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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 02-Maio-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469838834 

Artigos

O PROGRAMA DE PESQUISA DE MARTIN EGER: PRINCÍPIOS DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA NA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

EL PROGRAMA DE INVESTIGACIÓN MARTIN EGER: PRINCIPIOS DE LA HERMENÉUTICA FILOSÓFICA EN LA EDUCACIÓN CIENTÍFICA

MARIA DO CARMO GALIAZZI1  , Coordenadora do projeto, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0003-0513-0018

ROBSON SIMPLICIO DE SOUSA2  , Coordenador do projeto, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0002-4637-5014

1 Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande, Rio Grande do Sul (RS), Brasil.

2 Universidade Federal do Paraná (UFPR). Palotina, Paraná (PR), Brasil.


RESUMO:

Este texto inicia por um programa de pesquisa teórica que busca mapear a tradição da Hermenêutica Filosófica (HF) na Educação em Ciências (EC) produzindo sínteses de obras de diferentes autores que assumiram a HF na EC. O objetivo é apresentar programas de pesquisa que articularam HF e EC à medida que costuramos nosso próprio programa de pesquisa neles fundamentados. Iniciamos com a pesquisa sobre a obra de Martin Eger, que propôs uma Filosofia da Educação em Ciências (FEC), sendo um dos pioneiros nesta discussão em língua inglesa. A justificativa para este programa é que a HF traz argumentos para a compreensão do papel da linguagem, o que contribui para o enfrentamento dos desafios cotidianos dos professores no ensino e na aprendizagem das Ciências Naturais. Neste texto, a partir de uma breve discussão sobre a HF desenvolvida por Hans-Georg Gadamer, adentramos no estudo da obra de Martin Eger. Alguns dos conceitos propostos por Gadamer, como do círculo hermenêutico, e da ampliação e fusão de horizontes, assim como o da tripla hermenêutica, proposto por Eger, sustentam a compreensão da linguagem das Ciências Naturais desfazendo a separação entre sujeito e objeto, podendo estudantes, professores em formação, docentes e pesquisadores da Educação e da Educação em Ciências, bem como cientistas, podem ser encarados como intérpretes das Ciências Naturais. Ao aproximar o trabalho das Ciências Naturais e o trabalho da arte, em uma cascata de interpretações ao longo da produção do conhecimento científico e de sua aprendizagem pelos estudantes, a produção acadêmica de Eger traz argumentos para compreendermos a própria história do Ensino de Ciências, resgatando percursos e críticas. Ao mesmo tempo traz inspirações para pensarmos o presente.

Palavras-chave: hermenêutica filosófica; Martin Eger; Hans-Georg Gadamer; educação em ciências

RESUMEN:

Este texto inicia un programa de investigación teórica que busca mapear la tradición de la Hermenéutica Filosófica (HF) en la Educación en Ciencias (EC) mediante la producción de síntesis de trabajos de diferentes autores que asumieron la HF en EC. El objetivo es presentar programas de investigación que articulen HF y EC ya que adaptamos nuestro propio programa de investigación basado en ellos. Partimos de la investigación sobre la obra de Martin Eger, quien propuso una Filosofía de la Educación en Ciencias (FEC), siendo uno de los pioneros en esta discusión en inglés. La justificación de este programa es que el HF tiene argumentos para la comprensión del papel del lenguaje, lo que contribuye al enfrentamiento los desafíos cotidianos de los docentes en la enseñanza y aprendizaje de las Ciencias Naturales. En este texto, a partir de una breve discusión sobre la HF desarrollada por Hans-Georg Gadamer, nos adentramos en el estudio de la obra de Martin Eger. Algunos de los conceptos propuestos por Gadamer, como el del círculo hermenêutico y el de la expansión y fusión de horizontes, así como la triple hermenéutica, propuesta por Eger, apoyan la comprensión del lenguaje de las Ciencias Naturales, deshaciendo la separación entre sujeto y objeto; de esta forma, estudiantes, maestros en formación, docentes e investigadores en Educación y Educación en Ciencias, así como científicos pueden ser vistos como intérpretes de las ciencias naturales. Al unir el trabajo de las Ciencias Naturales y el trabajo del arte, en una cascada de interpretaciones a lo largo de la producción del conocimiento científico y su aprendizaje por parte de los estudiantes, la producción académica de Eger trae argumentos para comprender la historia misma de la Enseñanza de las Ciencias, rescatando caminos y revisiones. Al mismo tiempo, trae inspiración para pensar en el presente.

Palabras clave: hermenéutica filosófica; Martin Eger; Hans-Georg Gadamer; educación científica

ABSTRACT:

This text begins with a theoretical research program that seeks to map the tradition of Philosophical Hermeneutics (PH) in Science Education (SE), producing syntheses of works by different authors who assumed the PH in SE. The objective is to present research programs that articulated PH and SE as we tailored our own research program based on them. We started with the research on the work of Martin Eger, one of the pioneers in this discussion in English, who proposed a Philosophy of Science Education (PSE). The justification for this program is that PH provides arguments for understanding the role of language, which contributes to facing the daily challenges of teachers in Natural Sciences teaching and learning. In this text, based on a brief discussion of PH as developed by Hans-Georg Gadamer, we have studied Martin Eger's work. Some of the concepts proposed by Gadamer, such as the hermeneutic circle and the expansion and fusion of horizons, as well as the triple hermeneutics, proposed by Eger, have supported the understanding of the language of Natural Sciences, thus undoing the separation between subject and object; in this way, students, teachers in training, professors and researchers in Education and Science Education, as well as scientists, can be seen as interpreters of the Natural Sciences. By bringing together the work of Natural Sciences and the work of art in a cascade of interpretations throughout the production of scientific knowledge and its learning by students, Eger's academic production provides arguments to understand the very history of Science Teaching, by rescuing paths and reviews. At the same time, it brings inspiration to think about the present.

Keywords: philosophical hermeneutics; Martin Eger; Hans-Georg Gadamer; science education

INTRODUÇÃO

No âmbito da educação das Ciências Naturais, a atenção de pesquisadores, professores e estudantes tem sido focada em modos de ensinar e aprender os conceitos científicos. Temos, nesse cenário, um olhar direcionado aos saberes científicos e à forma como se dá sua construção epistemológica nos espaços educativos. Paralelamente, o mundo vive um intenso movimento histórico de negacionismo da ciência. Os movimentos antivacinas reforçam a preocupação com o modo de os professores, especialmente de Ciências, lidarem com interpretações distantes do fazer científico/ser científico. Nessas pesquisas, prepondera o enfoque epistemológico (ACEVEDO-DÍAZ, 2004; CACHAPUZ et al., 2005; ALLCHIN, 2011, MATTHEWS, 2017), e os resultados mostram maneiras de enfrentar esse problema que, de fato, é legítimo.

Em uma ampliação desse cenário teórico-conceitual bem caracterizado na Educação em Ciências (EC), apontamos, neste texto, a tradição teórica da Hermenêutica Filosófica (HF). Pesquisadores da Educação e da EC têm aprofundado essa abordagem, partindo de uma perspectiva ontológica influenciada pela HF (BORDA, 2007; GINEV, 2013; MAGRINI, 2014; SCHULZ, 2014; LEIVISKÄ, 2016; DEWAR, 2016), e, assim, juntam-se aos esforços de compreender os desafios do campo da EC. A eles temos nos aliado na produção de conhecimento no contexto brasileiro, em que essa abordagem também é menos frequente na EC (SOUSA e GALIAZZI, 2017a; 2018a; 2019; SANTOS; FORATO; SILVA, 2021).

A HF desenvolvida pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) trata de compreender o mundo por meio da interpretação. Dentro desse processo de compreender (a si, os outros, as coisas, os fenômenos), fundamenta-se um humanismo não iluminista, em que o ser humano não é o centro, mas está imerso na centralidade da linguagem como modo de acessar o mundo. Baseia-se nos conceitos de “formação” (Bildung), Sensus communis, juízo e gosto (GADAMER, [1960] 2015), trazendo questões éticas indissolúveis imbuídas nesses conceitos.

Na assustadora paisagem social atual, temos cotidianamente questionado a humanidade em relação à vivência em sociedade com respeito à existência de si e dos outros. A HF, por assentar-se na compreensão da linguagem, inspira-nos à abertura de invenção de salas de aula em direção ao humanismo proposto por Gadamer. Entendemos que o acesso (auto)compreensivo do mundo a partir da arte, por meio do jogo em experiências estéticas, da tradição histórica e da linguagem do/no diálogo, como proposto por Gadamer ([1960] 2015), pode trazer contribuições para alguns dos desafios na EC (SOUSA; GALIAZZI, 2017a; 2018a; 2019; SOUSA, 2021).

Apresentamos como objetivo deste texto o início de um programa de pesquisa teórica sobre a tradição da aplicação1 da HF na EC com a síntese da obra programática de Martin Eger. Salvo melhor juízo, a aplicação da HF na EC em língua inglesa iniciou por Martin Eger (1936-2002), físico/professor de Física diretamente influenciado pela produção de Gadamer. Parece-nos interessante esclarecer que somos professores de Química e que o encontro com a HF e a Fenomenologia aconteceu pela imersão na compreensão da Análise Textual Discursiva (MORAES, 2003; MORAES e GALIAZZI, 2016; GALIAZZI e SOUSA, 2021a; 2021b; 2020; 2019; SOUSA e GALIAZZI, 2016; 2017b; 2018b), uma metodologia de análise de pesquisas qualitativas.

Iniciamos com a pesquisa da produção científica de Martin Eger (1992, 1993a, 1993b, 1995, 1997, 1999). Para situar o pensamento do autor, apresentamos, em linhas gerais, aspectos da HF entendidos como pontes para a relação com a EC, salientando o conceito de círculo hermenêutico. Em seguida, adentramos nos textos de Martin Eger e em sua proposição de uma Filosofia da Educação em Ciências (FEC).

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Como mostraremos a partir da tradição histórica da produção científica de Martin Eger nas próximas seções, a palavra hermenêutica pode soar estranha ou desconhecida para muitos dos envolvidos com o estudo das Ciências Naturais, sejam cientistas ou professores, e mais ainda para estudantes de Ciências. Isso porque a hermenêutica tem se orientado mais diretamente para a interpretação de textos das Ciências Humanas do que das Ciências Naturais. A ampla designação “hermenêutica” surgiu no século XVII, entendida como a ciência ou a arte da interpretação (GRONDIN, 1999). Sua origem é atribuída ao teólogo Johann Conrad Dannhauer (1603-1666), que utilizou o termo hermenêutica no título de sua obra Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum, de 1654 (GRONDIN, 2012).

Embora a localização histórica do termo hermenêutica esteja datada no século XVII, a ideia de arte da interpretação (verbo grego hermeneuein) tem um passado longínquo, dos estoicos gregos até a Patrística na idade medieval. “Em toda a parte, onde, de certa forma, foram oferecidas indicações metodológicas de interpretação, pode-se falar de hermenêutica no sentido mais amplo da palavra” (GRONDIN, 1999, p. 23-24). A partir da Renascença, surgiram uma hermenêutica teológica, uma hermenêutica profana e uma hermenêutica jurídica. Todas tinham como finalidade prevenir a arbitrariedade na interpretação de seus respectivos textos.

Gadamer elabora sua posição filosófica obviamente influenciado por filósofos anteriores, tanto aqueles da tradição hermenêutica (Schleiermacher, Droysen e Dilthey, por exemplo), quanto os da tradição fenomenológica (Husserl, Heidegger, etc.).

A obra Verdade e método: traços fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica (VM) (GADAMER, [1960] 2015) mostra a preocupação de Gadamer com o problema da compreensão, ou seja, com a forma pela qual se chega a compreender algo/alguém. Ao tratar do fenômeno da compreensão, Gadamer ([1960] 2015) fundamenta sua posição filosófica em diferentes interpretações: a interpretação da arte/estética, a interpretação das tradições históricas e a interpretação da linguagem no diálogo. O hermeneuta ilustra, a partir delas, nossos modos de interpretar o mundo, o que repercute em nossos modos de ser com as coisas e com as pessoas. Para ele, o modo de interpretar é ontológico, pois, ao lidarmos com o mundo, carregamos vivências/experiências, a bagagem de nosso existir, ou seja, lidamos com o mundo com nossas pré-compreensões e nossos pré-juízos. Gadamer chama isso de “horizonte”, que é aquilo que podemos “alcançar”, aquilo que “enxergamos”, podendo ser ampliado a partir de novas vivências e experiências com o mundo, das quais não saímos ilesos, pois somos por elas afetados. Quando isso acontece, temos uma ampliação de horizontes, ou ainda, uma fusão de horizontes: um horizonte inicial que se funde com os horizontes disponíveis a serem experienciados. Essa caracterização do modo de interpretarmos/compreendermos, Gadamer, seguindo Heidegger, conceitua como círculo hermenêutico.

Para Grondin (2016), o círculo hermenêutico é uma das doutrinas fundamentais da teoria hermenêutica. Parte da ideia de que, ao buscarmos compreender algo, carregamos nossas pré-compreensões como uma antecipação. Entretanto, é no estranhamento daquilo que buscamos compreender que ingressamos nesse movimento circular não viciado, pois nunca retornamos ao ponto inicial sem mudarmos a nós mesmos no caminho.

Pensadores hermeneutas como Heidegger, Bultmann, Ricœur e Gadamer veem o círculo hermenêutico mais a partir do que ele constitui como elemento inescapável de compreensão: como seres finitos e históricos, nós compreendemos por que somos guiados por antecipações, expectativas e questões (GRONDIN, 2016, p. 299, tradução nossa).

Nossa busca de compreensão, orientada por essas antecipações, leva-nos a querer ampliar horizontes de um fenômeno. Entretanto, precisamos estar atentos a nossa finitude histórica, que precisa analisar as partes a fim de compreender o todo. Na análise das partes, é necessário estarmos conscientes do todo, pois a soma das partes de um fenômeno não dá conta do fenômeno em si, interpretativamente mais complexo. É por isso que o círculo hermenêutico escancara nossa finitude. Contudo, é a busca de ingresso em círculos de compreensão que possibilita ampliar horizontes, sempre incompletos. Isso compõe nossa existência no mundo, ou seja, nosso modo de ser no mundo com coisas, fenômenos e pessoas.

Embora Gadamer não tenha elaborado uma Filosofia da Educação, diversos autores têm buscado realizar esta aproximação. Martin Eger foi um dos pioneiros na proposição de articulação entre a HF e a EC.

MARTIN EGER: UM PROGRAMA DE PESQUISA EM FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

A preocupação com o baixo desempenho dos estudantes na aprendizagem das Ciências tem longa data. Segundo o entendimento de Martin Eger (1992), a HF forneceria elementos para lidar com dificuldades das salas de aula de Ciências relativas ao baixo rendimento dos estudantes. Nesse contexto, ele apresentou um programa de pesquisa teórica com o objetivo de articular a HF e a EC.

Martin Eger (1936-2002) foi um físico teórico e, durante sua carreira, foi professor de Física no College of Staten Island, na City University of New York. Filósofo, desenvolveu muitos cursos e artigos sobre Filosofia que influenciaram seu modo de ensinar Física. Leitor de Jürgen Habermas e Gadamer, estendeu o pensamento destes filósofos à EC, especialmente pelo modo como a HF propõe a interpretação de conceitos e pelas proposições a partir das preconcepções sobre um tema. Eger (1992a) entendia que a HF poderia ser aplicada às Ciências Naturais da mesma forma que às Ciências Humanas. Enfatizava que, metodologicamente, a HF se aplicava não só a quem era cientista, mas também a estudantes em geral, estendendo a noção de diálogo de Gadamer à interpretação na EC (SHIMONY, 2008).

Iniciava, na década de 90, o periódico Science & Education, que, ao longo de 30 anos, tem reunido contribuições sobre História, Filosofia e Sociologia da Ciência e da Matemática. No primeiro volume da revista, Eger (1992) anunciou o programa de pesquisa teórica em Filosofia da Educação em Ciência no artigo Hermeneutics and Science Education - programa reivindicado posteriormente como campo de pesquisa por Roland M. Schulz (2010). A seguir, destacaremos o aprofundamento da proposição inicial.

Hermenêutica Filosófica como uma abordagem para as Ciências Naturais: Parte I2

Eger (1992) apresenta seu programa de pesquisa, que foi aprofundado em dois artigos: Hermeneutics as an Approach to Science: Part I (EGER, 1993a) e Hermeneutics as an Approach to Science: Part II (1993b), a serem detalhados a seguir. Algumas ideias foram reforçadas nesses dois trabalhos, caracterizando a entrada no círculo hermenêutico com um nível maior de aprofundamento.

A partir de sua atividade como professor de Física e experiência em lidar no ensino com os significados atribuídos pelos estudantes aos conceitos científicos, o autor vai apresentar o caráter ontológico da HF em atividades de cientistas que, sob seu ponto de vista, foram negligenciadas tanto na Filosofia da Ciência (FC) quanto na educação. Para seu argumento, o autor trouxe trechos da biografia de Barbara McClintock, prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1983, para quem é preciso livrar-se das pré-compreensões e escutar o que os fenômenos têm a dizer. Parece-nos estranho pensar que seja possível se livrar das pré-compreensões, mas, apoiando-nos na Fenomenologia especialmente husserliana, entendemos que interessante que estejamos atentos a como o fenômeno se mostra num primeiro momento, esforçando-nos para suspender nossas pré-compreensões.

Como dito anteriormente, para fundamentar a importância da aproximação entre a HF e as Ciências Naturais, Eger (1993a) sustentou que tanto a HF quanto a FC foram apresentando semelhanças, a ponto de ter sido ponderado por alguns cientistas que as Ciências poderiam ser pensadas como uma forma de hermenêutica. Essa articulação apareceu explicitamente em obras de filósofos da ciência, especialmente em Revolutions and reconstructions in the Philosophy of Science (HESSE, 1980), The construction of reality (AIRBIB, HESSE, 1986) e Hermeneutics and the analysis of complex biological systems (STENT, 1985). Patrick Aidan Heelan também apresentou essa articulação nas obras Hermeneutics of experimental science in the context of the life-world (1977), Space, perception and Philosophy of Science (1983) e A Heideggerian meditation on science and art (1988), mas encontrou resistências no pensamento consolidado de outros tantos filósofos da ciência, de cientistas e de filósofos, como Habermas (1984) e o próprio Gadamer ([1960] 2015), que mantinham o lugar da hermenêutica restrito às Ciências Humanas.

Outro argumento estava na característica ontológica da HF. Nesse caso, Eger (1993a), direcionando-se para a educação, argumentava que a HF permitia formular questões básicas, considerando a relação entre o estudante e os fenômenos da ciência estudados. Apontava também que a HF poderia fornecer entendimentos para áreas que na época despontavam com intensas controvérsias, dentre elas, o construtivismo, com clara difusão na área de EC.

Defendendo sua posição, Eger (1993a, 1993b) ressaltava que, na EC, um estudante encontra, antes da natureza em si, a linguagem historicamente elaborada, e isso remete a Gadamer ([1960] 2015) e a sua sentença de que tudo que se conhece é porque existe linguagem. Em um tempo em que o movimento construtivista recebia críticas (MATTHEWS, 2000), Eger (1993a, 1993b) percebia na HF argumentos para compreender suas contribuições, por conta de sua abordagem ontológica, e, ao mesmo tempo, os seus limites. Isso, por exemplo, no tratamento dado por pesquisadores e professores à mudança conceitual, misconceptions e outros movimentos para a superação das preconcepções. Como ele afirmava, era um crítico amigo do construtivismo.

Se a HF parecia fornecer argumentos fortes para esse caminho de aproximação, Eger (1993a) alertava sobre alguns perigos. O primeiro, um deslocamento excessivo para a linguagem, negligenciando o estudo da natureza em si e criando possibilidades para um relativismo que apontava para a produção de conhecimento das Ciências Naturais como sendo nada mais do que construções humanas; assim, esse estudo restringia-se a mundos construídos, e não ao mundo em si. Em Gadamer ([1960] 2015) e em Habermas (1984), citando dois filósofos consagrados, as críticas ao objetivismo, ao fundamentalismo e às grandes narrativas das Ciências como impulsionadoras do progresso produziram de certo modo sua desvalorização, acusadas não só por esses filósofos por seus modos de previsão e controle, por sua objetividade alienada e suscetível à dominação. Eger (1993a) colocou-se ao lado dessas críticas.

Com esse deslocamento discursivo, havia - e permanece até os dias de hoje - uma crítica forte à distância entre a produção das Ciências Naturais e as tecnologias, considerando suas consequências para o ser humano e para o mundo. Na EC, o enfoque Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) é exemplo que questiona quem se apropria e se beneficia da Ciência e da Tecnologia, problematizando o modo instrumental de trabalho no ensino das Ciências (HURD, 1975; AIKENHEAD; RYAN, 1992; SANTOS; MORTIMER, 2000; AULER, 2018). Também são exemplos os movimentos em defesa do ambiente, bem presentes na Educação Ambiental (LOUREIRO; LIMA, 2012; LOUREIRO, 2014; ZAMBAM; CALLONI, 2019).

De certa forma, Eger (1993a) ponderava que justamente a separação das Ciências Naturais de sua relevância para os seres humanos e para o mundo produzia um esvaziamento no interesse dos estudantes, porque não percebiam razões para seu estudo. Daí nos confrontarmos, em todos os níveis do ensino, da Educação Básica à Educação Superior, com o número reduzido de estudantes nas carreiras ligadas às Ciências. Na Educação Básica, é forte o desinteresse por essas áreas, embora pareça-nos que não se deva esse esvaziamento ao caráter social e político alertado por movimentos de crítica às Ciências.

Se a hermenêutica assim relativizava os sentidos das Ciências, atribuindo-lhes adjetivos que apontavam seu caráter detestável (lembrem algumas manifestações de nossos alunos) e pouco esclarecedor sobre o mundo, Eger (1993a), em movimento contrário, ponderava que a HF também poderia mostrar que as Ciências são sobre um mundo comum no qual todos vivemos. Pensando nos dias atuais, em que vivemos o negacionismo da ciência e sua desvalorização, não estaríamos mesmo vivendo um deslocamento excessivo em direção à linguagem, em que a ciência tem sido atacada por discursos esvaziados de conhecimento por ela produzido? Nesse sentido, poderíamos citar o movimento global antivacinas ou o negacionismo da ciência - mostrado, por exemplo, no triste contexto brasileiro, em meio à pandemia desencadeada pelo vírus SARS-COV-2, com o incentivo à distribuição de kit Covid, com prescrição de hidroxicloroquina, já tendo sido comprovada sua ineficácia no tratamento da doença, e o ataque a órgãos reguladores de medicamentos, como é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

O que Eger (1993a) considerava mais distintivo para a articulação da HF com as Ciências Naturais (CN) está na abordagem hermenêutica, desenvolvida por Martin Heidegger e depois continuada por Gadamer, por seu caráter ontológico. Esse caráter, segundo o autor em estudo, é o que vai dar à HF argumentos para contrapor-se a críticas que recebe por seu subjetivismo e relativismo.

Em VM, Gadamer ([1960] 2015) já afirma o caráter universal da hermenêutica e que interpretação e compreensão não são ações cognitivas separadas em um sujeito. A compreensão é sempre uma interpretação que explicita ela mesma uma forma de compreensão. Afirma Eger (1993a, p. 12): “para o intérprete, entretanto, é entrar no círculo hermenêutico, projetar e se manter em movimento entre o texto e as preconcepções projetadas”. Portanto, quando o autor se refere a um texto, cabe esclarecer que não se refere somente a expressões em uma língua, mas a todos os objetos que podem desencadear uma atenção hermenêutica. No contexto das Ciências, gráficos, modelos e experimentos podem ser considerados textos, como também a própria natureza, em um sentido metafórico.

Na apresentação da característica ontológica da HF, Eger (1993a) salienta que o conhecimento não está no intérprete, de um lado, e no texto, de outro, com seus significados. O texto fornece, dentro de um conjunto amplo, muitos significados potenciais. Essa ideia contradiz totalmente as noções de que existe um significado fixo e único transmitido pelo texto, embora haja, sim, algo no texto a ser interpretado. Se o que o intérprete projeta para o que está no texto se mostra adequado e o intérprete está aberto a escutar, então, um encontro de significados do intérprete e do texto ocorre; a este fenômeno, Gadamer ([1960] 2015) refere-se afirmando que o texto fala com o intérprete. Eger (1993a) inspira-se na HF para afirmar que não só o texto fala, mas também as coisas naturais, como árvores, moléculas ou estrelas. Ou seja, interpretação não é invenção. Há também mensagens no que está sendo interpretado.

Esse modo hermenêutico de pensar sobre apropriação de sentidos de textos e fenômenos está em direção diferente da que normalmente se encontra na Educação em Ciências. Em geral, tem-se o pesquisador como produtor de conhecimento, os textos e professores como transmissores e, na outra ponta, o estudante como receptáculo desse conhecimento. Tal modo de pensar sobre a produção do conhecimento das Ciências ou o próprio ensino tem sido bastante criticado por movimentos como o construtivismo, ao qual o autor vai detalhar suas críticas no trabalho que segue.

Hermenêutica Filosófica como uma abordagem para as Ciências Naturais: Parte II

Em continuidade à discussão sobre a proposição de uma investigação hermenêutico-fenomenológica das Ciências Naturais - e, neste texto, acrescenta-se a expressão fenomenológica a hermenêutica -, Eger (1993b) argumenta que a linguagem das Ciências Naturais, e poderíamos dizer suas linguagens nas diferentes Ciências, necessitam de uma dupla hermenêutica, atentando para o papel do intérprete, trazendo novamente a particularidade do ensino das Ciências Naturais. Baseando-se em exemplos da Física, Eger vai mostrar que a hermenêutica está presente em todos os níveis e estágios das Ciências Naturais. Ao final do texto, associa a natureza do modo interpretativo ao modo criativo, aproximando-se da descrição de Gadamer de interpretação da arte.

Ao incluir a Fenomenologia na sua proposição, Eger (1993b) descreve-a como um movimento na Filosofia e nas Ciências em reação ao crescimento da abstração, à interpretação mecânica da natureza e à fragmentação das disciplinas, que esvaziava de significado a ciência e o conhecimento por ela produzido. Em sentido contrário, essa filosofia propõe uma aproximação dos fenômenos, evitando o máximo possível a abstração e imposição de construtos teóricos, a partir da experiência do sujeito. O retorno às coisas mesmas foi um esforço para preservar a totalidade das experiências, quaisquer que fossem, a partir de Husserl, que cunha a Fenomenologia. Para isso, propunha a análise dos fenômenos por diferentes ângulos, o que faria com que o sujeito viesse a percebê-los. O propósito dessa análise era afastar as preconcepções inerentes a todo ponto de vista, conservando todas as visões particulares e distintas obtidas que, juntas, constituíram o objeto em estudo.

A hermenêutica, como uma autointerpretação consciente, torna-se importante para a Fenomenologia, pois, para cada um dos pontos de vista selecionados, em cada contexto específico, é possível uma interpretação do fenômeno dentro daquele contexto. Esse modo de interpretar afasta-se decididamente de análises hipotético-dedutivas porque, lembremos, a Fenomenologia pretendia manter-se próxima das coisas mesmas. O sujeito interpreta o significado da coisa a partir de um ponto de vista em tal contexto, relacionado com seus fundamentos e horizontes. Um sujeito não postula conceitos puros de como as coisas devem ser entendidas.

A linguagem inserta-se fundamentalmente na HF como a propôs Gadamer ([1960] 2015), pois, com suas múltiplas possibilidades de sentidos, tem, entretanto, sua liberdade limitada na linguagem de uso comum e mais ainda nas linguagens específicas das Ciências Naturais. De outra parte, a linguagem oferece descrições analógicas metafóricas. Nesse sentido, pensando que nem todos os contextos podem ser fisicamente ou visualmente inseridos na análise, a linguagem - e somente ela - oferece essa função. Para isso, Gadamer foca na análise da estrutura do jogo e nos jogos para expor certas experiências. Posteriormente transfere essa descrição para o contexto da arte e depois considera os contextos históricos.

Ao considerar que todas as ciências se posicionam em um contínuo em relação ao papel da hermenêutica, Habermas, trazendo o argumento da dupla hermenêutica proposto por Giddens, vai afirmar que todos os cientistas precisam interpretar o que observam, mas que, nas Ciências Humanas, existe um mundo pré-interpretado pela linguagem, e o cientista dessas ciências precisa, antes de interpretar, conhecer essa linguagem específica. Esse mundo não pode ser encontrado como o mundo dos fenômenos naturais.

O argumento de Eger (1993b), no entanto, é de que todas as ciências, não só as humanas, têm uma dupla hermenêutica, porque todas elas lidam com a linguagem. Essa linguagem específica, como todas as outras, precisa ser interpretada. O argumento de Habermas reforça a separação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais. Há um equívoco na interpretação de Habermas, de acordo com Eger (idem), pois supõe que o cientista das Ciências Naturais se encontra diretamente com o fenômeno. Sabemos, todavia, que o cientista sempre encontra antes a linguagem daquela ciência particular dentro da qual sua pesquisa se insere. Eger (idem) reforça que, nesse sentido, um cientista é sempre e antes de tudo um estudante e pergunta se não temos, assim, também nas Ciências Naturais, a dupla hermenêutica.

Eger (1993b), para argumentar sobre a pertinência da HF nas Ciências Naturais, discute os experimentos, os equipamentos, as teorias e os modelos que fazem parte da profissão do cientista, cuja percepção é expandida por eles, que funcionam como um corpo artificial. O cientista incorpora esses artefatos e teorias, e isso se torna o modo de ser daquele cientista - seja o microscópio, que, conforme narrado por Bárbara McClintock, enxerga os cromossomos, sejam as vestimentas de astronautas, que permitem ir ao espaço, ou as de mergulhadores, para ir ao fundo do mar. O que Eger aborda aqui é a atividade do cientista, em que as ferramentas também trazem inseridas nelas compreensões. Em alguns casos, as interpretações podem ser superadas até mesmo por outras ferramentas como é o caso dos próprios microscópios que com novas tecnologias passam a possibilitar outras interpretações sobre os fenômenos, ampliando-se os horizontes. Assim, o cientista aprende a viver com esses artefatos, e a isso o autor associa novamente a ideia do estudante que tem que aprender a lidar com eles, o que, de certa forma, coloca em questão a objetividade e a relação entre o sujeito e o objeto. O autor pergunta:

Quando falamos sobre a linguagem da ciência, os aparatos dos experimentos e o domínio desses instrumentos, estamos falando sobre o pesquisador sozinho ou sobre o investigado também? (Idem, p. 308)

Ele responde a seguir. Quando pensamos na vestimenta do astronauta, a vestimenta incorpora um conhecimento do que será investigado, por exemplo, uma roupa pensada para ser usada na Lua tem que ter em conta a gravidade, a pressão, a variação da temperatura, a consistência da superfície, as radiações solares; ou seja, incorporando muito conhecimento para aquela atividade do cientista, a vestimenta torna-se essencial para desenvolvê-la. Para ir à Lua, por exemplo, resolver os problemas relacionados à vestimenta foi primordial no início do estudo; depois de resolvido, esse problema passa a ser secundário. Assim, todos os argumentos que mantêm a separação entre sujeito e objeto de estudo tornam-se suspeitos, e também a mesma separação categórica entre o modo de estudo e o modo de pesquisa. Em síntese, lembrando a preocupação de Eger (1992, 1993a, 1993b) com a educação, ele novamente aproxima a HF dos modos de aprender, seja o do cientista ou o do estudante. Ou seja, não é possível separar o sujeito que aprende, que ensina, que pesquisa, das ferramentas culturalmente produzidas. A separação entre sujeito e objeto muitas vezes defendida na ciência encontra oposição na HF e no pensamento de Eger.

Outro ponto que Eger (1993b) aprofunda nesse texto é o antigo argumento de considerar as Ciências Naturais como a leitura do livro da natureza. A metáfora do livro permite a Eger novamente confrontar o argumento de Habermas da dupla hermenêutica, pois podemos pensar se a linguagem do livro da natureza está lá na natureza, como Galileu pensava, ou se é trazida para o livro primeiro por quem escreve e depois pelo leitor, como parte de seu esforço interpretativo. Para um estudante, a linguagem está no livro. Para o cientista, parte dessa linguagem ainda vai ser criada a partir de resultados de suas pesquisas. Então, pensando que estudante e cientista estão diante do mesmo livro, parece que não é o mesmo livro que está sendo lido pelo estudante e pelo professor.

Nessa perspectiva, poder-se-ia pensar que há dois livros: um do fenômeno a ser interpretado e um secundário, das interpretações dos fenômenos. Ao primeiro livro, podemos chamar de livro da natureza; ao segundo, de livro da ciência - e está bastante claro que o que aprendemos sobre a natureza vem do segundo livro. Isso também é válido para os cientistas. Nessa metáfora, portanto, permanece a separação entre, de um lado, quem escreve e, de outro, quem lê esses livros, isto é, o cientista ou o estudante.

Eger (1993b) não concordava com essa explicação e, para mostrar que a leitura do livro da ciência também exige interpretação pelo leitor, detalha dois fatos históricos com Heinrich Hertz e Richard Feynman. Eles reinterpretaram teorias existentes. Eles estavam lendo livros da ciência: Hertz, o livro do eletromagnetismo; e Feyman, o livro da mecânica quântica. No intuito de entender essas teorias, cada um reinterpretou a teoria exposta no livro.

O programa de pesquisa teórica proposto por Eger (1993b) assentou-se no seguinte argumento:

Eu argumento e tento mostrar que o processo da ciência envolve uma cascata de interpretações, desde o mais alto nível até o modo do professor e do estudante em seus vários níveis de educação. Interpretação, eu mantenho, é um evento fundamental e penetrante que, potencialmente entrelaça a pesquisa e a educação, e é por esta razão que subdividir a ciência em modos criativos e educativos é problemático e inapropriado. (Idem, p. 314)

Para defender esse argumento, Eger (1993b) propôs a extensão da HF às Ciências Naturais, embora, inicialmente, o próprio Gadamer tenha se oposto ao modo como a ciência considerava verdadeiro somente o conhecimento produzido por um método. Surpreendentemente, a componente de aproximação entre HF e EC talvez seja a arte.

Na primeira parte do livro Verdade e Método, Gadamer ([1960] 2015) faz uma descrição fenomenológica da arte, especialmente da arte performática, como um modelo para descrições similares da história, da linguagem e das Ciências Sociais, com o objetivo de expor o encontro interpretativo entre o ser humano e os objetos cognitivos culturais que são criados. Nas artes performáticas, esse encontro é mais fácil de ver. O tratamento que Gadamer dá à interpretação na arte é o mesmo que precisa ser enfatizado na ciência. Para isso, é preciso considerar arte e ciência não a partir de suas diferenças, mas no modo de ser das duas e de sua apropriação. Tanto na arte quanto na ciência, interpretações ocorrem em todos os níveis, mesmo que não sejam percebidas, e o autor vai manter seu argumento de que, como na arte, o encontro com a ciência depende de interpretação. Recentemente, essa mesma ideia foi reforçada por outros autores, na busca de evidenciar a limitação do caráter pragmático e instrumental na EC em direção a uma experiência hermenêutica (FERRARO, 2017; TOSCANO E QUAY, 2021).

Não só Gadamer enfatizou o aspecto ontológico do objeto de arte. Roman Ingarden, aluno de Husserl, foi outro autor a destacar esse papel. E essa é a direção que Eger (1993b) assinala para o sentido de o trabalho da ciência existir para quem a encontra e quer apropriar-se do conhecimento por ela produzido - um estudante genérico. Ele esclarece, quando fala em trabalho, que não se refere ao encontro com elétrons, átomos, genes ou buracos negros, mas com o que está escrito no livro da ciência sobre elétrons, átomos, moléculas e tantos outros conceitos imersos na linguagem. Ou seja, que sentido assumem esses textos para quem os encontra?

Mas o que é a peça teatral Julio Caesar, de Shakespeare, ou a composição musical As Quatro estações, de Vivaldi, pergunta Eger (1993b). Apenas o roteiro? Claro que não. A própria atuação compõe esses objetos de arte, e a atuação é interpretativa, e o roteiro pode ser interpretado de modo diferente por cada um dos participantes, diretores de arte, atores e audiências - da criação à apropriação, há uma “cascata de interpretações”. Primeiro, o roteiro da peça pode ser a interpretação de fatos reais pelo autor; então, o diretor propõe uma interpretação geral para a encenação, o que é seguido por interpretações dos atores, resultando em uma atuação concreta. Finalmente, toda a audiência interpreta a atuação.

Como em qualquer cascata, afirmou Eger (1993b), vemos nessa descrição uma sequência de movimentos alternados por uma sequência de estabilizações, concretizações. O que o autor assinala é que, fenomenologicamente, todas as interpretações de um objeto de arte estão presentes na atuação. Diferentemente dos objetos de arte, o modo normal de interpretar as coisas restringe-se às suas estruturas estáveis. O espectro de possíveis respostas à questão do ser é gerado quando diferentes pesos são atribuídos a diferentes níveis da cascata. Do mais objetivo lado do espectro, alguém pode insistir em que todo o trabalho de arte é o roteiro; ou; no outro extremo, que é o leitor, o espectador ou o ouvinte que determina o que é trabalho ou obra de arte. A cascata de interpretações e o espectro de pontos de vista definem a dimensão da objetividade na ontologia da arte. O ser do trabalho pode residir na formação esquemática do roteiro que é fornecida ou residir totalmente na percepção de quem contempla o objeto de arte, qual seja.

Gadamer ([1960] 2015) evitou a distinção entre sujeito e objeto e, para tanto, foca no jogo, pois argumenta que a distinção entre sujeito e objeto desaparece quando o jogador passa a fazer parte do jogo. Alguém pode dizer que não é só o jogador que joga o jogo, mas que o jogo é quem joga o jogador. Quando alguém entra no jogo, esquece de si e é obrigado a atuar como o jogo exige.

O ser da peça Julio Caesar, então, está certamente no roteiro, juntamente com todo o conjunto de interpretações possíveis, ou seja, do roteiro cercado por suas apresentações potenciais, por possíveis atuações. Na linguagem fenomenológica, Julius Caesar não é um conjunto de símbolos que podem ser lidos, mas um objeto intencional constituído por toda a cascata de percepções interpretativas - o que não é arbitrário, porque todas elas fazem parte do jogo de interação com o roteiro, um jogo que impõe amplos e poderosos critérios. Isso é a essência e a característica distintiva das teorias de arte de Gadamer e de Ingarden, segundo Eger (1993b).

Uma implicação dessas teorias é que o espectador, o ouvinte ou quem contempla um trabalho de arte torna-se parte do conjunto amplo em que o limite com o objeto é difuso. Ou, de outro modo, cada interpretação entra no círculo de compreensão - o círculo hermenêutico -, o que é um jogo entre ele mesmo e o roteiro formal do trabalho; e isso também implica que o limite entre o intérprete e o que ele interpreta não é nítido nem imutável. Uma segunda implicação é que um trabalho de arte é sempre incompleto. Se a arte é um tipo de jogo com certa estrutura, então, o objeto material, como o roteiro ou a tela, não pode ser considerado uma instância da arte. O que é considerado como interpretação receptiva em contraste com as reconhecidas interpretações criativas faz parte do jogo e, então, parte do ser da arte.

Com esse pano de fundo, como Eger (1993b) articula a HF com a EC? A primeira aproximação é espelhar-se na HF e chamar de trabalho de ciência em comparação ao trabalho de arte, que pode ser um experimento, uma lei, um modelo, uma teoria, etc. que vai ser escrito no livro da ciência. O que acontece quando esses trabalhos forem lidos? Embora o autor tenha trazido muitos exemplos de físicos renomados, voltou-se para pensar em questões ontológicas de quem vai ler esse livro da ciência - especialmente os estudantes.

A primeira implicação nessa comparação com o trabalho de arte é que, da mesma forma, o experimento ou a teoria que está escrita no livro não consiste na própria coisa. O que está escrito é apenas o roteiro. Esse roteiro, dependendo do contexto, pode originar interpretações diversas, e serão todas essas interpretações que constituirão o ser do trabalho de ciência. Isso, segundo o autor, vale para um experimento e todas as vezes que ele é realizado, aperfeiçoado, modificado e pode ser expandido para trabalhos teóricos, modelos mesmo que não haja atuação como há no experimento.

Nesse sentido, Eger (1993b) traz um elemento importante da HF ao descrever a reinterpretação feita por Einstein da teoria de Lorenz, sendo que muitos estudantes podem pensar que essa teoria pré-existente não explicasse os fenômenos que a teoria da relatividade viria a explicar. O ponto importante que Eger (1993b) ressalta é o modo como as Ciências Naturais vêm sendo ensinadas, com ênfase no conhecimento tido como mais atual, sem considerar a tradição desse conhecimento. O que Einstein conseguiu foi reinterpretar, colocando todos os fenômenos explicados pela teoria de Lorenz em uma teoria mais simples e unificada, descartando o conceito de éter. Ao fazer isso, Einstein dá mais um exemplo da contribuição de uma explicação a partir da HF para o livro da ciência. O que ele fez foi questionar pré-concepções a respeito do tempo e outras que estavam em teorias anteriores.

Para que o conhecimento seja reconhecido, precisa ser considerado válido e, então, no contexto da justificação, precisa ser apresentado de modo racional. Ou seja, é preciso passar do contexto da “descoberta” para o contexto da justificação, e todas as interpretações anteriores constituem o ser do trabalho da ciência. O livro da ciência vai sendo escrito esquecendo-se de algumas dessas interpretações, substituindo-as por interpretações mais amplas e adequadas, e o livro torna-se lugar da compreensão para leitores e estudantes, isto é, outro degrau da cascata de interpretações.

Para que as ideias dos cientistas sejam compreendidas, também é necessário que haja um esforço para explicá-las a outros públicos, e o livro da ciência é digerido, e livros sobre o livro da ciência aparecem com a intenção de que sejam lidos e compreendidos, mas isso pode originar interpretações diversas, algumas melhores do que outras. Eger (1993b) compara a visão da ciência com a visão da arte: na primeira, o pesquisador, o professor, o estudante, todos participam do ser da ciência, por interpretar de modo diferente, em cada degrau da cascata de interpretações, os fenômenos daquela ciência.

Avanços da abordagem hermenêutico-fenomenológica nas Ciências Naturais

Como se procurou mostrar até aqui, a abordagem hermenêutico-fenomenológica nas Ciências Naturais tem um interesse especial pelas fases interpretativas dessas ciências e pelas circunstâncias cognitivas e sociais, sejam elas divergentes ou convergentes, apontando para a importância do círculo hermenêutico na pesquisa. Em outro trabalho, Eger (1997) perseguiu seu objetivo por comparação com o construtivismo social nas Ciências Naturais e sua linguagem específica. Em contraste com a linguagem da abordagem hermenêutico-fenomenológica, o autor argumentou sobre a vantagem desta última. Além disso, o artigo pretendeu mostrar as pré-compreensões e pré-juízos da ciência embutidos em cada uma das abordagens, como mostraremos a seguir.

A HF e a Sociologia Construtivista, segundo Eger (1997), têm em comum a crítica a várias características centrais da visão analítica da Ciência: o papel diminuto dado à interpretação, o modo como a objetividade é retratada e a reivindicação de universalidade do conhecimento produzido. Tanto hermeneutas quanto sociólogos estão convencidos de que a construção é mais ampla do que a filosofia analítica da ciência permite. Nesse texto, Eger (idem) discute o tema da interpretação para as duas abordagens.

A partir da dupla hermenêutica de Anthony Giddens e Jürgen Habermas, Eger (1997) apresenta três estágios de interpretação, uma tripla hermenêutica. No estágio 0, a interpretação limita-se à herança recebida ou à tradição da ciência como um todo em duas ações: a) lendo o livro da ciência e b) praticando procedimentos rotineiros da ciência. No estágio 1, a interpretação situa-se no nível dos experimentos de pesquisa: a) interpretação de dados e b) interpretação de fenômenos de acordo com teorias avançadas, o que também pode acontecer pela interpretação da teoria mediante experimentação. Eger (1997) acrescenta a esses dois estágios um terceiro, o estágio 2, em que a interpretação se estende a teorias avançadas em modos alternativos.

Lembrando, Giddens e Habermas argumentaram que as Ciências Naturais se limitavam ao estágio 1, enquanto que, nas Ciências Humanas, também seria necessário interpretar a língua dos povos estudados no estágio 1, daí o nome dupla hermenêutica. Eger (1997) opõe-se a essa restrição, como já afirmado em trabalhos anteriores. Apesar de os objetos das Ciências Naturais - de átomos a estrelas - não falarem, há um problema de aprendizagem da linguagem de nível mais avançado, que ele denominou de estágio 2. É claro que o estágio 1 tem recebido maior atenção, e é onde as Ciências Naturais se tornam uma leitura do livro da natureza, requerendo interpretações entre teoria e observação e também interpretação entre teorias, exigindo um diálogo sobre o significado da linguagem teórica dentro de uma comunidade científica.

Segundo Eger (1997), talvez a maior contribuição da hermenêutica tenha sido chamar atenção ao papel da interpretação no estágio da observação de um fenômeno, aspecto que se sabia existir, mas ao qual foi dada pouca atenção, ou seja, a importância do reconhecimento do fenômeno. Quando iniciaram os escritos de Polanyi a partir de 1950, e depois com os escritos de Kuhn, tratamentos hermenêuticos e fenomenológicos começaram a aparecer, como as contribuições de cientistas como Mary Hesse (1980), Marjorie Grene (1986) e Joseph Rouse (1987).

Nesse momento, entretanto, concorrendo com a emergência do pensamento hermenêutico, embora influenciado por ele, sociólogos e antropólogos da ciência apareceram com seus estudos detalhados e com conclusões mais radicais do que as da hermenêutica que se iniciava nas ciências, em que discutiram o mecanismo da negociação na produção do conhecimento científico. Eger (1997) contrapõe-se ao termo proposto, apesar de o mesmo fazer parte do vocabulário hermenêutico, porque seu uso na hermenêutica era bem diferente do que na Sociologia Construtivista. A negociação, nessa visão, está associada a outros termos: regressão do experimentador, caixa preta e desfazer ou desconstrução da ciência. São termos próximos de outra filosofia, que não a hermenêutica, além de outra posição em relação à ciência.

Seguindo com a descrição da palavra negociação a partir de significados usuais, Eger (1997) discorre que, para haver uma negociação, é preciso que haja interesses opostos entre os negociadores. Ele discute como a palavra negociação vinha sendo utilizada por sociólogos construtivistas, sendo as negociações canalizadas para os interesses sociais, tornando-se táticas de negociação não científicas, usadas para produzir conhecimento certificado, que no final haviam se tornado invisíveis. Com um conjunto de descrições de fatos da ciência feitas por sociólogos construtivistas mostrando as negociações realizadas pelos cientistas, fossem negociações para conseguir dinheiro, fossem para negociar resultados conflitantes obtidos por experimentos diferentes, Eger (1997) faz a crítica ao construtivismo.

O episódio dos neutrinos solares foi trazido para mostrar que houve vários tipos de negociação, distantes da negociação por significados, como se encontra, por exemplo, em Lemke (1990). No início das pesquisas para detectar os neutrinos solares, foram feitas várias negociações com o objetivo de dar sequência às pesquisas, embora os resultados tivessem sido desalentadores. Ao longo do tempo, entretanto, os cientistas trabalharam bastante, e o conhecimento sobre os neutrinos solares ampliou-se. Um dos resultados obtidos foi que, ao tentar estudar mais profundamente o fenômeno, outro fenômeno inesperado ocorreu. Eger (idem) usou a palavra ver os neutrinos deliberadamente porque esta é uma das conquistas da fenomenologia hermenêutica ao se ter feito a pergunta sobre o papel das ferramentas na compreensão dos fenômenos e se ter produzido uma resposta plausível. De acordo com essa teoria, é possível ver ou perceber um fenômeno por meio de instrumentos porque os instrumentos se tornam parte do sujeito e formam uma extensão de seus sistemas perceptivos, ou seja, incorporam-se ao sujeito (embodyment).

A Sociologia Construtivista desenvolveu um conceito paralelo ao embodyment - a caixa preta -, com uma conotação inteiramente diferente e negativa, segundo a qual os cientistas estariam desmontando a ciência, negociando muitas vezes partes cruciais da teoria. Novamente, Eger (1997) discordou dessa interpretação de desmontagem da ciência, afirmando que o fenômeno não se comporta como o esperado, então, não há negociação com modelos que vão modificá-lo. Assim, o significado que emerge de pensar com a hermenêutica é que se compreendeu que o problema é mais profundo do que o que havia sido pensado, o que significa que se pode estar diante de um fenômeno inteiramente novo e que, se os neutrinos tiverem massa, haverá uma mudança fundamental na física das partículas e na cosmologia, porque a massa dos neutrinos precisará ser contabilizada na massa do universo que está faltando - outro quebra-cabeça, afirmou Eger (1997), que a princípio não tinha nada a ver com o projeto inicial.

Retomando a discussão sobre os neutrinos, Eger (1997, p. 97) diz:

Nós começamos com a estrutura do sol como nosso objeto de investigação enquanto os neutrinos são o meio que carrega a informação. Nós contamos com nossas pré-compreensões destas partículas e das ferramentas e práticas. No curso da interpretação, entretanto, nós encontramos pré-compreensões que falharam e os neutrinos passaram a fazer parte do objeto de investigação. Para entender a estrutura do sol, nós precisamos entender os neutrinos, mas para entender os neutrinos nós precisamos entender a estrutura do sol. Nós estamos no círculo.

Eger (1997) considera o círculo hermenêutico como o movimento de ir para frente e para trás no pensamento, de uma parte do objeto sob investigação ao todo, sendo que cada nova compreensão de uma das partes modifica o todo e vice-versa. Eger (idem), entretanto, considera o círculo hermenêutico em uma visão mais alargada a partir de Gadamer, em uma versão dialógica e ontológica, em que o círculo está entre a pré-compreensão global do mundo do sujeito e a resposta do objeto - novamente, o último modificando o primeiro e vice-versa. A adaptação feita do círculo hermenêutico para as Ciências Naturais resulta em um movimento de atenuação dos limites de separação entre o sujeito e o objeto. O movimento está longe do sujeito quando o progresso na investigação tem como resultado a incorporação do objeto ao aparato do sujeito, tornando-se transparente e, em efeito, parte do sistema sensorial do sujeito. O movimento ocorre em direção ao sujeito quando as respostas à problemática a partir do objeto causam ao experimentador um voltar-se a si mesmo e questionar seus sentidos. Assim, enfraquecem a clara separação entre sujeito e objeto, como proposto por Gadamer ([1960] 2015).

Linguagem e a dupla hermenêutica nas Ciências Naturais

Para apresentar o conjunto de trabalhos discutidos no I Seminário Internacional de Hermenêutica e Ciências Naturais, organizado pela Academia de Ciências da Hungria, realizado em Veszprém, de 4 a 9 de setembro de 1993, em que Martin Eger proferiu uma conferência, Føllestal (1999) descreve o trabalho de Eger como uma orientação da discussão da ciência para a EC, propondo-se esse deslocamento para a educação, para, então, aprender Ciências a partir das proposições da HF.

Segundo Føllestal (idem), Eger (1999) argumenta contrariamente a um limite claro entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, movimento contrário ao de Taylor, Dreyfus, Giddens e Habermas, para quem as Ciências Sociais se distinguem das Ciências Naturais por conta de uma dupla hermenêutica. De acordo com esses autores, alguém encontra nas Ciências Sociais uma linguagem nativa3 que deve ser interpretada, e, então, é preciso mediar entre a linguagem do investigador e a linguagem nativa. Eger (1999) contrapõe-se e argumenta que, nas Ciências Naturais, há uma tripla hermenêutica: (1) para entender Ciências, encontram-se a linguagem e as práticas de uma ciência existente, devendo-se entrar nessa cultura. Como afirmado por Polanyi, é preciso aprender a ler as chapas de raio x, o que é muito mais do que aprender como interpretar dados antigos; (2) deve-se, então, aprender a construir teorias. Os dados não podem ser tomados como prontos por aqueles que argumentam contra uma hermenêutica na ciência. Os dados devem ser ajustados à teoria; (3) finalmente, há a questão de interpretar as teorias com o objetivo de entendê-las. Apresentamos mais detalhes deste trabalho de Eger (1999) a seguir.

Eger (1999) vai apoiar-se no “círculo hermenêutico” porque este conceito pode ligar a interpretação de textos às Ciências Naturais, como temos mostrado nos diferentes trabalhos do autor. Em mais de um de seus artigos, exemplificou como procedemos para a leitura de um texto considerado difícil, em que lemos uma parte e projetamos o todo e, depois de lido o todo, voltamos às partes, como bem argumenta Gadamer (2000) sobre esse movimento da palavra ao conceito e do conceito à palavra, para frente e para trás, o que leva à fusão de horizontes ou, como expressou Eger (idem), à convergência de interpretações. Se Gadamer aborda a interpretação de textos, Eger insere nessa abordagem os objetos concretos de estudo. Esse movimento confere à HF um modo de compreender descrito por Eger (idem) em três fases: uma primeira interpretação, seguida da reinterpretação da interpretação, acompanhada de um deslocamento do enfoque epistemológico para o ontológico. Nesse aspecto é que Eger (idem) percebeu aproximações com a FC, especialmente com os paradigmas de Kuhn, e com as teorias construtivistas preponderantes na Educação de Ciências naquela época. Repetimos aqui a semelhança que Eger (1993b, p. 8) apresenta entre o pensamento de Kuhn e Gadamer:

A anomalia aparece apenas contra um pano de fundo fornecido pelo paradigma, quanto mais preciso e abrangente é o paradigma, mais sensível é um indicador que ele fornece para anomalia e, portanto, de uma ocasião para mudança de paradigma (KUHN, 1970, p.65).

O importante é ter consciência dos próprios prejuízos, para que o texto se apresente em toda sua novidade e assim possa afirmar sua própria verdade contra os próprios pré-significados (GADAMER, 1975, p. 238).

Eger (1993b) destaca, em ambos os autores, a presença de pensamentos sobre as preconcepções que vão desencadear o processo de compreender por meio do movimento no círculo hermenêutico e salienta que também as preconcepções foram identificadas como presentes em todas as fases de uma pesquisa, desde o que foi apontado por Popper na FC. Entretanto, a virada ontológica desenvolvida por Heidegger e seguida por Gadamer é que vai ser distintiva no pensamento de Eger (1999), como detalharemos a seguir.

Eger (1999) retoma seu argumento de que a hermenêutica é uma característica não só das Ciências Humanas, sendo estendida também às Ciências Naturais. Sua oposição a Habermas e a Giddens é por contribuírem para manter a separação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais ao proporem o argumento da dupla hermenêutica apenas para a primeira. Os cientistas, quando entram em um novo projeto, encontram sempre uma linguagem daquela ciência específica em que o projeto se insere - uma linguagem que não necessariamente é a sua de projetos anteriores.

Nesse texto, Eger (1999) aborda mais intensamente sua compreensão da contribuição da hermenêutica para a EC quando argumenta, a partir de sua experiência como físico e professor de Física, que o que se tem nas Ciências é uma tripla hermenêutica, nos estágios 0 e 1, como proposto por Habermas e Giddens, e indo além, com o estágio 2, que é quando as teorias produzidas no estágio 1 precisam ser compreendidas. Nesse sentido, as linguagens de cada ciência específica não podem ser comparadas a uma linguagem de uso comum que precisa ser aprendida pelos estudantes. E aqui é necessário prestar atenção em sua oposição à dupla hermenêutica proposta por Habermas:

Minha visão própria é que nós temos em Física, por exemplo, não somente uma dupla hermenêutica, mas uma tripla hermenêutica - três fases distintas nas quais interpretação é necessária e praticada: na obtenção experimental de dados, estágio zero de Habermas, que ele nega para as Ciências Naturais; depois, em construir teorias de médio e alto nível, reconhecido por Habermas como estágio 1 e finalmente na interpretação de teorias estabelecidas com o empenho de entendê-las. Esta fase - que eu denomino de estágio 2 (para seguir a terminologia de Giddens e Habermas) - raramente é discutida. (EGER, idem, p. 267).

Continua, em sua argumentação, dizendo que os objetos não têm uma linguagem própria. Quando os cientistas produzem uma linguagem teórica apropriada a um fenômeno, esse é o estágio hermenêutico 1. Quando o mesmo cientista está somente aprendendo a linguagem aceita, esse é o domínio da educação e, então, o estágio 2. Para aproximar o estudo da linguagem da ciência e o estudo dos fenômenos naturais, é preciso aproximar a formação do sujeito e a interpretação para alcançar o objeto, para isso, sendo preciso entrar na linguagem, o que exige tempo.

Eger (1999) explana como seria para um iniciante entrar na linguagem das Ciências, primeiro fazendo uma espécie de sondagem, conectando as palavras específicas. Não seria semelhante ao estágio 0 proposto por Habermas? E se isso fica claro, atentemos para a proposição do estágio 2, em que a atenção aos estudantes está inserida. Encaminhando para a EC, deixa de lado a metáfora da ciência como uma extensão do corpo e retorna para a metáfora muito mais antiga - as Ciências Naturais como a leitura do livro da natureza. Ele explica que na ciência se percebem diferentes modos de leitura. Os cientistas usam dispositivos para “ver” por meio deles o fenômeno em estudo e, então, “ler” o livro da natureza e ocasionalmente adicionar palavras a este livro. Também se pode pensar que, em outro lugar, abaixo deste andar onde estão os cientistas (lembrem-se da cascata de interpretações à qual Eger se refere em outro texto), estudantes e outros cientistas estão rodeados de livros, tentando ler uma linguagem teórica já estabelecida. Assim, parece que há dois livros sendo lidos: o livro da natureza e o livro dos cientistas - um trabalho extenso, moroso e coletivo. Se admitirmos que ler o livro da natureza é um modo interpretativo de ler, o que é consenso, não parece ser diferente a leitura do segundo livro.

Compreender os resultados científicos, depois de estabelecidos ou verificados ou construídos, é domínio da educação, do ensino, da popularização da ciência. A metáfora desses dois livros, entretanto, mostra também uma separação entre as Ciências Naturais e sua construção de interpretações da natureza (ou fenômenos) e o estudo das Ciências Naturais como recepção dessas interpretações. De um lado, está a escrita desse livro da ciência e, do outro, sua leitura. A crença de que a interpretação faz parte somente da escrita do livro da ciência, não na leitura, assenta-se na crença de que, embora os dados brutos da natureza precisem ser interpretados, depois que os resultados se transformam em livros didáticos, as interpretações cessaram (EGER, 1999).

Eger (1999) passa a apresentar exemplos de “leitura” do segundo livro que mostraram interpretações importantes para a ciência. Trouxe o exemplo de Hertz interpretando de modo diferente a teoria de Newton e a reinterpretação de Feynman da mecânica quântica, com sua afirmativa até o final de sua vida de que ninguém realmente entendia a teoria quântica. Com o detalhamento desses exemplos, Eger (1999) pretendeu mostrar que interpretação é algo que acontece quando em contato com o livro das Ciências Naturais, não só com o livro da natureza, e o que as interpretações de Hertz, Feyman e Einstein trouxeram resultou em novas palavras para o livro das Ciências Naturais.

Ao pensar nos estudantes, esse problema de interpretação certamente ocorre em todos os níveis de ensino (lembremo-nos novamente da cascata de interpretações de textos anteriores do autor). Encaminhando para o final desse texto, Eger (1999) novamente expressa a certeza de que não é mais necessário perguntar ou duvidar da hermenêutica nas Ciências Naturais. O desafio proposto é que seriam necessários mais estudos históricos, filosóficos e sociológicos para aprofundar a compreensão, seja da hermenêutica nas Ciências Naturais, seja das Ciências Naturais nas Ciências Humanas.

O desafio permanece essencialmente em assumir que a linguagem das Ciências Naturais é sobre seres, como estrelas, átomos e outros exclusivamente, em vez de ser sobre a interação de estrelas e átomos com seres humanos. Muitas vezes, ainda se ouvem hermeneutas afirmando que os objetos das Ciências Naturais são sem sentido. Trazemos uma parte do argumento de Eger que nos pareceu poética e profética, por isso pedimos licença para transcrevê-la:

Mas se, como eu acredito que a linguagem das Ciências Naturais inclui estas relações, implicitamente ou explicitamente, o estudo das linguagens científicas é mais que o estudo de átomos ou de estrelas e suas invariâncias de pontos de vista. É também um estudo da compreensão que nós temos de nossa relação como seres humanos com estes e outros modos de ser. Isto pode ser visto, como eu estou sugerindo, em todas as atividades (desenvolvidas por cientistas não somente por estudantes) onde as várias linguagens das Ciências Naturais permanecem como objetos de estudo (EGER, 1999, p. 277).

À GUISA DE SÍNTESE

Detalhamos o programa de pesquisa teórica na Filosofia da Educação em Ciências desenvolvida por Martin Eger. Parecem-nos inegáveis as contribuições em língua inglesa de Martin Eger naquilo que podemos chamar de princípios de uma EC hermenêutica, ou ainda, EC fenomenológica e hermenêutica, a partir da influência de Gadamer. Além das repercussões de seu trabalho, é preciso pontuar que Eger partiu de alguns conceitos gadamerianos para questionar a EC hegemônica à época, apresentando outras possibilidades para a EC.

Em suma, Eger enfatizou: i. a aproximação do fazer científico e do estudar/aprender Ciências; ii. a valorização das experiências perceptivas e vivenciais daqueles que buscam acessar/aprender Ciências; iii. a primazia da leitura de textos da ciência como modo de acessá-la pela linguagem no Ensino de Ciências; iv. o estímulo à interpretação/tradução de textos das Ciências como modo de compreender o mundo; v. a exigência de recorrer às tradições históricas das Ciências como meio de autocompreensão; vi. a reivindicação de que as experiências no ensino das Ciências sejam mais estéticas - como na relação com obras de arte - do que pragmáticas e instrumentais; vii. os envolvidos na ação pedagógica sejam intérpretes na busca de consensos em torno dos fenômenos ontológicos que se propõem a compreender. Esses e outros pontos levam à constituição de currículos, práticas educativas, relações interpessoais, elaboração de valores, rotinas, espaços e tempos escolares, formação de professores e formação dos que formam professores, necessariamente distintos, edificados a partir dos pressupostos fenomenológicos e hermenêuticos.

São incipientes as produções de pesquisa no Brasil em torno da articulação realizada por Eger, além da produzida pelos grupos de pesquisa dos autores deste artigo. A partir do programa de Eger e da articulação da HF à EC temos elaborado nosso próprio programa de pesquisa que vem sendo aprofundado e ampliado para interpretarmos a contemporaneidade da Educação em Ciências (SOUSA; GALIAZZI, 2017a; 2018a; GALIAZZI; SOUSA, 2019; CARMO; SOUSA, no prelo; CARMO; SOUSA; GALIAZZI, 2022). Reforçam-se, assim, avanços na aproximação iniciada estimulada por Eger na década de 90, que têm rendido frutos à produção científica também no contexto brasileiro.

Este texto buscou abrir margem para o diálogo sobre o que defendia o autor, apostando na sua atualidade e emergência. Fomos à tradição da EC para buscar influências de como percebemos, interpretamos, compreendemos e, assim, acessamos as Ciências que nos ajudam a interpretar o mundo. Nossos percursos formativos sinalizam também um movimento histórico de aproximação entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais que a HF nos permitiu perceber, resultado de muitas derivações do programa inicial de Eger, que merece ser levado adiante em sua proposição de uma Filosofia da Educação em Ciências.

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1Complementar à compreensão e à interpretação, Gadamer apresenta o conceito de “aplicação”. Para ele, a busca por conhecimento nunca é neutra ou imparcial, estando sempre relacionada às preocupações de uma busca individual específica. Portanto, a pessoa está sempre aplicando a compreensão a si mesma, e, por causa disso, toda compreensão é, em última análise, autocompreensão (LAWN; KEANE, 2011).

2Os subtítulos das seções do artigo são tradução dos títulos dados aos artigos de Eger.

3Para os autores citados, na interpretação de fenômenos das Ciências Sociais existe uma linguagem que pré-existe ao fenômeno, uma linguagem nativa, que é diferente da linguagem do pesquisador.

Recebido: 19 de Fevereiro de 2022; Aceito: 12 de Outubro de 2022

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Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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