Introdução
Os cenários culturais das infâncias contemporâneas, fortemente marcados pela relação com as mídias, são especialmente desafiadores para quem, como nós, tem como foco de pesquisa justamente essa relação. Trazemos aqui uma síntese de algumas das questões teórico-metodológicas que vêm sendo discutidas em nosso grupo de pesquisa, o Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte, da Universidade Federal de Santa Catarina (Nica/UFSC). A reflexão inicia com um estudo sobre questões e perspectivas da pesquisa com e sobre crianças no contexto da mídia e da cultura, segundo as tendências da pesquisa internacional e as pesquisas desenvolvidas no grupo nos últimos quatro anos (entre 2014 e 2017). Nas interfaces de infância, arte, imagens, mídia, tecnologia e corporeidade, destacamos o desafio da participação das crianças nas pesquisas, que envolve as autorias narrativas, a questão do anonimato e do uso das imagens das crianças nas pesquisas, entre outros fatores. A partir das discussões desenvolvidas no grupo, com o objetivo de dar visibilidade aos relatos, audiovisuais, performances e narrativas infantis produzidas nos contextos das pesquisas aqui sintetizadas, pretendemos compartilhar certas descobertas e problematizar alguns desafios encontrados no percurso.
A razão da ênfase no trabalho deste grupo é a singularidade da articulação dos olhares que nele têm se materializado ao longo de quase vinte anos de pesquisas, a partir das artes, da comunicação, da cultura, da educação e da infância. Essa teia complexa é, a nosso ver, indispensável para pensar a vida cultural das crianças de hoje. Por isso, buscaremos aqui não só sintetizar os principais conceitos e referências teórico-metodológicas movimentados nesse conjunto de reflexões mas sobretudo exemplificar algumas de suas possibilidades concretas de operacionalização. As pesquisas de nosso grupo – entre as quais se incluem doze teses de doutorado e quarenta dissertações de mestrado, além de pesquisas interinstitucionais, de pós-doutorado e iniciação científica – foram configurando um conjunto de compromissos teórico-metodológicos, que podemos assim sintetizar: a) uma aposta na escola como espaço de criação, em que arte, cultura e comunicação sejam plenamente articulados às dimensões curriculares; b) uma compreensão da mídia-educação como aspecto imprescindível à formação integral das crianças, em que elas possam participar criativamente na produção de textos em múltiplas linguagens e assim, ao mesmo tempo, desenvolver suas possibilidades de reelaborar criticamente as formas, conteúdos e práticas que acessam pelas mídias; c) um entendimento de que as mídias fazem parte hoje do ecossistema cultural cotidiano das crianças, daí a necessidade de que se constituam em espaço de criação, diálogo, encontro com a diversidade, atribuição de significado à experiência, autoria e pertencimento culturais.
Como um pressuposto de nosso horizonte de pesquisa, levantamos também as bandeiras pelos direitos da criança às mídias e à cultura. Do mesmo modo como, na atuação educativo-cultural, defendemos os direitos das crianças à provisão de textos audiovisuais de qualidade, à proteção diante de práticas e conteúdos inadequados e à participação na criação de mídias, podemos usar esses mesmos direitos para balizar a pesquisa sobre e com crianças. Assim, a criança que se envolve em uma pesquisa – seja como observadora, observada, protagonista ou parceira de um diálogo – precisa ser provida de todas as informações e formações necessárias para compreender o sentido do que está acontecendo. Ela precisa também ter garantidos os seus direitos à proteção: os cuidados com sua imagem e com seus segredos, a responsabilidade sensível do adulto diante das palavras, expressões e emoções da criança que as práticas da pesquisa possam fazer aflorar. Pesquisar com crianças, nessa perspectiva, implica elegê-las as protagonistas, compreendendo-as como atores sociais, o que exige ainda a garantia de seus direitos à participação: à autoria, à criação protagonista, à apreciação de suas opiniões e análises, de seus olhares e gestos, de suas vozes e, consequentemente, de suas escutas. Alinhamo-nos aqui com a perspectiva que busca ver a criança não “apenas como um objeto a ser conhecido, mas como sujeito de um saber” e “pesquisar com a criança as experiências sociais e culturais que ela compartilha com as outras pessoas de seu ambiente, colocando-a como parceira do adulto-pesquisador, na busca de uma permanente e mais profunda compreensão da experiência humana” (SOUZA; CASTRO, 2008, p. 52).
Desse modo, a pesquisa com crianças envolve outras abordagens e modos de interagir com a criança na investigação, para além do que sugere a pesquisa sobre crianças, embora, por vezes, o limiar entre as duas seja tênue. De certo modo, seria possível dizer que toda pesquisa com crianças também pode ser uma pesquisa sobre crianças, mas nem toda pesquisa sobre crianças é uma pesquisa com crianças. Outra possibilidade para esclarecer tais dimensões da pesquisa com/sobre crianças pode ser encontrada nos estudos da criança, que para Dornelles e Fernandes (2015, p. 67) possibilitam “a construção de redes e interlocuções entre as áreas de conhecimento que estão interessadas em construir conhecimento científico relevante e implicado sobre, mas sobretudo com as crianças” (DORNELLES; FERNANDES, 2012, p. 2). Assim, tal enfoque considera que a participação da criança na pesquisa confere um valor inestimável aos estudos da criança.
Nesse sentido, as inquietações que surgem das pesquisas realizadas com crianças, ainda que a partir do olhar adulto, revelam as múltiplas possibilidades de relações que as crianças estabelecem, e que nem sempre os adultos conseguem entender, levando-nos a refletir sobre “os limites da ciência e das metodologias adotadas”, que, por sua vez, levam-nos a novas temáticas e questões, como diz Faria (2002, p. viii).
Apurar a escuta às crianças é também uma forma de abrir espaço à novidade nas pesquisas. Muitas das mais instigantes reflexões dos pesquisadores em nosso campo, e também em nosso grupo, foram sugeridas pelas palavras e ações de crianças em situações empíricas. O olhar das crianças para o mundo contemporâneo, as perguntas que elas se fazem sobre ele e as conclusões a que chegam não só nos ajudam a entendê-las, mas sobretudo a entendê-lo. Acolher e buscar a parceria igualitária da criança em empreitadas de pesquisa, embora não seja tarefa fácil, parece um caminho inescapável aos pesquisadores da infância que se recusam a deixar que a noção da criança como agente se reduza a um mantra retórico.
Voltaremos adiante a esses assuntos. Antes de abordar especificamente a dimensão da pesquisa, achamos importante situar também o cenário desafiador em que se encontra a relação da criança com a cultura em nosso país. Em 2014, o documento final do I Fórum Nacional Cultura Infância, que reuniu artistas e ativistas da cultura infantil de todo o país, deixou visível aquilo que mais falta hoje às crianças brasileiras nesse campo: tempos e espaços para brincar e criar em segurança, com acesso à mediação que lhes ajude a ampliar seu repertório estético e de entendimento do mundo em sua riqueza e diversidade. O atual cenário social e político do país agrava os desafios à qualidade do cotidiano cultural da infância, diante de recuos importantes em mecanismos de defesa dos direitos culturais e de mídia das crianças. Um deles é o abalo sofrido pelo Sistema de Classificação Indicativa da programação audiovisual, mantido pelo Ministério da Justiça, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2016, de atender ao pedido das emissoras e liberá-las para veicular programas impróprios para crianças e adolescentes em qualquer horário. Outro sintoma é a drástica redução da oferta de programas infantis que ocorreu nos canais abertos de TV, consequência direta da Resolução 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que a partir de grande mobilização dos ativistas da infância proibiu a publicidade destinada às crianças na televisão, em um processo ainda contestado na justiça pelos setores ligados ao mercado. Circunstâncias como estas agudizam nossas preocupações como pesquisadores.
Os estudos que tematizam a criança na cultura contemporânea destacam os riscos e as possibilidades da criança nos novos cenários, como a pesquisa internacional EUKIDS Online (LIVINGSTONE; HADDON, 2009) e a pesquisa nacional TIC KIDS Online Brasil (2016). Belloni (2013), por exemplo, destaca a importância de as crianças entenderem que as máquinas estão “a serviço de suas aspirações e de sua criatividade e não se coloquem sob influência delas como partes de redes sociotécnicas governadas pela lógica técnica da máquina e pela lógica econômica do mercado” (2013, p. 79). Segundo a autora, “escapar do domínio dessas lógicas e da ingenuidade de pensar que as virtudes democratizantes das redes técnicas levam automaticamente à democratização da sociedade exige formação, reflexão, ou seja, mídia-educação” (BELLONI, 2013, p. 79, grifos no original).
A seguir, situaremos alguns dos temas e abordagens que temos discutido recentemente, em diálogo com pesquisas realizadas em contextos nacionais e internacionais, para depois relatar exemplos de pesquisas realizadas no âmbito do grupo nos últimos anos. É preciso destacar que todas essas pesquisas articulam de algum modo as diferentes dimensões que estão em foco no grupo. Para uma melhor sistematização, porém, vamos organizá-las aqui com base nos aspectos que elas mais enfatizam: mídia, imagens ou corporeidade. Por fim, mencionaremos questões que nos parecem especialmente desafiadoras em nosso campo de pesquisa, partindo não só de nossos próprios projetos como também de outros estudos, artigos e pesquisas que fazem parte de nosso cotidiano acadêmico.
1 Temas e abordagens de pesquisa
A crescente imersão de crianças num mundo cada vez mais mediado por novas formas de presença e de linguagem demanda esforços de pesquisa também crescentes. No atual cenário, as mídias e os diferentes artefatos tecnológicos (notebooks, tablets, celulares/smartphones e seus aplicativos), nos diferentes ambientes digitais propiciados pela internet, tornam-se parte integrante do cotidiano das crianças que têm acesso a ela. A reflexão sobre os diferentes temas e abordagens de pesquisa no campo da relação da criança com a cultura, especificamente o da mídia-educação, sinaliza aspectos de um interessante diálogo, envolvendo tanto os temas quanto os referenciais teórico-metodológicos da pesquisa com e sobre crianças.
Entre os temas atualmente constantes da pesquisa internacional em mídia-educação mencionados por Rivoltella (2009, 2012), destacam-se: a centralidade da escola; a educação para/sobre, com e através das mídias; a tecnologia como conjunto de formas culturais, e não apenas como ferramenta; a dimensão dos letramentos; o pensamento crítico; e os aspectos-chave: agência, categoria, tecnologias, linguagens, audiências, representações. Chama atenção também a necessidade de novos métodos para investigar as novas formas textuais, sua análise e produção, assim como novas metodologias de ensino e de pesquisa.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa no campo da mídia-educação tem priorizado a pesquisa-ação, o estudo de caso, os estudos de recepção, análises de discurso, pesquisa pedagógica ou aplicada, pesquisa-intervenção e experimentação didática (RIVOLTELLA, 2009). As tendências mais recentes sugerem tanto uma ênfase na análise de consumos neomidiáticos (mídia digital; modelo 1:1; a certificação dos “valores pedagógicos” de certos artefatos; o uso de aplicativos, e a perspectiva Bring Your Own Device/Traga seu próprio dispositivo) como a análise da produção.
Um levantamento inicial sobre os trabalhos desenvolvidos em nosso grupo nos últimos anos permite identificar que alguns dos temas das pesquisas contemplam as tendências acima mencionadas, também em diálogo com o que se discute no cenário nacional: têm sido realizadas pesquisas sobre as relações da criança com o cinema e o audiovisual, com a televisão e o jornalismo; e investigações no campo das artes, que destacam as especificidades das experiências das crianças com a literatura, a música, o teatro e a dança. Os entrelaçamentos entre imaginário, cultura lúdica, narrativas orais e digitais perpassam diversas dessas pesquisas, assim como as relações das crianças com os multiletramentos e as multissensorialidades em torno dos artefatos da cultura digital, com ênfase nos videogames, na internet, nas tecnologias móveis, no uso de aplicativos e na corporeidade.
Neste universo temático transversal, os referenciais teórico-metodológicos básicos provêm de fontes como os estudos sociológicos pioneiros de Florestan Fernandes, os Estudos da Infância (Manuel Sarmento, Alain Prout, William Corsaro, Sonia Kramer), os Estudos Culturais (Jesús Martín-Barbero), a Mídia-Educação (David Buckingham, Pier Cesare Rivoltella, Birgitte Tufte, Maria Luiza Belloni, Monica Fantin), os Multiletramentos/Novos Letramentos/Autorias Narrativas (Paulo Freire, New London Group, Bill Cope, Mary Kalantzis, Colin Lankshear, Michelle Knobel, James Gee, Henry Jenkins, Gilka Girardello), e as Competências Midiáticas (Pier Cesare Rivoltella, Ignacio Aguaded, Joan Ferrés), entre outros campos e autores.
A especificidade das abordagens metodológicas da pesquisa com e sobre crianças é outra preocupação que nosso grupo compartilha com muitos outros colegas pesquisadores. Nesse sentido, identificamo-nos também com os dilemas éticos de pesquisar a relação das crianças com a internet e as redes sociais, tanto na escola como nos ambientes familiares, em sintonia com o que enfatizam Pereira (2012, 2013) e Tisseron (2016). Em relação a isso, Orellana (2011) observa que é muito difícil pesquisar dentro da escola e não se sentir fisgado pelo puxão em direção ao adultocentrismo, ao desenvolvimentismo, ao teleologismo. E que é preciso resistir a eles, encontrando sempre metodologias criativas para aproximar-se da perspectiva das crianças. Ao mesmo tempo, alerta ela, é preciso evitar cristalizar ainda mais “a dicotomização entre infância e idade adulta, lembrando que somos todos seres que são e que estão se tornando, em qualquer momento de nossas vidas” (ORELLANA, 2011, p. 13, grifos no original).
Nesse sentido, Pereira (2013) problematiza as condições de autoria na pesquisa com crianças e pergunta-se quais condições são necessárias para transformar em participação a experiência da criança nesse contexto. Para ela, como as crianças interagem em diferentes espaços, o ambiente on line passa a ser lugar que merece cuidado diferenciado e ali elas precisa ser tuteladas. A autora pergunta-se, por exemplo: é “legal” propor atividades com crianças e redes sociais nas escolas ou pesquisar com crianças em redes sociais que prescrevem seu uso apenas para maiores de 13 anos? O pesquisador pode adicionar a criança em sua rede social se ela não deveria estar ali? É legítimo burlar a regra ou seria melhor fazer de conta que a regra não existe? São questões importantes para pesquisadores e professores. A esse respeito, diferentes encaminhamentos teóricos e metodológicos têm sido discutidos em diversos países: grande parte de pesquisadores nem cogita realizar investigações que burlem a lei, por entender que tal procedimento metodológico não seria educativo, como demonstram algumas análises da pesquisa TIC KIDS Online (CGI, 2016). Outra questão que merece ser discutida.
Embora a relação adultos-crianças esteja continuamente se redefinindo, nosso papel de adultos implica a formação e a acolhida das crianças no mundo, sem abrir mão da responsabilidade de educar, como destaca Arendt (1997) em sua discussão sobre a crise na educação. Muitas das questões que ela discutia em outro contexto histórico são agudizadas hoje pela cultura digital. Não temos respostas prontas para os novos dilemas, mas, considerando os direitos de mídia das crianças, o desafio parece envolver efetivamente os três ‘Pês’ (proteção, provisão e participação) na formação e na pesquisa, para além da retórica fácil que tem se valido dessa perspectiva nos últimos anos.
Ao discutir as relações entre infância e poder na escola, Gallo (2010) analisa os direitos e os deveres da escola cidadã, as tensões entre liberdade e controle, o papel do professor diante da curiosidade das crianças, e o sentido da avaliação e dos currículos. Ele afirma que “uma política de infância na escola seria não dar voz às crianças, fazê-las falar com a nossa voz, mas darmos ouvidos àquilo que elas estão dizendo” (GALLO, 2010, p. 120). Para o autor, “as crianças [...] estão sofrendo os jogos de poder que jogamos com elas, mas também estão jogando, estão fazendo seus próprios jogos, queiramos ou não vê-los e ouvi-los” (GALLO, 2010, p. 120). Poderíamos complementar o argumento enfatizando que o mesmo vale para as dimensões políticas da participação das crianças nas pesquisas.
O protagonismo infantil está presente em um dos fios temáticos que percorre as pesquisas de nosso grupo: a autoria infantil, especialmente o estudo da promoção da autoria narrativa pelas crianças em diferentes linguagens, tendo sido possível delinear uma concepção de autoria narrativa infantil que combina mídia-educação, produção oral/cênica e escrita. A autoria é entendida em sua dimensão lúdica, que equilibra criação individual com apropriação cultural e compartilhamento social. Trata-se também de uma concepção colaborativa de autoria, cujo foco é fazer cada criança viver plenamente uma parte do processo de contar e encenar histórias junto com as outras – por meio de gestos, palavras faladas, escritas, e cenas imaginadas ou realizadas em foto ou vídeo –, e não necessariamente na assinatura de um único nome próprio no resultado final (GIRARDELLO, 2014).
Destacamos a grande importância que as narrativas – e a criação narrativa – continuam tendo para crianças e jovens em meio aos novos ambientes culturais e comunicativos. A criação participativa de histórias por meio das práticas sociais e culturais classificadas como novos letramentos é um fenômeno poderoso, que promove formação nas artes da linguagem, interação social, construção subjetiva e atribuição de sentidos à experiência, no sentido amplo da leitura e da escrita do mundo. As pesquisas sobre autoria narrativa em nosso grupo afirmam a vitalidade criadora do cotidiano das crianças e do entorno cultural das escolas, que um olhar atento dos educadores revelará ser sempre povoado de personagens, rituais, lendas, anedotas, dramas, vivências éticas e estéticas singulares e eloquentes. Essa riqueza precisa de espaço para poder se manifestar na escola, também por meio das mídias. Por isso, consideramos importante impedir que se cristalizem barreiras, na pesquisa, entre as práticas midiáticas e as práticas do corpo, da oralidade e da performance. Sobretudo quando se procura valorizar a presença da arte no cotidiano infantil, já que a vitalidade da criação artística não reconhece tais barreiras. Se apostamos na riqueza e na permeabilidade dos multiletramentos, bem como na aproximação contemporânea entre as comunicações e as artes (SANTAELLA, 2005), as crianças que são inspiradas a contar histórias oralmente ou por escrito, por exemplo, tendem a desenvolver maior facilidade para criar histórias em meios digitais, e vice-versa, ressalvada a aprendizagem das competências técnicas específicas de cada linguagem.
A preocupação com a autoria alia-se à defesa da participação e da voz das crianças, que se tornou “parte da ortodoxia retórica, até mesmo entre aqueles que sob outras condições não [as] vinham apoiando com muito entusiasmo” (PROUT, 2010, p. 21). O autor sugere que se vá além das representações sociais sobre a infância ligadas basicamente a duas imagens – a criança em perigo e a criança perigosa –, apontando o “papel exercido pelas crianças na liderança, sugerindo que elas deveriam ser envolvidas na tomada de decisões e elaboração de políticas” (PROUT, 2010, p. 25). Para Prout (2010, p. 35), é necessário que os pesquisadores reflitam criticamente sobre o significado de participação das crianças: “Com muita freqüência exige-se que as crianças se ajustem às formas de participação dos adultos.”, afirma. Nessa mesma direção, Christensen (2010) propõe reconsiderar os estereótipos sobre a participação das crianças na discussão pública, considerando que elas devem ser compreendidas por meio de suas próprias percepções e ações no mundo social e cultural. Essas questões também inspiram, inquietam e despertam cuidados nos pesquisadores da infância, em relação às formas como estamos promovendo e respeitando a participação das crianças em nossas investigações.
O desafio de mudar a maneira como as próprias crianças são vistas na pesquisa com crianças implica discutir também as sutilezas de suas percepções sobre certos valores e temas que podem ser refletidos com elas, ainda que muitas vezes se julgue-as e/ou subjugue-as sem ouvi-las. Tal mudança implica ir além de ‘ouvir as crianças’ como sujeitos ou de ‘transformá-las em coautores’ da pesquisa, ainda que nem sempre se tenha consciência disso. No caso das pesquisas sobre mídia e cultura, este ‘ir além’ parece envolver necessariamente a abertura dos procedimentos metodológicos à multiplicidades das linguagens pelas quais as crianças se comunicam, incluindo as artísticas e corporais, sempre atravessadas pelo princípio da ludicidade. Alguns dos trabalhos empíricos com crianças que produzem iluminações mais interessantes são os que se valem de estratégias lúdicas, como por exemplo encenações de telejornais para abordar temas da atualidade, produções de filmes em registro de faz-de-conta, criação de publicidades de produtos imaginários ou de brinquedos inventados sem a vertente consumista.
Para além da naturalização de certos processos investigativos, a questão metodológica na pesquisa com crianças passou a se constituir ela mesma em um problema de pesquisa. No tocante à reflexividade crítica sobre os métodos de pesquisa, a pesquisadora finlandesa Leena Alanen observa que, após um grande entusiasmo pelo potencial emancipador da ciência social crítica, dos anos 1970 em diante esse otimismo pareceu diminuir, diante de “uma crescente suspeita quanto à normatividade na ciência como sendo potencialmente autoritária e etnocêntrica” (ALANEN, 2011, p. 10). E a palavra crítica, por ser hiperutilizada, foi perdendo sua força, diz ela, acrescentando que os Estudos da Infância têm um profundo interesse em “usar a pesquisa para a mudança positiva no mundo”, razão pela qual, nesse âmbito, deveríamos ser críticos não apenas de nossas práticas de pesquisa, mas das próprias práticas e arranjos sociais que são nossos objetos de estudo e prática no mundo ‘real’ das crianças e da infância” (ALANEN, 2011, p. 11).
É esse exercício que buscamos fazer ao analisar as pesquisas desenvolvidas no grupo.
1.1 Crianças, mídias, imagens e corporeidades: referências para as pesquisas
A reivindicação das crianças pelo direito à sua presença ‘de corpo e alma’ na cultura digital foi assim formulada pela pesquisadora do MIT Edith Ackerman (2013):
Deixem-me explorar e usar minhas habilidades criativas localmente, globalmente, em qualquer tempo e lugar, mas por favor, não esqueçam que eu tenho um corpo e gosto de usá-lo. Sou exuberante, sou física! Então, deixem-me liberar minha imaginação, transportem-me, teletransportem-me, mas também me deixem tocar, sentir, movimentar-me, ter um chão sólido debaixo dos pés” (ACKERMAN, 2013, p. 131, grifos no original).
Essa abertura às possibilidades do digital, que ao mesmo tempo leva em conta os direitos das crianças a viver suas “cem linguagens” (MALAGUZZI, 1999), está muito presente em nosso referencial.
Desse referencial fazem parte também autores como John Dewey e sua compreensão de arte como experiência, Maurice Merleau-Ponty e o pressuposto da indissociabilidade corpo-mente, e a potência da constelação que Walter Benjamin desenha a partir de infância, arte, imagem, ludicidade, bem como sua fina atenção às novidades tecnológicas na cultura de cada tempo.
Nesse horizonte, as formas pelas quais a cultura digital contemporânea favorece a participação das crianças torna as pesquisas sobre dispositivos móveis particularmente propícias à compreensão dos modos de viver a infância e também à experimentação de metodologias participativas que levem em conta a corporeidade da criança e seus movimentos no espaço. Para um maior enriquecimento dos diálogos em que apostamos, citamos a seguir alguns exemplos de pesquisas, possivelmente ainda pouco conhecidas no Brasil, que nos têm inspirado do ponto de vista metodológico da pesquisa com crianças.
Para entender a participação da criança pequena na cultura mediada pela tecnologia, uma referência importante é a pesquisa longitudinal pioneira com crianças italianas desenvolvida por Mantovani e Ferri (2006, 2008) ao longo de quatro anos. A primeira fase envolveu observações e registros audiovisuais em ambiente doméstico com seis crianças entre 1 e 2 anos de idade, cujo material foi discutido com pesquisadores, pais e professores. Na segunda fase, as observações com registros audiovisuais aconteceram nos espaços da Educação Infantil, com posterior discussão com professores em grupos focais. Na terceira fase foram realizados grupos focais com pais e entrevistas com crianças de 5 anos nos espaços da Educação Infantil. Nesse ciclo ‘pesquisa-formação-pesquisa’, os autores destacam que a relação entre as crianças e os artefatos tecnológicos é muito precoce e ocorre basicamente a partir de modelagem (no caso, familiar), exploração espontânea, exploração guiada e estudo de procedimentos de uso. Destacam também que as crianças usaram o computador para jogar, escrever, fazer coisas em conjunto, navegar na internet e comunicar-se, ressaltando que, para elas, escrever, desenhar e jogar no ambiente digital ‘cansa mais’ que assistir televisão. Nos depoimentos sobre o uso do computador, as crianças evidenciam que ele serve para aprender e se comunicar: “trabalhamos em grupo e estamos juntos”, “colaboramos com outras turmas”, “estamos conectados com outra escola e é prazeroso compartilhar a nossa fantasia com outras crianças”. (MANTOVANI; FERRI, 2008, p. 13). Os professores destacam as potencialidades do artefato, os problemas infraestruturais e a responsabilidade formativa da escola. Entre os pais, o reconhecimento das capacidades de seus filhos nos usos das tecnologias revela também a necessidade de mudança proativa da educação.
O olhar para os espaços e ambientes em que as crianças interagem – com e sem tecnologias – tem resultado em uma interessante abordagem de pesquisa que aproxima a Educação, a Arquitetura e o Urbanismo (FARIA, 2009), assim como os Estudos da Infância e as Geografias (CHRISTENSEN et al., 2014; MORALES; CHRISTENSEN, 2014). Essa perspectiva oferece diversas indicações para pensar a beleza da arquitetura escolar e dos espaços lúdicos, criativos, como diz Faria (2009, p. 99): “O que proponho é que, a partir do pensar-fazer arquitetura e do pensar-fazer pedagogia, olhemos para a questão do projeto e implantação do lugar pedagógico da infância em todas as dimensões possíveis, para todas as infâncias.” Embora a reflexão sobre a organização do espaço não seja algo novo nos estudos e pesquisas sobre criança e culturas infantis, o olhar da arquitetura e do urbanismo pode ampliar o entendimento sobre a circulação das crianças no território e nos espaços da cidade.
Os modos como as crianças se encontram, constroem e percebem os lugares físicos por onde se deslocam foram investigados por Christensen em diversas pesquisas (2010, 2012, 2014). Inicialmente, a autora ouviu depoimentos de crianças de diferentes cidades, na Inglaterra e na Dinamarca (2010), que, em suas lembranças e biografias pessoais, mostravam como compreendiam seus modos de utilização da casa, das ruas, da vizinhança, do bairro e da cidade onde viviam. A pesquisadora passeava com as crianças, explorando lugares e identificando conhecimentos geracionais que revelavam o conhecimento situado do adulto e o conhecimento espacial e biográfico das crianças, a partir de suas circulações nos espaços e lugares. Posteriormente, Christensen (2012, 2014) analisou a mobilidade diária das crianças, combinando a pesquisa etnográfica com o uso da tecnologia de GPS (Global Positioning System) e um questionário interativo com crianças, que o responderam via celular/smartphone. Nessa abordagem, as tecnologias foram entendidas não apenas como possibilidade de interação com as crianças mas também como importantes recursos metodológicos, discutidos com as crianças. A estratégia dos passeios pela cidade com as crianças permitiu um mapeamento sistemático e uma compreensão ampliada dos movimentos e das experiências subjetivas delas pelos diferentes espaços. A seguir, Morales e Christensen (2014) investigaram a mobilidade de crianças, pensando-a como capacidade independente individual permeada por múltiplas relações humanas, sociais, materiais, incluindo relações interdependentes entre tecnologias e suas conexões. Baseadas na Teoria do Ator-Rede (LATOUR, 2012), as autoras produziram uma narrativa etnográfica, acompanhando um dia de uma família com crianças no playground, analisando a mobilidade infantil em relação a outras tecnologias cotidianas, como por exemplo, o carrinho de bebês (MORALES; CHRISTENSEN, 2014, p. 9).
Ao pesquisar o jogo infantil contemporâneo, Duek (2012) afirma a importância de entender esse terreno fértil, que sintetiza diversos elementos da cultura, do tempo e do espaço na vida das crianças. Para ela, “entender as práticas lúdicas como significativas manifestações culturais tem sido e é um vetor da investigação que temos feito” (DUEK, 2012, p. 663). A autora enfatiza que o jogo não é apenas um jogo, é um “espaço em que se interseccionam nossa história, educação, e relações sobre as quais se organiza nossa cotidianidade”. Daí a necessidade de problematizá-lo e entendê-lo à luz dos tempos contemporâneos” (DUEK, 2012, p. 663). Assim, investigar a criança e a cultura lúdica contemporânea não pode ser algo isolado da cultura digital e da mídia, da televisão em particular, sobretudo porque, além de fazerem parte da vida das crianças, esses textos e artefatos atuam na construção e na mediação das relações entre elas. Desse modo, na pesquisa com criança, o lúdico pode ser “uma maneira de pôr em ação e palavras os discursos cotidianos”, como sugere Duek (2012, p. 663), e, mais ainda, pode se configurar como uma valiosa estratégia na abordagem metodológica da pesquisa com crianças.
Muitos dos dilemas que vêm emergindo nas pesquisas realizadas no cenário acima desenhado têm sido tratados de diferentes formas. A seguir, veremos alguns exemplos de como a relação mídia/imagens/corporeidade está presente na pesquisa com crianças a partir de projetos desenvolvidos recentemente em nosso grupo, salientando que a escola tem sido para nós um cenário privilegiado para o estudo, a crítica e a elaboração de pesquisas com caráter propositivo.
2.Pesquisas com e sobre criança na cultura contemporânea: alguns nós da mesma rede
Com base nas diferentes trajetórias de pesquisa com e sobre criança apontadas até aqui, destacamos a seguir alguns fios condutores em torno dos quais esta seção se organiza: mídia, imagens e corporeidades. Vamos sintetizar abaixo algumas das pesquisas realizadas em nosso grupo nos últimos quatro anos, todas elas pautadas pelo pressuposto da inseparabilidade entre corpo-mente, razão-emoção, imagem-imaginação, ator-rede. Ao entrelaçar crianças, jovens, professores e pesquisadores na imersão em diferentes campos empíricos, as perguntas e propostas iniciais foram mobilizadoras de novos diálogos e parcerias nas escolas, na universidade e nos espaços culturais que elas atravessam. Os fios que compõem a complexidade das pesquisas também transcendem fronteiras, numa perspectiva ecológica em que os saberes e fazeres sobre mídias, imagens e corporeidades se entrecruzam, tornando difícil dizer qual a maior ênfase temática de cada pesquisa. Tentaremos fazê-lo mesmo assim, a seguir, para ajudar a dar visibilidade ao modo como esses três temas se expressam no interior de cada reflexão sobre o ato de pesquisar com e sobre crianças.
2.1 Pesquisas com ênfase nas mídias:
Com a intenção de investigar alguns contornos das relações entre crianças e mídias/tecnologias no espaço da Educação Infantil, em sua pesquisa de mestrado, Muller (2014) acompanhou uma turma de crianças entre 5 e 6 anos em uma instituição pública federal no ano de 2013/2. Com referenciais da mídia-educação em diálogo com a perspectiva das múltiplas linguagens de Loris Malaguzzi, a pesquisa envolveu observação, entrevistas com crianças, profissionais da instituição e pais/responsáveis, intervenção didática e um grupo focal com as crianças, além de registros fotográficos e audiovisuais das atividades desenvolvidas com elas. O caráter lúdico dava o tom das atividades, nas quais foi oferecido um repertório de jogos diferentes daqueles que faziam parte do cotidiano das crianças. Elas se divertiram muito, tomaram iniciativas e acabaram descobrindo e inventando outras maneiras de brincar com jogos, como o do ‘Gatinho Tom’1. Os desenhos, imagens, áudios e outros conteúdos digitais elaborados pelas crianças durante a pesquisa foram analisados e evidenciaram desafios como o ‘poder da mídia’ e do consumismo no cotidiano e nas práticas culturais das crianças na Educação Infantil.
Com relação aos usos das tecnologias móveis na escola de Ensino Fundamental, realizamos uma pesquisa interinstitucional sobre o uso dos laptops na escola, no contexto do projeto Um Computador por Aluno (UCA) (FANTIN, 2015). Com o caráter de ‘pesquisa guarda-chuva’, o projeto articulou investigações em contextos socioculturais diferentes, sobre as práticas midiáticas/culturais de estudantes e as atividades de aprendizagens com o uso do laptop na escola e fora dela. As referências da mídia-educação e dos multiletramentos fundamentaram esses estudos, a fim de que pudéssemos entender as relações dos estudantes com atividades de aprendizagem usando o laptop, que foram analisadas a partir das motivações, do envolvimento e da participação das crianças. Verificou-se que, se algumas atitudes se repetem em diferentes contextos socioeconômicos e culturais, por vezes certas práticas se diferenciam mais em uma mesma escola do que em contextos diferentes, demonstrando como o tema é complexo e multifatorial. Por outro lado, a evidência das desigualdades no acesso à tecnologia e na qualidade dos usos reitera o quanto os fatores econômicos e culturais permanecem fazendo diferença. Ao lado do capital cultural e das mediações familiares, que repercutem nas atividades das crianças e adolescentes em rede, a autora destaca a necessidade de colocar as aprendizagens formais e informais em diálogo, e não de forma isolada. Certas práticas com os novos letramentos, que solicitam habilidades da cultura participativa, ainda não estão presentes na escola de forma sistemática, apesar de fazerem parte do cotidiano de alguns alunos que participaram da pesquisa. É aqui que a inclusão/exclusão digital faz diferença, pois aqueles que têm acesso à tecnologia em casa usam-na para jogar, navegar nas redes sociais e em outras atividades que pouco se parecem com as solicitadas pela aprendizagem escolar, como evidencia a fala de uma criança: “[a escola] tá igual, mas ficou mais tecnológica” (FANTIN, 2015, p. 223).
Várias pesquisas recentes do grupo, ainda que não se caracterizem como pesquisas com crianças, têm como tema o trabalho dos professores de escolas públicas, colocando-se explicitamente ao lado deles(as) em seus esforços para lidar de forma qualificada com os desafios da presença das mídias na escola e na vida das crianças. São, assim, pesquisas sobre crianças. Uma delas é a pesquisa de Soler (2015), cuja autora, professora da rede municipal de Florianópolis, se inquietava com o fato de a televisão permanecer ligada com tanta frequência nas instituições de Educação Infantil, sem aparentes motivações pedagógicas. A pesquisadora então envolveu-se em uma pesquisa participante, de cunho etnográfico, buscando entender que sentidos as professoras de uma instituição de Educação Infantil viam no uso da televisão e como planejavam a presença da TV naquele espaço educativo. Ela percebeu que existiam diversas regras implícitas na instituição para o uso da TV, regras não problematizadas, como por exemplo: “se chover, vamos assistir TV”. Com base nas referências teórico-metodológicas dos estudos da criança, prestando atenção especial às pesquisas com crianças sobre as mídias, a autora organizou um roteiro incluindo citações de pesquisadores cuidadosamente escolhidas para subsidiar e desencadear as discussões em cada local de Educação Infantil, para que os próprios educadores pudessem estabelecer, juntamente com as crianças, os parâmetros pedagógicos para o uso da TV em sua instituição. Propôs também um conjunto de questões geradoras, voltadas a orientar o olhar das professoras para as crianças e sua relação com a TV. Entre essas questões estão, por exemplo:
Quem decide quando será usada a TV? Quem escolhe o que assistir? As crianças pedem para assistir TV? Quando as crianças assistem TV, foram dadas a elas outras opções ou a TV era a única opção? [...] As crianças conversam sobre o que assistem? [...] Como elas reagem, interpretam ou reelaboram o que assistem? (SOLER, 2015, p. 242-243).
Em outra pesquisa de mestrado, Ferreira (2015) problematizou a diferença entre os níveis de desenvoltura das crianças com o computador dentro de uma mesma turma. Em alguns casos presenciados pela pesquisadora, esse problema era tão agudo que os professores dividiam radicalmente seus alunos entre ‘os que sabiam’ e ‘os que não sabiam’ usar o computador. Sua experiência com educação popular e as propostas dialógicas de Paulo Freire a inspiraram a buscar formas de superar essa barreira dualista: “de uma escola ainda moderna, que prevê a separação, a pureza e o controle, para uma outra que, como os novos letramentos, funciona sobre bases híbridas e redes heterogêneas de conhecimento” (FERREIRA, 2015, p. 12). Este trabalho também se inspirou no modelo de “comunicação orquestral”, de Yves Winkin, no qual “o papel do educador pode ser interpretado como o de um maestro que compreende as diferentes sonoridades de cada participante e as sintoniza num contexto comunicativo orquestral” (FERREIRA, 2015, p. 57). Com base também em propostas de Tim Ingold, Ferreira analisou as práticas das professoras e sintetizou alguns critérios para trabalhos em sala de aula adequados a situações de heterogeneidade das crianças no acesso ao computador, entre os quais a “promoção de um ambiente orquestral de comunicação em que a fala, o gesto, a escuta e os sentidos sejam valorizados no processo educativo” e a “criação de ambientes participativos descentralizados e mantidos por uma economia de trocas simbólicas constantes entre os entes deste ecossistema, sendo eles máquinas ou pessoas” (FERREIRA, 2015, p. 91).
2.2 Pesquisas com ênfase na imagem e na imaginação
Na continuidade da reflexão sobre práticas de multiletramentos no contexto da cultura digital, outra pesquisa guarda-chuva (FANTIN, 2015a) ancorou diversas investigações no grupo, desta vez enfatizando a dimensão audiovisual. Com a curiosidade de saber como os novos letramentos na escola contribuem com o desenvolvimento de competências audiovisuais dos alunos, Cavicchioli (2015) realizou uma pesquisa de mestrado com estudantes entre 10 e 15 anos de idade em duas escolas públicas da cidade de Florianópolis, entre 2014 e 2015. Além de observação participante, entrevistas e um questionário sobre consumos culturais e competências midiáticas e audiovisuais, a pesquisa envolveu uma experimentação didática com o uso da metodologia Episódios de Aprendizagem Situada (EAS) (RIVOLTELLA, 2013). As atividades foram registradas em textos escritos, imagens e vídeos produzidos pelas crianças e jovens, e as conversas sobre os dados do questionário foram compartilhadas em um blog. Grande parte das crianças e jovens disse ter aprendido a usar as tecnologias móveis sozinhos ou em conversas informais e canais do Youtube sobre jogos e videogame. Um estudante de 13 anos revelou diversas faces de tais relações: “Aprendi a maioria das coisas em casa, né, porque infelizmente, hoje, o Brasil é muito carente em ensinamentos com tecnologias, didáticas com tecnologias [...] lá na [universidade] eles têm projetos de ensinar com jogos [...] e têm cursos gratuitos, como um que estou fazendo, de Design [...]” (CAVICCHIOLI, 2015, p. 102). A autora chama atenção para o quanto se entrecruzam as competências midiáticas e audiovisuais e os novos letramentos nas práticas culturais dos estudantes na escola e fora dela.
Em outra pesquisa, que resultou em uma tese de doutorado sobre a interface entre Arte e Educação, Costa (2017) buscou ouvir nas vozes de um grupo de jovens de hoje as experiências das crianças que eles foram anos atrás, em um procedimento de pesquisa que aliou memória e infância, presente e futuro. O objetivo da autora era explorar um arquivo de imagens de arte infanto-juvenil que havia guardado ao longo de 20 anos como professora de uma escola pública. Para esse processo, procurou e localizou ex-alunos, hoje adultos, convidando-os pelas redes sociais a participar de grupos de discussão e de uma curadoria do material, em um procedimento que chamou de “revisitações poéticas empíricas”, voltado a “detectar rastros de autoria artística, tanto da professora quanto de alunos e ex-alunos, e de todos eles em relação” (COSTA, 2017, p. 19). Vários desses ex-alunos atenderam entusiasmados ao convite e, como exemplo, um dos muitos resultados dessa curadoria foi a exposição “Coleções: memórias de 22 anos atrás”, realizada no espaço expositivo da escola. O tema dos trabalhos artísticos feitos pelas crianças de 1993, agora revisitados por um grupo delas, hoje adultas, eram as coleções que mantinham naquela época – de selos, moedas, papeis de carta, etc. –, e assim as crianças que atualmente frequentam a escola foram convidadas a também mostrar suas coleções de imagens, em um bonito diálogo entre as infâncias de diferentes gerações. A partir de referências sobre memória (Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin, Pierre Nora, Ecléa Bosi), e arte contemporânea e memória (Priscila Arantes, Márcio Seligmann-Silva, Georges Didi-Huberman), a pesquisa propôs revitalizar o acervo de diferentes formas, “fazê-lo falar”, e, por meio das evocações das crianças autoras de trabalhos artísticos criados 20 anos atrás, “iluminar o que poderia acabar sendo mais um arquivo escolar perdido dentro da escola” (COSTA, 2017, p. 19).
Ao analisar como oficinas de cinema podem promover a participação de crianças e jovens na escola pública, Martins, (2017), em seu mestrado, destacou as aproximações/distanciamentos entre sujeitos, conhecimento e território presentes na escola, também entendida como possibilidade de criação a partir da experiência estética com o cinema propostas por Cezar Migliorin e Adriana Fresquet. Em uma pesquisa-intervenção, na qual foram oferecidas oficinas de cinema para crianças e jovens estudantes entre 9 e 15 anos, em duas escolas de comunidades de periferia na cidade de Florianópolis, em 2016/2017, as oficinas – construídas também na perspectiva da mídia-educação – propiciaram uma ampliação do repertório cultural e um ambiente favorável à livre expressão por meio de uma experiência ético-estética com as imagens2. Entre diferentes gestos, falas e atitudes, a autora percebeu que ao longo da pesquisa foi possível despertar um “processo de construção de participação na escola a partir de sentidos que emergem da cultura das crianças e jovens, o que evidencia a importância da valorização dessa dimensão em processos de ensino-aprendizagem que têm a cidadania em seu horizonte” (MARTINS, 2017, p. 8). Isso foi percebido enquanto a pesquisadora sondava possíveis mudanças ocorridas entre eles: “M(15) na minha sala mudou, eu tô prestando mais atenção nos vídeos; T(14) eu tô prestando mais atenção [...] T(14): é massa, presta mais atenção na música, no contexto, assim [...]” (MARTINS, 2017 p. 139).
A tese de Campos (2016), também desenvolvida em nosso grupo, envolveu uma ‘pesquisa narrativa’, abordagem qualitativa em que a narrativa é tanto o método quanto o fenômeno estudado, como proposto por Jean Clandinin e Michael Connely. Com o objetivo de compreender a importância de as crianças elaborarem narrativamente suas experiências de vida, enriquecendo o imaginário que compartilham, e tendo como pressuposto a íntima relação entre imagem, memória e imaginação, a autora realizou uma pesquisa com crianças de 9 e 10 anos de idade em uma escola de comunidade rural no interior do Paraná. O principal procedimento metodológico foram as oficinas de narração oral de histórias, a partir de quinze diferentes estratégias lúdicas desencadeadoras do narrar infantil: jogos dramáticos, desenhos, literatura, brincadeiras populares, registros em fotografia e vídeo, e a encenação coletiva de histórias contadas pelos colegas. A pesquisa dá bastante atenção aos requisitos éticos de uma pesquisa com crianças, desde estratégias rituais para a assinatura do termo de assentimento por elas até a abertura constante às sugestões de encaminhamento por parte das crianças. Os resultados apontam a importância de garantir tempos e espaços na escola para que as crianças narrem experiências de vida e assim criem laços de comunidade, explorem possibilidades de autoria e dimensões de identidade cultural, vivenciando experiências de alteridade ao colocar-se no lugar do outro, “permitindo continuidades de experiência em relação uns aos outros e atribuindo sentidos estéticos tanto ao outro como à própria experiência” (CAMPOS, 2016, p. 3), o que se associa à busca de uma pedagogia poética e estética.
2.3 Pesquisas com ênfase na corporeidade
O lugar do corpo e da cultura de movimento na educação das crianças contemporâneas, particularmente em meio aos ambientes digitais, foi examinado em uma pesquisa de doutorado (PEREIRA, 2014), a partir de um diálogo entre a perspectiva dos multiletramentos e a obra de Maurice Merleau-Ponty. Partindo de experiências empíricas em diferentes contextos, foram discutidos, por exemplo, os modos como as crianças se relacionam com as dimensões de ‘aqui’ e ‘lá’ em suas interações sociais a distância mediadas por vídeo, e o modo como as relações das crianças com a escuta de narrativas verbais em áudio afetam tanto a imaginação quanto o próprio impulso ao movimento das crianças. A pesquisa envolveu oficinas de brincadeiras com câmera de vídeo e fotografia, assim como a produção, o registro e a dublagem de sons com crianças da Educação Infantil. Após a análise, o autor articula o referencial teórico com a poesia de Manoel de Barros, em que a criança é o “apanhador de desperdícios”, para concluir que é preciso uma mudança de paradigmas na educação, a fim de que o potencial das múltiplas linguagens que se entrecruzam na cultura digital não continue sendo desperdiçado. E acrescenta: “Mas para quem possui ‘um quintal maior que o mundo’, para quem faz do seu quintal o seu mundo, o desperdício pode simbolizar a potência da vida” (PEREIRA, 2015, p. 158).
As relações multissensoriais construídas pelas crianças e suas aprendizagens com as tecnologias digitais móveis, com foco nas interações comunicativas entre crianças na resolução de problemas colaborativos na escola foram o tema das pesquisas de mestrado e doutorado de Miranda (2013, 2016). A base teórica partiu da perspectiva qualitativa e sistêmica da comunicação e da ‘mente ecológica’, de Gregory Bateson; da neurodidática de Pier Cesare Rivoltella; da valorização da ‘comunicação orquestral’, de Yves Winkin; e da teoria da simplexidade de Alain Berthoz, de modo a dialogar com preceitos da Antropologia, das Neurociências e da Teoria Social na interface da Educação com a Comunicação. A pesquisa foi desenvolvida com crianças entre 10-12 anos do terceiro ano do Ensino Fundamental em duas escolas públicas, e sua metodologia também envolveu observação-participante e dialógica, para entender como as crianças atuam, interagem, negociam e modificam suas relações em contextos situados; intervenção didático-pedagógica, a partir da metodologia EAS, com atividades que recorreram aos saberes das crianças e suas múltiplas linguagens, com ênfase nas multissensorialidades; e grupos focais, com atividades colaborativas e metarreflexivas. As crianças expressaram seus saberes e competências comunicativas e colaborativas em diversas atividades, como por exemplo, nas brincadeiras com dispositivos móveis no parque da escola, na resolução de problemas durante a produção de animações em stopmotion, do ciclotrope e seu tutorial, dos audiovisuais, flip books e outras atividades em que a tecnologia foi o disparador de ações posteriormente compartilhadas em rede, após reflexão e negociação entre o grupo.
O papel do corpo e da corporeidade nos mecanismos e fenômenos de percepção, em diálogo com a dimensão formativa, foi o tema da pesquisa de doutorado de Ferrari (2015). O autor reflete sobre o ensino-aprendizagem do cinema através da percepção e da cognição incorporadas, focalizando os mecanismos e fenômenos perceptivos e cognitivos – sobretudo a partir dos neurônios-espelho – em que as incorporações constituem uma dimensão pré-reflexiva que pode ampliar as possibilidades e limites do cinema na educação. A partir de referências de Maurice Merleau-Ponty, Humberto Maturana e Francisco Varella, Vittorio Gallese e Michelle Guerra, das teorias do cinema, das neurociências e da neurodidática, o autor propôs a criação de uma oficina de formação de professores online, com ênfase na dimensão pragmática do ensino-aprendizagem do cinema, através das incorporações. Suas reflexões articularam aspectos pré-reflexivos e reflexivos do ensino-aprendizagem do cinema como incorporação e o poder das imagens na educação com e sobre o cinema.
As formas de interação da criança com propostas artísticas que promovem a participação através da corporeidade foram investigadas por Orofino (2017) em uma pesquisa de doutorado. Fundamentada nos estudos da arte contemporânea e da infância, a autora destaca o sentido de participação, interação e ludicidade, a partir de autores como Hélio Oiticica, Loris Malaguzzi, Bruno Munari e Ana Mae Barbosa. Uma pesquisa com crianças foi realizada em uma escola pública de Florianópolis, em um espaço expositivo, durante o ano de 2015. Na escola, foram propostas atividades participativas a um grupo de crianças entre 7 e 8 anos, sob a perspectiva da multissensorialidade e ludicidade, de modo a identificar o ponto de vista das crianças e suas formas de interação com a arte contemporânea. Foram também observados dois grupos de crianças em visita à exposição “A Experiência da Arte”, no Sesc de Santo André/SP. Entre as considerações da autora, destaca-se que: a experiência de conhecer e vivenciar a arte contemporânea se diferencia de acordo com o ambiente; a interação lúdica e a multissensorialidade aproximam a criança da arte contemporânea nas propostas educativas; e a mediação qualificada favorece a construção da experiência estética das crianças. A interação com as modalidades de práticas artísticas como performances, ambientes penetráveis e playgrounds proposta na pesquisa mostra a importante contribuição da arte contemporânea à formação das crianças, além de configurar pistas para propostas educativas, como nesta fala de um menino de 8 anos: “Eu gostei mais do parangolé porque eu gosto de construir coisas! Além disso, na casa de minha vó, tem um cantinho que eu faço várias coisas [...] Eu já fiz uma nave de papelão” (OROFINO, 2017, p. 149).
Sintetizamos a seguir algumas das muitas questões e desafios que vemos emergir das pesquisas nesse campo, tão fervilhante, da relação entre as crianças e a cultura contemporânea.
3.Alguns desafios na escuta às vozes, aos silêncios e às performances das crianças
De nosso trabalho com pesquisas, orientações e estudos, emergem alguns temas importantes para o aprofundamento crítico das pesquisas com e sobre crianças no campo da mídia, da arte e da cultura. Mencionamos alguns deles aqui, desenhados nas experiências de pesquisa citadas acima, todas elas atravessadas por ênfases na mídia, na imagem e na corporeidade, no intuito de sistematização e abertura à discussão.
Um desses temas é a ideia de que a pesquisa em espaços educativos pode (e talvez deva) ser uma instância pedagógica, um espaço de reflexão e crítica. Outro, é a necessidade de levar em conta a dimensão de performance que têm as falas das crianças na cultura de pares: quando uma criança fala em um grupo focal, por exemplo, ela está falando também para os colegas, e assim construindo e negociando sua identidade e seu status no grupo. Isso vale para a criança que diz que chora ao assistir uma cena de filme, assim como para a que ri diante de uma cena de violência ou bullying na TV, etc. O mesmo se pode observar em relação às pesquisas no ambiente da internet, lembrando que, por exemplo, as redes sociais são também lugar de culturas de pares, onde, ao mesmo tempo em que ocorrem pressões dos amigos no sentido de valorizar esse ou aquele comportamento, também se evidenciam os sentidos de exposição e extimidade percebidos por Tisseron (2016), que merecem maior atenção.
Outro desafio é dar consistência à noção de agência das crianças diante das mídias, evitando seu esvaziamento teórico. Assim, ao lado das afirmações de que as crianças produzem sentidos próprios na recepção de televisão, por exemplo, é interessante recuperar a compreensão das culturas infantis como “relativamente autônomas” da cultura adulta, noção identificada também pela Antropologia da Criança.
No mesmo sentido de evitar o esvaziamento acrítico da discussão, é necessária uma reflexão cautelosa sobre os rótulos tão presentes no debate social, como cyber-infância, geração eletrônica, nativos digitais, usados com uma naturalidade que rebaixa seu eventual poder explicativo. Ir além do rótulo afixado aos fenômenos pela rapidez facilitadora do debate social e mercadológico é levar em conta o caráter circunstancial e histórico da linguagem; é pensar no que as crianças encontram e produzem nos ambientes que a cultura lhes oferece; é pensar menos nos artefatos em si e mais nos seus significados e papeis, nas suas práticas culturais e em suas qualidades imaginárias e simbólicas na vida das crianças.
Destacamos a riqueza da contribuição que o já considerável corpo de pesquisas brasileiras sobre infância e mídia representa hoje para a compreensão das transformações na família e na infância brasileiras nas últimas décadas. A pesquisa nesse campo, desde a década de 1980, tem recorrido a uma grande variedade de fontes e documentos, como fotografias, notícias de jornal, programas de TV, livros, revistas, HQs, videogames, sites, jogos online, redes sociais e outros processos, juntamente com estudos sobre a relação que as crianças mantêm com eles. Nesse sentido, um desafio é evitar que os novos pesquisadores se aproximem do campo pautados pela lógica da descartabilidade que prevalece na cultura de consumo, tendendo assim a desconsiderar as contribuições das pesquisas realizadas em anos anteriores por discutirem tecnologias e processos considerados superados.
O momento singular em que se encontra a pesquisa sobre infâncias, culturas e mídias no Brasil foi assinalado no V Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídia (Unirio, dezembro de 2016), quando representantes de seis grupos de pesquisa com longa trajetória no campo e sediados em universidades de diferentes regiões brasileiras3 deliberaram sobre a criação da Rede de Pesquisadores em Infâncias e Mídias. Entre os temas e desafios discutidos na ocasião que apontaram para a necessidade de uma maior articulação entre os pesquisadores estavam: a colonização do imaginário infantil pelo mercado, a especificidade das metodologias qualitativas e quantitativas com crianças e os atravessamentos entre consumo, infância e gênero; a relevância de seguirmos pesquisando as imagens da infância na mídia, interrogando o que é silenciado e o que é mostrado; a importância de imaginar outras formas de promover a autoria das crianças nas novas mídias, e a necessidade de que educadores e pesquisadores levem mais em conta o corpo e o movimento das crianças em suas propostas; e a reiteração da importância da formação de comunicadores para a infância e de educadores para a comunicação. Colocou-se ainda a urgência das críticas às indústrias midiáticas na perspectiva das crianças e dos direitos da infância, e o quanto abordagens de leitura crítica das mídias, adequadas aos novos tempos, tecnologias e discursos, continuam sendo hoje extremamente necessárias. Entre os temas importantes para futuras pesquisas, destacaram-se: os direitos das crianças a sua representação nas mídias, o protagonismo infantil nas mídias (o caso dos youtubers mirins, por exemplo, que começa a ser pesquisado em diversos centros do país), e a regulamentação das mídias na perspectiva das crianças. Ficou evidenciada a importância de fazermos mais trocas entre nós, pesquisadores, em projetos interinstitucionais amplos, inclusive envolvendo metodologias quali-quantitativas, para que seja possível responder mais efetivamente aos desafios emergentes colocados por interesses privados, como os do mercado publicitário, à educação e à cultura das crianças. Com isso, delineia-se também uma maior contribuição às políticas públicas para e com a infância.
Na instabilidade do atual contexto, a ideia de uma infância ambígua, híbrida, complexa em suas relações com as mídias e com a cultura sinaliza a necessidade de intensificar a interdisciplinaridade dos estudos. Os novos lugares que criança e adulto ocupam nas diferentes relações, mediadas ou não pelas tecnologias, refletem novos arranjos geracionais, na família, na escola e na pesquisa, o que produz novos discursos da/sobre a infância. Mencionamos acima alguns dos temas e abordagens de pesquisa que buscam entender as relações entre mídia, criança, arte e cultura na atualidade. As pesquisas com crianças, famílias e escolas sobre essas relações demandam opções metodológicas capazes de inspirar outras práticas e reflexões, sobretudo a respeito do lugar da criança na cultura, do desafio à garantia do direito à participação e da necessidade de fortalecer os estudos da infância numa perspectiva crítica.
Um aspecto favorável a essa empreitada é o fato, evidenciado pelas pesquisas no campo, de que muitas das grandes questões ligadas à tecnologia e à cultura que preocupam hoje os pesquisadores – sobre temas como autoria, composição, linguagens, suportes, recepção e produções – são debatidas também pelas crianças, pois brotam de suas atividades cotidianas de criação e partilha. Por isso, um aspecto crucial das pesquisas com e sobre as crianças em relação a sua vida cultural é o quanto elas hoje nos desafiam a aprender com as crianças. Para encerrar nesse tom, mencionamos duas evocações. A primeira é o diálogo de uma pesquisadora de nosso grupo com um menino moçambicano que falava mais com seu olhar eloquente do que com as palavras: “A riqueza desses encontros com as crianças permite compreender o silêncio na cultura moçambicana como voz. [...] agora tinha de aprender com as crianças que ‘estar calado requer muita prática’”4. (SOUZA, 2012, p. 51). A segunda é uma alusão ao que as crianças produzem no silêncio da imaginação, na expressão inspirada do poeta Manoel de Barros (2010, p .45): “Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios”.
Enquanto a sociedade, a educação e a escola mostram-se atordoadas diante das mudanças contemporâneas, muitas vezes presas a um conservadorismo que as deixa em grande débito com as crianças, estas seguem em frente, inventando, usando os recursos de que dispõem para fazerem seu trabalho de explorar ludicamente o mundo, nas frestas do espaço que lhes é deixado, onde encontrarem alguma liberdade e alguém que as escute com respeito. Que se perceba o quanto elas podem nos ensinar sobre as novas possibilidades de comunicação e sentido, se nos dispusermos a prestar atenção aos mais diferentes contextos, processos e relações que a pesquisa propicia.