INTRODUÇÃO
“É porque, de uma certa forma, ela queria me dar o que ela não teve oportunidade, sabe?”
Optamos por iniciar este texto com a fala de uma das colaboradoras da pesquisa que desenvolvemos sobre o acesso e permanência de jovens mulheres da roça1 no Ensino Superior e seus processos de individuação. No trecho acima, a estudante do curso de licenciatura em Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus XII em Guanambi, fala das condições experimentadas por ela para estudar. Muitas dessas condições, na sua concepção e também das demais jovens entrevistadas, são proporcionadas pelas mães porque estas querem dar às filhas, também mulheres, o que elas não tiveram oportunidade. Essa fala levou-nos a indagar: que condições enfrentam as mulheres rurais? Nessas condições, que oportunidades lhes foram/são negadas? O que as mulheres que são mães querem proporcionar às filhas? Quais condições estas experimentam?
Na tentativa de analisar essas questões, este texto coloca em emergência as jovens mulheres da roça no campo de estudos sobre as mulheres, especificamente sobre aquelas dos contextos rurais, cujas ausências foram produzidas nos registros da história e da pesquisa. Para isso, a análise aqui apresentada toma por base a revisão de literatura sobre mulheres rurais e sobre juventude, bem como extratos das entrevistas realizadas com dezessete jovens que fazem diferentes cursos de graduação em dois campi da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), o Campus I (localizado em Salvador) e o Campus XII (localizado em Guanambi). As referidas entrevistas foram realizadas no ano de 2016 e 20172 e compõem a pesquisa mais ampla já citada. Neste texto, portanto, analisamos apenas as passagens que nos ajudam a responder às questões apresentadas anteriormente. Nessa perspectiva, a interpretação das condições das jovens mulheres da roça é feita em sua relação com as condições das outras mulheres rurais, das mães e delas próprias como filhas. Portanto, é por meio das entrevistas com as jovens universitárias que as referências às condições de vida das suas mães são apresentadas. Assim sendo, os dados primários são as narrativas das filhas. A análise dessas narrativas evidencia como suas mães, mesmo com pouca ou nenhuma escolaridade, atuam como suportes para o acesso e permanência de suas filhas no Ensino Superior.
AS MULHERES RURAIS: DAS CONDIÇÕES INVIBILIZADAS À VISIBILIDADE DAS CONDIÇÕES DE VIDA E LUTA
Quando, ao entrevistar jovens da roça na condição de universitárias, sobressaiu a afirmação de que suas mães são um dos suportes mais importantes para acessarem e permanecerem na universidade e que isso se explica porque compreendem que querem dar às filhas o que elas não tiveram oportunidades, tornou-se necessário analisar as condições que as mulheres rurais não tiveram/têm e que desejam proporcionar às suas filhas para entender seus esforços e suas situações de suportes.
Essa abordagem se justifica porque concordamos com a afirmação de Kathya Araujo e Danilo Martuccelli (2012) de que as vivências particulares são desafios compartilhados, resultados das lógicas e formas de estruturação que têm a sociedade no momento histórico em que se vive. Ou seja, há um processo estrutural das condições de gênero para as mulheres nos contextos rurais que lhes nega oportunidades e exige delas o enfrentamento, a elaboração de suas existências.
Assim sendo, buscamos inicialmente, por meio do levantamento bibliográfico, conhecer sobre as condições experienciadas pelas mulheres rurais. Todavia, a primeira descoberta realizada é que essas mulheres não são tão conhecidas no campo acadêmico e nos registros históricos como as mulheres da cidade.
É possível afirmar que boa parte dos estudos sobre as mulheres e a condição feminina relaciona-se aos contextos das cidades de grande e médio porte, onde a presença modernizadora do capitalismo fez das mulheres mão de obra significativa. As cidades são evidenciadas, portanto, como espaços de lutas e dos movimentos por reivindicações específicas das mulheres dentro do movimento geral de transformação da sociedade: luta pelo voto feminino realizado pelo movimento das sufragistas;3 igualdade de direitos; passando por pautas como trabalho feminino e a consequente reivindicação de creches; vida reprodutiva; violência doméstica; enfim, direitos sociais e individuais. Boa parte dessas lutas teve como cenário os espaços da cidade e como atrizes visibilizadas as mulheres desse contexto.4 O que não quer dizer que somente as mulheres da cidade participam da cena social e que apenas elas têm sido sujeitos das pesquisas e estudos. O que se observa é que, justamente por não serem iguais e não estarem nas mesmas condições, nem todas as mulheres têm a mesma visibilidade social e por parte das pesquisas.
De todo modo, observamos que as mulheres na atualidade, seja na cidade ou nos contextos rurais, ainda enfrentam uma realidade marcada por severas desigualdades entre as próprias mulheres, assim como entre mulheres e homens (relações de gênero)5 - e por isto mesmo não ficam imóveis, lutam e resistem.
Em relação às mulheres dos contextos rurais, as pesquisas denunciam que elas foram e continuam sendo vítimas de uma sociedade desigual, não só por serem mulheres (este é o marcador principal da desigualdade),6 mas também por serem, em muitos casos, pobres, negras e moradoras de determinadas comunidades periféricas na geografia espacial e social. Por estes aspectos, são colocadas em um lugar de inferioridade. Essas pertenças, conforme nos mostram os estudos realizados por Miridan Knox Falci (2013) e Maria Lúcia Porto Silva Nogueira (2015), configuram a vida e a história das mulheres rurais, assim como muitas vezes as (in)visibilizam.
[...Α As muito ricas, ou da elite intelectual, estão nas páginas dos inventários, nos livros, com suas joias e posses de terras; as escravas, também estão ali, embora pertencendo às ricas. As pobres livres, as lavadeiras, as doceiras, as costureiras e rendeiras - tão conhecidas nas cantigas do nordeste -, as apanhadeiras de água nos riachos, as quebradeiras de coco e parteiras, todas essas temos mais dificuldades de conhecer: nenhum bem deixaram após a morte, e seus filhos não abriram inventário, nada escreveram ou falaram de seus anseios, medos, angústias, pois eram analfabetas e tiveram, no seu dia a dia de trabalho, de lutar pela sobrevivência. Se sonharam, para poder sobreviver, não podemos saber. (FALCI, 2013, p. 241-242).
Destaca-se, portanto, que as referências às mulheres rurais não são as mesmas para todas as moradoras desse contexto, mesmo quando essas são da mesma região. Os estudos apontam que há outros marcadores que atravessam o gênero, como, por exemplo, a classe, já que o princípio da riqueza baliza o reconhecimento social no campo como ressalta Falci (2013, p. 242). Neste caso, o princípio da cor pode confirmá-lo ou abafá-lo.
No caso das jovens, ser filha de fazendeiro, bem alva, ou ser filha de pequenos agricultores, de negros, são operadores das diferenças e dos lugares sociais que se espera que elas ocupem. Por isso, mesmo que os desafios (de gênero, trabalho, escolarização e outras) pelos quais passam sejam comuns a todas as mulheres, suas formas de enfrentamento são interseccionadas7 pelas suas pertenças e pelas singularidades das suas vidas cotidianas.
Nessa perspectiva, para este texto, buscamos as contribuições dos estudos que retratam os modos de vida, experiências e lutas empreendidas pelas mulheres pobres dos espaços rurais, ou seja, aquelas cujo universo se aproxima das condições de vida das jovens que entrevistamos8 e de suas mães. Compreendemos que muitos desses elementos ajudam a entender o que incita, o que tenciona e o que mobiliza as jovens da roça e suas mães a traçarem para elas projetos de vida que as levam ao Ensino Superior. Mais que isso, ajuda a refletir sobre as forças sociais que negaram e negam oportunidades para as mulheres rurais, de modo geral, ao mesmo tempo que criam outras condições para as jovens desta geração.
Dentre os desafios ainda enfrentados pelas mulheres rurais, identificamos que há aqueles que se explicam tanto pela vertente do patriarcado9 como da divisão sexual do trabalho10 e da teoria de gênero.11 Por essas diferentes vertentes, ressalta-se que as mulheres nos espaços rurais ainda vivem, cotidianamente, conforme demonstra Heleieth Saffioti (1992), o peso da cultura machista, sexista e patriarcal, reafirmada pela formação doméstica que as oprime na família, corporificada por intermédio da cultura, das tradições e da divisão sexual do trabalho, e enfrentada nas relações. Segundo Ana Elizabeth Souza Silveira de Siqueira (2014, p. 24), nas relações familiares e comunitárias dessas mulheres, observamos como a ordem de gênero patriarcal ainda impera e é mantida tanto por homens e mulheres. Estas, por outro lado, “reproduzem o patriarcado e se tornam peças importantes na sua reprodução e continuidade, por meio, sobretudo, da educação dos filhos e filhas”.
Os estudos realizados com mulheres rurais, nas diferentes regiões do Brasil, mostram que a maioria delas tem dificuldade de se deslocar para fora do ambiente doméstico, por causa dos afazeres junto aos pais, mães, irmãos, maridos e aos filhos. De acordo com Rosineide Cordeiro (2007), as pesquisas tendem a assinalar um padrão rígido e assimétrico das relações de gênero na área rural, mostrando que as mulheres são confinadas ao espaço da casa, do roçado e da comunidade onde moram e, neste sentido, defrontam-se com ordens morais de gênero que impõem duras restrições ao ir e vir das mesmas.
Allie Van Der Schaaf (2003), em pesquisa realizada no Rio Grande de Sul, destaca que as mulheres rurais enfrentam solidão, falta de contatos sociais, trabalho rotineiro, dupla jornada de trabalho, doença, difícil relacionamento com o marido e pobreza constantes. Segundo a pesquisadora, estas características levam, inclusive, ao adoecimento. Exemplos extremos são os maus-tratos e outras formas de violência, que, nos espaços rurais, são mais difíceis de perceber pelo isolamento das casas, como demonstram Parry Scott, Ana Cláudia Rodrigues e Jeíza das Chagas Saraiva (2010) no texto cujo título já revela muito da realidade das mulheres em contextos rurais “Onde mal se ouvem os gritos de socorro: notas sobre a violência contra a mulher em contextos rurais”.
Características comuns a essas foram encontradas por pesquisas realizadas nos estados do nordeste por Daniela Nogueira Soares (2009) no semiárido; por Maria Lúcia Lopes de Oliveira (2006) na Paraíba; por Izaura Rufino Fischer (2012) na Zona da Mata de Pernambuco e por Ana Helizabeth Souza Oliveira de Siqueira (2014) na Bahia, entre outros estudos. Estas pesquisadoras também evidenciam a pobreza, a falta de perspectiva de melhoria nas condições de vida e a sobrecarga de trabalho como características da cotidianidade das mulheres rurais. Além disso, apontam que as condições climáticas da região, especialmente no semiárido nordestino, são aspectos que impactam as relações de gênero (SOARES, 2009), bem como a saúde física e mental das mulheres (OLIVEIRA, 2006; OLIVEIRA e RABAY, 2004). Segundo Maria Lúcia Oliveira e Glória Rabay (2004), as vidas e corpos das mulheres rurais revelam sinais e sintomas de pobreza, de maus-tratos e de opressão. Mesmo que predominantemente jovens, os rostos e peles dessas mulheres demonstram cansaço e marcas do envelhecimento precoce, fruto de precárias condições de vida e de trabalho.
No contexto rural, o dia das mulheres parece ser ainda mais estendido. Elas acordam muito cedo, por volta de quatro horas da manhã, para cuidar dos afazeres domésticos, das crianças e do marido, depois costumam trabalhar durante todo o dia na roça,12 e são as últimas a se recolherem (OLIVEIRA, 2006; SIQUEIRA, 2014). Além disso, a essa jornada, muitas vezes, ainda se acrescenta a busca da água de consumo no poço/fonte cujo acesso se encontra a quilômetros, o que demanda horas de caminhada13 (SOARES, 2009; SIQUEIRA, 2014). Toda essa rotina de trabalho tem pouco ou nenhum reconhecimento.
O trabalho feminino no campo encontra-se invisibilizado e pouco valorizado. Se a mulher é casada, seu trabalho é visto como “ajuda” ao marido; se é filha, é visto como “ajuda” ao pai e aos irmãos. Nesse sentido, Alberto Di Sabbato et al (2006, p. 66) dizem que se pode afirmar que “o trabalho da mulher, sobretudo na agropecuária, reproduz a invisibilidade que cerca a percepção da sociedade sobre o papel feminino”. Isto se explica porque “temos um grande contingente trabalhando sem remuneração, isto é, as mulheres trabalham, mas não usufruem a independência que a renda monetária propicia ao trabalhador masculino”.14
Além disso, Di Sabbato et al (2009) ressaltam que quanto mais pobre a família da mulher, maior parcela da sua jornada é ocupada com atividades de autoconsumo, ou seja, com atividades que são invisibilizadas como trabalho produtivo e rentável. Assim, apontam:
A massiva presença feminina no exercício dessas atividades deve-se seguramente ao fato de que essa produção de autoconsumo é provavelmente vista como uma extensão do seu papel de mãe/esposa/dona de casa, provedora das necessidades da família. E, de modo geral, esse papel se superpõe ao seu trabalho na atividade agropecuária - principalmente na horta e no quintal - encobrindo a verdadeira natureza da sua ocupação e reduzindo, por conseguinte, a sua jornada de trabalho. (DI SABBATO et al, 2009, p. 66).
Portanto, observa-se que a estrutura e a ação do pensamento patriarcal dificultam o reconhecimento, a visibilidade e a valorização do trabalho feminino de tal forma que as mulheres rurais têm dificuldades em declararem qual a sua profissão, apesar de praticamente todas elas desenvolverem atividades agrícolas15 e morarem na zona rural, como constatou Siqueira (2009) em sua pesquisa. Neste sentido, quando perguntadas sobre sua profissão, muitas se declaram apenas como donas de casa, algo constatado nas suas certidões de casamento e de nascimento dos filhos, assim como também nas entrevistas realizadas com as jovens colaboradoras da investigação que desenvolvemos quando se referem às atividades das suas mães. Ou seja, as mulheres rurais, de modo geral, quando não engajadas em movimentos sociais, não se percebem como trabalhadoras, uma vez que incorporam a noção corrente de que o trabalho feminino e não-remunerado, no plano simbólico, ainda é complementar, o que revela a “naturalização” da divisão sexual do trabalho. Portanto, permanece a afirmação feita por Maria Lúcia Lopes de Oliveira (2006, p. 3) de que “a atividade feminina é descaracterizada como trabalho, não tendo o mesmo valor conferido ao trabalho masculino”.
Em razão desse panorama de desigualdades e provação cotidiana, as mulheres que moram nas comunidades rurais no Brasil experimentam processos que as obrigam a responderem às opressões e aos desafios de suas vidas de diferentes maneiras, seja por meio das lutas empreendidas em movimentos sociais, seja pelo investimento individual na sua escolarização ou das suas filhas. Neste sentido, engana-se quem as concebe como passivas, conformadas com seus papéis, sem ação e submissas.
Todas as pesquisas com e sobre as mulheres rurais, apesar de denunciarem uma realidade ainda marcada pela precariedade, ou mostrarem “mulheres condicionadas pelos valores do mundo rural que as envolve emocional e culturalmente” (COSTA, 1998, p.13), ressaltam o papel das mesmas como protagonistas de novos processos sociais que configuram um rural que se constitui pela negociação, tensões, fissuras e disputa (ressignificação) em lutas pela igualdade e afirmação de diferenças de gênero. Desse modo, se as estatísticas mostram que as mulheres rurais acima de quinze anos apresentam uma média de escolarização de 4 anos, por exemplo, as jovens apresentam o dobro desses anos de estudo e têm sido cada vez mais comuns suas chegadas ao Ensino Superior (MARQUES, 2019). Desta forma, suas condições de vida e, especificamente de escolarização, mostram-se mais amplas que aquelas experimentadas pela geração de mulheres que são suas mães.
DA CONDIÇÃO DE MULHERES À CONDIÇÃO DE FILHAS: AS JOVENS DA ROÇA E A ESCOLARIZAÇÃO
Nas análises que temos realizado, as jovens da roça compartilham com as outras mulheres as condições de gênero que atravessam suas vidas como mulheres. Na verdade, se são jovens, as pesquisas do campo da juventude mostram que o baixo reconhecimento social das mesmas fica ainda mais evidente (BRUMER, 2007; CASTRO e AQUINO, 2008). Na agricultura, seu trabalho é visto como ajuda aos pais e irmãos; no processo sucessório das terras tradicionalmente privilegiam-se os herdeiros do sexo masculino e a ordem de nascimento (SPANEVELLO, 2008; STROPASOLAS, 2006); as políticas agrárias no Brasil destinam poucos investimentos à pequena agricultura e à juventude. Só nas últimas décadas que as mulheres rurais foram incluídas nessas políticas (SIQUEIRA, 2014).
Apesar dessas condições que vivenciam como mulheres ou no enfrentamento a elas, as jovens desta geração experimentam oportunidades que as lutas empreendidas por outras mulheres lhes proporcionam.
As entrevistas realizadas com dezessete jovens que tiveram acesso ao ensino superior na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) mostram que, enquanto as mulheres rurais, de modo geral, tiveram o direito de decidirem sobre suas vidas limitado e outros direitos negados, a exemplo do direito de estudar, as jovens da roça no contexto atual vivenciam condições mais alargadas. Ou seja, já não planejam para elas uma vida restrita ao trabalho na roça e ao casamento, marcada pelo analfabetismo. Não querem apenas ser conhecidas como “filhas ou esposas de”. Nesse processo de elaboração de um futuro com novas e diferentes oportunidades, as mães têm forte participação e a escolarização é vista como futuro promissor.
Assim, as mães com baixa escolaridade aparecem nas entrevistas das universitárias de origem rural como suportes importantes para que tenham uma escolarização longeva, chegando ao nível superior, como é o caso das jovens participantes da nossa pesquisa. As jovens da roça e universitárias que entrevistamos apresentam os perfis conforme quadro a seguir.
O quadro anterior traz elementos importantes para pensar o perfil das jovens mulheres da roça que têm acesso aos diferentes cursos de graduação na Universidade do Estado da Bahia. Observa-se que a maioria chega ao Ensino Superior na idade “ideal” para essa formação, isto é, entre 18 a 24 anos e solteiras. O perfil dessas jovens é formado de negras (soma de pretas e pardas), característica comum à população rural, conforme último censo realizado no país (BRASIL, 2010). Dado esse perfil e a política de ações afirmativas adotada na Uneb, catorze das dezessete entrevistadas fazem uso do suporte das cotas étnico-raciais para ter acesso ao ensino superior, o que aparece como uma importante política para jovens que interseccionam sua origem rural com a raça e classe, já que todas vivem com renda familiar abaixo de 2 salários mínimos mensais.
Essas jovens mulheres da roça, negras e pobres têm outra característica em comum, a baixa escolaridade dos pais e mães. Das dezessete jovens que entrevistamos, todas as mães estudaram até a 6ª série (hoje denominado 7º ano do Ensino Fundamental). Apenas uma mãe por adoção chegou a estudar o Magistério (correspondente ao atual Ensino Médio).
A fala de uma das jovens ajuda a compreender as dificuldades enfrentadas pelas mulheres da geração de suas mães para estudar.
- Minha mãe tinha mais duas [irmãs], mas eram mulheres e... a minha avó teve 14 filhos! Então assim, era muita criança, né? Então eu penso que na época também era muito mais difícil de estudar, mas mesmo assim minha mãe chegou a estudar até a segunda série... Mas era uma série de dificuldades. Ela fala que... a questão de ter que trabalhar, dela não ter incentivo também de estudar... (Maria das Dores, estudante do curso de Pedagogia matutino no Campus XII da Uneb em Guanambi).
A jovem estudante de graduação evidencia, antes de todas as demais justificativas, o fato da sua mãe e das duas irmãs serem mulheres “mas eram mulheres”. Isto é, há uma adversidade experimentada por sua mãe e as irmãs expressa pelo “mas”. Assim, a condição de mulher demarca as oportunidades experimentadas por essa mãe, situação que não difere nas narrativas produzidas pelas demais jovens. A condição de mulher da mãe de Maria das Dores é interseccionada pela condição de classe e lugar de moradia, pois a geração de sua mãe e avó tinha muitos filhos “era muita criança, né?”; por serem pobres tinham que trabalhar e havia ainda a dificuldade de estudar.
A dificuldade para estudar, especificamente, decorre dos inúmeros afazeres que a situação de pobreza impunha, do significado dos estudos para a vida das mulheres na roça como também pela falta de escolas, uma vez que nos espaços rurais havia/há baixíssima oferta de escolarização e os índices de analfabetismo continuam altos para a população de 15 anos ou mais (acima de 20%), conforme mostram os dados da Síntese de Indicadores Sociais divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, 2013). No caso do estado da Bahia, a porcentagem de analfabetismo é ainda maior e aumenta de acordo o recorte etário. Assim, se de 15 a 24 anos o analfabetismo está em torno de 2,18%, de 25 a 59 anos chega a 14,2% e para pessoas acima de 60 anos chega a mais de 42% (BRASIL, 2013). Ou seja, as oportunidades de estudo da geração de mulheres que são as mães das jovens que entrevistamos eram muito restritas e evidenciam-se por meio dos indicadores apresentados. Neste caso,
Se em épocas anteriores o percurso escolar no meio rural limitava-se a alguns anos de estudo, a conclusão do ensino fundamental, bem como o ingresso, a permanência e o término do ensino médio passam a ser centrais no contexto atual. (SILVA, 2014, p. 108).
No contexto atual, as jovens mulheres experimentam a ampliação da escolaridade que pressupomos estar relacionada às lutas empreendidas pelas gerações anteriores que colocaram na pauta do Estado seus direitos e em suas ações cotidianas criam modos de garanti-los, como fazem as mães com as filhas.
- [...Α Mainha falava “não vou te colocar para fazer nada porque tem prova, vai estudar então. Depois você vai fazer as coisas”. (Ana Alice, estudante do curso de Pedagogia/ noturno, no campus XII da Uneb).
- [...Α Eu lembro que a gente plantava... mas não era nada obrigado. Sempre incentivava a gente a ir para escola. O horário que a gente tava na escola, tudo bem. Voltava pra casa, fazia as tarefas, deveres e depois, mais tarde, quando o sol estava frio, a gente ia pra roça. (Maria, estudante de licenciatura em Ciências Sociais/matutino, no campus I da Uneb).
Os extratos das entrevistas apresentados mostram como as mães das jovens que atualmente são universitárias incentivavam as filhas a irem para a escola, criando as condições para que elas pudessem estudar “não vou te colocar para fazer nada”. A prioridade, conforme relato das filhas, sempre foram os estudos “Depois você vai fazer as coisas”; “fazia as tarefas, deveres e depois, mais tarde, quando o sol estava frio, a gente ia pra roça”.
As jovens mulheres da roça que entrevistamos também trabalham na agricultura familiar, todavia, isso só ocorre quando não atrapalha os estudos, em um tempo mais curto e sem a obrigatoriedade que as condições impunham às mulheres da geração de suas mães.
- [...Α eu trabalhava na roça, como eu te disse, mas era mais nos finais de ano, que eu tava de férias... (Elizabeth, estudante do curso de Educação Física/diurno, no campus XII da Uneb).
- Aí, aí assim... [...Α geralmente eu ia, mas era um tempo assim... curto. [...Α. A gente sempre ajudou eles em roça, principalmente nas férias. Aí nas férias a gente ia pra roça mesmo [risosΑ. (Maria das Dores, estudante do curso de Pedagogia/matutino, no campus XII da Uneb).
- Às vezes eu ia. Quando meus irmãos estavam na escola, para eu não ficar em casa sozinha, então, meu pai e minha mãe me levavam pra roça com eles. Às vezes também mãe tava em casa preparando o almoço, quando eu não estudava, aí meu pai me levava pra ir com ele. (Leidjane, estudante do curso de Fisioterapia/diurno, no campus I da Uneb).
As condições experimentadas pelas jovens mulheres que entrevistamos, em relação às das mulheres rurais da geração de suas mães, caracterizam, se não uma moratória social como pensada por Margulis e Urresti (1996),16 uma moratória sócio familiar, já que é no contexto das condições históricas da atualidade, aliadas às configurações de suas famílias, que o projeto de escolarização se concretiza. Como disse a estudante de Fisioterapia entrevistada “Eu acho que eu vim de uma época que as coisas estavam mais fáceis”.
Nesse caso, as jovens da roça que participaram de nossa pesquisa experimentam condições estruturais de garantia de direitos, como o caso do direito à escola, ao mesmo tempo que compõem famílias de agricultores/as que têm poucos filhos ou são as filhas mais novas quando suas famílias têm uma prole maior. Esses fatores ajudam a ampliar a escolaridade das mesmas que, por sua vez, favorece o prolongamento da juventude.
Para essas jovens usufruírem das condições descritas, suas mães e pais trabalhavam/trabalham ainda mais. As mães, além de “ajudarem” na roça, realizavam as atividades domésticas e acompanhavam as atividades das filhas. Esse acompanhamento se dá mais no campo simbólico que material, mas também neste. No campo simbólico estão as atitudes das mães; os conselhos cotidianos para estudarem, para não ficarem como elas; os cuidados. No campo material, estão a compra de um livro solicitado pela escola, a “vaquinha” para a inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou no vestibular; a venda de uma das poucas vacas para comprar um computador para a filha fazer os trabalhos e pesquisas; por meio da aquisição de empréstimo para a compra de uma moto para a filha se deslocar até a cidade onde pega o ônibus que a transporta para a universidade, etc. O trechos das entrevistas exemplificam o papel das mães como suporte para as filhas estudarem:
- Minha mãe sempre foi muito atenciosa comigo nessa questão. Hoje... eu me emociono... porque eu sento com minha mãe pra estudar e, mesmo sem ela estar identificando o que eu estou falando, sabe? [falou isso bastante emocionada e chorandoΑ. [...Α Porque ela, mesmo sem saber uma tarefa, todos os dias que eu chegava na minha casa, ela folheava meus cadernos pra ver se tava correto [respirou fundo para se acalmarΑ. Hoje é do mesmo jeito “Minha filha, como que está suas notas?”, mesmo eu sabendo que eu tenho que tirar uma média, eu tendo a certeza que eu tenho que tirar essa média pra mim passar, e ela sempre me liga perguntando se eu não tô com dificuldades. Ela senta na cama e eu “Mãe, deixa eu te explicar aqui”, vou explicando pra ela o que eu estou estudando na faculdade. Ela fala... esses dias ela falou pra mim “Cê tá explicando aqui pra uma burra besta” [chorando e rindo ao mesmo tempoΑ. Aí ficou sorrindo. Eu falei “Não, mainha. Eu tô explicando aqui pra uma mulher que sabe muito mais do que eu”. Aí ela fica toda orgulhosa! (Elizabeth, estudante de Educação Física, Campus XII).
- Chego em casa uma e meia da manhã. [...Α Mainha sempre acorda, mainha sempre acorda... Ela deixa o café coado na garrafa, tampa a garrafa com um paninho de prato para não poder esfriar [rindo e ao mesmo tempo emocionada pelos cuidados da mãeΑ. Ela acorda, abre a porta para me ver e depois ela volta a cochilar de novo. (Ana Alice, estudante de Pedagogia, Campus XII).
Os relatos das jovens, portanto, mostram como as mães agricultoras, com baixa escolaridade, “mesmo sem ela estar identificando o que eu estou falando, sabe?” Ou “mesmo sem saber uma tarefa”, são suportes importantes para que suas filhas tenham acesso e permaneçam no Ensino Superior. Seja por meio do apoio, do auxílio nas tarefas, seja no cuidado ao deixar o café coado na garrafa para esperar a filha chegar da universidade, as mães participam do projeto da mobilidade social das filhas que é mediado pela escolarização, mas com amplitudes para além dela. Ademais, é preciso considerar que esse suporte, mesmo quando ausente, faz-se presente.
- Eu acho assim que aqui dentro eu busco muito nisso assim de tentar, de fazer as coisas, de correr atrás talvez pensando no orgulho da minha mãe e também do meu pai, né, porque eles sempre falam assim que tentam dar o melhor pra mim. Então, eu tento fazer o melhor de mim pra conseguir dar pra eles também, acho que é isso. [emocionadaΑ. (Maria Augusta, estudante de Enfermagem, Campus XII).
Portanto, as mães, e também os pais, são suportes que operam mesmo a distância sustentando subjetivamente suas filhas universitárias. Estas atuam pensando no orgulho que seus suportes sentirão. A fala deles (pai e mãe) é eco presente “porque eles sempre falam assim que tentam dar o melhor pra mim”. Embora fisicamente longe, mobilizam a ação porque é um suporte denso e significativo “Então, eu tento fazer o melhor de mim pra conseguir dar pra eles também”.
Por estudarem, as jovens mulheres da roça podem e, muitas vezes, querem adiar projetos de casamento, trabalho. Se alguns projetos são adiados, outros passam a ser alimentados por elas e por suas mães como um futuro promissor “... porque, de uma certa forma, ela queria me dar o que ela não teve oportunidade, sabe?”.
As oportunidades ou promessas de futuro a que se referem relacionam-se à superação das condições existentes, tanto materiais quanto culturais, já que a escolarização das mesmas aparece como um grande investimento das famílias que vivem da agricultura, principalmente, das mães que querem dar às filhas oportunidades diferentes das que elas próprias tiveram. Segundo as narrativas das jovens entrevistadas, querem que a vida das filhas seja mais fácil; que não dependam de homens e isso inclui a independência financeira e de ideias. Ao mesmo tempo, observa-se, conforme mostram Anita Brumer, Graziela Castro Pandolfo e Lucas Coradini (2008), que estudar é um projeto elaborado e enfrentado pelas próprias jovens que avaliam o trabalho dos pais, as possibilidades de união conjugal, o modo de vida no meio rural e as condições de gênero. Assim, a formação educacional é uma promessa de futuro “[...Α com amplitudes que se estendem até outras dimensões do campo profissional e da vida, vendo no acesso aos estudos a possibilidade de questionar padrões, conceitos e comportamentos, sobretudo aqueles que restringem a sua liberdade no espaço rural” (STROPASOLAS, 2006, p.306).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da revisão de literatura que realizamos é possível afirmar que as mulheres rurais emergem no campo das pesquisas sobre mulheres e exigem visibilidade para suas condições de vida e luta. Essas condições são compartilhadas com as jovens, que ainda ocupam um espaço pequeno no campo das pesquisas sobre mulheres rurais, uma vez que estão mais presentes nas investigações que tratam das juventudes.
Ao se tornarem visíveis, as mulheres rurais fazem com que as pesquisas denunciem uma realidade fortemente marcada por relações de gênero assimétricas em que suas oportunidades são restritas. Ao mesmo tempo, os estudos anunciam lutas, resistências e transgressões experimentadas por essas mulheres.
As denúncias e anúncios realizados por outras pesquisas nos permitiram ler as entrevistas que fizemos com as dezessetes jovens da roça que tiveram acesso ao Ensino Superior de modo que compreendemos que as condições experimentadas por elas relacionam-se às condições enfrentadas pelas mulheres rurais de modo geral e particularmente por suas mães.
Ao compartilharem uma realidade macrossocial que as obriga a agir, as mulheres rurais desta e das gerações anteriores buscam em suas ações a escolarização como uma das vias para um futuro com novas e diferentes oportunidades. As mães desejam para as filhas o que elas não tiveram: estudo, trabalho remunerado, liberdade para decidir sobre suas vidas. As filhas parecem desejar o mesmo, avaliam a vida das suas mães e das mulheres rurais como sofrida, algo que não querem para elas. Assim, as mães criam condições, aproveitam as possibilidades abertas nas últimas décadas, e investem para que as jovens, suas filhas, possam estudar. Estas se identificam com esse projeto e forjam-se estudantes universitárias.
Essas mulheres rurais, mães e filhas, acreditam que o estudo poderá proporcionar um futuro visto por elas como promissor.