INTRODUÇÃO
O estado global de pandemia em razão do vírus COVID-19, instaurado em meados de março de 2020, trouxe à tona questões em múltiplos setores de como se daria a continuidade da rotina cotidiana da população com a instituição da diversidade de métodos de controle desse mal. No contexto educacional não foi diferente, de modo que instituições públicas e privadas abrangendo todos os níveis de ensino no Brasil iniciaram atividades educacionais constitutivas do Ensino Remoto Emergencial (ERE) (CASTIONI et al., 2021).
O ERE nas instituições de ensino superior se constituiu primordialmente do uso de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) - que já eram utilizados anteriormente para a Educação a Distância (EAD) - de forma a possibilitar a continuidade dos estudos em um formato não presencial e, assim, buscando evitar o contágio pelo COVID-19. Contudo, a EAD não costuma ser bem aceita ou amplamente utilizada em instituições públicas, primordialmente devido às condições sociais precárias de muitos de seus alunos e à própria baixa oferta dessa modalidade de ensino nessas instituições (CASTIONI et al., 2021). Todavia, deve-se atentar que o ERE é uma:
[...] modalidade de ensino ou aula que pressupõe o distanciamento geográfico de professores e estudantes e vem sendo adotada nos diferentes níveis de ensino, por instituições educacionais no mundo todo, em função das restrições impostas pelo COVID-19, que impossibilita a presença física de estudantes e professores nos espaços geográficos das instituições educacionais. (ANTÓNIO MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 8).
Nesse sentido, EAD e ERE se diferenciam, sendo o primeiro marcado pela possibilidade de preparação e planejamento prévio, e o segundo tendo sua implementação principalmente devido à necessidade advinda do regime de emergência, tendo em vista o quadro pandêmico Mundial (LUDOVICO et al, 2020). Diante disso, tanto discentes quanto os docentes foram desafiados a encontrar alternativas para promover o ensino de qualidade através de atividades e situações de aprendizagens eficazes adequadas ao contexto remoto digital, independentemente das possíveis críticas tradicionais ao modelo.
É nesse cenário que a busca por estratégias facilitadoras e envolventes de ensinar tem auxiliado os docentes. Teorias como a da Conectividade e da Atividade demonstram propriedades importantes em um mundo onde a informação se encontra amplamente distribuída do ponto de vista geográfico, sendo fundamental identificá-la e entendê-la dentro de seu contexto de aplicação.
A Teoria Conectivista (TC) foi desenvolvida inicialmente por Siemens em 2004 e pode ser caracterizada resumidamente como uma teoria de rede de conhecimentos e aprendizagem com ênfase no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), de modo a aperfeiçoar a interação online (DOWNES, 2020). A habilidade de estabelecer conexões entre diversos tipos de conhecimento é fundamental, possibilitando que a aprendizagem ocorra de acordo com a capacidade de construir e percorrer essas conexões e as redes que essas formam. Nesse contexto, o conhecimento é visto como pessoal, pois cada indivíduo possui conexões únicas que o fazem interpretar e construir seu aprendizado à sua própria maneira. Percebe-se, assim, que, ao analisar a aprendizagem, é necessário verificar também o contexto no qual esse indivíduo está inserido, e pode-se, então, utilizar a Teoria da Atividade (TA) como auxiliar nesse processo.
De acordo com Leontiev (1978), a TA busca investigar a atividade e não o indivíduo propriamente dito. O autor compreende que a atividade é um processo que se inicia por um motivo, tendo objetivos específicos e possuindo certas condições para ser operacionalizada. Nesse processo ocorre, então, a mediação entre um sujeito e um objeto (FIGUEIREDO, 2019), relacionando-se, assim, a TC no que tange à criação e manutenção das conexões e redes desse sujeito.
Levando em consideração o cenário atual da educação no Brasil, e tendo em vista as teorias mencionadas anteriormente, propõe-se uma análise qualitativa exploratória-descritiva de uma disciplina de pós-graduação em nível de Doutorado sendo executada na modalidade ERE. Para tal utiliza-se uma adaptação do método fundamentado em TA de Mwanza (2001), em conjunto com conceitos ligados à TC, particularmente no que tange aos tópicos das oito propriedades conectivistas de successful networks (neste trabalho traduzidas como redes efetivas), para efetuar a análise. Assim sendo, busca-se identificar os elementos que compõem a disciplina analisada sob as óticas conectivista e da atividade, com vistas a estabelecer relações entre ambas e, neste processo, obter uma melhor compreensão do contexto de aprendizagem experienciado pelos estudantes durante a disciplina. Essa percepção torna-se interessante ao possibilitar a visualização do contexto da aprendizagem sob a ótica de duas teorias pertinentes ao ERE.
Almejando alcançar tal objetivo, este artigo está dividido da seguinte forma: inicialmente são descritos os elementos teóricos que fundamentam a proposta, a teoria da atividade e o conectivismo, juntamente com uma reflexão acerca dos seus pontos de contato. A seguir é descrita a metodologia proposta, detalhando a abordagem de pesquisa utilizada. Segue-se, então, com a apresentação e discussão dos resultados obtidos e, por fim, as considerações finais.
REFERENCIAL TEÓRICO
De modo a fundamentar a proposta apresentada anteriormente, nesta seção são descritas as teorias Conectivista e da Atividade de acordo com os autores que as constituíram, assim como demais autores que as tratam em suas obras. Também, é apresentada uma breve análise relativa aos pontos de contato entre ambas as teorias.
Teoria Conectivista
A Teoria Conectivista (ou apenas “Conectivismo”) nasceu como uma resposta de George Siemens e Stephen Downes a uma percebida necessidade da criação de uma teoria de aprendizagem para a era digital (SIEMENS, 2005). Segundo seus proponentes, o progresso tecnológico e, em especial, o advento da internet trouxeram como consequência um cenário de mundo globalizado, altamente acelerado e dinâmico, levando à existência de uma abundância, senão excesso de informação disponível e de fácil acesso a grande parte da população mundial. Nesta visão, tais desenvolvimentos naturalmente trouxeram também consigo impactos nas formas humanas de aprender, exigindo, portanto, adaptações às teorias clássicas de aprendizagem. O conectivismo nasce desse contexto, porém, adotando uma posição ainda mais disruptiva ao advogar por uma quebra de paradigma e afastamento do que é visto por seus defensores como modelos antiquados, em favor de uma visão completamente nova. Siemens (2005, n.p.) lista os oito princípios básicos da teoria da seguinte forma4:
Aprendizagem e conhecimento se fundamentam na diversidade de opiniões;
Aprendizagem consiste em um processo de realização de conexões entre nódulos especializados ou fontes de informação;
Aprendizagem pode residir em dispositivos não-humanos;
A capacidade de 'saber mais' é mais crítica do que o que é atualmente sabido;
A nutrição e manutenção de conexões são necessárias para a facilitação de aprendizagem contínua;
Capacidade de ver conexões entre campos, ideias e conceitos é uma habilidade central;
Atualidade (i.e., conhecimento preciso e atual) é o propósito de todas as atividades de aprendizagem conectivistas;
Tomada de decisão é, em si, um processo de aprendizagem. A escolha do que aprender e o significado da informação sendo recebida é vista através da lente de uma realidade em transformação. [Isto é, a percepção de que] apesar da existência de uma resposta 'certa' [para algo] hoje, é possível que amanhã esta mesma resposta se torne 'errada' devido a alterações no ambiente informacional que afeta a decisão.
Tais pressupostos, contudo, não são vistos como sem críticas (e.g., VERHAGEN, 2006; BELL, 2011; CLARÀ; BARBERÀ, 2014), especialmente dadas suas reivindicações contundentes e aspirações à teoria de aprendizagem (algo por vezes visto como excessivamente ambicioso). Ainda assim, hoje, passados mais de 15 anos desde sua proposição, o conectivismo continua presente nos círculos de discussão acadêmica no campo da educação, mesmo que seu status como uma teoria propriamente dita seja algo ainda incerto.
Segundo Siemens (2005, 2008), o Conectivismo é a integração de princípios explorados pelas teorias do caos, redes, complexidade e auto-organização à aprendizagem. De tal forma, a aprendizagem é vista como focada na realização de conexões entre conjuntos de informações especializadas e sua manutenção (isso é, o contínuo julgamento sobre quais conexões devem ser priorizadas e quais devem ser descartadas), sendo este um processo que ocorre em ambientes fluidos, não inteiramente sob o controle do indivíduo. Tudo tem início a partir das interações de um aprendiz com os elementos presentes em uma comunidade de aprendizagem, um espaço que permite a formação de conexões e é definido como “[um local de] agrupamento de áreas de interesse similares que possibilita a interação, o compartilhamento, o diálogo e o pensamento coletivo” (SIEMENS, 2003, s.p.). Downes (2009) adiciona que nesses contextos as atividades de aprendizagem são, em essência, conversações/trocas (nas mais diversas formas e formatos proporcionados pela tecnologia) entre o aprendiz e outros membros da comunidade, cada um com diferentes níveis de expertise, e onde a prática de aprender consiste simplesmente da própria participação na comunidade. Essas fronteiras, contudo, são apenas o começo, pois uma comunidade nada mais é do que um pequeno nódulo em uma rede muito mais ampla e complexa, fazendo com que, “nesta teoria, em essência, aprender seja imergir na rede” (DOWNES, 2009, p.19). Durante esse processo de imersão, o aprendiz tem a oportunidade de interagir com o tema de interesse sob os mais diversos pontos de vista, dado que, na rede, os limites entre áreas de conhecimento são porosos. De forma semelhante, nesse contexto, novas informações estão continuamente sendo geradas e adquiridas por meio de novas conexões, fazendo com que a habilidade de discernir a relevância de novos dados e como eles alteram o atual estado de conhecimento se torne crítica.
Para o conectivismo, portanto, conhecimento individual consiste de uma rede que se expande e se transforma continuamente, alimentando nesse processo outros atores - sejam eles pessoas, organizações, instituições etc. - e consequentemente levando estes, por sua vez, a retroalimentarem a rede (SIEMENS, 2005). Tal fenômeno resulta em um processo cíclico de desenvolvimento e evolução do conhecimento em que todos são, ao mesmo tempo, geradores e consumidores, e leva à concretização do que pode se dizer ser o cerne da teoria conectivista: “a amplificação da aprendizagem, do conhecimento e da compreensão através da extensão de uma rede pessoal” (SIEMENS, 2005, s.p.). Downes (2009), todavia, alerta para o fato de que nem todo tipo de rede propicia aprendizagem em rede bem sucedida. Redes efetivas, isto é, capazes de aprendizagem, adaptação e de evitar a “estagnação e morte da rede” (DOWNES, 2012, p.9), apresentam um conjunto de oito propriedades condicionantes que devem ser alvo de todo modelo de ensino proposto a seguir a teoria conectivista. Redes conectivistas efetivas (DOWNES, 2009) devem, portanto, ser:
Descentralizadas: Redes centralizadas seguem um padrão onde certas entidades possuem muitas conexões enquanto a vasta maioria das restantes possuem poucas. Em redes descentralizadas o peso das conexões e o fluxo de informação é distribuído.
Distribuídas: Entidades em uma rede devem residir em diferentes localizações físicas, reduzindo riscos de falhas generalizadas e a necessidade de maior infraestrutura. O foco nestes sistemas é compartilhamento e não cópia.
‘Desintermediadas’: Isto é, elas eliminam 'mediação’, a barreira entre originador e receptor (e.g., a remoção do professor intermediador que se posiciona entre o conhecimento e o estudante). Onde possível, deve-se prover acesso direto à informação e serviços, o propósito da mediação sendo, se existente, gerenciar fluxo e não a informação, e reduzir o volume de informação e não seu o tipo.
Desagregadas: Em redes efetivas, contexto e serviços são desagregados. Unidades de conteúdo devem ser do menor tamanho possível e o conteúdo não deve ser agregado como se vê, por exemplo, em cursos “pré-fabricados”. A organização e a estrutura do conteúdo e serviços devem ser criadas pelo próprio receptor.
‘Des-integradas’: Entidades em uma rede não são ‘componentes’ umas das outras, significando que a estrutura da mensagem, em si, é distinta do tipo de entidade enviando ou recebendo-a. A mensagem deve ser codificada em uma ‘língua’ comum onde o código é algo aberto e facilmente acessível no sentido de não ser dependente de um ferramental ou software proprietário específico para ser recebido e lido.
Democráticas: Isto é, devem seguir os princípios da diversidade (de opiniões); autonomia (posicionamentos verdadeiramente pessoais e não meras repetições do que alguém pede para ser falado); interatividade/conectividade (conhecimento produzido como produto de reais interações); abertura (a ideias externas à rede).
Dinâmicas: Uma rede deve ser uma entidade fluida, que se modifica, pois sem mudança o crescimento e a adaptação não são possíveis. É através desse processo de mudança (onde a criação de conexões é uma função central) que novo conhecimento é descoberto.
‘Dessegregadas’: Isto significa, por exemplo, que no aprendizado em rede a aprendizagem não é pensada como um domínio à parte/independente, e que, portanto, dependa de ferramentas e processos específicos seus. Ao invés disso, a aprendizagem é pensada como parte do viver, do trabalhar, do jogar. As mesmas ferramentas que utilizamos nas atividades do dia a dia são as ferramentas usadas para aprender.
A Figura 1 apresenta um modelo ilustrativo de como o conhecimento é visto na teoria conectivista.
Em síntese, portanto, estabelece-se o Conectivismo como uma teoria de aprendizagem baseada em redes (network theory of learning), na qual o conhecimento é emergente e disposto em redes, e onde o ato de aprender é complexo e entendido como a ação de formar e percorrer uma rede de conexões significativamente diversa, reconhecendo e interpretando padrões salientes através do auxílio dos meios tecnológicos (SIEMENS, 2005; DOWNES, 2012).
Teoria da Atividade
A Teoria da Atividade (TA) surge a partir das pesquisas de Vigotski continuadas pelos seus seguidores - mais especificamente por Leontiev (1978) - o qual pondera que "quando se trata de investigar o funcionamento das funções mentais dos seres humanos, deve-se ir além do indivíduo" (FIGUEIREDO, 2019, p. 19). Essa teoria busca entender como a atividade ocorre, tendo como foco a atividade em si e não o indivíduo, através da análise do contexto onde esse está inserido. Leontiev descreve como a atividade é algo maior que somente mais um aspecto na vida de um sujeito, conforme pode-se observar no trecho abaixo:
Activity is a molar, not an additive unit of the life of the physical, material subject. In a narrower sense, that is, at the psychological level, it is a unit of life, mediated by psychic reflection, the real function of which is that it orients the subject in the objective world. In other words, activity is not a reaction and not a totality of reactions but a system that has structure, its own internal transitions and transformations, its own development (LEONTIEV, 1978, p.84).
Assim, a TA descreve um sistema de estruturas que envolvem diferentes aspectos da vida do sujeito, tornando possível a análise de uma atividade levando em consideração o contexto onde é realizada. Vigotski (1998) entende que uma atividade é permeada por diferentes fatores, perpassando por sujeito, objeto e artefatos mediadores e compreendendo, assim, a formação do pensamento através da mediação de signos e instrumentos culturais. Contudo, após diversos estudos, Leontiev (1978) e Engeström e Miettinen (1999) - a partir da Teoria Sociocultural (TS) de Vigotski - propuseram uma nova visão para a TA, expandindo ainda mais o conceito de atividade, incluindo a incorporação de estruturas sociais no que chamaram de segunda geração da TA. O resultado do trabalho de tais autores é representado no esquema reproduzido na Figura 2, demonstrando que as estruturas representadas interagem para organizar e restringir a própria atividade.
De acordo com Engeström e Miettinen (1999), pode-se descrever o seguinte entendimento acerca dos elementos da Figura 2:
Os artefatos mediadores podem ser considerados como os dispositivos tecnológicos que são utilizados para desenvolver atividades - profissionais, acadêmicas e de lazer, por exemplo. Considerando, para fins de exemplificação, que está se buscando compreender a Teoria Conectivista, esse é o objetivo. Nesse sentido, podem existir diferentes sujeitos envolvidos, como uma turma de alunos, por exemplo, que também faz parte de uma comunidade acadêmica representada por um curso de pós-graduação ou um grupo discente. Nesta comunidade existe uma divisão do trabalho, que foi previamente acordada através de regras estabelecidas entre os sujeitos, dispondo divisões de leitura, escrita de trabalhos acadêmicos, ou revisões bibliográficas, por exemplo. Continuando neste exemplo, pode-se representar a hierarquia de uma atividade através dos elementos ilustrados na Figura 3.
De acordo com Jonassen e Rohrer-Murphy (1999), tal figura representa o esquema individual de uma atividade que se inicia com um motivo a fim de a atividade ser feita. Utilizando o mesmo exemplo anterior, podemos dizer que um motivo para o aprendizado da Teoria Conectivista seria o aperfeiçoamento da metodologia de trabalho. O objetivo, já descrito antes como a busca pela compreensão dessa teoria, faz parte da ação da atividade. Finaliza-se com as condições necessárias para o desenvolvimento da atividade, as quais são as operações básicas para o seu desenvolvimento, tais como: levantamento bibliográfico, escrita de trabalhos acadêmicos, leituras, entre outros. Neste contexto, segundo Miccoli (2013, p.73):
Qualquer atividade humana se constitui em atividade num enquadre que envolve motivo, meta e operações em sua consecução - motivo relacionado à necessidade que motiva a ação; meta como objetivo a alcançar; e operações, à maneira e às condições contextuais.
Destaca-se também que a TA busca levar em conta o contexto de cada indivíduo ao desenvolver suas ações e realizar a atividade, demonstrando, assim, o uso de todas as estruturas representadas na Figura 2. Já, através da análise da Figura 3, pode-se dizer que o saber só pode ser interpretado no contexto do fazer (JONASSEN; ROHRER-MURPHY, 1999), levando em consideração que fazem parte da estrutura hierárquica da atividade as operações, necessárias ao desenvolvimento dessa. Nesse sentido, fazer as operações acarreta o alcance do objetivo proposto, finalizando, por sua vez, a atividade.
Pontos de contato entre TC e TA
À medida que a TA proporciona a análise do contexto dos sujeitos envolvidos, levando em consideração a comunidade e os próprios sujeitos, podem-se relacionar essas conexões com a TC. A busca pelo objetivo da atividade leva o sujeito à busca de novas conexões - ou a mantê-las - e nesse sentido Albert-László Barabási (2002) descreve também que "os nodos sempre irão competir por conexões, pois elas representam sua sobrevivência em um mundo interconectado" (p.106, tradução nossa). Da mesma forma, para o conectivismo o ponto de partida para a aprendizagem ocorre quando o conhecimento é acionado por indivíduos que se conectam e participam de uma comunidade de aprendizagem (GOLDIE, 2016), a qual pode ser considerada como a comunidade representada na estrutura da atividade.
Essas conexões e, consequentemente, as comunidades formadas através delas consistem em um aprendizado distributivo - segundo o conectivismo - o qual é baseado em redes e conexões formadas pela experiência e interação entre as pessoas e a tecnologia (GOLDIE, 2016). Nesse sentido, além da comunidade, o sujeito, os artefatos mediadores e a divisão do trabalho auxiliam na criação e manutenção dessas conexões.
Jonassen e Rohrer-Murphy (1999) descrevem que o saber só pode ser interpretado no contexto do fazer e, segundo a TA, esse processo caracteriza a aprendizagem, pois se refere à atividade humana em busca de um objetivo (LANTOLF; THORNE; POEHNER, 2006). Essa busca leva consequentemente a diversas tomadas de decisão, que, de acordo com a visão conectivista, caracterizam em si um processo de aprendizagem. Percebe-se, então, um ponto de contato entre as teorias, tendo em vista que através da busca conectiva do conhecimento se está fazendo, e, posteriormente, isso pode ser analisado através das propriedades elencadas pela TA.
METODOLOGIA
Para atingir os objetivos propostos, optou-se pela utilização de uma metodologia híbrida que permeasse ambas as áreas de TC e TA e, em paralelo, possibilitasse a coleta de feedback por parte dos participantes da disciplina escolhida como base para o estudo. O objeto de estudo para investigação foi uma disciplina de leitura dirigida, de 30 horas de carga horária, de um programa de pós-graduação de uma universidade federal do Rio Grande do Sul, realizada no período de 17/04/2021-26/05/2021, na modalidade ERE, com oito participantes. As atividades consistiam majoritariamente na realização de encontros síncronos via plataforma Google Meet para discussão de textos semanalmente distribuídos, sendo os alunos doutorandos do programa ou de programas correlatos. A presente pesquisa também conta com a aprovação do comitê de ética da instituição dos autores.
A análise parte de uma adaptação do método de Mwanza (2001), utilizado para a elaboração de uma visão panorâmica da disciplina sob a ótica da TA, em conjunto com observações dos autores e alunos da adequação da disciplina diante das 8 propriedades de redes conectivistas efetivas propostas por Downes (2009). O método de Mwanza (2001) consiste originalmente em uma estratégia desenvolvida para direcionar a aplicação da TA com vistas a auxiliar no levantamento de requisitos para o desenvolvimento de sistemas computacionais. O mesmo é organizado a partir de seis passos, sendo eles: 1) modelagem da situação a ser examinada; 2) produção de um Sistema da Atividade da situação; 3) decomposição do Sistema gerado em unidades de análise menores; 4) geração de questões de pesquisa; 5) condução de investigação detalhada; 6) interpretação de achados. Em termos práticos, o ponto central deste método consiste na criação de um Sistema da Atividade (2), a partir de informações anteriormente coletadas sobre o objeto de estudo (1), seguido de análise do mesmo quanto às inter-relações identificadas (3), que levam ao estabelecimento de perguntas-chave (4) (e.g., “como o ‘sujeito A’ utiliza o ‘artefato mediador B’ para atingir o ‘objetivo C’), seguindo-se a isso a busca por respostas a estas perguntas, levando à geração de requisitos de projeto.
Dado o contexto da presente pesquisa e o foco parcial do método de Mwanza (2001) no mapeamento via TA de atividades existentes em uma dada situação de estudo, foi avaliado como adequado esse método e optou-se pela sua utilização em uma modalidade adaptada. Isto é, a realização dos três passos iniciais e a identificação de pontos-chave de análise, seguido da investigação destes sob o viés da TA e TC via observação in loco e uso de questionários com perguntas qualitativas. Portanto, realizou-se a modelagem e elaboração da análise primária do modelo do Sistema da Atividade da disciplina objeto de estudo e, a partir deste fundamento, as observações in loco foram complementadas através de um questionário qualitativo para participantes da disciplina focado nas oito propriedades conectivistas de redes efetivas.
O foco neste tópico específico da TC se deve à afirmação de Downes (2009, 2012) de que redes efetivas, isto é, redes que favorecem a aprendizagem conectivista, possuem oito propriedades críticas (anteriormente descritas) para seu sucesso. Assim sendo, a avaliação do objeto de estudo diante das mesmas e em conjunto com a análise via TA não apenas se mostraria complementar, mas também possibilitaria a realização de inferências sobre as conexões de ambas as teorias em um caso real. Visando este objetivo, as oito propriedades foram operacionalizadas na forma de um questionário baseado em questões abertas, enviado para os participantes do experimento, solicitando que fossem compartilhadas impressões sobre se a disciplina em foco exibiu ou não tais propriedades e como isso se deu. O exame das respostas obtidas, em conjunto com as observações dos autores, consistiu na segunda fase de análise realizada. Os resultados obtidos são discutidos na seção que segue.
RESULTADOS
Utilizando-se das teorias apresentadas nas seções anteriores e seguindo a metodologia descrita por Mwanza (2001), descrevem-se nessa seção os elementos da TA (ilustrados na Figura 2) relacionados com as características verificadas na disciplina objeto de estudo do presente artigo:
A Atividade. Como propósito da disciplina, foi identificada como atividade de interesse o compartilhamento de conhecimentos sobre a TA e TC e suas inter-relações.
O Objeto / Objetivo. O objetivo da disciplina é o de realizar leituras dirigidas de obras que trabalhem com aspectos da TA e TC de forma a aprimorar o conhecimento dos alunos sobre os temas.
Sujeitos. Os sujeitos envolvidos nessa atividade são os alunos da disciplina, juntamente com a professora, trabalhando individualmente ou em grupos para leitura de diferentes textos. No caso deste objeto de estudo em específico, os mesmos constituem também a Comunidade.
Artefatos Mediadores. Diferentes artefatos mediadores foram utilizados para o andamento da atividade, a saber: Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) Moodle; software de webconferências Google Meet; software de mapas mentais Mindmeister e artigos pré-selecionados pela professora. Estes mesmos artefatos auxiliaram no planejamento das regras e divisão do trabalho, tendo em vista que através do AVA foram postadas atividades e prazos para suas execuções; no software de mapas foram realizados mapeamentos para criação do trabalho final da disciplina; e no software de webconferências foram elencadas as regras e as divisões de trabalho.
As regras também consistiram na leitura de artigos por todos os sujeitos - de textos previamente selecionados pela professora, para serem discutidos em aula. Nesse processo, um ou mais alunos, a cada encontro, seriam responsáveis por serem os mediadores da discussão. Percebe-se que nesse ponto, além das regras, também é definida a divisão do trabalho, no que tange tanto à organização de leitura, quanto à ordem e grupos de leitura.
Uma vez realizado este mapeamento, é, então, possível, desenvolver uma nova ilustração fundamentada no triângulo da TA (Figura 2), detalhando os pontos-chave identificados, como visto na Figura 4 abaixo.
Em paralelo a este primeiro esforço, a utilização de questionários para verificar a percepção dos participantes da disciplina no que se refere à compatibilidade da mesma com os princípios conectivistas de redes efetivas permite a complementação do mapeamento e revela interligações entre as abordagens das duas teorias. A tabela 1, portanto, demonstra a predominância das respostas ao questionário com relação aos princípios investigados.
Princípio conectivista de uma rede efetiva | Predominância das respostas |
---|---|
1. Descentralizada | Sim, atendeu |
2. Distribuída | Sim, atendeu |
3. ‘Desintermediada’ | Em partes |
4. Desagregada | Em partes |
5. ‘Des-integrada’ | Em partes |
6. Democrática | Sim, atendeu |
7. Dinâmica | Sim, atendeu |
8. ‘Dessegregadas’ | Sim, atendeu |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Observa-se, de acordo com as respostas à reflexão sobre os princípios conectivistas, que a maior parte dos alunos identificou a disciplina como descentralizada, considerando primordialmente que essa se desenvolve sob as percepções e análises de todos os envolvidos e não somente na figura central do professor.
Da mesma forma constituiu-se como distribuída, primeiramente em virtude da sua execução em ERE, assim como no fato de todos os alunos perpassarem pela leitura dos textos da disciplina e compartilharem seus conhecimentos com os demais nos encontros semanais.
Com relação à desintermediação houve opiniões divergentes, pois alguns alunos apontaram a professora como mediadora nos momentos do estabelecimento das regras e textos e outros descreveram que todos os envolvidos colaboraram no estabelecimento da mediação entre os colegas, eliminando apenas uma posição central em alguns momentos.
O entendimento sobre desagregação foi desigual, porquanto os alunos elencaram que o conteúdo fora pré-definido pela professora e seguiu uma linha de raciocínio pré-estabelecida. Contudo, também foi considerado que cada texto é uma unidade em si - compreendendo a desagregação. Na mesma linha de raciocínio, a des-integração da rede apresentou um ponto complexo de ser analisado na visão dos alunos, e nesse sentido houve o entendimento que a língua inglesa - predominante em todos os textos - foi um ponto de ruptura com os alunos, da mesma forma como foi ponderado que todos os conteúdos e atividades realizadas foram des-integradas.
Com relação à democracia, dinamização e dessegregação da disciplina, foram unânimes as respostas informando que a disciplina atende ao princípio. A democracia foi detalhada principalmente em virtude da possibilidade de tecer opinião e às interações possibilitadas no decorrer da disciplina, como se observa na resposta abaixo:
Com certeza. A diversidade de opiniões e perspectivas estava presente a todo instante. Como se trata de um curso interdisciplinar em nosso programa de pós-graduação, os participantes vinham de contextos distintos e conseguiam realizar conexões diferentes uns dos outros mesmo a partir de um texto em comum. Para isso, houve uma abertura da professora e dos colegas para essa diversidade e interatividade.
Da mesma forma, para o quesito ligado a dinamismo, esse foi considerado como positivo em virtude das modificações sobre o conhecimento construído em conjunto durante a execução. Por fim, a percepção sobre o item de dessegregação é adequadamente exemplificada na seguinte transcrição de uma das respostas ao questionário:
Sim, pois o nosso conhecimento sobre o conectivismo surgiu nas conexões realizadas em sala de aula e nas leituras realizadas ao longo do semestre. Da mesma forma, se intensificou com os trabalhos e com as atividades, principalmente com as trocas entre os participantes. Foram as conexões que fizemos que nos levaram a um aprendizado.
Com base nos achados, descrevem-se a seguir algumas relações observadas entre o resultado do mapeamento realizado, norteando-se pela TA, e as respostas ao questionário no que trata da TC.
Percebe-se uma ênfase no conceito de descentralização e distribuição, tendo em vista como as regras estabelecidas e a divisão do trabalho possibilitaram que o conteúdo da disciplina estivesse não somente com uma pessoa, mas com todos os participantes, em virtude das leituras individualizadas e das discussões em grupo, com alguns alunos mediando a leitura.
Com relação à desintermediação, os artefatos mediadores, juntamente com as regras e divisão do trabalho, possibilitaram aos sujeitos - e à comunidade - eliminarem de alguma forma a mediação, tendo em vista o processo descentralizado e distribuído descrito anteriormente, possibilitando a todos fazerem a mediação
Em vista dos diversos textos estudados durante a disciplina, pode-se dizer que existe uma desagregação em virtude de que esses artefatos mediadores não são pré-requisitos uns dos outros e são o menor conteúdo possível para o contexto em questão - de encontros semanais. Da mesma forma, esse fato possibilita a des-integração, ou seja, esses pequenos pedaços do conteúdo não são necessariamente componentes de outro(s) pedaço(s) - definidos através das regras e divisão do trabalho.
A democracia nas atividades desenvolvidas é algo que pode ser observado claramente na definição das regras, divisão do trabalho e artefatos mediadores, pois esses elementos permitem aos envolvidos interagir com o grupo, através de discussões via utilização de tecnologias síncronas de comunicação. Da mesma forma, pode-se constatar através dos relatos dos alunos as características de uma rede democrática no contexto deste artigo.
A dinamicidade, relacionada à modificação fluida das informações e atualizações dessas, está implícita nas discussões em grupo elencadas nas regras e operacionalizadas através dos artefatos mediadores, assim como a dessegregação, que foi possibilitada em virtude da utilização dos artefatos mediadores.
Através dessas análises, entende-se como a busca pela compreensão do conhecimento acerca da TC fez com que os alunos buscassem novas conexões - com as regras estabelecidas na comunidade formada pela disciplina. Essas relacionaram-se entre os grupos de leitura dos textos e também nas discussões semanais, as quais foram potencializadas pelos artefatos mediadores utilizados. Dessa forma, a busca pela aprendizagem levou os sujeitos ao fazer - ler artigos, criar e manter conexões - que está diretamente relacionado ao saber, como descrito na TA.
Percebe-se, então, como é possível o estabelecimento de relações entre o conectivismo e a teoria da atividade, havendo certa sobreposição entre ambas como demonstrado através do presente estudo. Tal constatação realça o valor e o potencial de análises conjuntas quando do interesse pela investigação de contextos de aprendizagem distribuída.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo desenvolvido comprova a viabilidade da análise de uma disciplina de um curso de pós-graduação em modalidade ERE à luz das teorias da atividade e do conectivismo elencadas, respectivamente, por Leontiev (1978) e por Siemens (2005) e Downes (2009, 2020). Percebe-se que através do uso da metodologia de Mwanza (2001) foi possível analisar a disciplina sob a ótica da teoria da atividade, demonstrando seu contexto e peculiaridades, as quais proporcionaram o relacionamento com a teoria conectivista.
Adicionalmente, com base no levantamento realizado através da pesquisa com questionários, é possível observar como as metodologias utilizadas neste estudo validaram a percepção da disciplina como uma rede de sucesso, o que pode ser observado nas comparações efetuadas na seção de resultados. Tais resultados apontam para a adequação metodológica empregada e sugerem sua pertinência também para uso em observações de maior escala. Percebe-se que a estrutura da atividade demonstrada na seção "Teoria da Atividade" é passível de ser interligada aos princípios de redes de sucesso, possibilitando demonstrar que a atividade bem definida e planejada, sendo entendida através do mapeamento da TA, pode ser também demonstrada pela teoria da conectividade.
Por fim, deve-se atentar para as limitações inerentes a um estudo de natureza qualitativa exploratória-descritiva (e.g., amostra reduzida, dificuldade de replicabilidade, etc.). Neste sentido, sugere-se a realização de estudos subsequentes de aprofundamento e também de validação, visando possibilitar a generalização dos achados. Uma recomendação especial é o desenvolvimento de estudos comparativos, ancorados na metodologia apresentada neste trabalho, entre disciplinas originalmente planejadas para EAD, disciplinas em modalidade de ERE e disciplinas presenciais. É da opinião dos autores deste artigo que o estímulo à pesquisa e consequente ampliação do número de trabalhos abordando teorias ancoradas na tecnologia sejam de fundamental importância para o progresso da área da educação. Necessidades estas ampliadas pelo contexto global contemporâneo progressivamente mais informatizado e, especialmente, pelas realidades ocasionadas pela pandemia do vírus COVID-19.