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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.35  Belo Horizonte jan./dez 2019  Epub 03-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/0102-4698219798 

Palavra aberta

HOMESCHOOLING OU EDUCAÇÃO NO LAR

HOMESCHOOLING OR HOME EDUCATION

HOMESCHOOLING O EDUCACIÓN EN EL HOGAR

CARLOS ROBERTO JAMIL CURYI  *
http://orcid.org/0000-0001-5555-6602

1Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Programa de Pós-Graduação em Educação, Belo Horizonte, MG, Brasil.


RESUMO:

O princípio da educação obrigatória vem sendo contestado pelo movimento denominado homeschooling no Brasil. Aspectos históricos e legais são muito importantes para se entender tanto a atual obrigatoriedade escolar quanto o passado dessa legislação. Este estudo traz essa dimensão legal e histórica pela qual se apontam concepções e argumentos que apoiam ambas as posições.

Palavras-Chave: Educação obrigatória; Homeschooling; Dever do Estado

ABSTRACT:

The principle of compulsory school has been contested by the movement for homeschooling in Brazil. Historical aspects are very important to understand the current compulsory school attendance in Brazil as well the past of this legislation. This study brings legal and historical texts about this question and also aims to point out conceptualizations and arguments that support both positions.

Keywords: Compulsory school attendance; Homeschooling; State’s duty

RESÚMEN:

El principio de la educación obrigatoria sigue sendo cuestionado en Brasil por el movimiento llamado homeschooling. Los aspectos históricos del presente y del pasado son muy importantes para entender la actual legislación que regula el asunto. Este estudo trae textos legales sobre esta cuestión señalando concepciones y argumentos que apoyan ambas posiciones.

Palabras Clave: Educación obrigatória; Homescholing; Deber del Estado

A denominada homeschooling ou educação no lar, ou mesmo educação doméstica, é um movimento por meio do qual pais de família, alegando insatisfação com a educação escolar ofertada nos estabelecimentos públicos ou privados, pleiteiam transmissão dos conhecimentos a ser dada em casa. Esse movimento já possui vários adeptos no Brasil e seus seguidores vêm pressionando os poderes públicos, em especial os Tribunais, no sentido de legitimar tal opção, inclusive por meio de uma legislação regulamentadora.

As razões alegadas para tal apontam, em geral, insuficiência da oferta formal de educação escolar, seja por conta de uma baixa qualidade, seja pela violência que ronda ou penetra nos estabelecimentos, seja na liberdade de ensino, enfim, por pressupostos religiosos ou morais. Para tanto se apoiam em experiências aprovadas em outros países, em Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário, ou no dispositivo constitucional do artigo 205 que afirma ser “também dever da família” a satisfação da educação como “direito de todos”. Cumpre registrar que nem todos os Tratados e Convenções possuem a mesma redação e que, pela legislação infraconstitucional (Diretrizes e Bases da Educação, lei n. 9.394/96, art. 6º), o maior “dever da família” é o de matricular “as crianças na educação básica a partir dos 4 anos”. E a liberdade de ensino da iniciativa privada não se realiza senão em instituições escolares, consoante o artigo 7º da LDB, em razão do art. 209 da Constituição.

A bem da verdade, é preciso registrar que, desde o Império, as elites ministravam a instrução primária e outros ensinamentos no lar, seja por meio de um “tio padre”, seja por meio de governantas.

Por longos anos, famílias de posse enviavam seus filhos ou filhas menores para internatos colegiais e semi-internatos de modo a se constituirem como local distintivo de educação escolar. É o que afirma Costa (1983):

A renovação da sociedade brasileira, após a chegada da Corte, incrementou a demanda de escolarização. As famílias nativas, pressionadas pelos costumes europeus e por necessidades econômicas, passaram a desejar que os filhos tivessem um melhor nível de instrução. Este movimento foi impulsionado, a partir da segunda metade do século, quando foi construída a primeira via férrea e quando houve uma melhoria geral do sistema de transportes. As famílias rurais puderam, mais comodamente, enviar os filhos para os internatos da Corte ou das grandes capitais. A esse aumento da demanda correspondeu um sensível aumento de estabelecimentos escolares. ( p. 180)

Tanto a Reforma Couto Ferraz de 1854 quanto a de Leôncio de Carvalho, de 1879, admitiam tal procedimento. A primeira nos artigos 18 e 64, e a segunda no art. 2o. Esse costume teve vigência inclusive na Velha República, como o atesta o romance de Mário de Andrade, de 1927: Amar, verbo intransitivo. Com a República e até 1988, essa possibilidade era aceita em nosso país, constando de vários dispositivos legais. Por exemplo, o Decreto n. 981 de 1890, mais conhecido como a Reforma Benjamin Constant, rezava em seu §4º do art. 1º:“É inteiramente livre e fica isento de qualquer inspeção oficial o ensino que, sob a vigilância dos pais ou dos que fizerem suas vezes, for dado às crianças no seio de suas famílias.” A lei estadual n. 41/1892, de Minas Gerais, a admitia em seu art. 55, pois ficavam dispensados da frequência à escola obrigatória os que tinham “o aprendizado efetivo em família”.

A Reforma Caetano de Campos (Lei estadual n. 88 de 1892), em São Paulo, para ficarmos com outro exemplo de lei estadual, dispunha:

Art- 54. A obrigatoriedade não compreende os alunos que receberem instrução em escolas particulares ou em suas próprias casas, e os que residirem a distancia maior de dois kilometros da escola pública, para meninos, e um kilometro, para meninas.§ único. - As crianças que receberem instrução em suas casas são obrigadas a fazer exames nas escolas públicas na época para isso marcada.

Embora a Constituição de 1934 não a tenha positivado, o Plano Nacional de Educação de 1936-37, ainda que abortado pelo golpe de 1937, no seu art. 4º, § único incumbia “à família e aos poderes públicos” ministrar a educação. E assim, o art. 39 dispunha: “a obrigatoriedade da educação primária pode ser satisfeita nas escolas públicas, particulares ou ainda no lar”.

A Constituição outorgada pela ditadura de 1937 dispunha, em seu art. 125, que “a educação integral da prole é o primeiro dever e direito natural dos pais” Esse argumento de “direito natural”, que remonta ao jusnaturalismo medieval, é ainda invocado por vários adeptos da homeschooling.

A Constituição de 1946 dispunha, no art. 166, que “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola”.

As diretrizes e bases da educação nacional, primeira LDB, lei n. 4.024/61, reafirma esse dispositivo tal e qual no seu art. 2º. O art.30 impede o exercício de funções públicas daqueles pais que não tenham matriculado seus filhos em escolas exceto se “lhe está sendo ministrada educação no lar”. À luz dessa lei, o então Conselho Federal de Educação (CFE) exarou o Parecer n. 871 de 1986 o qual, tratando de transferências entre escolas, informa que “aprender as primeiras letras no lar, ou na natural expansão do lar que é a pequena escola meio informal, ao lado da casa, constitui prática comum, que nenhum interesse humano ou social justificaria que a lei impedisse...”.

O que não se pode, conforme o Código Penal, art. 246, é incidir em “abandono intelectual”, crime aí previsto no caso de os pais ou responsáveis se omitirem quanto à “instrução primária dos filhos”. Essa instrução, à época, era a única obrigatória. Hoje, mercê da emenda constitucional n. 59/09, a obrigatoriedade vai dos quatro aos dezessete anos no âmbito da educação básica.

A Constituição de 1988 não traz uma proibição explícita da “educação no lar”. Já se tornou clássico o princípio de que, no âmbito da administração própria dos poderes públicos, é lícito fazer o que está autorizado pela lei. Já no circuito da administração privada, é permitido tudo o que a lei não proíbe. Ora, a educação escolar no terreno do privado goza de liberdade nos termos da lei, o que, no caso, implica a autorização de funcionamento e o respeito à legislação educacional.

Se a Constituição não proíbe “a educação no lar”, ela determina no §3º do art. 208 que é dever do Estado “zelar junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”. Ora, zelar é tomar conta de algo com todo o cuidado, tomando medidas cabíveis para que algo venha a se realizar ou a se evitar. E, por sua vez, frequência supõe um ato de comparecimento em um determinado lugar, podendo inclusive ser medida pelo número de vez desta presença, como no caso das 4 horas diárias e dos 200 dias, como reza a lei das diretrizes e bases. Não por outra razão que o Plano Nacional de Educação, Lei n. 13.005 de 2014, prevê, nas metas e estratégias relativas à Pré-escola, ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, a universalização dessas etapas para os educandos de quatro a dezessete anos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8069/90, não poderia ser mais claro em seu artigo 55: “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Há aqui uma literalidade que se opõe a uma leitura figurada. Essa expressividade do ECA ainda conta com citado artigo 6º da LDB. Também o Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão normativo da educação por lei federal, se pronunciou por meio de sua Câmara de Educação Básica (CEB) pelo Parecer n. 34/2000. Por ele, o relator aponta que, na legislação vigente, não há “abertura para que se permita a uma família não cumprir a exigência da matrícula obrigatória (...)”.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também se pronunciou a propósito de um mandado de segurança (Mandado de segurança n. 7.407 - DF - 2001/0022843-7) impetrado por família adepta da homeschooling. O ministro responsável não o acatou. Em sua decisão ele pondera que aos pais cabe encaminhar os filhos para a educação obrigatória. Por outro lado, para o Ministro, “os filhos não são dos pais (...) são pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no convívio formador da cidadania (...)”.

Em 2005, o Decreto n. 5.622, no art. 30, regulava a educação à distância e estabelecia algumas condições para que tal se desse em “situações emergenciais”, inclusive nos ensinos fundamental e médio. Esse decreto foi revogado pelo Decreto n. 9057/2017, cujos art. 8º e 9º mantêm as condicionalidades do decreto anterior, mas flexibilizam a sua oferta. Entre as condicionalidades, podem ser assinaladas as ligadas à saúde, as relativas a pessoas no exterior, às pessoas em cujas localidades “não possuam rede regular de atendimento escolar presencial” ou estejam em “regiões de difícil” acesso e aos que estejam privados de liberdade. O curioso é que esses decretos não se referem a uma educação doméstica, e sim a uma alternativa pela educação à distância.

Finalmente, mercê de pleito de pais de criança em educar filha em casa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2018, considerou ilegal essa modalidade de atendimento por não estar previsto na Constituição. Ao mesmo tempo, indicou a necessidade de um projeto de lei específica que regulamente o ensino domiciliar com preceitos e regras para tal. Tal decisão foi vencedora por maioria. Mesmo assim, ministros houve que consideraram ser tal ensino inconstitucional por conta do §3º do art. 208.

No Congresso Nacional, já há vários projetos de lei sobre esse assunto, inclusive com base no art. 206, II que dispõe sobre a “liberdade de aprender” e no art. 227, que contém o dever de solidariedade entre o dever do Estado e o dever de família.

Em abril de 2019, o Executivo enviou um projeto de lei ao Congresso sobre o assunto, a partir do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Esse projeto traz como base “o direito natural dos pais” (expressão da Constituição de 1937) na opção por cumprir o dever de ensinar, seja por meio da família, seja pela oferta pública ou privada. O projeto contém várias condicionalidades para a oferta doméstica. Na Câmara, o projeto foi classificado sob o PL n. 2401/2019.

Veem-se, pois, os três lados da questão: a legislação passada que acatava a possibilidade de uma educação no lar, a obrigatoriedade de matrícula e frequência à educação escolar explicitada pelo ordenamento até agora vigente e a pressão exercida por adeptos da educação domiciliar, de modo a voltar a uma situação anterior a 1988.

Esses três lados da questão implicam várias reflexões. A primeira delas é que há mesmo uma tensão entre o dever do Estado e da família e o direito do cidadão. O dever é o que juristas denominam de estado de sujeição (status subjectionis ou status passivus), ou seja, trata-se daquela situação em que o sujeito deve se subordinar ao poder público. Por exemplo: devem-se pagar os impostos instituídos por lei. Já o direito, também denominado de estado de liberdade (status libertatis) é aquele pelo qual o sujeito, titular dos direitos civis, tem a capacidade de agir ou não agir. Por exemplo: liberdade de ir e vir, de crença e de culto, de expressão. Desse modo, como superar essa tensão? De um lado, é meu direito de agir ou não, de outro lado há uma obrigatoriedade de matrícula e de frequência.

A escolaridade obrigatória para todos na idade apropriada é a resposta que o Estado Democrático tem para que, pela posse de conhecimentos “comuns” a todos, possibilite o desenvolvimento da cidadania, de tal sorte que “todos” se tornem membros plenos da sociedade (status activae civitatis). E para tal, tanto quanto superar a ignorância, é dever do Estado que “todos” pelo “comum” acedam à feliz definição do art. 205 de nossa Constituição: “o pleno desenvolvimento da pessoa”.

Entretanto, o “comum” vai além da relação ensino/aprendizagem. A escolaridade traz consigo o campo da convivência. Convivência que reabre uma nova tensão: os diferentes se encontram em um espaço comum a fim de conhecerem e praticarem “as regras do jogo”. Os diferentes se encontram para que haja um reconhecimento recíproco da igualdade, da igualdade essencial entre todos os seres humanos. Os diferentes se encontram para, em base de igualdade, reconhecer e respeitar as diferenças. É nesse ir e vir de conhecimento comum, de aprendizado das regras do jogo, da consciência da igualdade e do reconhecimento do outro como igual e diferente que se efetiva a “dignidade da pessoa humana”, princípio de nossa Constituição.

A homeschooling, em que pese sua crítica a aspectos existentes na escola, crítica que deve ser um alerta para os gestores se empenharem na solução de problemas, em que pese a defesa da liberdade civil, corre o risco de, perigosamente, escorregar para um isolamento, um fechamento para o outro, dentro da família, reduzindo o campo de compartilhamento convivial e de transmissores não licenciados. Note-se que a escola praticamente se tornou o último bastião institucional de uma convergência entre o “todos” e o “comum”. Ela tem uma institucionalidade permanente, sistemática, sistêmica, ao exigir a presença do educando pelo menos cinco dias da semana.

Enfim, cabe às autoridades explicar didática e pedagogicamente o sentido da obrigatoriedade. Essa obrigação, ao liberar o sujeito da ignorância, ao estimular a convivência, é o caminho institucional para a prática de liberdade na igualdade e na diferença.

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Recebido: 11 de Fevereiro de 2019; Aceito: 12 de Março de 2019

Contato: Carlos Roberto Jamil Cury, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Avenida Itau, n. 505, 2º andar, Belo Horizonte|MG|Brasil, CEP 30.730-281

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Doutor em Educação pela PUC SP. Professor Pesquisador do programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Minas - Direito à Educação e Políticas Educacionais. E-mail:<crjcury.bh@terra.com.br>.

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