INTRODUÇÃO
No que diz respeito às pesquisas educacionais, a temática referente à ação docente é vista principalmente sob a perspectiva da prescrição; em outras palavras, o que mais se percebe em pesquisas em que a sala de aula é a principal fonte de coleta de dados, é que a pesquisa educacional prioriza a prescrição sobre o que o professor deve ser ou fazer. Essa argumentação pode ser reforçada considerando a tese de doutorado de Passos (2009), que teve como objeto de estudo a análise da produção bibliográfica constituída por artigos publicados em cinco dos principais periódicos nacionais (da primeira década deste século) da área de Educação Matemática (GEPEM, Bolema, Educação Matemática em Revista, Zetetiké e Educação Matemática em Pesquisa). Passos (2009) constatou que os autores enfatizavam os “deveres” do professor e o que ele precisa “ser”. A lista de deveres do professor encontrada pela autora nos artigos analisados é imensa, o que nos chamou a atenção para o fato de que, no caso destas pesquisas, a ação docente foi pensada, enfaticamente, sob o viés da prescrição, ou seja, daquilo que o professor deve ser ou fazer.
Ao invés da prescrição, buscamos realizar neste estudo a descrição e a análise das ações dos professores, enfatizando o que esses sujeitos fizeram, de fato, em sala de aula. Compreendemos que o viés descritivo referente à análise da ação docente é pertinente às pesquisas educacionais, pois tem o objetivo de explicitar o que realmente decorre no ambiente de sala de aula, possibilitando a compreensão a respeito das interações que se dão nessa configuração de ensino e aprendizagem.
Segundo Tardif e Lessard (2008, p.36):
Parece-nos que o primeiro passo a ser dado para analisar o trabalho dos professores é fazer uma crítica resoluta das visões normativas e moralizantes da docência, que se interessam antes de tudo pelo que os professores deveriam ou não fazer, deixando de lado o que eles realmente são e fazem.
Para superar estes pontos de vista moralizantes e normativos sobre a docência, os autores sugerem privilegiar:
[...] mais o estudo do que os docentes fazem e não tanto prescrições a respeito do que deveriam fazer ou não deveriam fazer. Dito de outra forma, [...] a docência pode ser analisada como qualquer outro trabalho humano, ou seja, descrevendo e analisando as atividades materiais e simbólicas dos trabalhadores tais como elas são realizadas nos próprios locais de trabalho (TARDIF; LESSARD, 2008, p.37).
Assim, foi necessário levar a pesquisa para a sala de aula e analisar os atores envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. Neste artigo trazemos os resultados de uma observação em que acompanhamos e gravamos dois professores em sala de aula em duas turmas distintas de alunos, com idade de oito a dez anos, em uma escola em Portugal. Dessa forma, a busca pela ênfase na descrição e na análise do que, de fato, ocorria em sala de aula, conduziu-nos à questão que aqui pretendemos responder: Quais as categorias de ação docente identificadas nas aulas de dois professores da escola portuguesa pesquisada?
A seguir, trazemos esclarecimentos a respeito dos instrumentos que nos auxiliaram neste movimento de pesquisa.
INSTRUMENTOS PARA A ANÁLISE DA AÇÃO DOCENTE
Uma solução para responder à questão de pesquisa enunciada anteriormente foi buscar instrumentos que nos auxiliassem a compreender o que de fato os professores faziam em sala de aula; em outras palavras, precisávamos de instrumentos que nos permitissem elaborar categorias para as ações docentes. Encontramos tais instrumentos no Quadro sobre os objetivos e motivos da ação de Tardif e Lessard (2008)5 e na Matriz do Professor - M (P) - de Arruda e Passos (2017). O primeiro instrumento forneceu-nos ideias iniciais para a composição das categorias de ação docente e permitiu que elaborássemos uma nova forma de organizar os dados, e o segundo foi de fundamental importância para a interpretação dos dados obtidos. Ambos contribuíram para a consolidação dos resultados que pudemos evidenciar desse nosso estudo.
No Quadro dos objetivos e motivos da ação, de Tardif e Lessard (2008, p.237), os autores mostram um exemplo de análise que leva em consideração as ações realizadas por um professor em sala de aula e seus objetivos e motivos. Apresentamos o Quadro 1 a seguir, a título de esclarecimento para o leitor.
Nesse Quadro 1, podemos encontrar, na coluna da “Natureza da ação”, uma forma de categorizar as ações docentes desempenhadas em sala de aula. Na segunda coluna do Quadro, intitulada “As atividades em classe (segmentos tirados do extrato precedente6)” encontram-se os fatos que se sucederam em sala e que foram transcritos para o Quadro. Na coluna “Objetivo ou motivo da ação” encontram-se inferências dos autores acerca dos objetivos ou motivos dos professores para terem desempenhado tais ações. Para as análises desenvolvidas durante a investigação que realizamos e cujos resultados apresentamos neste artigo, não utilizamos a terceira coluna7.
Na obra de Tardif e Lessard (2008) poucos são os trechos de aula analisados por meio desse Quadro, o que nos levou a elaborar diversas outras categorias para as ações observadas nas aulas de dois professores e dois monitores dos laboratórios, o que totalizou 78 tipos de categorias emergentes. Para o presente artigo, como tratamos apenas das ações dos professores, encontramos 47 categorias distintas.
Entretanto, para complementar as análises realizadas, necessitávamos de um instrumento capaz de atribuir caráter não somente descritivo, mas interpretativo às categorias de ação docente emergentes das situações observadas. E, no artigo intitulado “Um novo instrumento para a análise da ação do professor em sala de aula”, de Arruda, Lima e Passos (2011), encontramos fundamento teórico-metodológico para desenvolver as análises pretendidas.
A partir das ideias concebidas por diversos autores como Tardif (2002), Chevallard (2005), Gauthier et al. (2006), Charlot (2000), dentre outros, Arruda, Lima e Passos (2011) elaboraram esse instrumento, cujo objetivo principal era o de analisar as ações dos professores em sala de aula8. Atualmente, tal instrumento tem sido chamado por Arruda e Passos (2017) de Matriz do Professor (ou também denominada M(P)), visto que, de 2011 até os dias atuais, o instrumento sofreu algumas alterações, principalmente pelo fato de também ter sido utilizado para analisar ações discentes (Matriz do Estudante ou M(E)) e currículos (Matriz do Saber ou M(S)).
Apresentamos então, no Quadro 2, na sequência, a Matriz do Professor desenvolvida por Arruda e Passos (2017, p.105).
Para elucidar um pouco mais a respeito do instrumento e das formas de utilizá-lo para analisar a ação do professor, trazemos na sequência uma explicação elaborada pelos próprios autores da Matriz do Professor.
A Matriz M(P) [...] permite três tipos de leitura. Em uma leitura vertical ela mostra as percepções epistêmicas, pessoais e sociais do professor: sobre a aprendizagem docente (coluna 1); sobre o ensino que pratica (coluna 2); sobre a aprendizagem discente (coluna 3). Em uma leitura horizontal a Matriz M(P) apresenta as percepções do professor sobre a aprendizagem docente, sobre o ensino que pratica e sobre a aprendizagem discente do ponto de vista: epistêmico (linha A); pessoal (linha B); social (linha C). Essas duas leituras permitem uma visão geral das percepções e ações do professor sobre as relações com o saber escolar em sala de aula. Além disso, é possível, também, a realização da leitura célula a célula, que nos fornece uma visão mais detalhada das percepções do mesmo. As três leituras são complementares e, às vezes, utilizadas simultaneamente na análise dos dados (ARRUDA; PASSOS, 2017, p.104-105).
Além disso, é preciso esclarecer o que significam as linhas e colunas dessa matriz. As linhas se referem a três tipos de relações com o saber (ARRUDA; PASSOS, 2017, p.99): as relações epistêmicas com os saberes escolares, que estariam mais relacionados com os processos de compreensão dos conteúdos disciplinares; as relações pessoais, que teriam mais a ver com os sentimentos e a formação do sentido desses saberes para o professor; e as relações sociais, relacionadas com o fato de que o professor está imerso em uma comunidade de educadores (professores do ensino básico, professores universitários, pesquisadores, administradores etc.), em contato com seus valores e crenças, além dos pais e dos alunos.
Com relação às colunas, estas se referem ao modelo de sala de aula utilizado com frequência por vários educadores e que poderia ser denominado de triângulo didático-pedagógico, conforme a Figura 1 a seguir:
No qual P é o professor, E os alunos e S o saber a ser ensinado. Portanto, no Quadro 2 os segmentos se referem ao triângulo da Figura 1, que representa as relações com o saber em sala de aula de P e E.
A maneira com a qual utilizamos a M(P) foi diferente da forma com que esses autores de origem o fizeram, pois encontramos categorias que descreviam as ações docentes observadas nas aulas dos dois professores observados durante nossa coleta de dados e alocamos tais categorias de ação docente nos setores da M(P). Para a compreensão desses procedimentos trazemos diversos esclarecimentos na próxima seção, inclusive alguns detalhes a respeito do ambiente de coleta de dados, ou seja, da escola portuguesa investigada e dos sujeitos participantes.
FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS
Com o intuito de fundamentar nossa metodologia de coleta e análise de dados, baseamo--nos em alguns procedimentos da Análise Textual Discursiva (ATD). Compreendemos que essa modalidade de análise textual possui características pertinentes às necessidades da nossa investigação, pois proporciona um processo auto-organizado que possibilita a superação de uma leitura convencional.
Esta modalidade também possui a pretensão de elaborar “compreensões sociais e culturais relativas ao fenômeno que investiga [trazendo consigo um sentido] radicalmente hermenêutico” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.147).
A ATD possui quatro etapas que constituem os procedimentos por ela requisitados:
Etapa 1 - A desmontagem dos textos é “o primeiro elemento do ciclo de análise” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.13) que constitui a ATD. Para alcançar diferentes interpretações a partir da leitura de um texto é preciso, em primeiro lugar, constituir “um conjunto adequado de documentos a serem analisados” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.17) e, depois, iniciar a desmontagem desses textos.
Etapa 2 - A desconstrução e a unitarização são o segundo elemento do ciclo da ATD com o objetivo de explorar interpretações novas em um texto. Sendo assim, é possível averiguar, nos detalhes das transcrições realizadas, sentidos que uma simples leitura seria incapaz de obter. Posteriormente à desconstrução textual, o próximo passo é o movimento no sentido inverso, buscando a convergência dos elementos desconstruídos (movimento denominado de unitarização). Complementam os autores que “a unitarização é parte do esforço de construir significados a partir de um conjunto de textos, entendendo que sempre há mais sentidos do que uma leitura possibilita elaborar” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.49).
Etapa 3 - Após a desconstrução do texto, estabelece-se a terceira etapa do ciclo da ATD, que diz respeito à categorização. Trata-se de “um processo de comparação constante entre as unidades definidas no momento inicial da análise, levando a agrupamentos de elementos semelhantes” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.23).
Etapa 4 - O último dos elementos constituintes do ciclo de procedimentos da ATD é a construção do metatexto, no qual são expressos “os sentidos lidos em um conjunto de textos constituídos de descrição e interpretação, representando o conjunto, um modo de teorização sobre os fenômenos estudados” (MORAES; GALIAZZI, 2011, p.32).
Essas quatro etapas formam um ciclo de procedimentos que permitem novas interpretações acerca dos dados constituídos, e que nortearam a coleta e análise dos dados referentes a esta pesquisa.
Para a seleção do ambiente de coleta de dados e dos sujeitos de pesquisa, foram estabelecidos critérios a partir das indicações de pesquisadores da Universidade Portuguesa9. Estes pesquisadores possuíam acesso à escola e contato com os professores. Escolhemos, portanto, dois professores dentre suas indicações após conversas, entrevistas iniciais e permissão para a filmagem das aulas.
Sendo assim, durante um período de aproximadamente três meses, entre o início de janeiro e o início de março de 2016, iniciamos a tomada de dados na referida escola de Portugal. Ao todo, foram mais de 50 horas de observação de aulas gravadas em áudio e vídeo; para este artigo selecionamos 3 aulas do professor codificado como P1 e 2 aulas do professor P2, respectivamente, uma hora e meia e uma hora e quinze minutos, aproximadamente. Selecionamos somente essas aulas, das tantas que possuímos, pois elas são representativas das atuações desses professores em sala de aula, justificando que a apresentação de uma quantidade excessiva de aulas não se adequaria a um artigo pela quantidade de informação que possuem.
A escola em questão faz parte de um agrupamento de escolas, que se distribuem por certa região de Portugal, possuindo naquela ocasião: cinco Jardins de Infância; duas escolas de primeiro ciclo; uma escola do segundo e terceiro ciclos10 e do Ensino Secundário. Nós pesquisamos uma escola que atendia alunos pertencentes ao primeiro ciclo, com faixa etária aproximada entre 7 e 10 anos. Foi nela que coletamos as aulas analisadas e aqui apresentadas. Todo o processo de coleta foi realizado por meio de videogravação de suas atuações, que, posteriormente, tiveram a transcrição de suas falas, a descrição das ações não verbais e transcrição das falas de seus alunos.
Quanto aos professores estudados, inserimos no Quadro 3 algumas informações sobre eles.
Ao ser contatado, P1 demonstrou muita solicitude para participar da pesquisa, mostrou-se uma pessoa confiável, com amplo conhecimento acerca de diversas áreas. Ministrou suas aulas com segurança e firmeza, gerenciando a sua classe de 26 alunos. Seus alunos foram classificados com uma codificação entre E1 e E22, pois quatro deles não trouxeram a autorização, assinada por seus responsáveis, para serem videogravados.
P2 atuava como professor substituto naquela escola, era seu primeiro ano por lá; contudo, possuía grande experiência na docência. Ele também se mostrou disponível em participar da pesquisa, todavia modificou sua maneira de ensinar a partir da leitura das expressões faciais de seus alunos para atender ao que chamou de necessidades de aprendizagem dos estudantes, estando sempre atento ao que ocorria na sala de aula, tecendo elogios aos alunos e repreendendo-os com frequência diante das situações ocorridas. Seus alunos foram classificados com uma codificação de E1 até E18, sendo que sete foram os alunos não autorizados pelos pais.
Trazemos agora a descrição dos procedimentos realizados para a constituição e organização dos dados recolhidos.
Constituição e organização dos dados
Para que pudéssemos ser capazes de analisar os dados constituídos foi necessário utilizar os dois instrumentos simultaneamente. A solução então foi integrar os dois instrumentos, ou seja, integrar o Quadro dos objetivos e motivos da ação de Tardif e Lessard (2008) com a Matriz do Professor de Arruda e Passos (2017). Desse processo chegamos a uma maneira inédita de organizar os dados e que pode ser consultada no Quadro 4, com exemplo de um trecho da aula de P1, em que o professor interage com um dos alunos.
Para cada uma das colunas do Quadro anterior elaboramos uma explicação a fim de facilitar a compreensão da forma como procedemos para organizar os dados:
. Numeração da ação: refere-se à sequência das ações que foram desenvolvidas na aula em questão. Para o trecho citado anteriormente, temos da 48ª até a 51ª ação que foi realizada na aula de P1. Após realizada a elaboração das categorias de ação, realizamos a contagem da frequência em que elas foram observadas em cada aula, e isso nos levou a extrair as porcentagens das categorias de ação docente realizadas pelos professores [...] nas aulas que ministraram;
. Categoria de ação docente/Setor da Matriz: diz respeito à categoria da ação que o professor [...] desenvolveu e também ao setor da Matriz correspondente a essa ação;
. Transcrição das falas/descrição das ações docentes não verbais: refere-se à transcrição das falas e à descrição de algumas ações não verbais (ações em que o professor [...] escreve ou aponta para o quadro, realiza gestos de aprovação ou carinho, sorri etc.) do professor durante a sua atuação em sala de aula coletadas por meio de videogravação. Diz respeito ao que, de fato, o professor disse ou fez (PIRATELO, 2018).
Em síntese, para compor a análise dos dados, a partir dos procedimentos da ATD, realizamos os seguintes passos: 1 - Transcrição e leitura dos dados provenientes das gravações em áudio e vídeo de uma hora e meia e uma hora e quinze minutos das aulas de P1 e P2, respectivamente; 2 - Fragmentação e desconstrução das transcrições das aulas; 3 - Unitarização dos dados que nos proporcionaram um conjunto de categorias de ações docentes; 4 - Alocação desse conjunto de categorias de ação docente nos setores da M(P).
Sempre considerando que nosso objetivo, ao compor a análise dos dados, era o de elaborar categorias de ação que emergissem da observação das aulas dos dois professores, descrevendo tais categorias e produzindo um texto interpretativo sobre elas. Estas categorias de ação docente encontradas estão no apêndice no final deste artigo13.
Na continuidade, elaboramos uma seção em que são apresentados os dados interpretados e que sustentaram as considerações conclusivas a que chegamos.
No sentido de garantir a alocação mais coerente das ações docentes, recorremos a uma descrição de cada uma das células da Matriz do Professor, encontradas em Arruda, Lima e Passos (2011, p.147-148) e reproduzidas no Anexo.
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Esta seção foi estruturada da seguinte forma: inicialmente, apresentamos algumas informações a respeito da aula do professor em questão e descrevemos brevemente como ocorreu a aula observada; em seguida trazemos um Quadro em que utilizamos nossa forma de organizar os dados para mostrar um trecho da aula, com a categorização das ações docentes observadas e sua classificação nos setores da M(P); logo após, inserimos uma versão da M(P) com os setores preenchidos com as porcentagens das frequências de categorias de ação docente encontradas nas aulas dos professores, segundo nossa interpretação.
Iniciamos, portanto, com a apresentação dos dados referente à aula de P1 e em seguida discorreremos sobre a aula de P2.
A Aula de P1
No Quadro 5 temos algumas informações relativas à aula de P1 analisada.
A aula de P1 de Matemática teve a duração aproximada de 1 hora e meia. Ao iniciar sua aula, o professor propôs aos alunos, por meio do quadro interativo15, um problema matemático apresentado na forma de um diálogo entre dois alunos - Quando obtemos um produto maior, quando multiplicamos um número por dez ou por uma décima?
A partir dessa situação-problema, o objetivo de P1 foi de que os alunos aprendessem as regras de multiplicação e divisão por dez, cem, mil, uma décima, uma centésima e uma milésima, e que seus alunos realizassem os cálculos, sem o uso de lápis, caneta, papel ou calculadora, ou seja, a partir do que chamou de “cálculo mental”. P1 intencionava mostrar o que ocorria nas operações com as casas decimais dos números, e incentivá-los a chegarem à resposta do problema proposto no início da aula.
Na sequência, apresentamos no Quadro 6 um dos trechos iniciais da aula (ações de 13 a 19 que ocorreram na aula de P1) com as categorias de ação docente encontradas, além da transcrição de parte da aula, com nossa nova maneira de organizar os dados. Neste Quadro, também podemos perceber o quanto P1 fez uso de perguntas para conduzir sua aula.
Apresentamos agora, no Quadro 7, uma versão da M(P) em que as categorias de ação docente encontradas na aula analisada foram alocadas nos setores do instrumento, ou seja, as 658 ações docentes, protagonizadas por P1, mapeando a M(P) em 4 dos 9 setores da Matriz (destacados em cinza) perfazendo os 100% de suas atuações.
Ao observarmos o Quadro 7, considerando as informações que alocamos nas colunas (Relações do professor: 1 - com o conteúdo; 2 - com o ensino; e, 3 - com a aprendizagem), vemos que as categorias de ação se manifestaram principalmente na relação com o ensino. Quando consideramos a disposição nas linhas (A - Epistêmica; B - Pessoal; e, C - Social) vemos que suas ações foram predominantemente situadas nos aspectos epistêmicos. Os dois principais setores em que as categorias de ação foram alocadas dizem respeito aos setores 2A e 3A, ou seja, ações protagonizadas pelo professor no intuito de promover o ensino e ações em que ele almejou que os protagonistas fossem os alunos para promover a aprendizagem, respectivamente.
O fato de não haver categorias alocadas nos setores relativos à coluna 1, correspondente à relação do professor com o conteúdo, é devido à interpretação que nós pesquisadores, e que o grupo de pesquisa ao qual pertencemos, atribuímos à análise dos dados na Matriz desde que ela foi elaborada em 2011. Embora o professor tenha abordado o conteúdo, e que este tenha sido o assunto sobre o qual toda a aula foi desenvolvida, nossa interpretação é a de que as categorias de ação poderiam ser alocadas na coluna 1, quando o professor lê, cita ou escreve (na íntegra) um conteúdo disponibilizado em um material previamente elaborado, podendo este estar disponível em livros, na internet etc. Pode--se incluir também nesta coluna 1 as manifestações de sentimentos ou valores com relação ao conteúdo abordado, ou seja, quando o professor comenta gostar ou não da matéria que ensina ou quando manifesta que a considera importante ou não durante sua aula.
As categorias de ações em que os professores buscaram fazer uso de diferentes maneiras para ensinar o conteúdo, encontram-se alocadas nos setores referentes à coluna 2, correspondente à relação do professor com o ensino. Por este motivo, podemos ver que os setores referentes à coluna 1 obtiveram uma porcentagem nula de categorias de ações alocadas, e os setores relativos à coluna 2 obtiveram uma porcentagem relevante nas análises dos dados.
A Aula de P2
Assim como apresentamos e analisamos a atuação do P1, passamos agora à descrição e análise do que realizou P2 em sua aula, trazendo de antemão informações sobre o professor (Quadro 8); em seguida, trechos da aula para exemplificação (Quadro 9) e da alocação de todas as acomodações (em percentagens) do que ocorreu na Matriz (Quadro 10).
Esta aula videogravada teve início como uma continuação da aula de Matemática do horário anterior e, na sequência, foi uma aula de Estudo do Meio, conforme agenda de horário da turma. O tema da aula foi sobre os estados do tempo do mês de janeiro de 2016, onde um aluno apresentou anotações diárias do clima desse mês e P2 trabalhou conceitos relativos à contagem e frequência dos dias de sol, de chuva etc.
P2 utilizou-se de diversas estratégias pedagógicas para atingir os objetivos que propôs à aula, e as modificou sempre que julgou necessário, pois em suas palavras a intenção era “atingir mais alunos”. Sendo assim, esse professor explicou verbalmente o conteúdo, dirigiu diversas perguntas aos alunos, supervisionou frequentemente nas carteiras as atividades que propôs e elogiou seus alunos sempre que concluía que haviam realizado o que pediu.
A seguir, apresentamos um trecho da aula de P2 no Quadro 9. Neste Quadro, podemos perceber que P2 se utiliza da lousa para a resolução de exercícios, elogia um aluno que resolveu corretamente o exercício e volta a supervisionar o restante dos alunos para conferir se realizaram a atividade.
Da mesma forma como procedemos em relação aos dados apresentados sobre a aula de P1, fizemos com P2. Sendo assim, distribuímos as categorias de ação docente que emergiram da aula de P2 na Matriz do Professor no Quadro 10 a seguir, realizamos a contagem da frequência em que foram executadas e calculamos a porcentagem dessas ações em relação ao total de 367 ações desempenhadas por este professor, destacando em cinza os setores em que foi possível alocar ao menos uma categoria de ação ou objetivo e motivo da ação docente, mesmo que não houvesse porcentagem relevante.
As categorias de ações encontradas na aula de P2 foram alocadas em seis dos nove setores destacados em cinza na M(P). Em dois deles, a frequência foi muito pequena e, em comparação ao total de 367 ações, representaram menos de 1%. Sendo assim, os setores com porcentagem relevante acerca das categorias de ação docente foram os mesmos de P1, todavia as semelhanças com a aula deste outro professor também se manifestam por meio dos descritivos numéricos. A coluna com a maior incidência de categorias de ação docente também foi a coluna 2, referente ao ensino e, a linha com maior porcentagem de categorias de ação foi a linha A, da relação epistêmica com o saber. O setor com maior porcentagem foi o 2A, e o segundo com maior porcentagem foi o 3A, assim como foi com P1.
Para facilitar essa comparação, que em momento algum teve a pretensão de ser avaliativa, com caráter de julgamento a respeito das melhores práticas a serem realizadas em sala de aula, inserimos os dados obtidos nos Quadros 7 e 10 em um único gráfico, o Gráfico 1 a seguir.
Esse gráfico nos permitiu realizar algumas interpretações. Os setores com relevância, no que diz respeito à porcentagem da frequência das categorias de ação docente na aula de P1 e P2, foram os mesmos. Além disso, existem alguns setores de maior incidência do que outros e, para os dois professores, esses setores também foram os mesmos. Isso nos levou a inferir que o ambiente de sala de aula pode ser um fator que corrobora com as ações desenvolvidas pelo professor16. A principal diferença encontra-se na porcentagem referente a cada setor, e esse fato pode estar relacionado ao estilo de aula de cada docente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos este artigo buscando descrever e analisar as categorias de ação docente de dois professores de uma escola portuguesa, fundamentando-nos, para isso, no Quadro de motivos e objetivos da ação de Tardif e Lessard (2008) e na Matriz do Professor de Arruda e Passos (2017). Os procedimentos metodológicos pautaram-se naquilo que a Análise Textual Discursiva defende e que nos proporcionou elaborar uma nova maneira de organizar os dados, que foi capaz de atender às necessidades investigativas relativas a este estudo identificando:
As categorias de ação docente realizadas pelos professores. Por meio da análise da gravação das aulas desses dois professores foi possível caracterizar 47 categorias de ação docente distintas.
A porcentagem da frequência das categorias de ação docente observadas. Diante da contagem da frequência das categorias de ações e de cálculos de percentagens referentes a cada uma dessas categorias, pudemos ilustrar um perfil de ação docente relativo a cada aula observada17.
As categorias de ação docente que emergiram dos dados encontram-se dispostas no apêndice no final do artigo, no qual descrevemos e apresentamos as justificativas para as classificações nos setores da Matriz do Professor a elas atribuídas. A título de exemplo, trazemos aqui parte do apêndice na forma de um quadro. Nele, descrevemos a codificação da ação docente em que atribuímos os números de 1 a 47 para cada categoria de ação encontrada (no Quadro 11 a seguir, trazemos apenas 3); a nomenclatura atribuída à categoria da ação e o setor da Matriz do Professor em que foi alocada; a descrição dessa categoria; a justificativa da alocação dessa categoria de ação no referido setor e um exemplo de ação efetuada por um dos professores analisados durante sua atuação.
Como resultado das análises por meio da forma organizacional dos dados e da contagem das categorias de ação, averiguamos que nas duas aulas observadas, as categorias de ação encontradas recaíram sobre os mesmos setores da M(P) e na mesma ordem de importância (em primeiro lugar o setor 2A, na sequência 3A, depois 2C e por último 3B). Isso nos chamou a atenção para o fato de o ambiente de sala de aula ter a possibilidade de direcionar o tipo de ação a ser executada pelo professor. Além disso, verificamos que as percentagens das categorias de ação docente variaram, o que nos levou a interpretar que cada professor tem suas características pedagógicas e que isso também pode influenciar nas escolhas das ações e na frequência a serem desempenhadas durante a aula.
Também percebemos, durante a observação de várias aulas desses professores, alguns fatores que podem ser responsáveis pela diferenciação das práticas entre eles, como a frequência, a intensidade e a qualidade das ações docentes. A frequência, porque pode refletir o perfil docente e as principais preocupações do professor durante sua aula; a intensidade, por enfatizar a importância que o professor confere a determinada ação (por exemplo: a intensidade de uma punição ou chamada de atenção); e, a qualidade, por expressar a reflexão docente acerca de um determinado tema (exemplo: a qualidade da pergunta feita em sala que conduz o aluno ao raciocínio).
Em síntese, neste estudo priorizamos uma visão descritiva e analítica do que de fato ocorreu em sala de aula. A partir dessa perspectiva, também foi possível atribuir um viés interpretativo às ações docentes encontradas nas aulas de dois professores, por meio da articulação entre dois instrumentos utilizados para analisar a ação do professor.
Sendo assim, a partir dessa pesquisa que teve, desde a sua concepção, a intenção de se desenvolver no interior da sala de aula, concluímos que a ênfase nas ações desenvolvidas pelo professor em seu ambiente de trabalho pode contribuir para a pesquisa educacional, pois estamos de acordo com Charlot (2008, p.91), quando afirma que o papel da pesquisa educacional seria o de “forjar instrumentos, ferramentas para melhor entender o que está acontecendo na sala de aula; criar inteligibilidade para melhor entender o que está acontecendo ali”.
Dessa forma, a maneira com a qual organizamos e analisamos os dados pode vir a ser útil para que se possa realizar um movimento de pesquisa para diagnóstico e planejamento da ação docente nos estudos em formação de professores. Um meio de se trabalhar o tema, por exemplo, seria propor a um grupo de professores (de diversas áreas do conhecimento, em formação ou já em exercício) que identifique as categorias de ação docente encontradas em gravações de suas próprias aulas e as compare com as deste estudo. Além disso, também seria possível proporcionar a este grupo momentos de reflexão a respeito de quais setores da Matriz do Professor compreendem que precisariam enfatizar.