A narrativa a seguir é a reprodução feita de memória de uma cena marcante do filme “Entre os muros da escola” (França, 2008 – “Entre le murs”), do diretor Laurent Cantet, vencedor de prêmios internacionais, incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008, como melhor filme. A estória se passa na França, e as filmagens aconteceram em sete semanas, dentro de uma escola real, nos subúrbios de Paris. O roteiro foi feito com base no livro homônimo escrito por um professor, chamado François Bégadeau, inspirado em sua experiência pessoal na atividade docente. Além disso, o escritor/professor foi recrutado pelo diretor para interpretar o professor do papel principal do filme. Não só ele, como todo o elenco, foi composto por atores amadores. Todos estes elementos, bem trabalhados no processo de produção do filme, conferem uma sólida verossimilhança ao enredo.
A cena em questão é a seguinte: O professor de língua francesa dava aula em uma turma que no Brasil corresponderia a uma classe de nono ano do ensino fundamental. O tema era a classificação das palavras em função de seu número de sílabas. Porem, alguns alunos empenharam-se sistematicamente em sabotar a exposição do professor, indagando-o especialmente sobre a nota que haviam obtido na disciplina. Isso porque suas contas não conferiam com os resultados finais obtidos na disciplina. Acontece que a escola não havia divulgado ainda os resultados das avaliações. Sendo assim, como os alunos tinham esta informação? O professor se lembrou então do conselho de classe (cena anterior do filme), do qual duas alunas da turma participaram, na qualidade de “delegadas” da turma, com um comportamento que ele e todos os outros professores repararam e taxaram como negativo: rindo alto, por exemplo, a ponto de atrapalhar os trabalhos. Quando não se demonstravam alheias, estavam de alguma forma tumultuando o ambiente.
E embora tenham sido aparentemente tão displicentes em relação à etiqueta no conselho de classe, observa o professor, entre surpreso e indignado, as “delegadas” souberam muito bem fazer o trabalho de “informar” os colegas, e esta precipitação agora estava atrapalhando sua aula. O professor então passa a chamar a atenção das meninas sobre o seu comportamento no conselho de classe, e foi bastante enérgico. E é nesse momento que elas, aparentemente como forma de retaliação, começam a revelar outras coisas que aconteceram no conselho de classe. Havia um aluno daquela turma, destes que costumam ser chamados de “problemáticos” em termos de comportamento e aprendizado. Ele era negro e originário do Mali, estava presente na sala de aula, e as meninas começaram a dizer que todos os professores falaram mal dele no conselho de classe, como que a persegui-lo. O professor perguntou: “Eu falei mal dele?”. Então, uma delas afirmou que, falar mal não falou, mas o qualificou como “limitado”. O aluno ficou furioso.
Os ânimos se acirram, e o professor então afirma, inequivocamente, diante da turma, que as alunas se comportaram no conselho de classe como “vagabundas”. A turma toda se choca, e não houve tempo de voltar atrás. Ele tenta em vão desmentir. De um aluno, ouviu mais ou menos o seguinte: “Não pense que somos idiotas, você as chamou de ‘vagabundas’”. O aluno que fora qualificado como “limitado” era o mais exasperado de todos, e levantou-se para sair da sala de aula. O professor o proíbe de fazer isso, e um colega tenta o segurar. Mas ele se desvencilha, e no solavanco fere sem querer uma colega de turma com o chaveiro de sua mochila. Ele sai de sala e nem vê o sangue que escorre abundantemente do supercílio da menina.
2- Conflitos na escola e inquietações antropológicas.
Esta cena de cinema (ficcional, embora verossímil) de “Entre os muros da escola” foi usada para discutir o tema geral dos conflitos com uma turma de nono ano do ensino fundamental em uma escola na cidade de Niterói (RJ). Os seja, alunos cuja idade em muito os aproximava dos personagens do filme. Esta atividade fez parte do projeto de pesquisa intitulado “Construindo uma educação de qualidade: análise das expectativas e obstáculos quanto à transformação do ensino público no Estado do Rio de Janeiro”, contemplado com apoio da FAPERJ através do Edital do Programa de Apoio a Projetos Temáticos no Estado do Rio de Janeiro – 20132. Após apresentar a cena do filme para os alunos verem, um desenrolar que dura menos de quatro minutos, nossa equipe de pesquisadores tinha algumas questões dirigidas, para a problematização orientada da narrativa fílmica.
Em termos gerais, a ideia era trabalhar as semelhanças e os contrastes entre aquele “caso francês” e a realidade de suas escolas, mais ou menos a partir da pergunta: “Já viram uma situação como esta?”. Cada pesquisador ficou encarregado de conduzir a discussão com um grupo de alunos da turma, que pra isso foi subdividida. Os alunos se mostraram bastante dispersos, e com a presença de nós, “pesquisadores da UFF” (foi como nos apresentamos), alterando radicalmente seus cotidianos, deve ter sido ainda mais difícil se concentrar. Talvez por isso, demorei um pouco para me dar conta de que eu, de um lado, e os estudantes de meu grupo, de outro, estávamos falando de coisas diferentes. Isso porque a “situação” na qual pensaram para responder a pergunta que fora posta era o fato de o aluno ter saído intempestivamente da sala de aula, enquanto nós, pesquisadores, havíamos mais ou menos nos preparado para problematizar o fato de o professor ter chamado as alunas de “vagabundas”.
Senti que era interessante discutir as duas coisas, por isso introduzi também o problema do professor ter xingado as alunas. Disseram-me então que isso nunca havia acontecido daquela maneira, assim tão explícita. Por outro lado, o aluno sair de sala sem autorização do professor e assim “bater de frente” com a autoridade deste, isso sim, foi uma coisa que já viram na escola com alguma frequência. Mas nem sempre com aquelas consequências, como foi o caso, com o ferimento da estudante. Aparentemente, ficaram mais sensibilizados com o aspecto da cena do filme em que ocorria algo que lhes era mais familiar, e até naturalizado, como pude perceber com esta breve interlocução. Fazer o que aquele rapaz fizera no filme era em alguma medida tido como um gesto de “atitude” (como disseram), às vezes necessários em situações de injustiça, conforme me explicaram. A questão ética para eles era a forma como o personagem o fez, irresponsavelmente machucando sua colega, o que se configurava mais ou menos como um abuso. Este era o ponto para eles, então nossa discussão foi por aí.
O termo “bater de frente” foi utilizado naquela ocasião para definir a atitude do aluno em relação ao professor que o chamara de “limitado” (assim o inferiorizando em relação aos colegas), e também ao “sistema de ensino” ao qual demonstrava certa dificuldade em aderir, de acordo com a narrativa do filme. Contudo, não era a primeira vez que eu ouvia esta expressão. Muito pelo contrário, em minha experiência docente da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de ouvi-la muitas vezes, não só da boca de alunos, mas também de professores, para qualificar situações de conflito aberto entre os vários atores sociais que compõem a chamada “comunidade escolar”.
Como são construídas e atualizadas as relações de autoridade numa escola da rede pública fluminense? Quanto dessa produção e atualização contínua é estruturada institucionalmente pelo chamado “sistema de ensino”, e quanto depende do carisma pessoal dos atores envolvidos na interação? Que conflitos são aí percebidos ou não, e quais seriam melhor enunciados, ou, por outro lado, abafados? Que tipo de ofensas teriam o maior potencial de se configurar enquanto elemento disparador de conflitos com variadas consequências? Como estes conflitos são em geral institucionalmente administrados? De maneira predominantemente igualitária ou hierárquica? Estas foram perguntas que surgiram.
Conflitos, brigas, rixas, ridicularizações e perseguições em escolas são perfeitamente normais, e mesmos esperados, o que se confirma certamente na lembrança de todos aqueles que já passaram parte de suas vidas frequentando escolas de diferentes lugares do mundo. Aparentemente sempre foi assim, e não raro aparece como pano de fundo certo embate geracional, incrementado pelos choques entre as assim pensadas culturas juvenis e mecanismos de controle das instituições escolares tal qual se constituem.
Há dez anos, venho mantendo cadernos de campo onde documento alguns conflitos, representações, reuniões, conselhos de classe e momentos de “crises”. Posteriormente, incorporei esta reflexão na e sobre a escola a meus projetos de pesquisa de pós-doutorado. A categoria “bater de frente” (largamente utilizada por estudantes, professores e demais atores daquele contexto) é o ponto de onde pretendo partir, uma vez que possui múltiplos significados, e podendo ser, do ponto de vista de alguns alunos, sua estratégia de formação de subjetividade: bater de frente com o professor e demais “autoridades escolares” o torna um sujeito complexo, marcado, e por vezes admirado.
Contudo, o “como” estas situações conflituosas ocorrem – e nelas o que é naturalizado ou motivo de escândalo – fincadas em contextos locais definidos, é que costuma dar origem às mais promissoras inquietações antropológicas. Seguindo a sugestão há tempos colocada por Clifford Geertz em sua proposta de uma “antropologia interpretativa” (GEERTZ, 2003; TISCÓRNIA, 2011), se trata de estarmos atentos a determinadas respostas bem particularizadas sobre questões mais ou menos postas em âmbito mais geral, que é o caso de como cada escola administra ou deixa de administrar os conflitos que sob seus domínios ocorrem (GUEDES; CIPINIUK: 2014). Por isso, na referida pesquisa, usamos como estratégia de aproximação para discutir conflitos com alunos da escola pública em Niterói o filme que, a despeito de remeter ao contexto francês, suscitava, por isso mesmo, as comparações por contraste que permitem que possamos desnaturalizar aquilo tudo que é familiar, para então procedermos a uma análise metodologicamente orientada.
O aprofundamento metodológico da questão da comparação leva a outros caminhos o problema da diversidade. Após tornar o “exótico” semelhante, mas “primitivo”, para depois torná-lo familiar, mas “diferente”, há que tornar o familiar, exótico, e finalmente realizar em sua plenitude a proposta do saber antropológico de contemplar-se com os olhos do outro, implodindo, definitivamente, a “Natureza” da “Cultura”. (KANT DE LIMA, 2009, p. 10)
No caso em questão, a diversidade não articulada do universo empírico das escolas públicas fluminenses faz com que categorias naturalizadas, a exemplo de “rede pública” e “sistema de ensino”, tenham que necessariamente ser problematizadas. Dificilmente as partes deste todo que se convencionou chamar de “rede” (supostamente articulando escolas públicas municipais, estaduais e federais, além de várias secretarias e organismos burocráticos) trabalham realmente como o “sistema” que sua enunciação pretende fundar. Cada escola desta pretensa malha funciona de uma forma particular, e nem sempre bem articulada ao todo, na qual o estilo pessoal de administração dos encarregados do momento pela direção da escola é fator infinitamente mais predominante nas ações ali implementadas do que as políticas e burocracias institucionais.
Desse modo, a efetiva sistematicidade desta “rede pública”, esta sim compartilhada por todas as unidades que compõem o que se entende como o todo, é a tendência de todas elas a atuarem de maneira independente (e em alguns casos em contrariedade) em relação ao sistema formalmente constituído. Em suma, o que esta “rede” tem de mais sistemático é exatamente sua assistematicidade em termos de objetivos, procedimentos e práticas. Com isso, não estou negando que cada escola deva ter certa autonomia na implementação de seus projetos pedagógicos. Estou chamando atenção para o fato de que tais projetos muitas vezes são inexistentes, e que quando existem são quase sempre mais estruturados pessoalmente pelos diretores e professores do que institucionalmente, pelo que se convencionou chamar de “sistema de ensino”.
Só para citar um exemplo: O horário do início e término das aulas no turno da noite, que segundo a Secretaria Estadual de Educação é das 18:30 às 23:00 horas, quase nunca é praticado, sendo que a grande maioria das escolas determina que as aulas aconteçam entre as 19:00 e 22:30 (ou 22:40). Além disso, já tive a oportunidade de trabalhar em uma escola em que quase todos os professores e a direção acordavam informal e implicitamente de encerrar as aulas por volta das 22:00, e sempre que algum professor passava um pouco desse horário era sistematicamente interrompido por funcionários da limpeza que, à sua maneira, acabavam pressionando-o a encerrar. Outra forma de pressionar era quando a direção desligava a chave da eletricidade que alimentava o sistema de ar-condicionado, fazendo com que a interrupção abrupta dos aparelhos fosse percebida por todos. Isso era uma “senha” que professores a alunos conheciam muito bem.
Certa vez, nesta escola, recebi uma reprimenda da diretora porque usei o horário da aula até 22:25. Sua argumentação era a de que a circulação dos alunos, professores e funcionários a essa hora nos expunha aos perigos de sofrer assaltos e outras formas de violência. E mais: se caso viesse a acontecer algo com os alunos, a responsabilidade seria exclusivamente minha, por não “liberá-los” dentro do horário informal instituído pela direção e professores da escola. Esta e outras formas de passar ao largo (ou mesmo confrontar) com o que era estabelecido pelo “sistema” formal eram sempre justificadas com “verdades” mais ou menos imperativas.
Eu seu trabalho intitulado “Juventude, conflitos e consensos: estudo de caso em duas escolas”, a antropóloga Nalayne Mendonça Pinto apresenta os resultados de uma pesquisa, então em andamento, com base nas representações explicitadas por alunos de unidades escolares no município de Seropédica (RJ), sobre “suas percepções de formas de conflitos e violências que estão presentes no espaço escolar” (PINTO, 2014, p. 83). Refletindo sobre a multiplicidade de natureza dos conflitos que acontecem no universo empírico investigado, a autora descreve o seguinte quadro:
Em uma das escolas pesquisadas as diferenças entre as turmas são bastante fortes, e há relatos de verdadeiras disputas entre estas turmas, muito incentivadas pelos professores que barganham notas e obediência através da escolha da melhor turma. Esta formação de grupos não só serve para fortalecer a identidade de grupos de amigos, como também possibilita a oposição necessária para acontecerem as “rixas”. Na mesma escola citada, com predominância de turmas de formação de professores, há diferentes relatos de discussões de alunos sobre como fazer o trabalho em grupo, disputas de namorados, olhar atravessado, piadinha com roupa e cabelo da outra. (...) Este olhar desafiador e beligerante que afronta aparece em diferentes entrevistas, servindo como início de uma série de desavenças entre jovens e grupos na escola. Segundo algumas entrevistadas, o principal motivo é a disputa de posição dentro da escola, o que pode ser por beleza, roupas, notas, poder, namorado e outros. (PINTO, 2014, pp. 88-89)
O objetivo desta longa citação acima foi demonstrar alguns elementos que se configuram de maneiras particulares, em padrões específicos de conflitos no espaço escolar: o papel dos professores, questões de alteridade, disputas por status, padrões estéticos, mercados afetivos etc. Trabalhei em uma escola com muitas turmas de formação de professores no ensino médio, tradicionalmente conhecido como Curso Normal, como as que a autora se refere, e sua descrição se aproxima muito do que eu observei neste contexto.
Isso sempre foi uma coisa que me preocupava, uma vez que esta postura descompromissada com a formação se apresentava no comportamento da maioria do corpo discente. Preocupação que era compartilhada uma das diretoras da escola, com quem eu tive a oportunidade de conversar sobre o assunto algumas vezes. Afinal, em breve estariam habilitadas(os) a trabalhar nos primeiros anos do ensino fundamental, tão importantes para a estruturação da prática do estudo e da sociabilidade escolar naqueles que recém-ingressam na chamada “vida escolar”. A necessidade maior de aplicação nos estudos é mais ou menos endossada pelo fato de que o Curso Normal dura quatro anos, um a mais que o Ensino Médio na modalidade Formação Geral.
No chamado Jardim de Infância, Alfabetização e primeiros anos de Ensino Fundamental, os primeiros conflitos vivenciados na escola afloram. Conflitos físicos e verbais que, não raro, são altamente violentos e virulentos. Por estas responsabilidades de ofício que deveriam no decorrer da formação incorporar (mas que incorporavam muito fracamente), eu imaginava que tais alunos(as) deveriam ao menos demonstrar uma atitude mais aplicada com relação aos estudos em comparação com os alunos de Formação Geral, que concluem o Ensino Médio sem habilitação específica alguma. E isso absolutamente não acontecia.
Um exemplo tipicamente anedótico ocorreu quando ia dar aula sobre a “Filosofia Medieval”. Propus então que os alunos fizessem um trabalho de pesquisa, valendo ponto, para me entregarem na aula seguinte, e cujo tema era “Idade Média”. Uma das alunas, além de não fazer a pesquisa, me entregou uma folha de caderno cortada toscamente ao meio com o seguinte escrito, de seu próprio punho: “Idade Média: é aquela idade em que a pessoa não é mais jovem, mas ainda não é velha, assim, uns 50 anos”. Quando vi aquilo, pensei primeiramente que a aluna estava de alguma forma brincando, fazendo um deboche. Porém, depois pude me certificar que ela fizera aquilo como uma tentativa de não fazer a atividade proposta e ainda assim ganhar os pontos. Tentou ver se dava certo, se “colava”, como se diz. Nesse caso, não “colou”.
Esta pessoa fez isso cursando o segundo ano do Curso Normal, o qual concluiu sem muito empenho nos estudos, e depois passou a dar aulas na chamada pré-escola e no ensino fundamental em uma escola particular de seu bairro, como fui informado. Uma boa parte das pessoas formadas pelo Curso Normal atua nas escolas e creches assim chamadas “de fundo de quintal”, estabelecimentos de ensino nem sempre formalmente regularizados e que capilarizam a oferta de ensino nas periferias do estado do Rio de Janeiro, iniciando (bem ou mal) na instituição escolar a milhões de futuros cidadãos fluminenses.
Voltando à citação do texto de Nalayne Mendonça Pinto, destaque para um dos elementos da configuração dos conflitos citados por ela e que poderia muito bem ser uma definição sucinta de “bater de frente”: o tal “olhar desafiador e beligerante que afronta”. Assim é que alunos batem de frente com colegas em disputas para resolver diferenças em um espaço que é de reprodução de hierarquias construídas com base em status desigualmente distribuídos e complementares, muitas vezes formados em pares de opostos como “fortes” e “fracos”, “espertos” e “otários”, “fodões” e “bundões”, “riquinhos” e “fodidos” etc.
Em situações de estabelecimento de posições, que não raro dão origem a conflitos, o que se pode e o que não se pode dizer? O que ofende mais, e que por isso é dito como estratégia para bater de frente e desestabilizar o outro, nas disputas conflituosas entre os alunos? Uma coisa explicitada na atividade do colégio de Niterói neste sentido foi o cabelo. Ter “cabelo duro” (crespo), principalmente no caso das meninas. Isso em uma turma composta por noventa por cento dos alunos que poderiam ser facilmente classificáveis como “negros” ou “pardos”. A princípio, isso pode parecer uma discriminação um tanto contraditória e de caráter puramente étnico. Contudo, como me ensinaram os alunos naquela atividade, o problema não é a menina apresentar o fenótipo do cabelo crespo, e sim não tê-los alisado com uma diversidade de artifícios que existem hoje nos salões de beleza e perfumarias. Segundo me explicaram, ter o “cabelo duro” representa um caráter étnico, mas esse não é o fator decisivo de sua simbologia, e sim o fato de apresentar o traço. De apresentar, e não o de tê-lo. E assim parecer tão pobre a ponto de não poder comprar estes cosméticos.
Uma pobreza vista como demasiada, que acaba inferiorizando o pobre entre outros pobres em um contexto onde a hierarquia é a forma estruturante das relações entre as pessoas (DA MATTA, 1979; KANT DE LIMA, 2009). Uma pobreza representada então como humilhante, porque não permite que se tenha acesso ao mercado para aderir a padrões de beleza que se impõem naquele contexto. É isso o que mais dolorosamente ofende em uma situação de conflitos verbais e que, por isso mesmo, não raro, pode ser apontado como a natureza de muitos conflitos físicos vivenciados nos espaços escolares do estado do Rio de Janeiro, principalmente envolvendo meninas. Para serem competitivos em mercados afetivos com padrões estéticos restritos, quanto aos cabelos crespos, os meninos os raspam, as meninas os alisam, em geral.
A mesma coisa, afirmaram, em relação a ter a canela ruça (por ressecamento da pele), significando implicitamente que a pessoa não tem dinheiro pra comprar hidratante. É em parte contra discriminações de tal ordem que muitos alunos acabam batendo de frente na escola, e batendo de frente com a escola. Isso em Seropédica (PINTO, 2014), Niterói e São Gonçalo, todas cidades da chamada Região Metropolitana do Rio de Janeiro por onde circulou até aqui o escopo bibliográfico e empírico do presente trabalho. Ao bater de frente com esta escola reprodutora de modelos hierárquicos e desigualadores de sociedade, muitos “jovens” procuram construir a idéia de que são questionadores de tais modelos.
O detalhe é que ao bater de frente, nem sempre questionam a hierarquia como um todo, mas o fato de a hierarquia dominante não ser aquela na qual acredita, ou que lhe favoreceria. E quase sempre tendo um modelo hierárquico de sociedade próprio, “juvenil” ou não, mas que bate de frete com o modelo institucionalizado nas escolas, que em sua interpretação o oprime. Em suma, em nenhum momento a naturalização de formas hierarquizadas de classificar as pessoas é questionada.
E é também com este tipo de atitude que sinaliza para a renúncia ao diálogo e à polidez que alunos batem de frente com professores, fazendo como no filme, abandonando a aula antes que acabem por ser convidados pelos docentes a se retirarem. Não foram poucas também as ocasiões em que presenciei “olhares atravessados”, entre professores, direção, coordenadores, psicólogos, funcionários. Esta oportunidade que tenho tido, de estar dentro das salas de aulas e das salas de professores, corredores, e vivenciando aí os conflitos que ocorrem nestes espaços, é o que estrutura o presente artigo.
3- Um recorte particular da “rede”.
Diante do que já foi dito, pretendo apresentar na presente seção um pequeno retrato deste “sistema” desprovido de sistematicidade institucional e eivado de sistematicidades alternativas, de caráter quase sempre pessoalístico. Faço isso a partir do lugar que nele ocupo, e que por isso é um recorte particular, entre tantos outros possíveis de serem feitos circulando-se mais ou menos pelos mesmos lugares. Cada professor, como é o meu caso, concursado e contratado no regime de 16 horas semanais, tem que cumprir 12 horas em sala de aula, e embora seja lotado em uma escola (U.E. – unidade escolar), pode vir a cumprir esta carga horária semanal dividida em várias escolas. Isso faz com que o docente geralmente conheça várias escolas da rede, principalmente quando ele é um “novato”. No meu caso, este conhecimento foi ampliado em diversas vezes em que optei por aumentar a minha carga horária para ter gratificações reforçando meus vencimentos. No caso, foram nove as Unidades Escolares em que lecionei, todas na cidade de São Gonçalo, e estive lotado em duas delas. Como já disse, é com base no que observei circulando por estes espaços variados e heterogêneos entre si que farei a descrição a seguir.
Em trabalho que se propõe a refletir sobre a construção de um campo de estudos antropológicos sobre práticas educativas e as políticas públicas nas quais as mesmas se estruturam, a antropóloga Neuza Maria Mendes de Gusmão, professora titular do departamento de Ciências Sociais da UNICAMP afirma que:
No Brasil hoje, quando se fala na relação entre antropologia e educação no campo das Ciências Sociais, imagina-se a questão da educação indígena, mas raramente imaginam-se outros universos educacionais e mesmo as questões relativas aos processos educativos singulares e as políticas públicas no campo da educação. (GUSMÃO: 2014, pp. 21 – 22)
Neste sentido, o presente trabalho é uma tentativa de contribuir para o preenchimento desta lacuna indicada pela autora dentro dos estudos antropológicos, nesse caso com foco no que tenho tido a oportunidade de vivenciar na assim chamada região metropolitana do Rio de Janeiro.
3.1- A parte “burocrática” do “sistema”.
No início de 2012 eu era aluno do doutorado em antropologia do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Submeti um projeto, que foi aprovado no âmbito do convênio CAPES-SPU para realização de trabalho de campo em Buenos Aires, visando à conclusão do doutorado e de pesquisa iniciada naquela cidade no ano de 2010. Quando a aprovação do projeto foi confirmada, faltava ainda dois meses antes do dia marcado para o início das atividades de campo na capital argentina. Por isso, imediatamente entrei com um pedido de licença sem vencimentos (formalmente prevista nos regulamentos que regem as atividades profissionais dos professores) e anexando os documentos da CAPES, das universidades, plano de trabalho etc.
Contudo, chegou o dia de viajar para a Argentina e o processo ao qual dei entrada assim que soube da aceitação do meu projeto ainda tramitava na burocracia do sistema estadual de ensino, aparentemente longe de uma decisão, fosse essa negativa ou positiva para o que eu havia solicitado. Passagens compradas, contatos para a pesquisa efetivados, e eu não tinha uma resposta para o meu pedido de “benefício”, perfeitamente previsto como um direito ao qual fazem jus todos os professores da “rede”. Estava então diante de um dilema: ou colocava minha trajetória acadêmica em risco para não perder o emprego, ou iria para o trabalho de campo colocando em risco o emprego. Como não tinha a menor idéia sobre a resposta a meu pedido de licença sem vencimentos, se seria positiva ou negativa, nem quanto tempo demoraria para tê-la, não tinha sequer como tentar adiar a viagem junto à CAPES. Por isso embarquei para a Argentina no dia previsto para essa missão de estudos com datas definidas para começar e terminar, de julho a outubro de 2012.
No decorrer da missão, quando estava em Buenos Aires e me comunicava pelo facebook com um professor da escola em que trabalhava, este me deu a notícia de que, por conta das faltas que minha viagem acarretou, o diretor da escola teve que comunicá-las às esferas superiores da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro. E esta comunicação, por sua vez, gerou o que se chama em situações como esta de “Abandono de Emprego”. Justamente o que eu previ que aconteceria por conta de o processo de decisão sobre meu pedido de licença sem vencimentos não ter corrido de maneira hábil no âmbito da burocracia administrativa da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Por isso, ironicamente, como depois vim saber, uma semana após enviado a comunicação de faltas que originou o “Abandono de Emprego”, chegou na escola o resultado de meu pedido, com resposta positiva.
Na volta da missão de estudo, fui orientado pelo diretor da escola a entrar com um pedido de “Reassunção de Função”. Foi o que fiz imediatamente. Acontece que este novo processo tramitaria pelas mesmas vias burocráticas que o pedido anterior. Acompanhei seu lento caminhar pela internet, e sempre que permanecia muito tempo numa seção, exercendo meu direito de parte interessada no desfecho, eu ia à Secretaria de Educação procurar a seção específica onde ele estava para perguntar por que havia parado por lá. E assim foi de outubro de 2012 a março de 2013. Cinco meses, até que meu pedido para reassumir minha posição de professor do sistema público de ensino do estado do Rio de Janeiro fosse formalmente aceito e publicado em Diário Oficial.
Se eu não tivesse me empenhado pessoalmente em fazer o processo correr, certamente poderia durar bem mais esse lapso de tempo. Enquanto isso, como o ano letivo da rede estadual começa no início de fevereiro e as disciplinas que leciono têm “carência” de professores, turmas inteiras terminaram um ano letivo e começaram o seguinte sem o professor para dar aula. O termo “carência de professor” é utilizado na Rede Estadual de Ensino para qualificar formalmente a situação de, por não se ter o profissional adequado para dar conta do tamanho da demanda, turmas ficarem sem aulas em determinadas disciplinas. E isso é um problema comum a todas as disciplinas, embora em maior dimensão nas disciplinas de matemática, física e química.
Certa vez, durante o correr do processo, fui a uma destas seções para pedir informações devido ao tempo que ele estava lá, e fui atendido por uma senhora que calculei que tivesse mais ou menos cerca sessenta e cinco anos, magra, baixa estatura, sentada em sua mesa de trabalho. Estava na frente do computador, e nem moveu o pescoço pra falar comigo. Olhou-me por cima dos óculos e disse: “Pois não...”. Expliquei que estava ali porque estranhara ver o processo com meu pedido na internet por tanto tempo naquele “setor”. Senti nitidamente que a funcionária não gostou do que ouviu, e apontou para a pilha de processos atrás dela. E em seguida: “Qual seu nome, meu filho? Tem o número do processo?”. Dei a ela tais informações, que então consultou seu computador, depois se dirigiu vagarosamente até essas pilhas de processos. Depois de uns poucos minutos procurando, achou. Informou-me então que o processo estava ali aguardando a assinatura de um subsecretário, para então depois ser encaminhado ao secretário de educação. Perguntei se havia previsão para quando ele assinaria, e ela me disse que não sabia exatamente, pois tinha que esperar o “menino” ir ali buscar para levar a gabinete do subsecretário e depois trazer de volta assinado.
“Menino”, no caso, era uma pessoa encarregada de fazer circularem os processos de uma sala a outra dentro do prédio da Secretaria Estadual de Educação, de mesa em mesa, de carimbo em carimbo, adicionando-se cada vez mais folhas àquele calhamaço montado. Uma semana depois dessa conversa com a funcionária, vi na internet que o processo ainda permanecia naquele mesmo “setor”. Fui lá novamente. Quando me viu, minha interlocutora já foi logo dizendo, sem nenhuma vontade de se mostrar nem formal e nem simpática: “Você aqui de novo? O que é que você quer agora?”. Expliquei. E ela foi novamente ao conjunto de pilhas formadas por processos, depois que perguntou meio a contragosto meu nome e número do processo. Achou, e disse que o subsecretário já assinara, que os pareceres eram favoráveis ao meu pedido, e que agora só faltava o secretário assinar, para que se mandasse publicar em Diário Oficial, e depois disso eu seria chamado em casa por telegrama.
“Não” – eu disse – “falta primeiro sair daqui”. E ela não gostou, se sentiu cobrada. Estufou o peito, tirou os óculos, pôs as mãos na cintura para me dizer, irônica: “Escuta aqui, meu filho... você está muito ansioso,viu?”. Argumentei então que nesse caso eu tinha o direito de ficar ansioso, uma vez que se tratava de meu emprego, vencimentos, contas atrasadas etc. E argumentei ainda que o ano letivo havia começado com “carência” de professores nas disciplinas que leciono, e que por isso meus interesses confluíam com os interesses do “Sistema Estadual de Ensino”, de oferta de uma formação de qualidade nas escolas da “rede”. Não que eu acreditasse, àquela altura, no tal sistema. Falei aquilo querendo dar alguma resposta a minha interlocutora.
Foi quando ela primeiro riu, e depois me falou (agora em tom didático) coisas que eu não vou me lembrar exatamente, mas o que ela quis me dizer sem rodeios foi que os meus interesses e os interesses formalmente enunciados pelo “Sistema Estadual de Ensino” – estes publicados em decretos e portarias – de nada valiam para pressionar o trabalho naquele “setor”, que tem seus próprios interesses, lógicas e hierarquias. Assim, muito bem explicado. Concluindo com o seguinte: “Não é assim que funciona, meu filho!”
Porém, como se trata de um “sistema”, os interesses da burocracia da Secretaria Estadual de Educação não deveriam coincidir com o que se enunciam nos decretos e portarias? Não deveria funcionar na prática como um meio para que os fins propostos e explicitados sejam alcançados? Se estivesse envolvido no caso o interesse de uma pessoa de alguma maneira influente na Secretaria ou no Governo, e não apenas o de um professor da rede, teria essa funcionária agido dessa maneira, demonstrando tamanho descaso? Todas estas perguntas passaram por minha cabeça naquele momento, o que me levou a pensar em discutir, dizer que ela estava errada, mas imaginei que tê-la aborrecida comigo poderia atrasar ainda mais o meu processo. Eu suma, não cabia naquele momento bater de frente com ela. Por isso me calei e fui para casa, esperar o telegrama.
Enquanto durou este meu envolvimento com o avanço de meu processo de “Reassunção de Função”, tive a oportunidade de aprender muito sobre o funcionamento do sistema burocrático da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro. E aprendi o bastante para afirmar que é uma burocracia com fim em si mesma, ou seja, sua finalidade principal é reproduzir a própria lógica. Uma estrutura com salas, funcionários, cargos comissionados, carimbos etc., que está longe de funcionar como um meio para que a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro possa produzir políticas públicas para um ensino de qualidade, capaz de prover seus egressos de competitividade no mercado de trabalho e nos concursos de admissão em universidades públicas. Seu fim é a reprodução de seu ritmo, daquilo que é de rotina, por onde circulam processos, pessoas, cargos, poderes, influência. Onde, não por acaso, os empregados em funções subalternas e com a remuneração menor são chamados de “meninos”.
3.2- Nas escolas, contrastes e semelhanças.
Quando finalmente chegou a correspondência oriunda da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, me apresentei rapidamente, portando o telegrama, e assim fui encaminhado à mesa de uma pessoa que tinha um computador à sua frente e do qual podia acessar os quadros de horários de todas as Unidades Escolares estaduais espalhadas por todos os municípios. Uma vez colocadas para mim as opções onde havia “carência” de professores dentro da coordenadoria para a qual prestei concurso, que nesse caso abrange toda a cidade de São Gonçalo, montei um quadro de horários no qual fiquei lotado com nove tempos semanais de aula em uma escola e três numa outra, no mesmo bairro e na mesma rua da primeira, estando as duas afastadas por uma distância que, com certeza, não é muito maior do que trezentos metros.
Contudo, esta proximidade física entre duas escolas pertencentes ao mesmo “sistema”, o da “rede estadual de ensino”, não confere a estas mais semelhanças do que contrastes. Muito pelo contrário. Como acontece nos exemplos dados por Claude Levi-Strauss em “Raça e História”, são “aldeias” que se diferenciam também em função de serem tão próximas (LEVI-STRAUSS, 1993). Ambas estão localizadas numa movimentada avenida desta cidade, e têm nos seus fundos um morro marcado, segundo as representações da polícia e da imprensa local, pela presença e domínio territorial de traficantes de droga e outros criminosos. Ambas as escolas suspendem as aulas quando ocorrem conflitos com tiroteio no morro.
Vou falar primeiro daquela escola na qual fiquei lotado. Inaugurada no início da década de 1980, oferece apenas o Ensino Médio. Comparativamente com as outras Unidades Escolares da rede naquele município, é uma das mais bem conceituadas, onde em geral os professores querem lecionar e os gestores querem dirigir. Possui um grupo de arte dramática respeitado no cenário das artes no estado, que ensaia em um confortável e modernizado teatro/auditório. Nas avaliações periódicas realizadas pela Secretaria Estadual de Educação, a U.E. costuma ser relativamente bem avaliada, e isso no passado recente resultava em uma gratificação para todos que trabalham lotados ali. No ano de 2017, foi a segunda escola estadual com mais estudantes aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e classificados para ingresso em carreiras nas universidades públicas do estado.
Por tudo isso, conforme me explicou certa vez uma diretora adjunta, o quadro de professores daquela escola é predominantemente composto por aqueles que ficaram nas melhores colocações nos respectivos concursos que prestaram. Isso confere a este corpo docente um status diferenciado dentro das representações que circulam localmente no âmbito desta “rede”. Um resultado disso seria, segundo o argumento da mesma diretora, que a escola é procurada como primeira opção por ex-alunos de escolas particulares, que migraram do chamado “sistema privado” por conta da perda de poder aquisitivo de suas famílias. Ou seja, alunos “um pouco melhores que o geral da rede”, segundo suas palavras, por terem estudado boa parte de suas trajetórias escolares em escolas que, mesmo estando a grande maioria longe de serem excelência em educação, ao menos em geral sofrem menos com problemas estruturais como a falta de professores em disciplinas fundamentais, por anos letivos inteiros, coisa que acontece com alguma freqüência com alunos que estudaram sempre na rede pública. Sua leitura, penso, é bastante verossímil.
Professores que passam em primeiras colocações nos concursos, alunos dos quais se pode esperar que tragam melhor background, um canal para a valorização dos talentos individuais dos alunos, tudo isso em articulação acaba formando mesmo um círculo virtuoso, de modo a que a escola (sobretudo quando comparada a outras da rede) de fato propicia condições razoáveis de trabalho. Ter ou não ter estas condições favorece ou deixa de favorecer, caso isso venha se configurar um projeto, instrumentalizar os alunos com as ferramentas para que se torne competitivo nos mercados e crítico em suas decisões, um cidadão pleno, conforme “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Esta lei, de nº 9.394, sancionada pelo então Presidente da República em 20 de dezembro de 1996, tem caráter normativo, e seu fim explícito seria estabelecer os paradigmas em educação no Brasil.
Mesmo com este clima relativamente favorável, o alcance pleno destas ambiciosas metas esbarra na realidade estruturante da rede pública de ensino. E ali os conflitos acontecem o tempo todo, mas nem sempre são administrados dentro de uma lógica igualitária, de modo a propiciar a introjeção de valores igualitários e cidadãos. Ao contrário, não foram poucas as vezes em que ouvi a frase lapidar segundo a qual “manda quem pode, e obedece quem tem juizo”. O detalhe etnográfico – talvez ao nível das piscadelas de Geertz (GEERTZ, 1989) – está no tom dos professores quando repetem esta sentença. Demonstrando alegria e regozijo quando eles próprios dizem isso para os alunos ou a estes se referindo na sala dos professores. Por outro lado, com um misto de mágoa e melancolia – quase sempre com ironia – quando dito em tom de denúncia, para falar de supostas arbitrariedades que tenham sofrido de pessoas em posições superiores dento da escola ou da “rede”.
E a lógica vai se reproduzindo. Por isso é que reafirmo que a maioria das vezes em que os variados atores da chamada “comunidade escolar” batem de frete entre si, o fazem motivados não por princípios igualitários que o fizessem por isso achar uma determinada situação injusta, mas porque a injustiça que o ator sente e o motiva a bater de frente provem do fato de que os valores hierárquicos que lhes são impostos arbitrariamente se chocam por algum motivo com seus próprios valores pessoais, estruturados também por princípios não menos hierárquicos. Por isso é que quase sempre prevalece o “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Certa vez, em 2015, minha postura em sala de aula com uma determinada turma levou ao fato de eu ser chamado para conversar com a diretora. Era início de ano letivo e a turma era de primeiro ano do Ensino Médio – ou seja, havia acabado de sair do ensino fundamental. O que aconteceu começou da seguinte maneira. Eu colocava o roteiro da aula no quadro, e um aluno perguntou: “Professor, isso é pra copiar?”. E eu respondi, apenas formalmente: “Não sei, meu caro... o caderno é seu”. A turma quase que inteira, num comportamento em grande medida bastante infantil, fez em uníssono: “Uuuuuuuuuuuuuuuulllllllllllllll...”, como querendo envergonhar o aluno, e dizer que este havia sido destratado pelo professor.
Muito provavelmente por isso, este rapaz passou aquela aula toda se dedicando a contestar tudo que eu falava, e interrompendo a aula com perguntas desconexas que tinham o claro propósito de sabotar a minha exposição. Dito de outra maneira, ficou querendo bater de frente comigo. Atento ao que tinha acontecido na hora em que eu preparava o quadro, tive essa leitura e procurei tratar aquilo com paciência, administrando as consequências dos ímpetos do aluno de maneira descontraída e bem humorada. Afinal, não fora para humilhá-lo ou rebaixá-lo que eu havia procedido exatamente daquela maneira, e sim querendo que ele pensasse como um sujeito autônomo, independente, e não alguém que pergunta tudo (até o que copia no caderno que é seu) ao professor. Só isso.
Na semana seguinte estranharam novamente meu comportamento, por um motivo que foi o mesmo que me fez responder o que respondi, e da maneira como respondi, ao aluno, na aula anterior. Isso me permitiu expor melhor meus argumentos em torno de uma problemática que penso ser crucial na escola pública em geral, que é a infantilização dos alunos. Naquela ocasião, tudo começou quando eu fui recolher o trabalho que eu pedi que fizessem na aula anterior para me trazer naquele momento, um trabalho de pesquisa bibliográfica. Alguns alunos disseram: “É pra te entregar, professor?”. E o que eu disse foi mais ou menos o seguinte: “Como assim? É óbvio que é para me entregar! Ou você achava que eu ia olhar seu caderninho, igual à tia da terceira série?”. Palavras praticamente ensaiadas, que eu digo sempre em ocasiões como estas, justamente com o intuito de propor uma reflexão crítica sobre práticas escolares que os infantilizam em pleno ensino médio, quando em condições ideais deveriam, ao contrário, estar sendo preparados para a vida adulta e responsável (NEVES: 2014). Sempre faço um discurso que vai muito por aí, e acredito francamente que isso faça parte de meus deveres de ofício docente.
O problema é que há muitos professores que dão vistos nos cadernos dos alunos de Ensino Médio, e a carga simbólica que isso tem é inegável, sem falar que em turmas grandes como aquela se perde grande quantidade de tempo para dar visto nos cadernos de todos os alunos. Por isso é tão difícil que desnaturalizem práticas arraigadas desde o início de suas trajetórias escolares. E também por isso meu discurso não gerou o efeito desejado, e sim a queixa de vários alunos junto a seus pais, que por sua vez reclamaram em bloco de mim na reunião de pais promovida pela escola. Como podemos ver, o nível de infantilização dos alunos pode atingir níveis consideráveis nas escolas da “rede pública de ensino” no estado do Rio de Janeiro.
Os argumentos que a diretora geral da escola usou na conversa comigo em muito corroboram o que a adjunta havia dito sobre o perfil socioeconômico particular do aluno paradigmático daquela Unidade Escolar. Foram mais ou menos as seguintes as suas palavras: “Eu sei que você está acostumado a dar aula em faculdade, e eu entendo a sua intenção... mas acontece que o nosso aluno é oriundo de escola particular, mas que os pais se viram obrigados a colocar na escola pública... por isso eles procuram a gente, então já viu né, ás vezes a gente tem que pensar duas vezes o que fala com esse aluno, que vem com a auto-estima baixa, e vai entender o que a gente fala como se o professor estivesse querendo humilhar”. E dessa vez também tive a impressão de que o que me era dito se configurava verossímil.
A outra escola, na qual complementava minha carga horária com três tempos no primeiro ano após reassumir meu cargo de professor (2013), como eu já disse, era próxima e bastante distinta desta na qual fiquei lotado. Há considerável circulação de alunos entre as duas unidades escolares. Esta foi inaugurada na década de 1960, e oferece vagas em turmas de Ensino Fundamental (no segundo segmento, o que corresponde às séries que vão do sexto ao nono anos) e Ensino Médio. O que eu disse sobre a organização e cuidado em relação ao outro colégio, não posso dizê-lo neste caso. Não é um lugar no qual as pessoas gostem de trabalhar, e raramente é escolhido pelos professores que são aprovados nos primeiros lugares dos concursos.
Um professor me contou que, num passado não muito remoto, “traficantes” do morro invadiam a escola armados na hora em que a janta era servida no turno da noite, para jantar, e ainda furavam a fila do refeitório. Outros confirmaram, acrescentando que a prática foi interrompida por iniciativa da pessoa que comandava o grupo de marginais no morro, uma vez que os funcionários e gestores da escola se viam como reféns da situação, não vendo possibilidades de reagir de maneira minimamente segura àquela situação vista como vexatória e absurda. Ou seja, o “traficante” é que teve “bom senso”. Nesta escola, havia uma tensão permanente, alimentada pela idéia de que a vizinhança era perigosa. Os alunos – muitos deles oriundos desta vizinhança – eram certamente alvo de toda a carga de preconceito que isso traz. O que estou dizendo podia ser percebido por qualquer observador atento na sala de professores, onde todas as mágoas, frustrações e etnocentrismos dos membros do corpo docente da escola eram explicitados.
O diretor geral na ocasião em que me apresentei lá para cumprir a carga horária naquela U.E. era representado como alguém “sem atitude” por alguns professores, e até mesmo pelos próprios alunos. Mais de um par de vezes eu vi frases rabiscadas nos quadros e nas salas de aula, onde seu nome era citado e ele era abertamente qualificado com adjetivos nada lisonjeiros, a exemplo de “corno”, “babaca” e “bundão”. A minha impressão sobre ele sempre foi a de que era alguém mais preocupado em se manter no cargo do que a fazer deste um projeto para a implementação de políticas públicas de educação para formar cidadãos críticos e conscientes.
Quando iniciei ali minhas atividades docentes, isso desagradou profundamente um grupo considerável de alunos de uma das turmas de primeiro ano do Ensino Médio. É que estes estavam acostumados e satisfeitos com a “carência” do professor de filosofia, principalmente porque esse encontro era no ultimo tempo de aula do dia, o que acarretava no fato de saírem mais cedo. E foi justamente este arranjo, provocado por certa precariedade, porém tido por aquele grupo como algo altamente favorável, que minha chegada alterou. Parte dos estudantes utilizou-se de vários expedientes para atrapalhar minhas aulas, de modo a que tive que parar e chamar sua atenção, não raro rispidamente, em diversas ocasiões. Em períodos mais intensos de rispidez e dissensos entre eu de um lado e a turma de outro, antes que a situação se abrandasse em um convívio pacífico, alunos batiam de frente comigo o tempo todo. Em mais de meia dúzia de vezes vi alunos saírem da aula intempestivamente como no exemplo do filme com o qual inicio este trabalho. Nunca tentei impedir que saíssem, e nunca expulsei nenhum aluno de sala.
Uma lógica da desconfiança é algo generalizado naquela unidade escolar. Para se ter uma idéia, na hora em que se começa o turno e também quando as turmas estão voltando do recreio, é comum se notar as aglomerações que se formam em frente às portas das salas, esperando um funcionário da escola que vai passando e abrindo porta por porta. Isso porque, por ordens da direção, os alunos não podem ficar nas salas de aula sem que haja professores com eles, e as salas vazias devem ficar trancadas. Ao se julgar pela energia empregada no cumprimento de tais regras (que não é exclusividade daquela U.E.), podemos sem medo de errar dizer que as mesmas são tidas ali como algo mais importante do que, por exemplo, a qualidade das aulas ou a conscientização política dos alunos para a construção de uma ordem social igualitária e cidadã, que são os princípios normativos formalmente explicitados como linhas mestras da “rede pública de ensino”. Cuidar de trancas e cadeados é algo inequivocamente representado como mais importante. E isso não era absolutamente questionado por ninguém.
Um determinado acontecimento demonstrou, entre outras coisas, que por mais que se gaste energia para vigiar os comportamentos e controlar os fluxos de pessoas em lugares cheios de grades por todos os lados, não há vigilância que seja infalível. Um vídeo feito com uso de aparelho celular contendo a cena de um aluno matriculado no Ensino Fundamental fazendo sexo oral com seu colega de turma em uma das salas da escola (em momento que deveria estar trancada) foi publicado na internet, e circulou amplamente pelas “redes sociais”. Uma grande confusão se formou na escola quando a mãe de um dos envolvidos na cena divulgada apareceu na escola e ameaçou processar todos que ela pudesse. O clima na escola ficou ainda mais tenso, e o diretor em seguida perderia o cargo.
Causou-me algum estranhamento a tendência, naquele momento, em se procurar culpados por se ter permitido que aquilo acontecesse a despeito das ordens expressas no sentido de não deixar alunos sozinhos em sala de aula. Ao mesmo tempo, nada foi dito no sentido de responsabilizar os alunos que filmaram e divulgaram suas filmagens na internet, expondo os colegas daquela maneira. Seria uma discussão ética importante para se fazer no ambiente da escola. Porém, uma coisa que pude perceber aí implícita era a idéia de que estes “devassos” que se empenharam e conseguiram contornar a política de controle da circulação dos alunos ali implementada para dar livre curso a suas “safadezas” bem que mereciam esta exposição e execração públicas. Devassos”, “safados” e “safadezas” foram termos que eu ouvi na época em que esse assunto era amplamente discutido na sala dos professores.
4- Considerações finais.
O que é, portanto, bater de frente? Por que um repertório relativamente variado de comportamentos e atitudes é definido exatamente com este termo? Como a expressão se configura? Certamente podemos começar afirmando que se trata sempre da explicitação de conflito. Talvez a expressão tenha algo que ver com isso. Afinal, a imagem que o termo geralmente evoca é a de uma colisão, como são os casos dos acidentes de trânsito, por exemplo. E se a colisão é de frente, tem alto poder de destruição. Sendo assim, bater de frente é demonstrar atitude suficientemente ousada para o confronto aberto, de conseqüências talvez imprevisíveis, numa colisão de trajetórias ou posições em um arranjo social definido. E a enunciação de conflitos em uma lógica onde estes são vistos como elementos perturbadores da ordem (KANT DE LIMA: 2009), e por isso negativizados, não costuma gerar a sua administração, ou sua superação através da construção de novos consensos, atualizados. Ao contrário, como as colisões, devem ser evitados. Quando se configuram inevitáveis (que é o caso quando alguém bate de frente), devem ser ao menos escondidos, ou até mesmo suprimidos à força.
Assim são vistos os conflitos no universo empírico da escola pública fluminense. Raramente são administrados institucionalmente, por via formal e burocrática, e com amparo em decisões anteriores de casos análogos. Ao contrário, o padrão prevalecente é o do uso de atributos e relações pessoais para lidar com os conflitos, não raro para evitá-los, escondê-los ou suprimi-los a força, e com uso seletivo das regras. Segundo uma ampla bibliografia que lida com os dilemas da cidadania em uma lógica cultural estruturada por princípios hierárquicos – tradição iniciada com o ensaio seminal de Roberto da Matta intitulado “Carnavais, Malandros e Heróis” (DA MATTA, 1979) e continuada por outros – a sociedade brasileira é avessa a princípios igualitários.
Decorre daí que as estratégias repressivas de controle social próprias das sociedades de desiguais – em que as regras, por definição, não representam a proteção para todos, mas encontram-se externalizadas, isto é, exteriores aos sujeitos – ensejam justificativas aparentemente consistentes para sua violação sistemática pelos indivíduos, enquanto as estratégias preventivas, próprias das sociedades de iguais, em que o controle se faz pela intrenalização das regras pelos indivíduos, ensejam justificativas consistentes para sua obediência. (KANT DE LIMA, 2009, p. 262, grifo meu)
Como poderia então, a escola pública fluminense, atravessada que está por valores hierárquicos, tutelas e desigualdades naturalizadas, socializar o aluno em uma lógica de administração de conflitos por via igualitária, de internalização das regras, e não repressiva? Desigualdades com raízes culturais na escravidão e no período monárquico imperial do século XIX formam este caldo de cultura.
Além disso, não creio que na maioria das vezes o aluno bata de frente com o “sistema”, e sim no “sistema”. Como as escolas aqui descritas são reprodutoras destes valores hierárquicos e atitudes pessoalísticas – e não de institucionalidades – nela se bate de frente como para realizar um rito social de afirmação identitária. Como já foi dito aqui, professores, por exemplo, podem se sentir muito incomodados quando o tratamento desigual o prejudica e é imposto de cima, contudo, naturalizam com enorme facilidade as arbitrariedades que, quando lhes interessa, impõem aos alunos. A expressão que denomina o rito – bater de frente – enuncia a destruição de certa ordem, na forma do conflito inequivocamente posto em questão, em público.
Sendo assim, não é um rito que visa subverter inteiramente a lógica hierárquica predominante nos padrões de sociabilidade ali tradicionalmente construídos, é muito mais um rito de demonstração de atitude em público para a defesa de posições pessoais as mais variadas, mas quase nunca visando implodir a ordem hierárquica ou defender posições institucionais e/ou igualitárias. Por isso algumas formas de bater de frente acabam reforçando estereótipos que inferiorizam as posições já tidas como mais inferiorizadas na visão de mundo tradicionalmente marcada por hierarquias estruturantes. O sujeito constrói sua identidade como mal, anti-social, em uma postura em certo sentido ali valorizada como “de atitude”, e isso lhe confere um status, que o leva a crer que é capaz de construir uma posição de superior em sua hierarquia própria, a daqueles que são os maus, ou amigos de bandidos, ou que “batem de frente” – propositadamente “desajustado”.
Uma coisa é certa: são famosos nas salas dos professores. E essa fama de ruins acaba sendo justificativa para todos aqueles que acreditam que por mais que se tente trabalhar com seriedade, fazer a sua parte como professores ou gestores, não adianta. Porque o “material humano” (categoria nativa) seria de qualidade ruim. E isso certamente o desempodera (por assim dizer) na hora em que ele vai bater de frente, por motivos pessoais ou institucionais.
Na seção anterior vimos que os alunos “batiam de frente” comigo justamente pelo fato de que eu queria trabalhar, dar aula, mesmo após iniciarem o ano letivo sem aulas daquela disciplina. Aparentemente, certa antipatia daquele grupo de alunos comigo também derivava do fato de que eu tinha que parar a aula e chamar sua atenção, pedir para que se comportassem melhor o tempo todo. Isso em virtude de ficarem excitados por estarem ali se sentindo “presos” na hora em que se acostumaram a estar na rua. Por isso batiam de frente, aparentemente sem perceber que caiam na armadilha, dando, por assim dizer, munição, àqueles que em geral classificam sua conduta como a prova cabal que preparar uma aula de qualidade, uma escola de qualidade, para eles, seria como que atirar pérolas aos porcos. Não foram poucas as vezes em que tive a oportunidade de ouvir tais discursos nas escolas em que trabalhei.