INTRODUÇÃO
As discussões a serem efetivadas neste texto partem de problematizações ocasionadas a partir de recentes políticas curriculares implementadas pelo poder público brasileiro em relação ao ensino médio. Trata-se, especialmente, da reforma do Novo Ensino Médio (NEM), por meio da Lei nº 13. 415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/9.394/96), e a criação e aprovação do texto da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC-EM), em 2018, considerado um marco na centralização das políticas do currículo no país. Interessa-nos, mais de perto, pensar na articulação dessas pretensões reformistas com setores do mercado, os quais estiveram presentes em todo o processo de formulação de tais documentos, por meio de organizações não-governamentais ligadas a grandes conglomerados econômicos, e sondar os efeitos dessa relação e os interesses neoliberais aí subjacentes na configuração das chamadas competências socioemocionais, a partir do exame de materiais didáticos alinhados ao NEM e à BNCC, a saber: as coleções didáticas de projeto de vida aprovadas no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2021.
Decerto, as concepções de currículo matizadas pela lógica das competências não emergem a partir das reformas antes aludidas. Podemos retroagir até aos anos de 1990 e rastrear indícios dessa perspectiva na produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), na elaboração e aplicação de avaliações educacionais externas, como o Exame Nacional do Ensino Médio, a Prova Brasil, dentre outras, articuladas ao Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o qual se conecta com instrumentais avaliativos internacionais como o PISA (Programme for Internacional Student Assessment). De acordo com Ramos (2008), o currículo por competências parte do pressuposto de que é possível redefinir o sentido dos conteúdos de ensino, de forma a atribuir uma significação prática aos saberes escolares, deixando de lado as especificidades disciplinares e apostando em competências verificáveis em situações e tarefas particulares as quais os alunos necessitam dominar. Ainda de acordo com essa autora, o currículo por competências mobiliza os conteúdos disciplinares, quando estes se fazem necessários para resolver uma determinada situação-problema. Alojam-se nessa visão os argumentos demandados para sustentar a premência em modificar o ensino médio, tendo em vista que este seria assinalado por uma excessiva carga de disciplinas que não se mostrava flexível aos anseios e demandas dos alunos. Daí a dissolução dos componentes curriculares em itinerários formativos, pois, assim, os alunos poderiam “escolher” quais caminhos seguir, considerando as particularidades dos seus projetos de vida, a serem construídos no decorrer dos três anos do ensino médio. Segundo Oliveira (2021), tanto as competências gerais da educação básica, conforme a BNCC-EM, como os princípios do ensino médio, as propostas curriculares para a oferta dessa etapa educacional e a organização dos itinerários formativos estão estruturados de modo a instrumentalizar o jovem estudante a empreender certas decisões conforme o seu projeto de vida.
Na constituição dessas subjetividades juvenis, convém criar mecanismos que buscam regular os comportamentos e condutas, tendo em vista a necessidade de se obter sucesso na vida pessoal e profissional. Entram, nesse bojo, as chamadas competências socioemocionais também denominadas de competências não cognitivas, de habilidades socioemocionais, de inteligência emocional, dentre outras formas multireferenciais (MAGALHÃES, 2021). Quer dizer, quem melhor consegue gerir as emoções e sentimentos, de modo a desenvolver aquelas que mais se afinam aos interesses do mercado, tem mais chance de elevar o seu capital humano e conseguir um melhor posto de trabalho. De igual modo, na consecução e seleção adequada dos seus itinerários formativos, os discentes precisam demandar as competências socioemocionais, pois estas auxiliam no processo de aprendizagem e, como corolário, na efetivação de percursos formativos potencialmente exitosos. Há, pois, uma crescente individualização de demandas educativas complexas e, com isso, uma responsabilização do discente pelo seu êxito ou malogro - tônica da racionalidade neoliberal, assinalada não somente por aspectos eminentemente econômicos, senão pela contínua formação de subjetividades flexíveis, adaptativas, resilientes, móveis e proativas.
Na percepção de Lemos e Macedo (2019), as políticas educacionais de órgãos multilaterais que emolduram as competências, dentre elas as socioemocionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização das Nações Unidas (ONU), notadamente por meio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como do Banco Mundial, prescrevem, para os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, a constituição de ações que buscam formar sujeitos capazes de superar conflitos de natureza econômica, ambiental e humanitária. Levando em conta relatórios da OCDE, conforme Lemos e Macedo (2019), tem-se a tese de que os aspectos emocionais tendem a se sobrepor a questões sociais. Dito de modo mais direto, é como se a mentalidade dos escolares afetasse muito mais o rendimento destes do que o contexto socioeconômico. Ao dar um espaço visível para o trabalho com as competências socioemocionais, documentos como a BNCC operam no sentido de engendrar subjetividades em sintonia com tais preceitos e, com isso, ignoram as desigualdades socioeducacionais existentes na realidade brasileira, porquanto, no escopo dessas propostas, é como se cada jovem estudante pudesse, individualmente, projetar e executar um plano de vida, a despeito das idiossincrasias de cada conjuntura familiar, social e econômica.
No Brasil, é imperioso atentar para a atuação do Instituto Ayrton Senna (IAS), organização não-governamental que atua no âmbito da educação básica, por meio da promoção de estudos e pesquisas, o assessoramento de docentes e redes de ensino e a produção de material pedagógico. Em 2015, conforme Smolka et al (2015), o IAS, em parceria com a OCDE e a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, desenvolveu uma espécie de metodologia de avaliação das competências socioemocionais de estudantes do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. O resultado desse estudo apela para um efeito de consenso em relação à necessidade de levar em conta o desenvolvimento das competências socioemocionais como indispensáveis para a melhoria do aprendizado dos escolares. Nesse sentido, seria possível aperfeiçoar, treinar e medir as personalidades a partir de dimensões específicas e, em virtude disso, trabalhá-las no coditiano da escola.
Partindo dessas elucubrações, o intuito deste texto, de maneira mais específica, consiste em analisar três coleções didáticas de Projeto de Vida do PNLD 2021, com vistas a estudar como as competências socioemocionais são abordadas em tais materiais didáticos e de que forma refletem as preocupações daquilo que chamamos de racionalidade neoliberal, tendo como norte as reflexões suscitadas inicialmente por Foucault (2008) e depois amplificadas por Dardot e Laval (2016).
Embora o Projeto de Vida não esteja demarcado explicitamente como um componente obrigatório ou mesmo eletivo no esteio do NEM e da BNCC-EM, percebe-se o seu forte protagonismo nessas reformulações curriculares. Assim, não foi modo fortuito que o PNLD, edição de 2021, organizou-se de modo a atender o Projeto de Vida, por meio de edital para escolha de coleções didáticas a serem selecionadas pelos docentes da rede pública de ensino. Nesse diapasão, diversos estados da federação têm adotado o Projeto de Vida como um componente curricular na configuração do NEM (ALVES; OLIVEIRA, 2020). Além do mais, uma busca com o termo projeto de vida combinado com ensino médio e BNCC em mecanismos de buscas do Google, no mês de novembro de 2021, gerou mais de quinhentos mil resultados, o que demonstra a efervescência dessa reflexão na atualidade.
Em termos de organização textual, convém destacar como o presente estudo encontra-se estruturado. Além desta seção introdutória, o texto comporta mais cinco seções, a saber: a primeira reflete acerca da racionalidade neoliberal e os impactos no campo educacional; a segunda busca articular conceitos desenvolvidos no tópico anterior com o advento do NEM, da BNCC e do Projeto de Vida, intentando rastrear a presença das competências socioemocionais no desenho dessa política curricular; em seguida, tem-se uma seção de cunho metodológico, na qual expomos o processo de coleta dos dados e os procedimentos de análise empreendidos; posteriormente, analisamos excertos extraídos de três coleções didáticas de Projeto de Vida, tendo como base as reflexões encetadas nos tópicos precedentes e, finalmente, a conclusão se propõe a fornecer um efeito de fechamento para as discussões arroladas neste escrito.
SOBRE A RACIONALIDADE NEOLIBERAL
No curso ministrado por Michel Foucault no Collège de France, no ano de 1979, publicado em 2008, no Brasil, com o título O nascimento da biolítica, o autor francês parte do princípio de que, para compreender a maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas concernentes à prática governamental pelos fenômenos próprios aos seres viventes, como as taxas de natalidade e de mortandade, as migrações e as raças, dentre outros, foi preciso levar em consideração a racionalidade política com a qual essa problemática concernente à população coexistiu, a saber: o liberalismo. De acordo com Foucault (2008, p. 432), o liberalismo não é concebido como uma ideologia, uma maneira da sociedade se apresentar, uma teoria, mas, sim, como “[...] um princípio e método de racionalização que obedece, e é essa e, posteriormente, à regra interna da economia máxima”.
Pensando nessa ótica, o autor destaca que, enquanto a racionalização do exercício do governo se propõe a maximinar os efeitos e reduzir os custos, a racionalidade neoliberal põe em xeque a própria razão de existência do governo, aqui compreendido como a atividade de reger as condutas dos homens. Noutros termos, o governo não pode ser um fim em si mesmo e sua maximização não deve ser um princípio regulador. Pergunta-se, pois, no esteio da governamentalidade liberal: por que precisamos de um governo? Partindo de um conceito considerado novo para os séculos XVIII e XIX, segundo Foucault (2008), que é a ideia de sociedade, se pode indagar a razão pela qual o governo torna-se necessário, levando em conta os interesses da sociedade. O autor nos lembra que a racionalidade liberal matiza-se sob o governo de interesses e não mais acerca de coisas e/ou territórios, conforme preconizava a razão de Estado do século XVI.
Ao postular essa genealogia do liberalismo, Foucault (2008) aporta no século XX e expõe dois desdobramentos dessa racionalidade que ele considera sintomáticos, quais sejam: o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano. Embora ambos partilhem de críticas semelhantes em relação às políticas governamentais empreendidas no decurso da Segunda Guerra Mundial, consideradas excessivas do ponto de vista do envolvimento do Estado, o neoliberalismo americano apresenta certas singularidades. Também denominado de neoliberalismo da Escola de Chicago, essa racionalidade ganhou proporções globais a partir dos anos de 1970 e nos parece mais apropriada para pensar as inflexões advindas desse modus operandi no contexto do Brasil e nas políticas educacionais hoje em voga.
Uma condição fulcral para analisar a conjuntura em que irrompe o neoliberalismo nos Estados Unidos tem a ver, consoante Foucault (2008), certamente com a crítica realizada ao New Deal ao keynesianismo, às economias planificadas e aos programas econômicos e sociais engendrados no período do pós-guerra, mas não apenas por isso. Para Foucault (2008), ao recordar a história da independência daquele país, já era possível enxergar resquícios de um modo liberal de governar que tendia a fundar o Estado; além disso, durante mais de dois séculos, o liberalismo pautou os debates políticos americanos e, por fim, o fato de que, no século XX, as políticas intervencionistas adotadas no território estadunidense terem gerado uma espécie de elemento ameaçador tanto para a direita, como para a esquerda. Assim, à direita, subsistia o espectro de um Estado socializante; à esquerda, assustava o crescimento vertiginoso de um Estado bélico e imperialista.
Disso deriva a constatação foucaultiana segundo a qual o neoliberalismo americano não se apresenta tanto como “[...] uma alternativa política, mas digamos que é uma espécie de reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda” (FOUCAULT, 2008, p. 301). Talvez isso explique por que essa racionalidade acabou afetando setores da sociedade que não são a priori regidos por fatores econômicos, como, no caso em foco, a questão da educação. Conforme discutem Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo ultrapassa a dimensão política e econômica, na medida em que incide sobre a constituição das subjetividades contemporâneas, interferindo sobremaneira nos modos como o sujeito se relaciona consigo mesmo e com o outro pela ótica que gere o mercado financeiro e o consumo.
Um dos principais aspectos que delineiam essa tese de que o neoliberalismo perpassa os mais diferentes setores sociais, seguindo a leitura de Foucault (2008), diz respeito à teoria do capital humano. Nas palavras do pensador francês: “[...] essa teoria representa dois processos, um que poderíamos chamar de incursão da análise econômica num campo até então inexplorado” (FOUCAULT, 2008, p. 302), prossegue o autor, “[...] e, segundo, a partir dessa incursão, a possibilidade de reinterpretar, em termos econômicos e em termos estritamente econômicos todo um campo que até então podia ser considerado, e era de fato considerado, não econômico” (FOUCAULT, 2008, p. 302). Na elaboração dessa perspectiva do capital humano, idealizada por Theodore Shultz e Gary Becker, entram em jogo as críticas neoliberais em relação ao modo como a economia clássica negligenciou o trabalho, o qual fora reduzido apenas ao fator tempo, ou seja, o trabalho era situado somente em relação à variável de quantidade temporal, representada, por exemplo, pelas horas e jornadas de trabalho. Há, segundo Foucault (2008), outra crítica endereçada à concepção de trabalho presente nas reflexões de Marx, para quem o trabalho está amputado de sua realidade humana frente à mecânica econômica do capitalismo. O trabalho aparece, então, de uma forma abstrata e é preciso reelaborá-lo no interior da análise econômica.
Para tanto, os neoliberais vão enfocar o viés do sujeito trabalhador, mas não como um objeto ou uma relação de oferta e procura sob a forma de força de trabalho, senão como um sujeito econômico ativo. Noutros termos, considerando que as pessoas trabalham para serem compensadas com um salário, o qual é compreendido como uma renda, do ponto de vista do trabalhador, o que é vendido não é a sua força de trabalho, mas a sua renda. Se uma renda consiste no produto ou num rendimento de um capital, isso significa dizer que o capital do salário representa o “[...] o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário” (FOUCAULT, 2008, p. 308). Ou seja, trata-se do capital humano, também conceituado por Foucault (2008) como uma espécie de competência, de aptidão responsável por gerar fluxos de renda. Como toda forma de capital, é preciso investir para render. Como investir nesse capital humano, então? Para Foucault (2008), é possível aperfeiçoá-lo desde a primeira infância, a fim de que, no futuro seja possível gerar rendimentos significativos. O autor ressalta que diversas variáveis entram em cena na composição do capital humano da criança, desde o tempo em que os pais dedicam para cuidar dos filhos, passando pelo nível cultural dos pais e os cuidados médicos até os investimentos de ordem educacional, empreendidos não apenas nos limites da instituição escolar, mas tendo este como um elemento central.
Sobre isso, Resende (2021) pondera que vivemos numa sociedade do conhecimento, a qual implica uma formação constante e para toda a vida e isso está intrincado com a lógica empresarial, ao preconizar o lucro, a oferta, a venda, o crédito, o débito e a procura do regime mercadológico como um lugar de verdade. Na voz do autor, “[...] a educação escolar, nesse modelo social, configura-se numa educação empresarial que consubstancia práticas e produz indivíduos que se correlacionam com o modo de vida empresarial” (RESENDE, 2021, p. 197). Dito de modo mais específico, podemos ponderar que o sujeito, com vistas a desenvolver o seu capital humano, enxerga a educação como uma instância propulsora no processo de investimento de si, com vistas a criar condições para competir com os demais numa racionalidade responsável por preconizar a concorrência em todas as dimensões da vida social. Dardot e Laval (2016) lembram-nos que o neoliberalismo impõe a cada um de nós uma normal segundo a qual é preciso se adaptar a um universo de competição generalizada, o qual se ordena pelo governo do mercado que, por sua dinâmica, mostra-se instável, mutável e incerto e, em razão disso, convém engendrar subjetividades em sintonia com essa racionalidade. Tem-se, na esteira de Foucault (2008), a constituição do empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor e sua fonte de renda. Conforme frisa Ciervo (2019, p. 61), podemos compreender que “[...] são indivíduos-empresa que mobilizam todas as dimensões de sua subjetividade a serviço do capital, inclusive e sobretudo, as emoções”.
Assim, Foucault (2008) reitera que o empresário de si mesmo denota uma nova faceta para o homo eoconomicus da economia clássica que não mais se identifica como o homem da troca, mas, sim, como o homem do consumo. Esse homem do consumo, de acordo com Foucault (2008), na medida em que consome, também produz a sua própria satisfação. Segundo Foucault (2008, p. 311), “[...] Deve-se considerar o consumo como uma atividade empresarial pela qual o indivíduo, a partir de certo capital de que dispõe, vai produzir uma coisa que vai ser sua própria satisfação”. Como corolário dessa nova configuração, há a emergência de subjetividades individualistas, centradas no investimento em si mesmo, deslocadas de movimentos coletivos robustos e, em certa medida, despolitizadas em relação aos regimes que as conduzem, porquanto passivas e integradas ao modus operandi empresarial.
Laval (2004) defende que a escola nos moldes neoliberais está a serviço das exigências do mercado e a égide da pedagogia das competências visa a cumprir tal função, pois recorta, no âmbito dos conteúdos escolares, aqueles que melhor se afinam aos interesses do mercado, marcado pelo pragmatismo e pela rápida aplicabilidade de determinados saberes na resolução de questões práticas. Podemos constatar posicionamento semelhante em Resende (2018), quando defende que o papel da escola se restringe a prover condições aos jovens para o ingresso na sociedade concorrencial cuja empregabilidade está condicionada a uma ideia de formação contínua, como se o emprego dependesse tão somente da capacitação individual. Ou seja, há a construção de vontades de verdade para as quais o êxito ou o insucesso na inserção no mundo do trabalho estão conectados com os esforços de cada um na consecução do seu capital humano emoldurado sob o prisma da formação permanente.
Além dessas implicações da racionalidade neoliberal na esfera da educação, Gadelha e Mota (2016) compilam uma série de outros impactos, sintetizados da seguinte maneira: a) a generalização da prática do ranking nas situações de avaliações educacionais, profissionais e nos processos seletivos desemboca na construção de uma cultura competitiva e, no limite, meritocrática e excludente, pois não há espaço para todos; b) o arrefecimento de pedagogias empreendedoras, ao centralizarem o domínio de competências e de habilidades requeridas sob os signos da eficácia, do alto desempenho, da eficiência e da flexibilidade; c) a disseminação de práticas permanentes de avaliação, de aferição de resultados, do alcance de metas, numa clara transposição dos modos gerenciais da iniciativa privada para a gestão pública escolar; d) a desterritorialização do par educação-formação que sai do ambiente escolar para formações ancoradas na lógica empresarial e capitalista; e) a entronização dos anseios empresariais na elaboração das políticas públicas, a serem considerados como inovadores, atrativos e destituídos de um componente ideológico e/ou político, por meio de associações sem fins lucrativos, mas aliadas a grandes conglomerados econômicos, as chamadas think tanks; f) como consequência do item anterior, cada vez mais organismos multilaterais internacionais têm promovido programas de ensino, de formação docente pautados na lógica neoliberal, para que, em nível global, a educação se vincule ao capitalismo financeiro e ao mercado. É a partir dessa conjunção de fatores que podemos pensar na emergência das condições de possibilidade para a irrupção das competências socioemocionais nas políticas de currículo, conforme veremos na seção a seguir.
SOBRE AS COMPETÊNCIAS SOCIOEMOCIONAIS EM TEMPOS DE NEM, BNCC-EM E PROJETO DE VIDA
Pensar na aparição das competências socioemocionais nas recentes políticas curriculares implica ponderar sobre a concepção assumida a respeito de currículo. Para isso, ancoramo-nos na perspectiva de Sacristán (2000), para quem a prática a que se refere o currículo constitui uma realidade prévia muito bem assentada e formada por diversos comportamentos didáticos, políticos, administrativos, econômicos, dentre outros, os quais englobam esquemas de racionalidades, crenças, valores e relações de poder. Nesse sentido, o currículo, longe de ser neutro ou desinteressado, é “[...] a expressão do equilíbrio de forças que gravitam sobre o sistema educativo, num dado momento, enquanto através deles se realizam os fins da educação do ensino escolarizado” (SACRISTÁN, 2000, p. 17). Esse autor espanhol ainda sublinha que o currículo é uma opção historicamente configurada que se engendra num interior de uma trama cultural, política e social e, por isso, carrega as tensões, os interesses e as problemáticas de uma dada conjuntura política. Em Sacristán (2010), lemos que, ao se ordenar o currículo, regula-se o que se deve ensinar, o tempo de aprendizagem e do ensino, separando aquilo que deve permanecer e o que precisa ser excluído. Sob esse ângulo, analisar a adoção das competências socioemocionais pelas políticas de currículo supõe mapear como se pavimentou um terreno favorável para essa inserção e não outra em seu lugar.
Magalhães (2021), a partir da análise da noção de competências em documentos orientadores da educação brasileira, especialmente as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (resolução 06/2012 do CNE/CEB) e as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (resolução 03/2018 do CNE/CEB), avalia que há um processo contínuo de estabelecimento de competências pessoais e a ênfase no desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Para Magalhães (2021), desde 2011, observa-se um efeito de verdade em torno da noção de competências, por meio de políticas globais empreendidas pela OCDE e, no caso do Brasil, em parceria com IAS, por meio de parcerias público-privadas, a partir da realização de projetos, seminários e relatórios.
Um marco desse direcionamento foi a realização, em 2011, do Seminário Educação para o Século 21, promovido pelo IAS, com o apoio da Secretaria de Assuntos Estratégios da Presidência da República (SAE) e da UNESCO. Nesse evento, pontua Magalhães (2021), as competências socioemocionais emergem como uma inovação curricular através da qual é possível garantir o êxito escolar dos discentes por meio de aperfeiçoamento de competências não cognitivas, como a persistência, a resiliência, a capacidade de atenção e concentração, a capacidade de adiar recompensas, a autoestima, a sociabilidade e outros atributos que se relacionam com comportamentos, emoções e atitudes. A defesa desse seminário, considerando a presença do economista ganhador do prêmio Nobel de 2000, James Heckman, era de que as competências emocionais fossem inseridas no currículo escolar. Nessa ótica, o IAS se apresenta como o porta-voz da promoção de uma reformulação curricular que pudesse implementar tais competências no esteio da educação básica.
Para tanto, por meio de uma parceria do IAS com a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, firmada em 2013, tem-se início o incremento de um projeto denominado Solução Educacional, cujo propósito consistiu em possibilitar um modelo de educação integral que contemplasse as habilidades cognitivas com as competências socioemocionais. De acordo com Chaves, Motta e Gawryszewski (2020), tal programa apresenta-se como ideologicamente neutro, técnico e supostamente inovador e apolítico, com o intento de inserir novas tecnologias e metodologias, especialmente para jovens de camadas pobres da sociedade, na promessa de garantir empregabilidade num contexto de crise aguda do capitalismo. Baseado em proposta da OCDE e em avaliações de larga escala como o PISA, tal projeto se matizou pela necessidade de aglutinar as competências requeridas para solucionar problemas matemáticos, habilidades de leitura e de ciências, com a possibilidade de mensurar competências de outra ordem.
Partindo dos dados produzidos pelo Solução Educacional e tentando expandir o raio de alcance da proposta, o IAS, em 2014, realiza o Fórum Internacional de Políticas Públicas “Educar para as competências no Século XXI”. O evento contou com a participação de ministros e representantes de pelo menos quatorze países membros da OCDE e pesquisadores internacionais, como James Heckman. Os encaminhamentos foram compilados num relatório-síntese, dentre os quais podemos destacar, conforme Magalhães (2021), o reconhecimento de que as competências socioemocionais constituem um valioso instrumento para a melhoria de índices econômicos, sociais e educacionais, bem como pode reduzir as desigualdades sociais. Ademais, uma vez que se trata de competências maleáveis, é possível explorá-las através de um trabalho pedagógico planejado para este fim e também se pode medi-las. Conforme se observa no site do IAS, na aba concernente às competências socioemocionais “[...] o caminho é oferecer uma educação integral para todos, que é aquela voltada para o desenvolvimento pleno dos estudantes, nos âmbitos cognitivo, socioemocional, híbrido e cultural, dentre outros preparando-os para fazerem escolhas com base no seu projeto de vida” (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2021b, s.p, grifos no original).
Para essa organização não-governamental, a abordagem das competências socioemocionais torna-se crucial na consecução de uma formação integral para os alunos. De modo parafrástico, esse discurso presente no IAS materializa-se no texto da Lei nº 13.415/2017 como na BNCC, tendo em vista, a partir das reflexões de Macedo (2019), que a atuação do terceiro setor no processo de formulação e implantação desses documentos foi flagrante. Segundo a autora, “[...] como ocorreu ao longo de todo o processo, a articulação preferencial desses sujeitos segue sendo com as fundações think thanks ligadas à iniciativa privada, ou ao que chamam de terceiro setor” (MACEDO, 2019, p. 45). Nessa lógica, as competências gerais da BNCC para a educação básica estão relacionadas, de modo explícito ou sub-reptício, com as competências socioemocionais, pois o debate implementado na construção dessas reformas foi afetado por interesses oriundos de políticas globais. Vejamos apenas algumas delas e modo como o IAS se posiciona acerca das mesmas. Por exemplo, na competência nº 6 da Base, lemos: “Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhes possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade” (BRASIL, 2018, p. 11). Segundo um material elaborado pelo IAS e disponibilizado no site, essa competência vincula-se com a mobilização de competências socioemocionais como a determinação, a organização, o foco, a persistência, a responsabilidade e a assertividade (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2021b).
Outra competência geral da BNCC a ser mencionada e que, a nosso ver, mimetiza os anseios das competências socioemocionais refere-se a de número 10, a saber: “Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade e resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (BRASIL, 2018, p. 12). Segundo o IAS, a correspondência com as competências socioemocionais ocorre porque se demanda o respeito, a empatia, a confiança, a iniciativa social, responsabilidade e a tolerância ao stress, pois é preciso resiliência emocional para se engajar em tomadas de decisões conforme os princípios arrolados na Base.
Importante ainda considerar a crítica efetuada por Chaves, Motta e Gawryszewski (2020) sobre a eleição de determinadas competências emocionais para serem abordadas no contexto escolar. Na percepção dos autores, não há uma problematização sobre o efeito de consenso que repousa sobre a escolha de uma dada competência e não outra. Como exemplo, eles citam a questão da resiliência e irão interrogar: por que a necessidade de formar subjetividades resilientes frente ao cenário de constantes crises econômicas? Por que não se pensa em educar os jovens para adotarem uma postura de questionamento frente às verdades do neoliberalismo? Ora, de acordo com Chaves, Motta e Gawryszewski (2020), essas indagações deixam patente que a predomínio de uma dada competência representa um jogo político por meio do qual se emoldura certa concepção de educação e um projeto formativo calcado em habilidades intrincadas ao funcionamento do mercado. Nas palavras dos autores: “[...] perpassa o chão da escola [...] a formação de um tipo específico de ser humano, amansado, adaptado às instabilidades do mercado, capaz de dar respostas positivas em meio a situações adversas e acobertando os elementos estruturais que dão origem a esses problemas” (CHAVES, MOTTA; GAWRYSZEWSKI, 2020, p. 18).
Não é de forma despretensiosa que as habilidades socioemocionais aparecem com mais evidência nos chamados projetos de vida, pois estes são concebidos como importantes elementos para a formação dos alunos no interior das reformulações curriculares provocadas pelo NEM. Assim, no inciso 7 do art. 3º da Lei do NEM, observamos: “Os currículos do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção do seu projeto de vida e sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (BRASIL, 2017, s. p.). Notamos, na formulação linguística do texto da lei, semelhanças latentes com o excerto retirado do IAS antes citado aqui, na medida em que a formação integral contempla as competências socioemocionais via projeto de vida. Na BNNC-EM, a definição de competência engloba o aspecto emocional, conforme se registra: “[...] competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 10). Ora conceptualizada como competência, ora como habilidade, o fato é que os liames socioemocionais integram essa política de currículo e impõem demandas para a elaboração de materiais didáticos, a formação de professores e o trabalho em sala de aula.
SOBRE A METODOLOGIA
Este trabalho caracteriza-se como sendo um estudo descritivo-interpretativo, pois importa descrever e interpretar o tratamento conferido às competências socioemocionais em materiais didáticos de Projeto de Vida. A técnica de pesquisa é de cunho documental que, na esteira de Medeiros (2008), examina materiais que ainda não passaram por um crivo analítico. Além disso, trata-se de uma abordagem eminentemente qualitativa, pelo fato de observamos o fenômeno das competências socioemocionais, sem mobilizarmos dados numéricos, estatísticos e outras variáveis a serem controladas. De acordo com Moreira (2011, p. 49), na perspectiva qualitativa em contexto de ensino, “[...] o pesquisador pergunta-se cotidianamente que significados têm as ações e os eventos de ensino, avaliação e currículo para os indivíduos que deles participam”.
O corpus compreende as seguintes coleções didáticas de Projeto de Vida, as quais foram aprovadas pelo PNLD 2021, a saber: a) Você no mundo, de autoria de Lais Rosa, Sandro Miner Valentini Junior e Vanessa Bottasso, publicada pela editora Moderna; b) (Des)senvolver e (trans)formar: projeto de vida, de Itale Cericato, publicada pela editora Ática; c) Pensar, sentir e agir, escrita por Leo Fraiman, publicada pela editora FTD. Os critérios adotados para a seleção desse corpus foram os seguintes: a) que as coleções aprovadas tivessem sido aprovadas no PNLD; b) que abordassem, em uma unidade, tópico e/ou subseção, as competências socioemocionais; c) que estivessem disponíveis para a realização de download.
O processo de análise dos dados seguiu o seguinte percurso: a) acessamos o Guia Digital Projeto de Vida 2021e consultamos as coleções adotadas; b) buscamos, junto aos site das editoras, a versão das coleções no formato PDF (Portable Document Formate), para que pudéssemos analisar com mais acuidade o material; c) coletamos, ao todo, um total de dez coleções nesses sites; d) fizemos uma leitura atenta do sumário de todas elas; d) identificamos um total de sete coleções que apresentam, de algum modo, a ênfase nas competências socioemocionais; d) fizemos uma segunda triagem e, para o estudo nos limites deste texto, selecionamos três coleções; e) fizemos uma seleção de fragmentos dessas coleções, considerando a abordagem das referidas competências, para serem analisadas na seção a seguir.
SOBRE A ANÁLISE DOS DADOS
Dividimos este tópico em três partes. Em cada uma delas, tem-se a análise de uma das coleções didáticas foco deste estudo. A ordem segue a que foi apresentada na seção da metodologia. Inicialmente, fazemos uma breve descrição da estrutura das coleções e, em seguida, analisamos alguns fragmentos que, a nosso ver, sintetizam o modo como as competências socioemocionais estão presentes em tais materiais didáticos.
Análise da coleção didática Você no Mundo
A coleção didática Você no Mundo encontra-se estruturada em volume único. Contém, além de uma unidade introdutória, três capítulos denominados Módulos. Em cada um deles, há de duas a três subseções intituladas de Estações. Estas, por sua vez, dividem-se em atividades numeradas de um a seis. Observa-se um controle, por parte dos posicionamentos desse material didático, em determinar o tempo em que cada atividade deve durar, porque aparece uma indicação entre parênteses do tempo indicado após o título da atividade. As competências socioemocionais aparecem, de maneira mais visível, na terceira estação do módulo 1, cujo título é O Autoconhecimento Responsável. Como sugere o título, esse tópico da coleção se propõe a possibilitar aos alunos estratégias que permitam executar certas tarefas sobre si mesmo, com o intuito de enxergar certas fragilidades e pontos fortes, de modo a planejarem os seus projetos de vida com base nesse autodiagnóstico. Nesse enfoque, o aspecto emocional torna-se fundamental para ser explorado. No início da seção, há uma reflexão sobre as Big Five, um conjunto de cinco fatores que, em testes padronizados, representam certos traços de personalidade, como a amabilidade, a conscienciosidade, a abertura a novas experiências e a estabilidade emocional (CIERVO, 2019). Vale lembrar, a partir de Ciervo (2019), que esse modelo foi empregado pelo IAS no projeto piloto realizado nas escolas do Rio de Janeiro, aludido anteriormente neste texto, e também tem sido mobilizado por empresas no processo de recrutamento de funcionários.
A coleção didática em estudo, após expor as Big Five e refletir brevemente sobre como cada uma dessas personalidades pode interferir na realização de atividades coletivas, propõe algumas indagações para os discentes, a saber: “1. Em seu cotidiano, considerando suas atividades na escola, em casa e nos outros lugares que frequenta, quais habilidades se destacam? 2. Em seu dia a dia, de que forma as características de sua personalidade contribuem para as atividades individuais e coletivas” (ROSA; VALENTINI JUNIOR, BOTTASSO, 2020, p. 38). Vemos, na primeira pergunta, que há uma preocupação, por parte do material didático, de levar o aluno a prestar atenção a si mesmo e, com isso, efetivar uma espécie de observação contínua sobre os tipos de personalidade que mais são evidentes em interações sociais realizadas em diversos locais, como na escola, em casa e em outros espaços. Isso impõe ao aluno um exame contínuo sobre o controle de suas emoções, dos modos de ser e de estar no mundo. Na segunda indagação, a coleção busca conduzir o discente a reconhecer como as especificidades de suas características pessoais impactam na execução de atividades individuais e coletivas. De igual modo, podemos notar a defesa de um labor sobre si, com vistas a se autogovernar pela via do autoconhecimento. Trata-se, pois, de uma estratégia voltada a controlar as subjetividades, com o fito de torná-las produtivas, adaptativas e maleáveis. Quer dizer, subsiste sempre uma “aplicação” dos traços de personalidade em situações específicas. No limite, tais habilidades podem se constituir em variáveis controladas, manipuláveis e mensuráveis, podendo ser observadas, avaliadas e desenvolvidas na constituição do homus oeconomicus.
Essa responsabilização do sujeito pelo modo como se relaciona consigo mesmo e com os outros no intuito de tornar-se mais produtivo no esteio de uma lógica de lucro-benefício e de investimento, em diversos espaços sociais, está sensivelmente atrelada à racionalidade neoliberal, porque, conforme discutem Dardot e Laval (2016), todas as relações humanas podem ser afetadas pela dimensão empresarial. A coleção em estudo, explicita como, no contexto de sala de aula, podem-se explorar os traços de personalidade. Por meio de uma atividade denominada Vamos observar juntos?, argumenta-se a necessidade de fazer um exercício de observação: “[...] é importante estarmos atentos às habilidades de nossos colegas. Quando realizamos essa observação, podemos pensar em formas de associar as várias habilidades e personalidades presentes em um grupo para obter melhores resultados em nossos projetos” (ROSA et al, 2020, p. 38). Mais uma vez, percebemos o foco numa relação assinalada pelo par investimento-resultado e isso se alia aos ditames da razão neoliberal. Segundo a coleção didática, é imperioso analisar e investir, em grupo, as habilidades de cada um, com o propósito de gerar um resultado produtivo.
Ainda nessa atividade, a coleção didática indaga: “Pensando em suas experiências nos processos de aprendizagem no ambiente escolar, como as características individuais e coletivas percebidas contribuem para o resultado obtido? Quais habilidades podem ser desenvolvidas buscando melhorar os processos de aprendizagem? (ROSA et al, 2020, p. 39). Entendemos, a partir desse fragmento, que a atividade objetiva levar os alunos a desenvolverem habilidades de cunho socioemocional, a partir do reconhecimento de suas próprias especificidades e de seus colegas. Nota-se certo pragmatismo na constituição dessas habilidades, pois o intuito é aperfeiçoar a aprendizagem escolar e, como consequência, implementar o capital humano de cada sujeito, preparando-o para enfrentar situações no contexto extraescolar. Nessa ótica, os discentes são inscritos numa teia, compreendida por Dardot e Laval (2016), como a pedagogia do capital humano, na qual cada indivíduo deve ser detentor de um certo capital, por meio da instauração de dispositivos destinados a ativar os sujeitos, levando-os a cuidarem de si mesmos, educar-se e encontrar um emprego com base naquilo que foi investido sobre cada subjetividade.
Dando prosseguimento, a coleção aborda a importância de exercer o autoconhecimento. Para tanto, justifica: “[...] ao conhecermos nossas próprias emoções, ganhamos também estabilidade emocional e assertividade ao nos comunicarmos, o que promove a tomada de decisões mais saudáveis e conscientes, além de aprendermos a lidar com as emoções do outro, com quem passamos a construir relações mais abertas e tolerantes (ROSA et al, 2020, p. 60). Chama-nos a atenção que, ao propugnar o chamado autoconhecimento, o material didático estudado alude à necessidade de os alunos serem emocionalmente estáveis e, com isso, serem assertivos na comunicação e profícuos na tomada de decisões. Novamente podemos entrever como a dinâmica emocional é capturada por um viés segundo o qual é necessário controlar o que se sente, com vistas a se adequar a uma conjuntura assinalada pelo pragmatismo, pela objetividade e pela adaptabilidade, em sintonia com a cartilha neoliberal. De acordo com Lopes (2019, p. 69), o enfoque do projeto de vida nos moldes das reformulações curriculares contemporâneas “[...] pode não apenas estar tentando antecipar decisões, submeter experiências imprevistas a um dado futuro que não faz obrigatoriamente sentido para as subjetividades juvenis”, mas, ainda segundo a autora, “[...] está submetido aos anseios de grupos sociais que supõem saber dizer como o futuro dos jovens deve (e pode) ser”.
O domínio das competências socioemocionais torna-se requerido, porque, conforme a coleção didática: “[...] ser capaz de reconhecer, expressar e regular é uma habilidade importante para construir relações mais saudáveis não só com os outros, mas consigo mesmo” (ROSA et al, 2020, p. 60). Diante do dito, é imperioso, portanto, que o jovem efetue uma série de operações sobre si mesmo, com o fito de detectar, de saber expressar e controlar as particularidades emocionais, como se estas fossem essencialmente manejáveis e constitutivamente regulamentáveis. Lemos, em seguida, que “por um lado estamos inconscientemente guiados pelas emoções, ou por outro, experimentando uma atitude de autocontrole diante delas” (ROSA et al, 2020, p. 60). Segundo a coleção, essa segunda postura é considerada ideal para a configuração de um projeto de vida bem delineado, na medida em que o jovem que sabe administrar a si mesmo, sob a imagem e semelhança do homus eoconomicus, terá mais êxito em sua jornada no mundo do trabalho e dos estudos.
Em resumo, os fragmentos aqui expressos da coleção didática Você no Mundo demonstram a premência em conduzir o projeto de vida dos jovens por meio de uma contínua racionalização das emoções, concebida como uma espécie de investimento que deve ser feito pelo jovem, com vistas a obter ganhos vindouros. A capitalização daquilo que é mais contingente de nossas existências, as emoções, exprime como a grade de inteligibilidade neoliberal introjetou os diversos meandros da vida social e, consoante Foucault (2008), alcançou territórios antes não entrevistos pela ótica econômica.
Análise da coleção didática (Des)senvolver e (Trans)formar: Projeto de Vida
A coleção didática (Des)envolver e (Trans)formar: Projeto de Vida, em volume único, estrutura-se em três módulos assim denominados: Eu, O outro e Nós. Em cada módulo, constam três capítulos. O primeiro módulo que nos interessa mais de perto tem como propósito suscitar reflexões sobre a identidade juvenil, o autoconhecimento e as vivências estudantis. Geralmente, os capítulos são introduzidos pela leitura e discussão de textos diversos, vinculados a diversas semioses e esferas, como a literatura, a fotografia a pintura, o jornalismo, dentre outras.
Foi possível flagrar a presença das competências socioemocionais, quando esse material didático propõe, no segundo capítulo do primeiro modulo, algumas ponderações sobre a resiliência. Situemos melhor como isso aparece. Antes da exposição de um relato de uma sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, retirado da obra SobreViver: instituto de vendedor - os 12 pontos da resiliência e a personalidade dos sobreviventes, da psicoterapeuta Claudia Riecken, a coleção didática define: “Usado originalmente na Física, o termo designa a propriedade dos corpos de voltar à forma original após sofrido deformação ou choque” (CERICATO, 2020, p. 42), continua conceituando: “Na Psicologia, a resiliência é a capacidade de lidar com problemas, vencer obstáculos e não ceder a pressão, mesmo em situações de grande tensão” (CERICATO, 2020, p. 42). Como pontuamos anteriormente, a resiliência consiste numa das competências mobilizadas na constituição dos projetos encabeçados pelo ISA (2021) e não é por acaso que a BNCC a ela se reporta. No caso da descrição presente na coleção, ser resiliente significa manter-se firme, a despeito das adversidades, e permanecer obstinado frente a conjunturas desafiadoras e inóspitas. Podemos associar esse interesse em produzir jovens resilientes como uma das exigências da racionalidade neoliberal, posto que é requerida a habilidade individual de persistir no interior de um regime que reiteradamente produz a exclusão e a desigualdade, não garantindo a oportunidade para todos, o que gera sofrimento, desamparo e angústia. Mas essa mesma racionalidade neoliberal impele o sujeito a enxergar o “lado bom” de situações-limite e, como empresário de si mesmo, investir nas benesses advindas de tal quadro. Nas palavras de Sant’Anna (2019, p. 165), “[...] até mesmo a vida mais precária tende a ser interpretada como um modo de descobrir novas chances de autoconhecimento e de autossuperação”.
O fato de a coleção aludir a um relato de uma sobrevivente do Holocausto parece-nos sintomático no sentido de mostrar que, se numa experiência tão desastrosa, foi possível resistir, é possível (e preciso) encarar situações menos drástica do cotidiano. Para Hyssen (2014), vivemos numa cultura memorial a qual se caracteriza por uma massificação de acontecimentos pretéritos que são rememorados à exaustão. O caso do Holocausto, de acordo com o autor, inscreve-se nesses usos e abusos do passado e pode servir a propósitos diversos. Na coleção em estudo, a referência a esse fato histórico, por meio do testemunho de uma sobrevivente, serve a finalidades que passam ao largo das franjas históricas de tal acontecimento, pois serve a interesses outros, dado que o texto funciona como uma estratégia desencadeadora de posturas perseverantes no cenário da atualidade, o que, em certa medida, deslegitima a dor do outro, romantizando-a. Após a exposição do texto, a coleção traz alguns questionamentos, dentre os quais destaquemos os seguintes: “2. Além da resiliência, que características você observa no comportamento de pessoas que não se deixam vencer pelas dificuldades?” (CERICATO, 2020, p. 43); “3. Você já precisou ser resiliente em alguma situação de sua vida? Registre no caderno que situação foi essa e que atitudes você tomou para enfrentá-la.” (CERICATO, 2020, p. 43); “4. Você acredita que a resiliência seja uma característica importante a ser cultivada no comportamento? E na construção do projeto de vida? Justifique e compartilhe sua opinião com os colegas” (CERICATO, 2020, p. 43).
Tais questões parecem induzir o aluno a uma resposta cujo teor deve ser favorável ao desenvolvimento de comportamentos resilientes, em função dos seguintes indícios: a) na questão 2, é requerido que se apontem outros traços de pessoas resilientes. Ora, se o texto com o relato da sobrevivente do Holocausto foi empregado no sentido de mostrar que a resiliência é concebida como um valor a ser reconhecido, espera-se que o discente sinalize que o sujeito resiliente também mostra-se flexível, adaptativo e curioso, características celebradas na ótica neoliberal; na questão 3, o aluno é conduzido a rememorar uma situação na qual ele foi instado a mobilizar uma postura resiliente e isso constitui uma estratégia sutil para levar esse aluno a se identificar com as atitudes resilientes; na questão 4, a chave de leitura para uma possível resposta está marcada no elemento qualificador “importante”, usado para descrever a resiliência, porque diante de todos os argumentos levantados, a coleção propõe ao jovem que adote comportamentos resilientes e os levem em consideração na construção de seu projeto de vida.
Ainda na coleção em análise, outro aspecto a ser enfocado diz respeito à abordagem das competências socioemocionais contida na seção Retomada, na qual a coleção faz um apanhado dos principais conceitos discutidos no decorrer do capítulo e, no caso em foco, solicita ao aluno que realize uma autoavaliação. Como o capítulo enfocou prioritariamente a problemática das emoções, é digno de nota ponderar sobre o modo por meio do qual essa instância tão subjetiva pode passar pelo crivo da avaliação. Para isso, pensamos com Haroche (2011, p. 661), para quem nas sociedades contemporâneas neoliberais engendrou-se um clima de desconfiança que leva a uma avaliação contínua na qual “[...] todos os organismos quanto os indivíduos devem prestar contas, com precisão, não somente daquilo que fizeram, mas do que estão fazendo no momento presente e também do que pensam fazer”. Sob essa perspectiva, a coleção didática escrutinada organiza a autoavaliação, disposta num quadro, considerando as seguintes métricas: DT (desenvolvi totalmente), DP (desenvolvi parcialmente), DPD (desenvolvi parcialmente e com dificuldade) e ND (não desenvolvi). Abaixo citamos algumas das ações a serem avaliadas, conforme o material didático em estudo.
Vivência 1: trabalhei a expressão dos sentimentos.
Texto e contexto 1: com base no texto, refleti e compreendi melhor as emoções e sentimentos humanos.
Vivência 2: aperfeiçoei meu autoconhecimento.
Texto e contexto 2: refleti sobre a importância da resiliência e compreendi que o comportamento resiliente contribui para enfrentar as adversidades da vida.
Integrando saberes: identifiquei comportamentos, emoções e sentimentos e aprendi a lidar com eles; aprimorei as relações intra e interpessoais.
Vivência síntese: identifiquei, reconheci e expressei minhas emoções e sentimentos; aprendi a lidar com as emoções e sentimentos adequadamente e ampliei meu autoconhecimento. (CERICATO, 2020, p. 48).
O instrumento da autoavaliação, ao mesmo tempo em que busca aferir como o aluno identifica o nível de compreensão do conteúdo trabalhado, leva o discente a se autoexaminar e identificar que pontos avalia ser passíveis de aperfeiçoamento. Como no caso em tela, não se trata de uma temática indiferente à subjetividade do discente, essa avaliação feita de si mesmo também visa a demonstrar a forma por meio da qual o aluno praticou aquilo que aprendeu no seu cotidiano. Em suma, essa atividade tem como propósito nuclear incitar o jovem a delinear as suas competências socioemocionais. Vejamos que, ao recuperar as seções trabalhadas no decurso do capítulo, o material didático estimula o autoaprendizado na lida com as emoções, o reconhecimento da resiliência como uma particularidade relevante, o aprendizado dos sentimentos e o exercício do autoconhecimento.
Agindo assim, busca-se produzir sujeitos que sejam capazes de mobilizar habilidades responsáveis por mensurar a relação com as emoções. Esse cálculo das emoções está inteiramente coberto pelo manto neoliberal. Considerando a tônica do empresário de si mesmo, conforme tratado por Foucault (2008), torna-se desejável engendrar processos a partir dos quais seja possível administrar a si mesmo, tal como se faz numa empresa, pressupondo, portanto, o progressivo controle dos sentimentos e da dinâmica emocional. Retomando Haroche (2011), concebemos a avaliação como um mecanismo de biorregulação que tende a gerar a comparação, engendrando a concorrência e os ranqueamentos constantes.
Isso fica em relevo quando a coleção estipula a escala, por assim dizer, a regular as emoções do sujeito na feitura de sua autoavaliação e há uma gradação que parte de um desenvolvimento total para a inexistência desse desenvolvimento no tocante à questão das emoções, supondo, assim, o intuito de fazer com que o aluno seja levado a prestar atenção a si mesmo, a se decifrar, buscando melhorar e aperfeiçoar a identificação, a expressão e o controle das emoções. De acordo com Lemos e Macedo (2019, p. 66), as políticas públicas das quais o material didático de Projeto de Vida faz parte buscam “[...] prosperar competência para disciplinar o próprio comportamento [...]; competência para definir onde se quer chegar e, por fim, competência para crer a tal ponto no futuro promissor de modo que a simples crença se constitua como valor-ação”.
Resumidamente, na coleção (Des)envolver e (Trans)formar, as competências socioemocionais subjazem a uma exploração acerca da resiliência como um valor a ser perseguido e a uma proposta de autoavaliação cujo objetivo consiste em aferir a relação do jovem com as emoções, na consecução do seu projeto de vida. Nos recortes examinados, flagramos o vínculo estreito entre a exploração de tais competências com os desígnios da racionalidade neoliberal.
Análise da coleção didática Pensar, Sentir e Agir
A coleção didática Pensar, Sentir e Agir, também estruturada em volume único, reúne três módulos (Quem sou: uma descoberta, O encontro com o outro: vínculos e aprendizados e Meu futuro: um caminho de possibilidades) e cada um deles compõe-se de cinco capítulos. No que concerne às competências socioemocionais, há um capítulo no primeiro módulo denominado Inteligência emocional, do qual extraímos alguns fragmentos para análise. Vejamos, a princípio, um excerto do texto introdutório do capítulo.
Quando se tem um projeto de vida claro e definido, as chances de superar dificuldades podem ser maiores. A construção do futuro é feita dia a dia, e uma maneira de ajudar nesse processo é se munir de recursos que sejam úteis. Um deles pode ser o aprimoramento da inteligência emocional, que é a capacidade que o ser humano tem de reconhecer seus sentimentos e também os sentimentos de outras pessoas, de se motivar, de identificar e controlar suas emoções para o seu próprio bem-estar e para o das pessoas com quem se relaciona (FRAIMAN, 2020, p. 39).
Smolka et al (2015) sinalizam que os programas de ensino embasados na propalada “inteligência emocional” destacam tópicos como autoconsciência e controle de emoções em atividades concernentes à identificação de emoções como alegria, tristeza, raiva, medo, nojo e surpresa. No tocante à coleção de Projeto de Vida, a inteligência emocional situa-se no rol das características demandadas para a construção de um futuro bem-sucedido. A conceituação da inteligência emocional, segundo o posicionamento assumido na coleção didática, reporta-se à habilidade a partir da qual se podem reconhecer emoções em si mesmo e nos outros, saber regular as emoções e manejá-las de modo a garantir o bem-estar. Trata-se, pois, de características a serem progressivamente aprimoradas, desenvolvidas e aperfeiçoadas no processo de confecção do projeto de vida.
Para isso, a coleção didática sugere algumas dicas com o fito de desenvolver as habilidades integrantes da inteligência emocional, consoante preconizadas por Goleman (2005), tais como o autoconhecimento, o controle emocional, a automotivação, a empatia e a sociabilidade. Mencionemos algumas dessas dicas. Sobre o autoconhecimento, o material didático propõe: “[...] Ter momentos a sós. Exercitar a criatividade e a sensibilidade como forma de reconhecer com sua visão de mundo. Pesquisar sobre a vida de pessoas inspiradoras” (FRAIMAN, 2020, p. 40); acerca do controle emocional, temos: “[...] Praticar a calma antes de reagir a uma provocação. Exercitar a força de vontade diante do desejo de resistir. Respeitar combinados, manejando emoções como o medo, cansaço e insegurança” (FRAIMAN, 2020, p. 40); em torno da automotivação, encontram-se as seguintes orientações: “Fazer o que precisa ser feito com atitude positiva. Não esperar ter vontade para fazer aquilo que é necessário: agir logo e fazer bem-feito. Visualizar os ganhos que serão obtidos com a realização das metas propostas” (FRAIMAN, 2020, p. 40).
A proeminência dessas dicas procura aperfeiçoar o capital humano do jovem, especificamente num momento em que planeja o seu futuro projeto de vida. A ênfase recai no desenvolvimento de habilidades como a sensibilidade e a criatividade, que, conforme Dardot e Laval (2016), têm sido uma exigência do universo corporativo e empresarial; no exercício de uma comunicação não violenta, na prática da resiliência e na autonomia; na atenção aos benefícios, descritos como ganhos, que tais habilidades podem provocar. Convém prestar atenção no tom professoral do posicionamento adotado no material didático: a voz que enuncia se coloca como num lugar do esclarecimento e da autoridade, oscilando entre a prescrição (“agir logo e fazer bem-feito”) e a sutileza (“ter momentos a sós”). Ao fim e ao cabo, como são dicas, elas acabam sendo destituídas de uma obrigatoriedade, embora o propósito supostamente nobre seja evocado constantemente. Entram na composição do capital humano, portanto, competências socioemocionais relativas ao autoconhecimento, à autodisciplina, à gerência das emoções e aos benefícios advindos desse investimento em si mesmo. Toda uma retórica econômica é demandada para garantir ao jovem um projeto de vida sólido no futuro, dado que é preciso investir hoje, por meio do estabelecimento de metas, para obter fluxos de renda na posteridade, denotando, nesses termos, o funcionamento da engenharia neoliberal.
Na continuidade da análise da coleção Pensar, Sentir e Agir, deparamo-nos com uma citação de uma obra escrita pelo psicólogo estadunidense Martin Seligman, entusiasta da Psicologia Positiva, descrita por Freire Filho (2010) como uma corrente de estudos que surge nos Estados Unidos, na virada do milênio, e se espraia para outros países com indisfarçável rapidez. Para essa perspectiva, a felicidade estaria atrelada ao reconhecimento de competências individuais e como isso se configura num vantagem no interior da lógica capitalista. Em suma, “[...] tornar-se feliz pressupõe, basicamente, a dedicação a um programa (levemente trabalhoso, porém jamais doloroso) de incorporação de práticas de condicionamento mental e de gestão emocional” (FREIRE FILHO, 2010, p. 65). Feita essa curta digressão, mostremos um recorte da obra de Seligman que a coleção seleciona: “A depressão em um jovem com predisposição genética pode ser evitada, desde que sejam estimuladas as suas habilidades de pensar e agir com otimismo e esperança” (SELIGMAN, 2019, s.p).
Entendemos que a escolha deste trecho mostra-se significativa para se pensar como a coleção didática apreende o adoecimento mental entre a população jovem. Na voz de autoridade de Seligman, seria possível afastá-la somente com a força individual, com uma positividade a ser incessantemente estimulada. Pensando nessa ótica, a coleção enumera alguns questionamentos num exercício de autorreflexão, quais sejam: “[...] a) Em que situações você experimenta emoções negativas? Como você lida com elas? b) Em que situações você experimenta emoções positivas? Como você lida com elas?” (FRAIMAN, 2020, p. 30). Segundo o material em análise, é a maneira por meio da qual o jovem se relaciona com as suas emoções que define como ele pode incrementá-las na construção de seu bem-estar e de seu projeto de vida. A aparente simplicidade para a resolução de uma tema tão complexo e multifatorial como a saúde mental encontra explicação na crítica feita por Smolka et al (2015, p. 234), segundo os quais o desmembramento das dimensões da personalidade em competências não cognitivas “[...] induz à concepção de que tais dimensões são independentes do contexto, do conteúdo ou do significado da atividade ou da situação em que se manifestam”. Dito de maneira mais específica, o sujeito para o qual essas perguntas se endereçam assinala-se pela abstração e por uma suposta universalidade, porquanto não se especifica uma série de fatores e variáveis que marcam as singularidades dos jovens brasileiros. Não apenas nessa coleção, como também nas demais, não se aprofunda uma discussão sobre as desigualdades econômicas, sociais e regionais que impedem, dificultam e barram a construção de projetos de vida, mas as silenciam, visando, com isso, construir um discurso de igualdade de oportunidade para todos, o que claramente não se sustenta, quando se olham os dados estatísticos do país.
Uma terceira questão presente na coleção assim se expressa: “Como você pode usar as emoções a favor do seu crescimento pessoal e na construção do seu projeto de vida? (FRAIMAN, 2020, p. 30). Vislumbra-se nessa indagação motivadora o interesse de fazer com que o jovem possa demandar as competências socioemocionais no fortalecimento de seu capital humano e no desenvolvimento do seu projeto de vida. Para tanto, colabora para isso o emprego do termo “crescimento”, o qual se dota de tons neoliberais, pautados na lógica do investimento-benefício. Sob essa percepção, as emoções representam atributos primordiais na formação de uma competência máquina para disputar um lugar no mercado concorrencial. Saber controlar tais emoções insere o sujeito numa posição de vantagem em relação aos demais. Conforme nos ensina Butler (2018), na cartilha neoliberal, a ordem do mercado figura para o sujeito como um palco da realização de uma miríade de valores, sob a condição de que integre o jogo da concorrência e otimize suas capacidades competitivas. Assim, as emoções são objetivadas pela via de aquisição de habilidades responsáveis por domá-las, direcionando-as para fins específicos e, com isso, escamoteando a subjetividade em prol de um culto à perfomance, a uma autonomia a responsabilizar o sujeito individual pelo seu êxito ou fracasso.
No âmbito desta coleção, foi possível observar que circulam dizeres sobre as competências socioemocionais pautados pela menção à inteligência emocional, pelo foco na Psicologia Positiva e, consequentemente, pela responsabilização do jovem no autogoverno de suas emoções, com vistas a se integrar aos meandros da sociedade neoliberal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, perseguimos o objetivo de analisar coleções didáticas de Projeto de Vida, aprovadas no PNLD 2021, com o intuito de investigar o tratamento conferido às competências socioemocionais e como estas se conectam com as aspirações da racionalidade neoliberal. O exame de três coleções didáticas permitiu-nos constatar que as competências socioemocionais encontram um lugar de destaque no esteio desses materiais didáticos, sejam figurando como um capítulo, seja como um tópico no interior de uma unidade maior. Nem sempre o termo competência socioemocional é empregado; no entanto, quando olhamos de modo mais detido, vemos que a lógica desse termo guarda-chuva está presente, vide a exploração das Big Five e da inteligência emocional.
O tratamento dado a tais competências contempla a menção a certos textos motivadores e a contínua presença exercícios e questionamentos nos quais os discentes são impelidos a refletirem sobre os sentimentos e o modo como lidam com eles, de modo a exercerem um autoconhecimento e um processo de subjetivação. Quando associamos essas competências nas/das coleções ao funcionamento da racionalidade neoliberal, podemos ponderar que há uma relação direta, porque os jovens são orientados a regularem suas emoções, com vistas a aperfeiçoar o seu capital humano e, como corolário, construir o seu projeto com base naquilo que é desejável no cerne de uma racionalidade matizada pela concorrência, individualidade, resiliência e autonomia. A busca pelo bem-estar, advinda de um domínio sobre o terreno das emoções, não está isenta de marcadores que arrefecem um cálculo do tipo custo-benefício, esforço-recompensa. Isso realça sobremaneira a constituição do empresário de si mesmo, conforme postulada por Foucault (2008), pois se evidencia a incessante preocupação no investimento individual com o intuito de gerar ganhos futuros.
Por fim, compactuamos com Chaves, Motta e Gawryszewski (2020), ao salientarem que, nessa tarefa de problematização das competências socioemocionais, não se procura aferir se, com efeito, essa abordagem tem produzidos resultados efetivos na melhoria do ensino e da aprendizagem, mas, sim, de colocar em suspensão o efeito de neutralidade que assinalam os projetos educacionais como esse. É nesse direcionamento que nos situamos neste texto. Consoante vimos ao longo do estudo, os interesses que subjazem a adoção das competências socioemocionais representam os anseios de instituições vinculadas ao setor privado e, a partir disso, tentam inserir no esteio da escola pública, a lógica de administração do mercado concorrencial, de modo a produzir uma política de currículo em franca sinergia com o neoliberalismo no âmbito das recentes reformulações do ensino médio. Desnaturalizar essa questão não é fácil, mas é necessário, principalmente se quisermos fortalecer a integridade da escola. Isso foi feito nos limites deste texto e de outros ainda por vir. Que essa inquietação se fortaleça cada dia mais.