INTRODUÇÃO
Quando falamos em escrita na Educação Infantil, nem sempre pensamos na escrita de textos ou mesmo de palavras significativas, como o nome das crianças. Não raro, no senso comum e, infelizmente, em muitas instituições educativas, a escrita está associada ou ao traçado de letras isoladas e de famílias silábicas ou à cópia de palavras e até de longos cabeçalhos (ver, por exemplo, os dados das pesquisas de Silva, 2018 e Souza, 2011).
Entendemos, porém, que nessa primeira etapa da escolaridade é fundamental promover experiências que levem as crianças a refletirem sobre por que escrevemos, o que podemos escrever e como podemos fazer isso. Isso significa que, ao lado de aprendizagens significativas voltadas para a apropriação do sistema de escrita alfabética, tais como, conhecer e grafar algumas letras e palavras de seu interesse ou construir a noção de que grafamos os segmentos sonoros das palavras que pronunciamos, as crianças podem ser estimuladas a compreender em que situações escrevemos textos e com que finalidade. Assim, desde cedo, consideramos importante aprender que escrevemos algo para ser lido por alguém com a intenção de agradecer, reclamar, pedir, felicitar, avisar, expressar sentimentos de alegria ou de tristeza ou mesmo para não nos esquecermos de algo importante, entre tantos outros motivos.
No início, ao escrever, as crianças podem fazer linhas horizontais repetidas, em zigue-zague, uma sequência de bolinhas ou outras marcas semelhantes às letras. Mais adiante, aprendem a grafar algumas letras convencionais, geralmente começando pelas letras do próprio nome, isto é, a partir de uma palavra altamente carregada de significado, o que facilita que sua forma escrita seja facilmente memorizada. Nesse processo, as crianças também entram em contato com a dimensão sociointerativa da língua, pensando e construindo hipóteses sobre as diferentes situações em que faz sentido escrever.
Resumindo, apesar do quadro pouco animador revelado pelas pesquisas citadas acima, consideramos que na Educação Infantil é possível promover vivências significativas com a linguagem escrita; e, ao fazer isso, estaremos contribuindo para o desenvolvimento do desejo das crianças pequenas de aprender a ler e a escrever, algo que julgamos fundamental nessa etapa.
Desde a década de 1980, a Psicogênese da Língua Escrita evidenciou que crianças bem pequenas já revelam uma postura ativa, curiosa e reflexiva diante dos registros escritos. Ferreiro (2001, 2011) e Ferreiro e Teberosky (1999) indicaram que as crianças constroem e testam hipóteses sobre a escrita, percorrendo um longo caminho de descobertas sobre esse sistema de representação. Teorias e estudos no campo do letramento também indicaram que crianças bem pequenas já são capazes de explicitar conhecimentos sobre os suportes de escrita, suas finalidades, seus destinatários e as características dos gêneros discursivos (ver, por exemplo, Mayrink-Sabinson, 1998; Solé, 2004). Rego (1988), por sua vez, ao observar o percurso de uma criança em seu processo de construção de conhecimentos sobre a escrita dos 4 aos 7 anos de idade, concluiu que a exposição intensa à leitura de histórias foi um elemento fundamental para que ela se apropriasse das marcas características da linguagem escrita, antes mesmo de saber grafar convencionalmente os textos que criava no plano oral. Igualmente, Terzi (1995) salientou, em sua pesquisa com crianças oriundas de “meios pouco letrados”, a influência da participação em eventos de letramento, que acontecem tanto no ambiente familiar como na Pré-escola, para o desenvolvimento da leitura nos anos seguintes.
Mais recentemente, os estudos que enfocaram as práticas de leitura e escrita na Educação Infantil têm aprofundado as relações entre as crianças e seu processo de apropriação dessa linguagem e refletido sobre o papel da instituição educativa nas aprendizagens relacionadas a esse campo. O artigo publicado por Baptista et al. (2018) apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que teve como objetivo mapear o estado do conhecimento sobre leitura e escrita na Educação Infantil na produção acadêmica brasileira entre 1973 e 2013. As autoras organizaram os resultados de suas análises em três períodos, destacando as tendências de pesquisa sobre esse tópico em cada um deles. No primeiro período (de 1973 a 1989), os estudos eram mais escassos, e os trabalhos publicados, sobretudo na década de 1970, ancoravam-se em uma concepção compensatória de educação pré-escolar. No segundo interstício analisado pelas autoras (a década de 1990), houve um aumento das produções e também uma expansão dos temas de investigação, provavelmente na tentativa de se responder às múltiplas demandas resultantes de uma reconceitualização da criança como sujeito ativo e de direitos. Por fim, no último período analisado (2000 a 2013), as autoras constataram uma maior frequência e regularidade nas publicações. Concluímos, portanto, que as práticas de leitura e escrita desenvolvidas com as crianças pequenas vêm se constituindo em objeto de interesse da pesquisa científica, e isso tem ajudado a construir alguns referenciais para o trabalho pedagógico. Entretanto, novas questões têm emergido, e, nesse sentido, entendemos que as interações entre as crianças em eventos de escrita coletiva de textos representam uma temática que merece ser mais discutida com as professoras e mais enfocada no âmbito da pesquisa. A seguir, discutiremos alguns apontamentos já disponíveis na literatura em relação a esse assunto.
O QUE SABEMOS SOBRE A PRODUÇÃO DE TEXTOS COM CRIANÇAS PEQUENAS?
Na Educação Infantil, há inúmeras oportunidades para as crianças vivenciarem situações de escrita significativa. A esse respeito, alguns autores (e.g., Gerde, Bingham & Wasik, 2012; Quinn, Gerde & Bingham, 2016; Rowe & Flushman, 2013) apresentam recomendações importantes para desenvolver boas práticas de escrita com crianças nos anos finais da Educação Infantil. Gerde et al. (2012), por exemplo, recomendam que se criem oportunidades de escrita na rotina diária das crianças, de modo que escrever não seja algo que ocorra apenas esporadicamente; reforçam ainda que todo tipo de escrita produzida pelas crianças deve ser aceito pela professora - desde garatujas com desenhos ou formas que apenas se pareçam com letras até letras propriamente ditas. Uma outra recomendação dos autores é sempre deixar lápis e papel acessíveis ao organizar ambientes de brincadeira de faz de conta, como um escritório, um supermercado ou outros cenários em que a escrita pode se fazer necessária. Dessa forma, espera-se que as crianças possam integrar a escrita aos enredos das suas brincadeiras e descobrir, enquanto brincam, alternativas para a sua utilização.
Em consonância com o que já afirmamos anteriormente, uma das indicações fundamentais de Gerde, Bingham e Wasik (2012) e de Rowe e Flushman (2013) é a de engajar as crianças em propostas de escrita motivadas por razões autênticas e socialmente significativas, sinalizando que podemos comunicar ideias e informações por meio da escrita. Assim, segundo os autores, as crianças podem ser solicitadas a escrever seu nome na lista de quem deseja usar o computador da sala, ou em um trabalho de arte que realizaram, ou a escrever um cartão de agradecimento ao dono da padaria local pela visita que fizeram ao seu espaço de trabalho (Gerde Bingham & Wasik, 2012).
Além de situações de escrita individual, Gerde et al. (2012) e Rowe e Flushman (2013) recomendam ainda a participação das crianças em experiências de escrita em pequenos grupos, pois,
ao tornar a escrita pública como parte do processo de produção conjunta, as crianças podem observar o que outras crianças estão pensando. Isso também permite que elas possam entender a importância da escrita para registrar o que dizem, o que, por sua vez, dá a possibilidade de que elas revisitem suas ideias e reflitam sobre elas (Gerde, Bingham & Wasik., 2012, p. 6 [tradução nossa]).
Os autores enfatizam, portanto, a necessidade de criar situações em que os pequenos “compartilhem a caneta” e escrevam do próprio punho, mantendo uma proximidade física entre eles, ao mesmo tempo que ocorre um acompanhamento próximo da professora, com convites para escrever e intervenções dirigidas aos interesses e necessidades de cada um durante o processo de escrita.
Outros autores (Girão & Brandão, 2014; Leal, Brandão & Albuquerque, 2021; Lerner, 2002; Teberosky & Ribera, 2004) também têm valorizado o potencial da escrita coletiva, quando a professora é escriba do grupo. Nesses casos, ela assume uma função tripla: é escriba, mediadora e coautora na sua interação com as crianças; e, tal como apontam Girão e Brandão (2014), o seu papel não é simplesmente o de grafar um texto ditado pelos pequenos. Ela tem o desafio de mediar a produção de um texto oral com destino escrito que atenda a uma finalidade clara e significativa para as crianças.
Para isso, é importante que a professora torne o processo de escrita mais transparente, o que significa dizer em voz alta o que está pensando enquanto escreve. Assim, ela pode, por exemplo, explicitar que precisa clarear a escrita de um trecho do texto ou que é necessário dar mais informações, ou mesmo que está em dúvida sobre qual seria a melhor palavra para usar. Evidentemente, todo esse processo de intervenção também precisa levar em conta a finalidade do texto, a quem ele se destina, assim como as características próprias do gênero discursivo que está sendo produzido (Schneuwly, 2004).
Com essa proposta de produção coletiva, a expectativa é a de que as crianças ampliem seus conhecimentos sobre a linguagem escrita, em especial, sobre para que e em que situações escrevemos textos e sobre que aspectos precisamos pensar quando nos expressamos dessa forma.
Estudos que investigaram os processos e as práticas de produção textual com crianças que ainda não lêem e escrevem convencionalmente são escassos na literatura brasileira e também internacional (ver, a esse respeito, a pesquisa de Gerde & Bingham, 2012; Gerde, Bingham et al., 2015). No Brasil, em um levantamento realizado na página eletrônica do Banco Nacional de Dissertações e Teses, verificou-se que nos últimos dez anos apenas três trabalhos (Costa, 2012; Girão, 2011; Zapelini, 2016) discutiram especificamente o tópico da escrita de textos por crianças menores de 6 anos.
O estudo de Costa (2012) analisou os registros produzidos individualmente por crianças entre 4 e 5 anos em situações em que a professora solicitava a produção escrita de um determinado gênero discursivo (por exemplo, um convite, um recado ou uma lista). A pesquisa de Zapelini (2016), por sua vez, analisou, igualmente, as produções individuais de crianças na mesma faixa etária, sob a ótica da Análise do Discurso de linha francesa. As crianças eram solicitadas a escrever por iniciativa própria e, posteriormente, em situações propostas pela professora. A pesquisa de Girão (2011), que também envolveu crianças entre 4 e 5 anos, enfocou, por sua vez, a situação de produção coletiva de textos mediada pela professora. A autora identificou 11 diferentes tipos de intervenção docente durante a escrita coletiva de textos, com vistas a explicitar e refletir sobre as possibilidades de mediação nesse tipo de atividade. Os dados da pesquisa indicaram ainda a existência de uma relação entre a situação de produção textual, o gênero que está sendo produzido e os tipos e a frequência das intervenções das professoras.
1 Por exemplo, na produção de um convite, Girão (2011) observou uma maior frequência de intervenções da professora que promoviam a reflexão das crianças sobre os componentes do gênero textual, tais como as conversas sobre o evento que motivou a escrita do convite, a data prevista para sua realização, o local do evento e quem estaria sendo convidado. A autora interpretou que a emergência de intervenções dessa natureza foi facilitada, provavelmente, porque, no caso de um convite, esses componentes textuais se mostram bem marcados, em forma de tópicos.
Se são raros os estudos que tratam sobre a mediação da professora na atividade de produção de textos coletivos na Educação Infantil, não encontramos, no levantamento realizado, pesquisas voltadas para a análise das formas de participação das crianças durante essa atividade. Considerando, portanto, que todo o processo de escrita coletiva é permeado por trocas discursivas sobre o que dizer e como dizer, interessou-nos “focar na palavra das crianças2”, tal como sinalizamos no título do artigo. Vale explicitar que chamamos de trocas discursivas as interações entre as crianças, bem como entre elas e a docente, no trabalho de elaboração e reelaboração do discurso que se constrói durante o processo de produção do texto escrito. Assim, partimos do princípio de que, ao produzir o texto coletivamente, o grupo conversa sobre as ideias, os modos de escrever, os componentes do gênero, cria expectativas sobre seus interlocutores, verifica se estão conseguindo atingir a sua finalidade, negocia a utilização de termos, toma decisões, faz escolhas... enfim, se envolve em uma rede de enunciados compartilhados oralmente, situada em um determinado contexto sociocomunicativo, que terá como produto o texto escrito.
Com essa intenção, analisamos qualitativamente os intercâmbios entre o grupo durante a construção coletiva de textos, buscando responder as seguintes questões: (1) como crianças pequenas participam do processo de escrita coletiva dos textos?; (2) que conhecimentos sobre a linguagem escrita são revelados por elas durante as trocas discursivas que emergem no processo de produção textual? e (3) que condições poderiam favorecer tais trocas discursivas na atividade de escrita coletiva?
Para abordar essas questões, faremos, inicialmente, algumas considerações teóricas mais gerais a respeito do tema da produção de textos e depois apresentaremos os dados da pesquisa. Nessa direção, identificaremos e exemplificaremos, num primeiro momento, as diferentes formas de participação das crianças evidenciadas durante processo de escrita coletiva. Em seguida, com o objetivo de aprofundar a análise sobre a natureza das trocas discursivas observadas e sobre os conhecimentos compartilhados entre elas acerca da linguagem escrita, discutiremos duas situações de produção coletiva em que foi registrado um maior engajamento dos meninos e das meninas nessa atividade.
REFLETINDO SOBRE A SITUAÇÃO DE PRODUÇÃO DE UM TEXTO ESCRITO
No modelo de produção textual proposto por Schneuwly (2004), quando o sujeito está diante da necessidade de produzir um texto, acaba por adotar um determinado gênero que, para ele, melhor se adequa à situação específica de interação social sobre a qual está agindo. Para realizar essa escolha, contamos com certos esquemas que correspondem à construção da base de orientação e às operações de gestão e de linearização do texto.
A base de orientação consiste em um conjunto de representações internas criadas pelo sujeito a partir do contexto de interação. Essas representações sobre a situação de interação social levam em consideração aspectos como o lugar social ocupado pelo sujeito, o momento e o local em que o texto é produzido, os objetivos que traçou para a escrita do texto e a sua relação com os interlocutores. Essas representações, que guiam a ação discursiva, podem ir mudando de acordo com as necessidades da situação comunicativa e, dessa forma, controlam as outras operações envolvidas na produção textual, isto é, a gestão do texto e o processo de linearização.
No modelo de produção textual de Schneuwly (2004), o processo de gestão textual ocorre por meio das operações de ancoragem e do planejamento, que podem ser usadas simultaneamente. A ancoragem é a forma central e inicial da gestão do texto, em que o indivíduo ativa as representações que possibilitam a definição do que vai ser dito e do modo como vai ser dito. Por meio dessa operação, o indivíduo ancora a atividade de escrita no conjunto de representações construídas. O planejamento envolve a ativação, a organização e a sequencialização dos conteúdos e também sua estruturação linguística, adequada a um modelo de linguagem ou plano de texto, escolhido em função da interação social.
Finalmente, a operação de linearização diz respeito aos processos de materialização do conteúdo em unidades linguísticas, ou seja, a referencialização e a textualização. A referencialização está relacionada à criação de estruturas de linguagem iniciais mínimas. Essa operação envolve a escolha de termos e não permite produzir diretamente um enunciado, mas um “esquema gerador de enunciados” (Culioli, 1976, p. 91). Já a textualização atua no nível local do encadeamento textual e inclui formas de estabelecer articulações hierárquicas do texto, como a coesão, a conexão/segmentação e a modalização.
Bronckart (1999) chamou a atenção para a especificidade das situações de escrita de textos. Para o autor, as condições de produção textual são definidas por parâmetros físicos, sociais e subjetivos, como o lugar e o tempo em que o texto é produzido, a posição do autor e de seu interlocutor, assim como o próprio objetivo do texto. Dessa forma,
é pouco provável que haja um "processo de escrita" ideal e aconselhável, sendo a escrita concebida de uma forma flexível, dinâmica e diversificada, dependendo das diferentes situações que dão origem e sentido à tarefa de escrever. Isso significa entender que o processo de escrita, realizado por um autor, só é interpretável em um dado contexto. Cada cenário desenha uma trama de condições específicas e sugere ao autor uma forma diferente de agir (Castelló, 2002, p. 149, [tradução nossa]).
Com base nessas considerações, podemos dizer que a escrita coletiva de um texto envolve duas situações de interação que se desenvolvem paralelamente: os enunciados produzidos pelo grupo que está escrevendo em direção ao(s) destinatário(s) do texto, num movimento que vai para fora da atividade de escrita, e os enunciados que se constroem internamente na interlocução que o grupo estabelece entre si com o objetivo de estruturar o discurso que será registrado no plano escrito. São esses dois movimentos enunciativos (externo e interno) que buscaremos apresentar na análise das situações de escrita coletiva observadas.
AS INTERAÇÕES COMO BASE DA APROPRIAÇÃO DA CULTURA ESCRITA PELA CRIANÇA PEQUENA
Enquanto artefato da cultura, a linguagem escrita permeia as relações sociais em uma sociedade grafocêntrica como a nossa. Sendo assim, a apropriação deste objeto da cultura, em sua dimensão discursiva, não ocorre de forma espontânea, mas através da interação entre os sujeitos que compartilham situações nas quais seu uso se faz necessário.
Tendo em vista que as interações constituem um dos eixos estruturantes do trabalho pedadógico na Educação Infantil (Brasil, 2010), as situações de escrita coletiva de textos podem nos apresentar elementos importantes sobre como as crianças agem e reagem diante do desafio de se comunicarem com alguém por escrito. Tendo os intercâmbios discursivos como uma tônica do processo de construção de um texto, a produção coletiva pode, portanto, nos ajudar a compreender aspectos relativos à perspectiva das crianças no início dessas aprendizagens.
Pensar a relação entre criança e cultura escrita nos conduz a um diálogo com Vygostky em sua descrição do processo de internalização das funções psicológicas superiores. Tal processo acontece do nível interpessoal em direção ao nível intrapessoal (Vygotsky, 2007). Esse movimento, que se dá primeiro entre pessoas e, posteriormente, no interior da criança, indica, portanto, que o “outro” tem um papel fundamental nas aprendizagens. Nesse contexto, ao compartilharem a escrita de um texto para atender a uma necessidade real com seus pares e com um adulto, as crianças têm a oportunidade de pensar sobre a linguagem contando com a mediação do outro. Dessa forma, elas podem explicitar o que pensam sobre os diferentes eventos mediados pela escrita, quais representações constroem sobre seus interlocutores, relacionar o contexto de escrita com outras situações vivenciadas fora da escola, dentre outras trocas que deslizam discursivamente e que vão concretizando a autoria do texto produzido pelo grupo. Nessa perspectiva, as interações que o grupo estabelece são enunciados, e todo enunciado é inerentemente dialógico, uma vez que faz parte de uma cadeia discursiva ininterrupta (Bakhtin, 1997).
Com base nos fundamentos teóricos apresentados até aqui, interessa-nos compreender melhor como as crianças reagem quando mergulhadas nas trocas discursivas que se estabelecem durante a escrita coletiva de textos. Que aspectos da linguagem escrita lhes chamam a atenção? Que sentidos atribuem à escrita quando são convidadas a escrever para alguém? Que aspectos da mediação parecem ajudar no fluxo das interações e na construção de uma base de orientação para a escrita e nas demais operações envolvidas nesse processo? Tais questões serão discutidas nas próximas seções, tendo como referências tanto o modelo de produção textual apresentado anteriormente quanto as especificidades do trabalho pedagógico com crianças pequenas.
AS SITUAÇÕES DE ESCRITA COLETIVA PROPOSTAS E A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS
Participaram da pesquisa crianças com idade entre 5 e 6 anos de duas turmas do último ano da Educação Infantil de duas instituições da Rede Municipal do Recife e suas respectivas professoras. Três produções coletivas, conduzidas por cada grupo, foram videogravadas e transcritas literalmente. Neste estudo, buscamos observar práticas de investigação eticamente informadas, dialogando com as professoras e as famílias das crianças sobre os procedimentos da pesquisa, bem como solicitando a autorização para a participação dos sujeitos através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
No Quadro 1, a seguir, apresentamos as três situações de produção textual que foram propostas por cada uma das educadoras (aqui chamadas de Laura e Cíntia), o tempo de duração de cada atividade de produção textual e o número de crianças participantes.
No caso da professora Laura, antes de propor a primeira atividade (a escrita de um texto instrucional), ela confeccionou com as crianças bolas de meia e depois sugeriu que o grupo escrevesse um texto ensinando a confeccionar o brinquedo. A proposta tinha uma finalidade clara para as crianças, porém, não foi delimitado quem seriam os interlocutores do texto produzido. No grupo da professora Cíntia, a primeira proposta de escrita mostrou-se mais associada a uma situação comunicativa da esfera escolar: reescrita de uma fábula conhecida das crianças. A professora também não explicitou se haveria outros destinatários para o texto além das próprias crianças, que já conheciam bem a história.
No entanto, como podemos ver no Quadro 1, na segunda e na terceira atividades, as docentes propuseram situações de escrita que tinham um contexto sociocomunicativo mais claro, o que, certamente, tornou a atividade de escrita mais significativa para as crianças, visto que existiam um propósito e destinatários mais definidos e que foram compartilhados com todo o grupo. Observamos, porém, que, mesmo nas primeiras propostas de escrita, as crianças dos dois grupos se mostraram muito interessadas em contribuir com a produção dos textos. Isso mostra que o envolvimento dos pequenos parece estar relacionado não apenas ao contexto imediato em que as atividades são realizadas, mas também às estratégias utilizadas pelas docentes para incentivar a sua participação durante a escrita do texto e às atividades que antecederam essa proposta (no caso, a confecção da bola de meia e os vários momentos de leitura da fábula, que era muito apreciada pelas crianças).
Com respeito às formas de organizar o grupo durante as atividades de escrita que foram propostas, as duas docentes seguiram procedimentos distintos. A professora Laura escrevia em pé no quadro branco que ficava afixado na parede acima da altura das crianças, que ficavam sentadas no chão ou em cadeiras pequenas, fazendo um semicírculo diante do quadro. A professora Cíntia, em duas ocasiões, escreveu em um papel branco grande, sentada no chão e bem próxima das crianças, que se distribuíam livremente ao seu redor. Na terceira atividade de escrita, Cíntia escreveu em um quadro branco posicionado na altura das crianças, e todos, inclusive ela própria, ficaram sentados nas cadeiras pequenas, junto ao quadro. Observamos que a organização proposta por Cíntia ajudou a criar uma relação de maior proximidade e interação entre o grupo, que podia se movimentar mais livremente para apontar letras e palavras registradas no quadro ou no papel.
Na próxima seção, discutiremos de modo mais aprofundado a participação das crianças nas atividades de escrita coletiva, analisando suas falas nas interações estabelecidas entre o grupo (professora e crianças) e explorando suas relações com os conhecimentos sobre a linguagem escrita envolvidos nas diferentes situações de produção textual.
MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS DURANTE A PRODUÇÃO CONJUNTA DE TEXTOS
Como já anunciamos, neste artigo enfocaremos as falas das crianças, porém estas serão analisadas no fluxo dos discursos do grupo, tendo como eixo norteador a interação verbal e o seu caráter dialógico (Bakhtin, 1997). Os comentários das crianças e das professoras foram categorizados na perspectiva da Análise de Conteúdo (Bardin, 2002); e a análise aqui realizada não pretendeu quantificar turnos de fala, mas abordá-los qualitativamente. Portanto, para definir o grau de participação das crianças durante as atividades, consideramos a extensão e a alternância dos turnos (turnos mais longos ou mais curtos, predominância da fala da professora, de uma criança específica ou maior alternância entre os sujeitos).
A análise da participação das crianças nas seis produções observadas apontou ainda para algumas questões de cunho mais geral, a saber:
Em algumas produções predominaram as “falas em coro”, que são aquelas em que todo o grupo ou boa parte dele fala ao mesmo tempo, geralmente respondendo a uma pergunta genérica feita pela professora, como por exemplo:
“Professora - A gente fez aqui na sala a atividade da bola de meia, não foi? Foi ou não foi?Crianças - Foi”.Em outras atividades, houve um maior equilíbrio entre as “falas em coro” e a participação individual. Nesses casos, observamos que as crianças se expressaram com mais autonomia, falando livremente o que pensavam, não apenas respondendo às solicitações da educadora, mas também fazendo perguntas e se dirigindo a outros colegas;
Observamos, ainda, situações em que houve maior alternância entre os turnos de fala das professoras e crianças, e que estas participaram com maior frequência.
Considerando os aspectos acima pontuados, podemos afirmar que as produções coletivas encaminhadas pela professora Cíntia, de modo geral, proporcionaram maior participação das crianças, tanto em relação à alternância dos turnos quanto no que se refere à autonomia das crianças nas falas e na diversidade de crianças que contribuíram com a escrita. Os dados do Quadro 2, abaixo, reforçam nossa avaliação:
Analisando qualitativamente as interações, podemos inferir que alguns fatores contribuíram para uma participação mais intensa das crianças do grupo da professora Cíntia. São eles: a organização espacial das crianças, tal como comentamos anteriormente; o número mais reduzido de crianças participantes e o próprio estilo de mediação da professora (que tendia a produzir turnos de fala mais curtos do que a professora Laura, e mais reflexivos; em geral, devolvia as perguntas para as crianças e dirigia suas perguntas para crianças específicas, solicitando uma participação individual). Avaliamos que esses fatores ajudaram a construir um clima mais aberto e propício à expressão dos pequenos. Entretanto, notamos que esses modos de participação das crianças também oscilaram nas três atividades propostas por uma mesma professora, algo que pode estar relacionado às situações de produção dos textos, como discutiremos a seguir.
Considerando as dimensões do processo de produção textual - a geração de conteúdo textual, a textualização, a forma composicional do gênero discursivo, a revisão textual e o sistema de escrita alfabética -, a observação das seis produções coletivas indicou que as crianças dos dois grupos interagiram com a escrita explorando essas diferentes dimensões.
A seguir, apresentaremos exemplos extraídos dos vídeos em que é possível constatar essa participação das crianças. Por fim, tal como já anunciamos, aprofundaremos a discussão sobre os intercâmbios discursivos abordando duas das seis produções coletivas analisadas.
O processo de geração de conteúdo textual
A geração de conteúdo textual refere-se à ação das crianças de sugerir ideias para compor o texto. Por exemplo:
[...] Professora: Vamos lá! E aí? O que foi que aconteceu nessa história?
Carla: A galinha ruiva estava passeando...
Calina: E no meio do caminho achou um grão de milho. [...]
(Reconto de fábula, produção coletiva 1, Professora Cíntia)
A pergunta da professora foi feita no início da produção textual; e, após as falas de Carla e Camila, outras crianças do grupo seguiram descrevendo as ações das personagens, que iam sendo registradas pela professora. Ao longo do processo, a educadora continuou a estimular a explicitação das ideias para compor o texto, através de perguntas (por exemplo, e o que foi que a galinha fez?), de modo que o texto final reproduziu a sequência de eventos do texto original que foram recuperados pelo grupo.
No tocante a esse aspecto, vale observar, porém, que a maior ou menor participação das crianças na geração de conteúdos para o texto parece ter relação com o contexto imediato da produção. Assim, no caso do reconto da fábula da galinha ruiva, a professora Cíntia chegou a dizer que as crianças estavam falando rápido demais para que ela pudesse registrar por escrito. O fato de a história ser bem conhecida das crianças foi, portanto, um elemento crucial para permitir essa maior participação. Vale destacar ainda que, nessa situação específica, a geração do conteúdo textual consistia em recuperar as ideias da fábula original, ou seja, não se tratava de gerar um conteúdo novo para um texto a ser produzido, algo em princípio mais difícil para todos nós. Em síntese, a participação mais intensa das crianças, certamente, estava associada às condições específicas da situação de recontar um texto que o grupo conhecia bem.
Um movimento oposto, em termos das trocas discursivas, foi observado na escrita coletiva do bilhete dirigido às diretoras da escola na sala da professora Laura. O bilhete solicitava material para a confecção de um fantoche. No entanto, como as crianças desconheciam o que seria necessário, a geração de ideias para compor o texto se concentrou na figura da professora, e isso foi evidenciado pelos longos turnos de fala da docente durante a produção do texto.
O processo de textualização
A textualização, por sua vez, refere-se à participação das crianças quando são chamadas a refletir sobre qual a melhor forma de escrever um determinado trecho do texto, ou seja, a textualizar. Vejamos um exemplo em que a professora e as crianças dialogam em torno dessa dimensão:
[...] Professora - Sim, mas como é que a gente pode começar a escrever esse bilhete? Quem é que tá precisando desse material?
Crianças - A gente.
Professora - Então, como é que a gente começa o nosso pedido? Falando o quê? Dizendo como?
Clara - Por favor.
Professora - POR FAVOR [escrevendo].
José - Me dê material.
Professora - Me dê material? Qual é o material? A gente tem que dizer... Vamos pensar mais.
Milena - Por favor, me dê um material.
Professora - Por favor...
Milena - Me dê um material.
Professora - Me dê?! Mas é você que quer ou somos todos nós?
Crianças - Nós! [...]
Professora - Vamos continuar pedindo, como é que a gente pede?
Milena - Me dê.
Professora - Mas é “me dê”? É você que quer ou somos todos nós que precisamos?
Crianças - Todos nós. [...]
(Escrita de um bilhete, produção coletiva 3, Professora Laura)
Esse trecho mostra como, a partir da intervenção da professora sobre qual seria a melhor forma de iniciar o bilhete, as crianças tentaram reelaborar o discurso, discutindo sobre o modo mais apropriado para escrever naquela situação específica. Uma das crianças sugeriu a inserção do termo por favor, que é um modalizador discursivo, perfeitamente adequado para essa situação de escrita. Trata-se de um recurso linguístico que marca uma intenção na interlocução com a destinatária do texto (no caso, a diretora da escola), e tal intenção é delimitada pelos parâmetros da interação. A sugestão de Clara, portanto, explicitou no plano escrito a finalidade do grupo ao produzir o bilhete: fazer um pedido. Provavelmente, com base nas suas experiências com a linguagem oral, Clara sugeriu a inclusão do modalizador porque sabia que, em uma situação em que fazemos um pedido, a utilização desse recurso poderia fazer com que o destinatário do texto se sentisse mais inclinado a conceder o que lhe fora solicitado.
Em seguida, vemos ainda a conversa em torno da fala de José, que sugeriu a escrita da frase me dê material. Milena pareceu concordar com a sugestão dos colegas e seguiu repetindo a mesma frase para a professora, acrescentando apenas o artigo indefinido “um”: por favor, me dê um material . A professora questionou essa formulação, perguntando se o texto seria de autoria apenas dela ou de todo o grupo. Vemos, portanto, o movimento das crianças, guiado pela professora, na tentativa de melhorar o texto a partir dos parâmetros da interação (destinatário, finalidade e autoria). Esse processo ilustra uma concepção sociodiscursiva da língua, em que, por meio da linguagem, os sujeitos se envolvem em uma rede de enunciados, partindo de enunciados já existentes e, ao mesmo tempo, se projetando a outros na figura dos seus interlocutores (Bakhtin, 2006).
A forma composicional do gênero textual
Este tópico está relacionado à participação das crianças na discussão sobre os componentes do gênero que está sendo produzido. No trecho a seguir, podemos observar que as crianças reconhecem um componente do convite e que ainda não havia sido contemplado na escrita: o o autor do convite, ou seja, o nome de quem convidou. Vejamos:
[...] Professora - Terminou? (após ler o que tinha sido escrito até ali)
Crianças - Terminou!
Professora - Não tá faltando mais nada?
Igor - Tá faltando aquele negócio que José disse!
Professora - O que foi que José disse? Que negócio foi esse? Colocamos o texto chamando as pessoas, colocamos data, hora e local. O que foi que José falou?
Igor - Foi depois desse daí, ó! (apontando para o texto).
Professora - Depois desse daqui, né? O que é? (apontando para a última palavra do texto: “local”)
(silêncio)
Professora - O texto chamando as pessoas, data, hora e local. O que é que tá faltando, José?
Igor - Ele esqueceu.
Professora - Lembra o que foi?
José - Eu não lembro, não.
Professora - É uma coisa que se a pessoa receber e a gente não colocar, ela não vai saber quem foi que deu. O que é que tá faltando?
Igor - O nome!
Júlio - O nome!
Professora - A gente assinar, né? Então, vamos lá! [...]
(Escrita de um convite, produção coletiva 2, Professora Laura)
Na definição bakhtiniana, a construção composicional é um dos elementos que constituem os gêneros do discurso, juntamente com o conteúdo temático e o estilo. Dessa forma, esses três elementos “fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (Bakhtin, 1997, p. 280, grifo do autor). Dada a grande variedade dos gêneros do discurso em uma sociedade como a nossa, entendemos que a escola é uma instituição importante para apropriação da cultura letrada. De fato, analisando os dados da presente pesquisa, constatamos que, por meio das interações durante a escrita coletiva, as crianças pequenas se mostram capazes de internalizar esses enunciados relativamente estáveis que são os gêneros do discurso, remetendo-nos ao processo de internalização descrito por Vygotsky (2007).
As crianças do grupo da professora Cíntia também demonstraram que conheciam os componentes do gênero convite, explicitando as informações que precisavam constar no texto a fim de que ele cumprisse a sua finalidade.
A revisão textual
No processo de revisão textual, consideramos os momentos em que as crianças participam da alteração do texto, durante o processo de escrita (revisão em processo) ou na sua versão final (revisão do produto).
Vejamos um exemplo, durante a escrita do convite para a Festa da família na sala da professora Cintia, em que uma das crianças percebe a repetição de uma palavra e chama a atenção do grupo:
[...] Professora - CONVIDAMOS TODAS AS FAMÍLIAS [lendo]. O quê?
Letícia e Cláudia(falando ao mesmo tempo): Para a festa!
Professora - Para o quê?
Letícia - Nossa festa.
Professora - PARA NOSSA FESTA [escrevendo].
Cláudia - Da família.
Letícia - Tem duas “família” aí.
Professora - Isso! Olha a gente vai colocar “da família”, mas Letícia colocou que vai ter duas palavras “família”. Será que precisa colocar “família” de novo...
Crianças - Não!
Professora - ... Se já tem família ali em cima? O que é que vocês acham?
Crianças - Não! (em coro)
Letícia - Precisa não [fazendo o movimento com o dedo dizendo que não]. [...]
(Escrita de um convite, produção 3, professora Cíntia)
Vemos no fragmento acima que Letícia apontou a repetição da palavra família sem qualquer sinalização da professora nesse sentido. É possível que esse entendimento de que no texto escrito costumamos evitar a repetição de palavras tenha sido construído por ela a partir de revisões sugeridas pela professora, tal como ocorreu na produção coletiva da receita do biscoito, realizada anteriormente. Assim, ao que parece, a referência da professora como modelo de alguém mais experiente com a atividade de produção textual contribui para que as crianças comecem a perceber que o processo de escrita não é linear, mas constituído por reelaborações e refacções.
A reflexão sobre o sistema de escrita alfabética
Essa categoria de participação remete-nos aos comentários das crianças relacionados à notação escrita durante a produção dos textos. Vejamos dois exemplos:
[...] Raul - Aqui é o “o” é, tia? [apontando para a letra “o” na palavra SANTOS]. [...]
(Produção do convite, atividade 3, Professora Cíntia)
[...] Helena - A bola de meia foi muita letra! [olhando para o texto escrito no quadro, ao final da atividade].
P - Foi muita letra que a gente escreveu foi, Helena? Foram muitas palavras pra a gente explicar como faz a bola de meia?
Helena - [balança a cabeça dizendo que sim]. [...]
(Produção de um texto instrucional, atividade 1, Professora Laura)
Segundo Kaderavek, Cabell e Justice (2009, como citado em Quinn et al., 2016), na Pré-escola, a atuação da professora na mediação das tentativas de escrita pela criança pode se dar a partir de três frentes: (1) informando às crianças sobre o formato das letras; (2) ajudando-as a fazer com que reflitam sobre quais seriam as letras correspondentes aos segmentos sonoros das palavras que elas pronunciam e que querem escrever; e (3) colaborando com geração de ideias sobre o conteúdo do texto que está sendo escrito.
Como é possível notar, a produção de textos de forma colaborativa dá oportunidade para explorar a última dimensão do trabalho docente apontada pelos autores. Assim, na atividade de escrita coletiva em que a professora é escriba, em geral, a intenção maior é levar as crianças a refletirem sobre aspectos sociodiscursivos (a finalidade do texto, seu conteúdo, destinatário(s) e possibilidades de textualização), e não sobre o funcionamento do sistema de escrita4. Apesar disso, vimos acima que as crianças prestam atenção não apenas a questões relacionadas a aspectos mais gerais do texto escrito, mas também parecem estar curiosas e atentas aos símbolos que utilizamos para escrever.
Observação semelhante foi feita por Girotto, Silva e Magalhães (2018) ao analisarem um episódio de escrita coletiva vivenciado por um grupo de crianças com idade entre 5 e 6 anos que frequentavam uma instituição pública do interior de São Paulo. As autoras indicaram que as crianças demonstraram perceber marcas específicas do gênero que estava sendo produzido (tratava-se de uma notícia para o jornal da escola) e, ainda, chamaram a atenção para aspectos visuais do texto: observando a diferença entre “e” e “é”, uma das crianças explicita que “se não põe o acento vira outra coisa” (p. 168). Evidentemente, não esperamos que crianças pequenas compreendam o uso de acentos, mas tais comentários sinalizam que elas, de fato, estão atentas às diferentes dimensões da língua.
Na próxima seção, iremos analisar, mais detalhadamente, duas das seis produções que constituíram o corpus de análise da pesquisa: as produções 2 e 3 desenvolvidas pela professora Cíntia e seu grupo de crianças.
AS CRIANÇAS NO PROCESSO DE ESCRITA COLETIVA: ENGAJAMENTO NA ATIVIDADE E CONHECIMENTOS PARTILHADOS NAS TROCAS DISCURSIVAS
Os dados apresentados na seção anterior trazem evidências da participação das crianças nas diferentes operações que envolvem a produção de um texto escrito. No entanto, observamos que, nas duas últimas atividades conduzidas com o grupo da professora Cíntia, as crianças, de modo geral, se mostraram mais engajadas na atividade de escrita, produzindo uma maior alternância nas trocas discursivas, sinalizando um movimento de mais autonomia no fluxo das interações. Em outras palavras, nas duas atividades de escrita que serão discutidas aqui, as crianças não se limitaram apenas a responder as perguntas e a atender aos comandos da professora. Elas sugeriram e discutiram sobre as ideias que eram levantadas, explicitaram seus pontos de vista e tomaram decisões de modo mais independente.
Além de um contexto significativo de escrita para as crianças (finalidade, gênero e destinatários claramente apresentados), uma segunda hipótese explicativa dessa participação mais ampla dos pequenos é o estilo de mediação da professora Cíntia. Como já mencionamos anteriormente, ela conduzia as atividades de produção escrita de forma mais dialógica, questionando as crianças e estimulando sua reflexão.
Ao que parece, essas duas condições proporcionaram um espaço mais favorável para que trocas discursivas fossem estabelecidas e o processo de coautoria assumisse um maior destaque entre o grupo produtor do texto. Nessa direção, observamos que a mediação da professora Cíntia se caracterizou pela utilização de uma linguagem propositiva e problematizadora, pela disponibilidade da docente para escutar as crianças e pela abertura para a tomada de decisões coletivas.
A seguir, discutiremos os dados das duas atividades selecionadas, evidenciando como a mediação docente favoreceu as trocas discursivas e a construção de conhecimentos pelas crianças.
As trocas discursivas durante a discussão sobre o conteúdo textual
A análise da mediação da professora Cíntia, tanto na produção da receita (atividade 2) quanto na produção do convite (atividade 3), indicou que a conversa com as crianças, conduzida por ela, se constituiu a partir de uma dinâmica discursiva em que a sua fala e a das crianças se intercalavam, não sendo registrados longos turnos de fala da educadora durante o processo de escrita.
Foi recorrente nessas duas produções coletivas o uso pela professora Cintia de expressões como: O que é que vocês acham? Vocês acham melhor assim? O que vocês preferem? O que é que eu coloco aqui? Como é que a gente coloca? Precisa de mais alguma coisa? Vocês acham que é importante isso? Ao estruturar a conversa nesses termos, a professora constrói uma relação mais horizontal com as crianças, a fim de que elas se reconheçam como autoras do texto e percebam que podem expressar suas ideias, compartilhando-as com o grupo. Em síntese, observamos que as meninas e os meninos, de modo geral, se envolveram ativamente no diálogo com a professora, como ilustra o trecho a seguir:
[...] Professora - Vamos lá! Qual vai ser a primeira coisa que a gente vai colocar nesse texto?
Joana - Convidamos a família para a festa.
Professora - Paraí. Devagar. CONVIDAMOS [escrevendo].
Crianças - A família para a festa.
Professora - Convidamos...
Joana - A família para a festa.
Professora - A família? Que família?
Joana - A família... do povo.
Carla - A nossa família.
Professora - Vejam só...
Luana - A toda família.
Professora - TODA [escrevendo]. Como?
Joana - Uma família só.
Professora - Uma família só? Esse convite é pra todo mundo.
Luana - Todas famílias.
Professora - TODAS [acrescenta um “S” na palavra TODA que estava escrita]. AS FAMÍLIAS [escrevendo]. [...]
Podemos notar no extrato acima a forma como a professora se apresentava no diálogo enquanto mediadora e coautora, sendo uma referência para o grupo, mas, ao mesmo tempo, problematizando o que as crianças diziam. Assim, estimulava as crianças a pensarem sobre o que seria escrito a fim de deixar o texto mais claro. Nessa direção, por exemplo, a educadora ajudou os pequenos e as pequenas refletirem sobre os aspectos sociodiscursivos do texto (nesse caso, os destinatários), num processo de reelaboração do que estava sendo dito e que seria, em seguida, registrado por meio da escrita.
Notamos ainda que a maneira como a educadora conduzia o diálogo proporcionava um engajamento das crianças na discussão sobre o conteúdo textual. Destacamos na seção anterior que as crianças participaram ativamente da operação de geração do conteúdo textual. Entretanto, nessas duas atividades conduzidas pela professora Cíntia, observamos que as crianças não apenas contribuíram com ideias para compor o texto, mas se envolveram com a discussão sobre essas ideias. Isso significa que elas apresentaram sugestões e se posicionaram nas trocas discursivas, concordando, discordando e buscando o conteúdo mais adequado para a situação de escrita.
No trecho abaixo, podemos observar como, nas negociações durante a escrita do convite, as crianças se sentem à vontade para expor suas ideias e discutir entre elas. Assim, tomam a palavra, sem esperar pela “autorização” da professora, que, por sua vez, vai se equilibrando, na complexa função de mediadora, escriba e coautora:
[...] Professora - E agora? Coloco o quê? E agora eu coloco o quê aqui? Depois da hora eu coloco o quê?
Calina - O nome da escola.
Carla - O local.
Professora - Como é,Calina?
Carla - O local.
Professora - LOCAL: [escrevendo].
Joana - E o nome da escola.
Calina - O local num é o nome da escola?
Carla - É não.
Professora - É sim. O local da festa... onde vai acontecer a festa?
Crianças - Na escola.
Professora - Então, no local eu vou colocar o quê?
Calina - O nome.
Professora - O nome de quê?
Calina - Da escola.
Professora - Então, Joana!
Calina - Ta vendo tu, Carla!
Professora - Carla tava certa, Calina. Aqui vai colocar o nome da escola.
Joana - E a hora, tia.
Micaela - Mas, ela falou que o local não é o nome da escola, não.
Professora - É o nome da escola porque a festa não vai acontecer aqui na escola?!
Calina - Carla disse que o nome não era o local,não.
Professora - O local... onde é que vai acontecer a festa? Não é na nossa escola, Carla?
Crianças - É.
Joana - Aí quer dizer que o local tá dizendo já o nome.
Professora - Isso! A gente vai colocar ESCOLA [escrevendo].
Calina - Tá vendo tu, Carla!
Joana - E eu e Calina acertou! [...]
Em consonância com a perspectiva sociointeracionista da língua, compreendemos que, a partir dessas interações, as crianças podem, aos poucos, construir a noção de que a escrita de um texto requer ações como planejar, selecionar, organizar as ideias, avaliar e revisar o texto, guiando-se por uma base de orientação em torno dos parâmetros da interação naquela situação específica (Bronckart, 1999; Shcneuwly, 1988).
No caso do convite escrito coletivamente pelo grupo da professora Cíntia, destacamos que o fato de a educadora ter levado diferentes exemplares desse gênero para ler na roda com as crianças e conversar sobre suas experiências com as situações em que se lê ou se escreve um convite, ajudou na construção da base de orientação necessária à produção do texto.
As trocas discursivas no processo de textualização
Como já anunciamos anteriormente, tanto na produção coletiva da receita do biscoito quanto na produção do convite, foram registrados trechos em que crianças e educadora se envolveram em interessantes conversas sobre os modos de transpor para o plano escrito o conteúdo do texto, operação denominada de textualização no modelo de produção textual proposto por Schneuwly (1988). Intervir no sentido de estimular essa operação na produção coletiva requer da professora a disponibilidade para escutar as crianças. Quando falamos em escuta, estamos nos referindo não apenas à postura de ouvir atentamente o que elas têm a dizer, mas à atitude responsiva diante do que elas falam, respeitando as suas contribuições e buscando incorporá-las ao texto, como mostra o fragmento abaixo durante a escrita do convite:
[...] Carla - Só que tem que ter o nome.
Professora - Que nome, Carla, você acha?
Calina - Da data?
Professora - Calina, deixa ela falar.
Professora - Carla, que nome é esse que você tá falando?
Carla - O nome da data. Mais melhor.
Professora -Ah, o nome ela tá querendo dizer a palavra data. É isso?
[Carla confirma com a cabeça dizendo que sim].
Professora - Agora eu entendi!
Calina - Fica feio! Fica feio, tia!
Carla - Fica não.
Joana - Fica.
Carla - Fica não.
Professora - Deixa eu ir buscar. Eu posso ir buscar os convites?
Crianças - Pode.
Professora - Licença.
[Nesse momento, a professora sai da sala e vai buscar um dos convites que havia trazido no dia anterior para mostrar e conversar com as crianças].
Professora - Pronto! Olha aqui, eu trouxe um. Eu trouxe um. Olha só! Olha só! Ó, Joana. Convite, venha ao batizado de Zazá. Olha aqui ó: dia, horário, local [lendo o convite e mostrando para as crianças].
Carla - Falta a data.
Professora - O dia e a data é a mesma coisa. A gente pode colocar dia ou data. Fica feio assim? Vocês querem assim?
Crianças - Eu quero! Eu quero!
Professora - E aí? Vai colocar o que aqui no dia da festa? Vai colocar a palavra data?
Joana - Bota.
Professora - Ou a palavra dia?
Calina - Dia, dia, dia!
Professora - Vai colocar? Dia ou data?
Crianças - Dia! Dia! Dia!
Professora - DIA: 14 [escrevendo]. [...]
Vemos no fragmento acima a fala de uma das crianças lembrando que faltava escrever a palavra “data” no convite. Em seguida, teve início uma conversa sobre esse termo, que gerou opiniões divergentes. Com o objetivo de oferecer elementos que ajudassem na decisão, a professora ofereceu outros exemplares do gênero, tirando a centralidade da sua figura. No convite lido por ela, constava a palavra “dia” e não “data”, e isso gerou uma segunda questão para o grupo: qual seria a melhor forma para registrar essa ideia? Notemos que a questão inicial levantada por Calina estava no campo da estética (Fica feio! Fica feio, tia!) e que, posteriormente, surgiu uma dúvida que remetia à escolha lexical (utilizar “data” ou “dia”). Ainda que do ponto de vista semântico tal decisão não trouxesse alteração para o sentido do texto, a docente não perdeu a oportunidade de estimular a discussão entre as crianças.
Outros momentos dessa natureza também foram registrados na mediação da professora Cíntia quando ela, por exemplo, discutiu com as crianças sobre a melhor forma de escrever o mês (8 ou agosto). Esse movimento revela que o grupo produtor do texto começou a reconhecer a possibilidade de escrever a mesma ideia de formas diferentes. Mais adiante, é possível que essa reflexão se amplie para tentativas de buscar a maneira mais adequada de dizer em função dos objetivos colocados para o texto a ser produzido e da relação com os interlocutores.
Tal como indicado na pesquisa de Girão (2011), discutir sobre o conteúdo textual e estimular a participação das crianças no processo de textualização são intervenções de natureza mais complexa e, portanto, mais difíceis de serem mobilizadas pelas professoras no gerenciamento da atividade de escrita coletiva. No entanto, a professora Cíntia mostrou que uma mediação problematizadora e atenta às falas das crianças poderia ajudá-las a se engajarem nessas operações e a começarem a refletir sobre elas, antes mesmo de serem capazes de produzir um texto escrito de forma convencional e autônoma.
As trocas discursivas e a tomada de decisões coletivas
Produzir um texto requer tomar decisões durante todo o processo de escrita. Uma característica observada nas duas últimas produções coletivas vivenciadas pelo grupo da professora Cíntia foi a participação efetiva das crianças nas escolhas que deram materialidade ao texto. Esse aspecto já foi evidenciado nos tópicos anteriores (quando falamos da discussão sobre o conteúdo textual e do processo de textualização). Contudo, gostaríamos, mais uma vez, de dar destaque a esse modo de interação “mais horizontal” da professora Cíntia, constantemente convidando o grupo para pensar e decidir conjuntamente sobre o que e como escrever.
Como vimos no Quadro 1, a segunda proposta de escrita lançada pela educadora foi escrever a receita dos “Biscoitos da alegria” para que as crianças levassem o texto para casa junto com um saquinho de biscoitos. Assim, em um dia a professora fez o biscoito com sua turma e, no dia seguinte, o texto foi produzido.
No vídeo em que a atividade foi registrada, era evidente o interesse das crianças durante todo o processo que envolveu uma experiência colaborativa, mobilizando a tomada conjunta de decisões em vários momentos, a exemplo do próprio nome dado à receita dos biscoitos, como vemos no diálogo abaixo:
[...] Professora - (...) ontem nós escolhemos o nome do biscoito.
Carla - É biscoito feliz.
Professora - Biscoito feliz? Não...
Alisson - É biscoito...
Joana - Alegria.
Professora - Foi.
Alisson - Biscoito da alegria.
Professora - Tia Cíntia perguntou a todas as crianças dessa sala, viu, Rafael, uma sugestão. Não foi, Alisson?
Alisson - Foi!
Professora - Uma sugestão do nome pra o nosso biscoito. Surgiram duas sugestões: “biscoito feliz” e “biscoito da alegria”. E aí nós fizemos uma votação, cada criança deu a sua opinião entre “biscoito feliz” e “biscoito da alegria” e ganhou o nome biscoito?
Juliana - Feliz!
Calina - Alegria!
Professora - Alegria! Ganhou biscoito da alegria. Esse é o nome do nosso biscoito! [...]
Além da escolha do nome para os biscoitos, as crianças também tomaram parte em outras decisões: vocês acham importante a gente colocar a receita junto com o biscoito? Chama-nos a atenção, igualmente, o momento que, no final do texto, duas meninas sugerem inserir um lembrete para que as pessoas lavem as mãos e prendam os cabelos antes de preparar os biscoitos. Diante disso, a professora lançou a sugestão das duas para aprovação do grupo e depois prosseguiu em sua função de escriba. Vejamos um trecho desse diálogo:
[...]
Carla - Por que se pegar com as mãos sujas...
Juliana - Vai cair cabelinho...
Carla - Vai cair cabelinho na comida, vai sujar. E as mãos sujas, vai pegar e vai sujar a massa.
Professora - Isso! Então, quando a gente for entregar essa receita a gente vai lembrar de explicar que é preciso lavar bem as mãos, né isso? E prender...?
Carla - O cabelo.
Professora - Prender o cabelo na hora de fazer essa receita, porque se não pode contaminar, que é sujar, contaminar é a mesma coisa que sujar...
Carla - Pegar o cabelinho...
Luana - Quando o cabelo cair vai sujar e pegar na comida vai sujar a comida. Tem que lavar as mãos.
Professora - Isso! Exatamente. Tem que lavar as mãos e prender o cabelo né isso? Vocês querem colocar isso aqui? Vocês acham importante a gente colocar aqui na nossa receita que nós devemos lembrar de lavar as mãos? Você acha que é importante, Calina?
[Calina balança a cabeça afirmativamente].
Luana - Acho, se não a gente vai esquecer. [...]
Vale destacar ainda uma reflexão feita a partir de uma questão abordada por uma criança, durante a produção escrita dessa receita. Diante de uma pergunta formulada pela professora Cíntia, a criança olhou pensativa para a professora e perguntou: como é que a gente faz pra dizer a tu? A pergunta da criança chama atenção para, pelo menos, dois aspectos. O primeiro é o reconhecimento de que a professora é uma interlocutora importante nesse processo de escrita coletiva. Ela é uma referência, alguém mais experiente com a linguagem escrita, que está disponível para ouvir e construir o texto em conjunto com o grupo. O segundo aspecto relaciona-se ao caráter reflexivo e interativo da produção coletiva de textos, ou seja, uma situação em que há alguém para quem precisamos explicitar o pensamento e reelaborar o discurso em função de uma diversidade de ideias que se apresentam. Entendemos que proporcionar tal experiência às crianças é, sem dúvida, algo fundamental no seu processo de descobertas em relação ao funcionamento da linguagem escrita. A esse respeito, Bakhtin (2006) reforça que
essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros (p. 115).
Vemos, portanto, que, ao se envolverem nas trocas discursivas com seus pares e com a educadora, as crianças da sala da professora Cíntia começaram a internalizar a ideia de que o processo de escrita de um texto requer tomada de decisões por parte de seus autores e que, no caso específico do texto coletivo, essas decisões precisam ser explicitadas e acordadas entre os participantes do grupo.
Por fim, vale registrar que a análise aqui apresentada converge para o estudo realizado por Pascucci e Rossi (2005) em relação ao papel da professora, que vai além de escriba, atuando como facilitadora da produção discursiva das crianças e assumindo a função de leitora na medida em que solicita das crianças a explicitação das informações necessárias para a compreensão do texto. Podemos dizer, então, que a docente atua como um elo entre o que chamamos de movimento interno e externo dos enunciados durante a produção coletiva de textos. Do mesmo modo, observamos no presente estudo aquilo que Pascucci e Rossi destacam como a agentividade das crianças. Isso quer dizer que cada criança é um “agente responsável das próprias palavras, que participa de uma tecnologia humana - a linguagem como discurso - no seio de uma pequena comunidade de significados, da qual o professor também participa” (Pascucci & Rossi, 2005, p. 185).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplos aqui apresentados e discutidos evidenciam que situações significativas de produção coletiva de textos em instituições de Educação Infantil podem ser boas oportunidades para que crianças possam construir conhecimentos sobre diferentes aspectos da cultura escrita.
Os dados do estudo também nos mostram que as crianças são capazes de trazer suas experiências anteriores com os gêneros discursivos produzidos, expor ideias, concordar e discordar por iniciativa própria, o que sinaliza uma postura ativa5 durante as atividades de produção coletiva de textos aqui analisadas. Vale ressatar ainda que, assim como na vida, entendemos que os conhecimentos sobre a produção escrita são mobilizados pelas crianças na instituição educativa no contexto de seus usos. Dessa forma, as diferentes dimensões do processo de construção de um texto, discutidas anteriormente, foram objeto de aprendizagem das crianças enquanto interagiam e compartilhavam o desafio de se comunicarem com alguém por meio da escrita. Não se trata, portanto, de “dar aula sobre produção de textos na Educação Infantil”, apresentando, por exemplo, as características de diferentes gêneros discursivos. Ao contrário, a idéia é a de oferecer aos pequenos oportunidades interessantes e com sentido para que se expressem por escrito e tenham contato com a leitura e a produção de textos diversos.
Como já afirmamos, algumas pesquisas têm revelado a ausência de propostas de produção de textos na Educação Infantil (ver, por exemplo, Cabral, 2013; Gerde & Bingham, 2012; Silva, 2018; Souza, 2011). Talvez isso represente uma certa insegurança das professoras de propor atividades de escrita de textos para crianças que ainda não foram alfabetizadas. O presente estudo constata o equívoco dessa ideia e apresenta elementos para que possamos conhecer melhor como os pequenos participam desse tipo de proposta, ajudando a refletir sobre as possibilidades de mediação entre eles e a linguagem escrita.
A condução da professora Cíntia, sobretudo em duas das três atividades de produção de texto por ela propostas, mostrou que uma postura mais dialógica pode favorecer uma participação mais efetiva das crianças no processo de escrita. Além disso, uma vez atingindo esse maior nível de participação, que chamamos aqui de “engajamento”, vimos que as crianças podem se envolver na coautoria dos textos, contribuindo, inclusive, com o desenvolvimento de operações mais complexas relativas à atividade de escrita, como a discussão sobre o conteúdo e a textualização.
A disponibilidade da professora em escutar as crianças, acolher suas ideias, problematizando-as e incorporando-as ao texto, incentivando a expressão e escuta de opiniões diferentes, desenvolvendo as capacidades de negociar e tomar decisões, também foram ações que se mostraram essenciais para que elas se reconhecessem no processo de construção do texto.
Vale destacar que durante a produção coletiva de textos, embora a notação escrita possa chamar a atenção das crianças, o registro do texto é realizado pela professora. Com isso, espera-se que elas se voltem mais para outras dimensões da cultura escrita, como os aspectos sociodiscursivos. Sendo assim, tanto nas situações em que as crianças escrevem de próprio punho da maneira como sabem, quanto naquelas de escrita coletiva, constatamos que os pequenos constroem representações sobre a atividade e buscam mobilizar seus conhecimentos para se expressarem por escrito, tal como vimos ocorrer na presente pesquisa.
Vimos ainda que mediar a escrita coletiva de um texto com crianças pequenas apresenta grandes desafios, como garantir a todos o espaço de fala e observar as reações e o engajamento das crianças na atividade. Nesse sentido, podemos questionar a pertinência de encaminhar a escrita coletiva com todas as crianças da turma ao mesmo tempo. Analisando as seis atividades propostas e observando especificamente a mediação da professora Cíntia, que contava com menos crianças em seu grupo, vimos que ela lançou mão de intervenções mais próximas de cada uma. Assim, perguntamo-nos: a produção textual coletiva conduzida com um pequeno grupo, que esteja mais interessado naquela situação de escrita, favoreceria uma mediação mais qualificada, permitindo também um maior engajamento das crianças? Os dados do Quadro 2 apontam nessa direção, indicando uma tendência de aumento da participação quando há um menor número de crianças envolvidas na atividade de escrita coletiva.
Os estudos aqui mencionados também confluem para a ideia de que as condições de produção interferem na escrita dos textos e que “o outro”, seja ele o adulto mediador6 ou os demais interlocutores, “tem um lugar fundamental no processo de escrita das crianças, ou seja, uma enorme influência em seu dizer” (Costa, 2013, p. 2012). Concordamos com esta autora quando ela afirma que as habilidades relacionadas à notação convencional da escrita “não são requisitos para a produção de textos, mas é por meio da produção de textos que as crianças compreendem a linguagem escrita em sua totalidade: como forma e como discurso” (Costa, 2013, p. 31).
Em síntese, os dados da pesquisa evidenciam que as trocas discursivas num contexto em que o grupo efetivamente se engaja na produção do texto podem criar condições favoráveis à construção de conhecimentos ligados à escrita, que constituem uma base importante no percurso de formação de leitores e escritores, que se inicia na Educação Infantil. Dessa forma, a produção coletiva de textos pode ser um momento de encontro com o outro numa experiência significativa de aprendizagem da linguagem escrita.
Concluindo, a análise das interações entre as crianças e professoras ao produzirem textos coletivamente mostra ainda que construir um texto a partir da relação com o outro é assumir o princípio da coletividade, o que pressupõe o exercício da escuta, do respeito e do acolhimento, dimensões fundamentais da formação humana.