão requer, sobretudo, considerar que Adorno não ignorou os prejuízos inevitáveis que a subsunção de objetos particulares a conceitos universais acarreta no que se refere à perda qualitativa intrínseca ao paradigma identitário. A dialética negativa é “consciência consequente da não-identidade”, que enfoca as ideias como signos negativos existentes entre a configuração imediata e empírica dos objetos e seus conceitos. A má consciência da razão em relação ao fracasso histórico de sua promessa de ampliação dos horizontes de liberdade e de autonomia não deve ser pretexto para um puro e simples abandono do pensamento conceitual, pois é somente mediante a identidade que se volta contra a falsa identidade que será possível fazer justiça à integridade do singular. Esse movimento dialético de tensionamento entre a força da consciência e as ilusões por ela mesma produzidas justifica a construção emblemática com que Adorno iniciou sua Dialética Negativa: “a filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (2009, p. 11).
Sob a perspectiva da recepção da filosofia da diferença no campo educativo, repudiadora de uma suposta arrogância universalista e valorizadora de uma “pedagogia da diferença”, não se pode ignorar os riscos de que a primazia do particular possa involuntariamente recair no elogio puro e simples de uma estereotipia positiva como modelo educativo. Embora movidos pelo objetivo legítimo de combater a estereotipia negativa envolvida nos preconceitos étnicos, raciais e de gênero, os educadores simpatizantes do pós-estruturalismo podem incorrer na construção de uma estereotipia oposta, recoberta por signos positivos que fazem louvor à diferença. Assim, à estereotipia negativa do preconceito, que associa o diferente à inferioridade, à anormalidade ou a patologias de diversos matizes, teríamos uma estereotipia positiva que realiza, muitas vezes de maneira dogmática, um elogio automático e incondicional da diferença, sugerindo que a mera singularidade seja critério suficiente para redimir aqueles que são vítimas de humilhação, de injustiça e de preconceito. Nessa ótica, a elaboração de currículos e o desenvolvimento de práticas pedagógicas assentadas na diferença em detrimento da universalidade correm o risco de aprisionar professores e estudantes em autênticos cárceres particularistas que podem privá-los de um desejável enriquecimento formativo somente proporcionado pela contradição entre o particular e o universal.
A importância do pós-estruturalismo e em particular da filosofia da diferença desenhada por Deleuze é indiscutível em virtude de seu valor como crítica radical do caráter autoritário e castrador frequentemente assumido por diversos tipos de normatividade. É possível inclusive afirmar, mesmo que à revelia do filósofo francês e dos demais pensadores do pós-estruturalismo, que sua obra representa um momento privilegiado de autorreflexão do Espírito, em nome de potenciais de racionalidade e de liberdade. Dessa forma, reconhecendo-se tanto a validade de sua obra, bem como a idêntica relevância aqui destacada da dialética negativa de Adorno para problemas similares àqueles pensados por Deleuze, ao consideramos o campo educativo, é importante realçar o aspecto problemático de uma recepção literal e irrefletida da filosofia da diferença como horizonte filosófico, notadamente para questões curriculares. Em virtude disso, quando no campo educativo a dialética é pura e simplesmente preterida em favor do nominalismo próprio à filosofia da diferença, isso significa que a capacidade de descentramento do indivíduo em relação a matrizes comunitárias (a etnia, a família, o gênero) torna-se menos importante do que seu enraizamento pré-existente, seja ele de natureza cultural ou biológica. Sob o ponto de vista do desenvolvimento da autonomia intelectual, isso implica, sobretudo, privar os indivíduos da capacidade de relativizar certezas e pontos de vista próprios e alheios, e condená-los a estruturas de pensamento autocentradas e por isso inaptas a confrontações com os potenciais da universalidade. Sob o pretexto de combater o totalitarismo da razão moderna e de valorizar as identidades soterradas pelo eurocentrismo cultural e epistêmico, a pedagogia da diferença pode incorrer na substituição da deplorável mentalidade fascista do preconceito pela estereotipia positiva do orgulho cultural, porém em prejuízo dos potenciais formadores que somente a confrontação do particular com o universal é capaz de realizar de maneira consistente. A esse respeito, é válido considerar a advertência de Adorno sobre a vulnerabilidade intelectual e emocional ao fascismo e ao autoritarismo implícita em visões de mundo rigidamente dualistas. Diante destas, “liberdade seria não a de escolher entre preto e branco, mas a de escapar à prescrição de semelhante escolha” (1992, p. 115).