Introdução
Muito se discursa a respeito da democracia. Tais discursos são fundamentados em diferentes perspectivas teóricas e têm objetivos distintos, que representam disputas hegemônicas em determinado contexto histórico, social, político e econômico. O termo democracia, portanto, assume significados diversos e não pode ser interpretado de modo uniforme e linear, mas precisa ser entendido como processo histórico e dialético.
Sem a pretensão de esgotar ou de apresentar todas as concepções que fundamentam o uso do termo desde a antiguidade até os nossos dias, entendemos que a democracia precisa ser compreendida sob os limites impostos pelo modo de produção ao qual está vinculada. Por exemplo, a democracia ateniense, apontada por inúmeros estudiosos como exemplo histórico, não traz à centralidade da discussão seu atrelamento a um modo de produção e estado escravista; no mesmo sentido, o modo de produção feudal excluiu a grande massa de trabalhadores de qualquer participação, fortalecendo o estado absolutista. Na esteira desse pensamento, a democracia moderna (doravante denominada de democracia liberal), também se encontra vinculada a determinado modo de produção: o capitalista, e, como tal, também expressa determinados posicionamentos comprometidos com a expansão e o fortalecimento do capital, sob os auspícios do poder estatal. Devido a essas questões, a democracia, como possibilidade de participação indistinta de todos nos processos decisórios coletivos, é analisada sob a perspectiva que tem como defesa a superação do capitalismo e do capital, instaurando outro modo de produção sob outra forma de sociabilidade.
Nesse sentido, como recorte da realidade histórica atual, este texto1 analisa as formas de designação de diretores de escolas públicas em municípios paranaenses que já instituíram sistemas próprios de ensino, visando apontar possibilidades e limites para a efetivação do princípio da gestão democrática, a partir da participação da comunidade. A opção em analisar a questão proposta a partir dos Sistemas Municipais de Ensino se justifica em razão de entendermos que, ao fazerem essa opção, tais municípios declaram formalmente a intenção de exercerem sua autonomia político-administrativa para o setor educacional.
Para tanto, e a partir de pesquisa documental, tendo como foco a legislação e os documentos normativos disponíveis nos sites e/ou fornecidos pelos municípios investigados, organizamos o texto da seguinte forma. Em primeiro lugar, apontamos alguns pressupostos que fundamentam a democracia na perspectiva liberal, visto ser essa a forma hegemônica em vigência na atualidade, contrapondo-a à alternativa proposta pelo materialismo histórico e dialético. As reflexões procuram evidenciar que, na atual forma de sociabilidade, a democracia possível é aquela que se fundamenta na divisão social e, por isso, precisa ser representativa e atender a interesses da classe dominante. Contudo, a apropriação da democracia liberal pode ser realizada com o fito de sua superação, visando outra forma mais adequada e comprometida com a superação das desigualdades. Em seguida, indicamos como a democracia se materializa na gestão democrática da educação em municípios paranaenses que já instituíram Sistemas Municipais de Ensino. Ainda, são apresentados as possibilidades e os limites da efetivação da gestão democrática nos contextos municipais, tendo como objeto de análise os documentos legais e normativos a respeito da designação de diretores de escolas públicas. As análises têm como pressuposto teórico o pensamento de Antonio Gramsci, o qual, no limite do tempo histórico em que foi produzido, auxilia no entendimento a respeito da vivência da democracia como possibilidade de liberdade individual com compromisso coletivo.
Ao final, conclui-se que, como um dos fatores que contribuem para a gestão democrática da educação, a escolha de diretores de escolas nos municípios investigados ainda apresenta resquícios conservadores, mesmo quando aponta para a participação ampla da comunidade em um processo eletivo. No entanto, nos limites do capitalismo, o princípio da gestão democrática precisa ser entendido como processo que não pode ser consolidado, sob pena de se cristalizar em uma perspectiva liberal, e, portanto, um dos meios para a formação de uma consciência coletiva que tenha a liberdade como fim.
Os significados de democracia e a gestão democrática no contexto educacional brasileiro
A modernidade pode ser caracterizada como uma forma de organização social, cultural, política e econômica, representada pelo rompimento com o pensamento medieval, que fez emergir novas formas de entender e organizar as relações produtivas, sociais e políticas. É importante destacar que a transição de um modo para outro ocorreu de forma gradual e não sem conflitos. Durante o processo de transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, emergiu o pensamento liberal, representado principalmente por John Locke, que relaciona os direitos e os deveres dos cidadãos às condições de determinado grupo que detêm a propriedade de bens e de riquezas, ou seja, a cidadania e a igualdade são identificadas com a possibilidade de liberdade e de segurança dos interesses privados. Nesse sentido, são esclarecedoras as reflexões de José Paulo Netto (1990):
O que conta é que a condição civil deriva da propriedade: a participação cívica – em suma, o estatuto da cidadania – depende da condição proprietária. Está claro: é cidadão quem é proprietário – correlativamente, a liberdade (cívica) se embasa na propriedade. Esta é a pedra de toque de Locke e de toda a tradição liberal e dela dimanam todas as insolúveis antinomias que impedem a esta tradição assumir de modo não restritivo a problemática democrática. (NETTO, 1990, p. 18, grifo do autor).
No mesmo período de transição, Rousseau (2006), em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, interpreta que a origem da desigualdade é a propriedade privada, pois os proprietários usufruem de privilégios em prejuízo dos não proprietários.
Em que pese o pensador genebrino ter considerado que os homens nascem livres e iguais, a liberdade assegurada pelo contrato social torna-se uma convenção, na qual a vontade de todos se subordina à vontade geral (ROUSSEAU, 2007). Nesse sentido, a democracia verdadeira é inexistente, pois se limita a respeitar as convenções estabelecidas no contrato social, conforme e restritas aos interesses privados. Não podemos deixar de considerar o avanço de tais formulações para a época, visto a necessidade de impulso social, cultural, político e econômico para a superação da organização social, política e econômica que vigorava. Essa forma de entender a democracia, denominada de democracia liberal, é presente ainda na atualidade, e, conforme abordado por Silva (2011, p. 107), é minimalista, porque “[...] tem desprezo pela participação organizada das classes populares” e “[...] se limita ao respeito às ‘regras do jogo’, [à] proteção da propriedade privada e [à] garantia dos ‘rituais’ democráticos formais”.
Ao refletir sobre o desenvolvimento da democracia moderna, Gramsci (2004, p. 350) alertou que “[...] é possível observar o paralelo que se desenvolve entre a democracia moderna e determinadas formas de materialismo metafísico e de idealismo”, pois, enquanto no materialismo francês a igualdade é reduzida à “categoria de história natural” distinguindo os indivíduos “não por qualificações sociais e históricas, mas por dotes naturais”, no idealismo a democracia se refere à “faculdade de raciocinar, comum a todos os homens”. Por isso, a defesa da democracia não é unívoca, mas abarca inúmeros significados e desvelá-los pode significar uma grande contribuição para a compreensão sobre suas contradições da sua utilização no período capitalista.
A ascensão do capitalismo como alternativa e superação do modo de produção fundamentado na servidão não representou a derrocada da exploração, mas mudou o seu eixo, visto que o grupo social, representado pela burguesia nascente, conseguiu retirar as monarquias do comando político assumindo posição dominante em relação aos camponeses e aos operários em formação. Nesse sentido, a nova classe no comando político e econômico também passou a reger as normas de vida e de trabalho para todos os indivíduos, por meio do controle do Estado1. Nesse contexto, a democracia liberal ganhou força, não permitindo que a classe trabalhadora almejasse maior participação nas decisões. O capitalismo evidenciou e aprofundou a divisão de classes que fundamenta a sua manutenção e a sua expansão: enquanto à classe dos proprietários foram asseguradas as funções de domínio, garantidas pela coerção ou consenso; à classe trabalhadora restou a venda de sua força de trabalho para assegurar a sobrevivência, dificultando ou mesmo impedindo o usufruto do produto de seu próprio trabalho e a formação de uma consciência sobre as condições materiais sob as quais produz sua existência. Isso já foi desvendado por Marx e Engels (2007) quando esclareceram sobre como as ideias dominantes se fortalecem e se perpetuam mesmo no seio da classe trabalhadora:
As ideias dominantes não são outra coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação. Os indivíduos que formam a classe dominante têm, também, entre outras coisas a consciência disso, e pensam a partir disso; por isso, enquanto dominam como classe e enquanto determinam todo o alcance de uma época histórica, compreende-se por si mesmo que o façam em toda a sua extensão e, portanto, entre outras coisas também como pensadores, como produtores de ideias que regulem a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época. (MARX; ENGELS, 2007, p. 71).
Nessa perspectiva, a democracia liberal que se desenvolveu (e se moldou), ligada ao desenvolvimento capitalista, traz em seu bojo as ideias da classe dominante. Mesmo que ao longo de seu desenvolvimento tenha sofrido alterações, permitindo a participação formal nas decisões, a democracia liberal cumpre seus objetivos de criar a ilusão de uma participação (formal e limitada) presente e de obstruir investidas para participação e igualdade futuras, limitando a possibilidade de a classe dominada vislumbrar outra forma de participação senão a representativa. Desse modo, a democracia que tem a representatividade como fundamento, sem mecanismos efetivos de controle sobre as ações dos representantes, fragiliza os interesses dos representados e possibilita a manutenção de interesses dominantes, visto que estes agem criando mecanismos para cooptação daqueles que têm a autorização para decidir em nome dos representados.
A esse respeito, convém lembrar que Gramsci (2007, p. 83) já alertou que “[...] a racionalidade historicista do consenso numérico é sistematicamente falsificada pela influência da riqueza”. Por isso, a defesa de uma democracia liberal, representativa, possui estreito vínculo com os interesses econômico-corporativos que fundamentam a sociedade baseada na exploração do trabalho humano. Nesse sentido, ela não pode ser analisada sem a devida conexão com o conceito de hegemonia, visto que os interesses do grupo dominante se impõem e se irradiam “[...] por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, [...] criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados” (GRAMSCI, 2007, p. 41). Assim, “[...] a hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida”, pois sendo ético-política é também econômica, “[...] não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica” (GRAMSCI, 2007, p. 48).
Tendo como pressuposto que a hegemonia da classe dominante direciona o exercício da democracia, Schlesener (2016, p. 25) esclarece que “[...] ao tomar o formal pelo real, o liberalismo consegue criar uma imagem de participação política com base na igualdade dos indivíduos, igualdade que não se efetiva na prática porque ela é profundamente desigual”. O exercício da democracia na lógica capitalista é, portanto, sempre parcial, fragmentado, ilusório, pois, sendo a sociedade desigual, não há como exercer o direito democrático em plenitude.
A esse respeito, Netto (1990, p. 84) chama a atenção para a distinção entre “democracia-método” e “democracia-condição social”2:
Por democracia-método deve entender-se o conjunto de mecanismos institucionais que, sob formas diversas (mais ou menos flexíveis), numa dada sociedade, permitem, por sobre a vigência de garantias individuais, a livre expressão de opiniões e opções políticas e sociais; quanto à democracia-condição social, ela não é um simples conjunto de institutos cívicos, organizados num dado ordenamento político, mas um ordenamento societário em que todos, par da livre expressão de opiniões e opções políticas e sociais, têm iguais chances de intervir ativa e efetivamente nas decisões que afetam a gestão da vida social. (NETTO, 1990, p. 84, grifo do autor).
Embora as distinções apontadas não evidenciarem, necessariamente, ruptura entre uma e outra, há de fazer-se considerações a respeito, visto que, conforme Netto (1990, p. 85), “[...] a democracia-método pode não ser dada simultaneamente à democracia-condição social”, pois a primeira pode limitar-se à igualdade de condições individuais sem considerar que individualmente as condições reais são desiguais, justamente em razão da organização social capitalista. Nesse sentido, no capitalismo, a democracia restringe-se à “democracia-método” sendo necessária a conquista da “democracia-condição social”, pois é essa que “leva a cabo a destruição do caráter alienado do poder político”, contribuindo para o “desaparecimento da separação governantes-governados”.
Em face dessas questões, é possível inferir que a democracia liberal, embora limitada para os objetivos de superação das desigualdades, não pode ser desconsiderada, mas incorporada no processo de luta pela transformação da realidade. Assim, vislumbra-se outra forma de sociabilidade, para a qual a democracia-condição social é entendida como “[...] objetivo meio, para cuja colimação a democracia-método é um instrumento privilegiado e insubstituível” (NETTO, 1990, p. 85, grifo do autor). É nessa perspectiva que “[...] o pensamento socialista revolucionário atribui-lhe (à democracia) um valor instrumental estratégico”, pois “[...] antecipa um modo de comportamento social genérico”, que “[...] através de rupturas sucessivas, tenderá, pela prática política organizada e direcionada pela teoria social, a permear todas as instâncias da vida social” (NETTO, 1990, p. 86, grifos do autor)
Na esteira desse pensamento, situamos que, em contraposição à democracia liberal, fundamentada nos interesses burgueses, outra democracia é necessária. Uma democracia que favoreça “[...] a passagem molecular dos grupos dirigidos para o grupo dirigente” (GRAMSCI, 2007, p. 287), preparando-os “[...] desde já para substituir o Estado burguês em todas as suas funções essenciais de gestão e de domínio do patrimônio nacional” (GRAMSCI, 2004b, p. 245 -246). Dessa forma, ganha corpo a democracia socialista em contraposição à democracia liberal, como possibilidade para a instauração de uma sociedade justa e igual, onde não haja distinção entre os indivíduos e todos possam participar das decisões, pois “[...] somente a liberdade para todos pode garantir efetivamente as liberdades individuais” (SCHLESENER, 2016, p. 28).
A despeito de, na atual forma de sociabilidade, a democracia liberal orientar as possibilidades de participação dos indivíduos nas decisões, tendo impacto na vida social, a defesa de uma democracia progressista que amplie a participação, de forma a qualificar os sujeitos para o controle e a interferência nas decisões, precisa ser, cotidianamente, reiterada. Por isso, o exercício da democracia em contextos locais precisa ser desvelado e suas contradições reveladas, visto que a vivência de ações democráticas se dá nas relações entre indivíduos e destes com as instituições às quais pertencem. Nesse sentido, a democracia está ligada ao entendimento de política, “pequena política” e “grande política” nos termos tratados por Gramsci (2007), no parágrafo 5 do caderno 13. “A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”, enquanto a “[...] pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida” (GRAMSCI, 2007, p. 210).
O grande desafio, portanto, é fazer com que a “pequena política” ultrapasse a mesquinhez dos interesses cotidianos, passando do momento econômico-corporativo para chegar ao ético-político e à verdadeira liberdade. No entanto, para se conseguir tal intento, há a necessidade de avaliar as relações de força que se fazem presentes na realidade concreta e, a partir disso, com propósito bem delineado a respeito da melhor alternativa a ser perseguida, realizar o enfrentamento com os interesses hegemônicos. Em que pese as tentativas de se instaurar uma sociedade sem divisão de classes sociais, sob o fundamento de uma democracia antagônica à democracia liberal terem sido rechaçadas no final do século XX, a perspectiva de superação dos pressupostos liberais é indicativo da emergência de propor outra forma de participação dos indivíduos nas decisões coletivas.
No caso brasileiro, em que a vivência democrática, mesmo na perspectiva liberal, não é uma realidade, visto que a hegemonia de determinados grupos conduz as escolhas e as decisões, analisar qualquer aspecto social sob o foco democrático é deveras difícil. Os entraves para a efetivação da democracia no Brasil se fazem presentes de cima a baixo da estrutura social e política. Os interesses da “pequena política” mesclam-se à “grande política”, minando as investidas para o rompimento dessa lógica. No entanto, algumas possibilidades podem ser apontadas, principalmente após o período de reabertura política ocorrido em meados dos anos de 1980 e assegurados na Constituição da República de 1988 e documentos legais posteriores. Dentre tais possibilidades, destacamos aquelas que consideramos essenciais para a reflexão proposta: a elevação dos municípios a entes autônomos, de tal forma que adquiriram a autonomia político-administrativa3, jurídico-normativa4 e financeira tributária5; a possibilidade de os municípios organizarem sistemas de ensino em regime de colaboração com os estados (seja por meio de Sistemas Municipais de Ensino ou de Sistema único); a assunção da gestão democrática do ensino público como princípio constitucional, a ser efetivada no âmbito escolar pela participação da comunidade escolar (alunos, profissionais da educação, pais e/ou responsáveis) no Projeto Político-pedagógico da escola); e, por fim, a escolha dos gestores escolares e o acompanhamento de seu trabalho junto à escola e à comunidade, mediado pelas orientações gerais das políticas locais.
Assim como no contexto mais amplo, a democracia a ser vivida nos contextos locais e na escola está visceralmente ligada aos ditames da sociedade capitalista, ou seja, constitui-se como democracia liberal, e como tal é contraditória, frágil e insuficiente para criar as condições necessárias que contribuam para a chegada à verdadeira liberdade. No entanto, mesmo no limite, é a forma possível para que a democracia possa ser vivenciada e, quiçá, contribuir para o entendimento da realidade e compromisso com ela. Nesse sentido, a democracia no ensino público, vislumbrada por meio da gestão democrática, pode representar uma conquista em prol da melhoria da educação, pois, por meio da união e da colaboração recíprocas entre os sujeitos envolvidos, pode-se chegar a resultados superiores tanto na organização quanto nos resultados educacionais. Por isso, para sintetizar a importância de tal entendimento, emprestamos as reflexões propostas pelo pensador sardo quando afirma que: “A ‘união’ não é só aproximação entre corpos físicos: é comunhão de espíritos, é colaboração de pensamento, é apoio recíproco no trabalho de aperfeiçoamento individual, é educação recíproca e recíproco controle” (GRAMSCI, 2004b, p. 212).
A gestão democrática, portanto, como possibilidade de vivência da democracia, constitui-se como processo dialético de aprendizado e de ação coletiva, mesmo que sob os limites da democracia liberal que orienta as relações sociais e políticas atuais. Para compreender o exercício democrático no contexto educacional, como recorte específico da realidade mais ampla, identificamos como a gestão democrática é, na possibilidade de efetivação do princípio constitucional, prevista e efetivada nos Sistemas Municipais de Ensino do Paraná.
Sistemas municipais de ensino no Paraná e a democracia no contexto local
A discussão sobre democracia pode conduzir os sujeitos envolvidos no debate a uma visão idealista de seu significado, visto que o termo por si só não expõe as dificuldades para sua concretização na materialidade concreta. Por isso, o exercício da democracia na realidade empírica pode não se efetivar da maneira como está prevista pelos teóricos e disposta na legislação pertinente, principalmente porque o conceito de democracia que orienta os documentos legais, conforme exposto anteriormente, é a expressão dos interesses daqueles que exercem o domínio em dado período histórico.
Uma rápida incursão pela história social brasileira pode oferecer a noção de como a democracia, o direito dos cidadãos e a organização político-administrativa, sob o manto da teoria liberal, sempre estiveram ligados aos interesses econômico-corporativos. O direito ao voto nasceu ligado ao poder econômico dos votantes, considerados “homens bons”; às mulheres foi permitido o voto apenas em 1932; e o sufrágio universal, sem qualquer distinção econômica, social ou étnica, só se consolidou formalmente com a Constituição da República de 1988. Isso quer dizer que a democracia brasileira, além de recente, se comparada a outros países, tem como norte a emancipação política dos sujeitos, de modo a assegurar-lhes a participação por meio do sufrágio universal. Em contextos mais amplos, seja nacional ou estadual, a participação dos cidadãos nas decisões políticas por meio de representantes não garante que os interesses dos representados sejam orientadores para discussões e decisões, por isso é uma participação limitada. Sob a égide da democracia liberal, essa participação por representação é aquela possível nos limites da atual forma de sociabilidade.
Nos contextos locais (municipais), a vivência da democracia pode indicar que, estando mais perto dos governantes, o cidadão comum tem maior possibilidade de interferir nas decisões. No entanto, a análise dos contextos locais indica contradições a esse respeito. Para analisar a questão e sendo o recorte do contexto geral, a opção municipal em constituir sistemas próprios de ensino indica o quão difícil pode ser tal empreitada. Utilizamos, portanto, os municípios paranaenses que já constituíram sistemas próprios de ensino para a análise a respeito da implementação do princípio da gestão democrática na educação, em especial nas previsões legais e normativas a respeito da designação de diretores de escolas.
O reconhecimento dos municípios como entes autônomos na estrutura político-administrativa brasileira é considerado um avanço na Constituição Republicana de 1988. No campo da educação, esse avanço está disposto no artigo 211 ao prever que: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino” (BRASIL, 1988, p. 139). Esse dispositivo foi reafirmado no artigo 8º da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). De acordo com Sarmento (2005, p. 1354), “[...] a criação do sistema municipal de ensino é uma questão estreitamente relacionada ao pacto federativo no Brasil, indo além da política de municipalização, acentuada nos anos de 1990, firmando o município a sua autonomia”.
Esses dispositivos, da Constituição da República e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, contribuem para a elevação dos municípios a ente federado autônomo, podendo criar, organizar e implementar ações para o funcionamento de um sistema municipal de ensino capaz de envidar esforços para o desenvolvimento educacional local. Ainda, a existência de Sistemas Municipais de Ensino pode indicar a ampliação da participação social na gestão da educação municipal, ou seja, o exercício da gestão democrática localmente.
No entanto, na realidade paranaense, ainda são poucos os municípios que assumiram legalmente a responsabilidade por um Sistema Municipal de Ensino, divergindo em relação aos outros estados da região Sul. Segundo Werle, Thum e Andrade (2010), em 2007, o Rio Grande do Sul já contava com 37% dos municípios com Leis específicas sobre a criação de Sistemas de Ensino; e, segundo Santos (2012), Santa Catarina contava com 58%; enquanto Nardi (2018) indica que atualmente o estado conta com 95% dos municípios com Sistemas Municipais instituídos6. No Paraná, apenas 4% dos municípios optaram por essa alternativa, conforme pode ser verificado na Tabela 1 que segue.
Total de Municípios no Estado | Municípios com Sistema Municipal de Ensino | Municípios vinculados ao Sistema Estadual de Ensino |
---|---|---|
399 | 16 | 383 |
100% | 4% | 96% |
Fonte: Websites das Prefeituras e Câmaras Municipais dos 399 Municípios do Paraná.
Nota: Dados organizados pela autora (2017).
O pequeno percentual de municípios paranaenses que optaram em constituir Sistemas próprios de Ensino pode indicar, conforme Abrucio (2005, p. 49), a sobrevivência de “[...] resquícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local” e que “[...] diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a combinação entre descentralização e democracia”. Sobre a realidade paranaense, Oliveira (2001) aborda a manutenção histórica de determinadas famílias no cenário político do Estado, de tal forma que o domínio exercido por um pequeno grupo se torna determinante nos encaminhamentos políticos locais, impedindo a participação do cidadão comum nos processos decisórios. Sobre essa questão, ainda, Oliveira (2007) ressalta que mesmo o estado sendo apontado como exemplo de modernidade, o comando político está nas mãos de determinados grupos há quase três séculos, formando uma intricada rede de relações pautada em interesses políticos e econômicos7. Tais relações, de interesses políticos e econômicos, também se evidenciam em inúmeros municípios, influenciando sobremaneira nos encaminhamentos políticos locais. Sob essas condições políticas, o exercício democrático fica deveras comprometido.
Em que pese o reduzido número de municípios com Sistemas Municipais de Ensino legalmente instituídos8 demonstrar a fragilidade dos governos locais em constituírem-se em gestores autônomos em relação à educação, as iniciativas normatizadas apontam para a vivência democrática nas realidades locais, mesmo sob os limites sociais, políticos e econômicos evidenciados. Assim, a possibilidade de consolidação da cidadania por meio do fortalecimento da participação nos processos decisórios não pode ser desconsiderada, principalmente quando determinados municípios indicam que pretendem exercer a competência que lhe foi concedida constitucionalmente. Por isso, a criação de Sistemas Municipais de Ensino e o fortalecimento das ações coletivas em prol do exercício da gestão democrática no âmbito local indica importante passo para a formação de uma consciência coletiva sobre os rumos educacionais necessários para a transformação da realidade local e, quiçá, a transformação da realidade nacional.
A partir do pressuposto de que ao criar seu próprio Sistema de Ensino o município declara sua autonomia para os assuntos educacionais de sua competência, conforme indicações da Lei nº 9.394/96, e considerando que, estando nessa situação também há indicação de exercício da gestão democrática, mesmo sob a perspectiva liberal de representatividade, é que se faz necessário desvelar como a gestão democrática se mostra, ou não, efetiva nessas realidades. Por isso, a seguir, analisamos como os tais municípios estão normatizando a designação de diretores para a atuação em escolas sob a sua responsabilidade.
A designação de diretores de escolas: limites e possibilidades para a gestão democrática
Nos limites da atual forma de sociabilidade, a democracia possível está vinculada aos interesses econômico-corporativos e, dessa forma, representa as defesas de determinados grupos que exercem o domínio sobre toda a coletividade em dado espaço e tempo histórico. A gestão democrática da/na educação não fica alheia a essa lógica, sendo reproduzidas nos encaminhamentos político-educacionais as determinações mais amplas que regem a vida em sociedade. Por isso, a organização de Conselhos de Controle Social, Conselhos de Educação e Escolares são organizados pela lógica da representatividade de determinados segmentos considerados importantes para o trato das questões educacionais, e a participação da comunidade em geral ocorre pelo direito ao voto.
Entendemos que a gestão democrática da educação municipal, nas realidades com Sistemas Municipais de Ensino instituídos, se dá a partir da composição de Conselhos Municipais de Educação e de Conselhos Escolares que tenham em sua composição diferentes segmentos representados, os quais têm a responsabilidade em propor, acompanhar e avaliar ações educacionais com vistas à melhoria da oferta do ensino e dos resultados educacionais. As discussões e as ações coletivas desses órgãos oferecem importante contribuição no processo de conscientização coletiva em prol dos objetivos educacionais a serem perseguidos nos contextos locais.
No âmbito escolar, a gestão democrática, para além da participação da comunidade interna e externa à escola na elaboração e no acompanhamento dos Projetos Político-Pedagógicos e da participação em Conselhos Escolares ou equivalentes, conforme previsto na legislação, também ocorre na escolha dos dirigentes escolares. Nesse sentido, entende-se que a forma escolhida para a designação de diretores escolares pode ser importante indicativo a respeito de como a gestão democrática se efetiva, ou não, no interior das escolas e a respectiva relação destas com as instâncias administrativas do sistema educacional, principalmente em relação às Secretarias Municipais de Educação, ou equivalentes.
Apesar da existência de estudos já realizados sobre as alternativas possíveis para a designação de diretores escolares, consideramos as indicadas por Paro (2003) aquelas que melhor expressam as possibilidades existentes na atual organização política de estados e municípios, ou seja, a nomeação, o concurso e a eleição. A nomeação é a forma de designação de diretor pela livre indicação da autoridade pública, o concurso diz respeito àquela vinculada à carreira específica e a eleição é a forma que tem manifestação da vontade dos sujeitos envolvidos, ou seja, da comunidade escolar, por meio do voto, seja direto ou por representação (PARO, 2003).
Dentre as três alternativas apontadas, a eleição é aquela que mais se aproxima de uma perspectiva democrática, visto que, mesmo dentro dos atuais limites de consciência coletiva em razão da forma de sociabilidade que rege a sociedade, supera o clientelismo político-partidário presente na primeira forma e o provimento meramente técnico presente na segunda, fato que muitas vezes não considera a relação de pertencimento necessária do diretor com a comunidade escolar. Tanto a nomeação quanto o concurso indicam, de maneira não exclusiva, que a efetivação da gestão democrática pode ser inviabilizada. Nesse sentido, a eleição tem maior possibilidade de envolver coletivamente os sujeitos na gestão da escola, em um processo de responsabilização e controle no qual todos os envolvidos aprendem a emergência da união em prol de objetivos comuns. Essa forma de escolha torna-se dialética ao promover o debate sobre a escola pública, ao propiciar a vivência democrática e, ao mesmo tempo, educar para a democracia.
No entanto, mesmo em realidades que optaram em constituírem Sistemas Municipais de Ensino, e, por isso, declararam legalmente o exercício da autonomia pautada em processos democráticos, a democratização da escolha de diretores não se evidencia em todos os municípios pesquisados, conforme pode ser visualizado no Quadro 1 a seguir.
Município | Documento orientador para a Designação de Diretores | Forma de escolha de Diretores de Escola | Responsáveis pelo processo de escolha |
---|---|---|---|
Araucária | Lei nº 2.060/2009 | Eleição | Comunidade Escolar |
Cascavel | Lei nº 6.407/2014 | Eleição | Comunidade Escolar |
Chopinzinho* | - | - | - |
Curitiba | Lei nº 14.528/2014 | Eleição | Comunidade Escolar |
Guarapuava | Lei nº 1.194/2002 | Eleição | Comunidade Escolar |
Ibiporã | Instrução nº 005/2011 | Eleição | Comunidade Escolar |
Iguatu* | - | - | - |
Londrina | Decreto nº 1.000/2013 | Eleição | Comunidade Escolar |
Palmeira | Lei nº 4.122/2016 | Nomeação | Prefeito Municipal |
Paranaguá | Lei nº 3.620/2016 | Eleição | Comunidade Escolar |
Pinhais | Lei nº 1.679/2015 | Eleição | Comunidade Escolar |
Ponta Grossa | Decreto nº 7.835/2013 | Eleição | Comunidade Escolar |
São José dos Pinhais | Lei nº 940/2006 | Eleição | Comunidade Escolar |
Sarandi* | - | - | - |
Telêmaco Borba | Decreto 22.558/2015 | Eleição | Comunidade Escolar |
Toledo | Lei nº 118/2014 | Eleição | Comunidade Escolar |
Fonte: Atos legais ou normativos que regulamentam a Eleição/Consulta Pública para designação de Diretores nos Municípios que instituíram Sistemas Municipais de Ensino no Paraná.
Nota: Dados organizados pela autora (2017).
*Municípios com Sistemas Municipais de Ensino instituídos por Lei específica, mas que não disponibilizaram os documentos necessários para a realização da pesquisa.
Os dados apresentados demonstram que três municípios não disponibilizaram a regulamentação específica e não ofereceram quaisquer informações a respeito da temática pesquisada; a maioria dos municípios (12) optou pela eleição para o processo de escolha de diretores de escolas; e um município utiliza a nomeação para a escolha.
Em relação aos municípios que não disponibilizaram a regulamentação necessária para análise, esclarece-se que, não estando disponíveis nos sites tanto da Prefeitura quanto da Câmara Municipal, optou-se pelo contato nos endereços eletrônicos disponíveis, mas não houve qualquer retorno sobre a existência ou não dos documentos solicitados. Por se tratarem de municípios com Sistemas Municipais de Ensino criados, a falta de acesso às informações municipais indica entrave para o acompanhamento local das políticas educacionais instituídas. Todavia, essa não é uma realidade exclusiva de tais municípios, visto que 19% dos municípios paranaenses não disponibilizam online quaisquer informações a respeito da legislação local, conforme pode ser observado na Tabela 2. Ressalta-se, ainda, que vários desses municípios sequer mantêm sites oficiais na web.
Informações não disponíveis | Informações disponíveis | Total de Municípios pesquisados | |
---|---|---|---|
Sem acesso | Fácil acesso* | Difícil acesso** | |
77 | 186 | 136 | 399 |
19% | 47% | 34% | 100% |
Fonte: Websites das Prefeituras e Câmaras Municipais dos 399 Municípios do Paraná.
Notas: Dados organizados pela autora (2016).
*Por fácil acesso consideramos as informações encontradas em ferramenta de busca ou link disponível nas páginas de Prefeituras e Câmaras Municipais.
**Por difícil acesso consideramos as informações não disponíveis em razão da inexistência de ferramenta de busca ou links que remetessem às informações necessárias.
No município de Palmeira, o cargo de diretor de escola é entendido como “[...] cargo em Comissão, de livre nomeação e exoneração do Chefe do Poder Executivo Municipal” (PALMEIRA, 2016, p. 1). No entanto, a nomeação é reservada “[...] exclusivamente, aos profissionais da educação, pertencentes ao quadro próprio do magistério público municipal” (PALMEIRA, 2016, p. 1), conforme estabelecido no parágrafo 1º do artigo 17 da Lei Municipal nº 4.133/2016.
Não obstante a nomeação prevista estar atrelada aos integrantes da carreira do magistério municipal, em tal prática subjaz o “clientelismo político”, fato bastante criticado por pesquisadores.
Se os poderes do Estado indicam livremente os diretores, sem a consulta ou com consulta formal, permanece instituída a tradicional forma baseada no tráfico de influência, que poderá até servir para o fortalecimento do Partido no Poder, mas desserve grandemente a Educação e a possibilidade de transformação do ensino. Nem a garantia da eficiência nem a certeza do reto encaminhar político se conseguem com essa forma de indicação. (MARÉS apudPARO, 2003, p. 14-15).
A manutenção no poder de determinado grupo político passa, necessariamente, pela sua capacidade de organização e sua hegemonia, que se fortalece pela previsão legal, pois, conforme observado no caso em tela, o grupo dominante que exerce o poder político local impõe “[...] a toda a sociedade aquelas normas de conduta que estão mais ligadas à sua razão de ser e ao seu desenvolvimento”, pressupondo que todos “[...] devem aceitar livremente o conformismo assinalado pelo direito” (GRAMSCI, 2007, p. 249).
Respaldado pela legislação, o “clientelismo político” fortalece-se como “[...] prática de relação de dependência e de troca de favores entre pessoas e grupos sociais” (PARO, 2003, p. 15). Isso foi evidenciado no Projeto de PLei nº 4.633/2017 que visava alterar o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei Municipal nº 4.133/2016, substituindo o termo “exclusivamente” por “preferencialmente”, de forma a possibilitar a nomeação de diretores de escola não integrantes da carreira do magistério municipal, iniciativa que favorece determinados interesses não explícitos na lei, comprometendo os possíveis nomeados aos interesses da autoridade que nomeia e/ou do grupo que indica a nomeação. A esse respeito, Paro (2003) alerta que:
Isso propicia um sem-número de injustiças e irregularidades, já que não existe um critério objetivo, controlável pela população, que, além de garantir o respeito aos interesses do pessoal escolar e dos usuários, possa também evitar o favorecimento ilícito de pessoas, situação que fere o princípio de igualdade de oportunidades de acesso ao cargo por parte dos candidatos. Além disso, esse procedimento tende a fazer com que o compromisso do diretor acabe se dando apenas com os interesses da pessoa ou grupo político que nomeia. (PARO, 2003, p. 18).
A nomeação de diretores de escola, portanto, tende a atender à lógica clientelista presente na política brasileira, podendo ser utilizada como moeda de troca, colaborando para a manutenção de determinada pessoa ou grupo no poder. Dessa forma, perpetua-se a prática coronelística, na qual o “curral eleitoral” se cristaliza “[...] pela política do favoritismo e marginalização das oposições” (DOURADO apudPARO, 2003, p. 14). Nessa prática, a democracia não existe, ignora-se a necessária relação da gestão com a comunidade escolar e as necessidades educacionais coletivas, priorizando-se os interesses políticos e ficando a possibilidade de participação inerte ou subordinada aos interesses do gestor municipal, que pode ou não considerar a realidade escolar para determinada nomeação.
Em contraposição à nomeação, a forma mais utilizada pelos municípios pesquisados para a escolha de diretores de escola é a eleição, colocando sob a responsabilidade da comunidade escolar a decisão sobre essa questão. Em que pese os 12 municípios terem regulamentação específica para a eleição de diretores de escola (também denominada de “Consulta Pública pela Comunidade Escolar”), algumas considerações precisam ser tecidas, visto que o exercício da democracia (formal e representativa) prenunciada não ocorre da mesma forma em todas as realidades. Embora em todas as realidades os responsáveis previstos pela escolha sejam aqueles que integram um colegiado eleitoral, e suas composições estejam próximas, há de considerarem-se algumas divergências ou inclusões que podem indicar como a oportunidade de exercício formal da democracia é entendida. Os dados sobre as exigências básicas para a candidatura, a composição do colegiado eleitoral e o peso dos votos para o processo de escolha de diretores estão expressos no Quadro 2.
Município | Exigências básicas para a candidatura | Composição do Colegiado Eleitoral |
Peso dos votos por segmento |
||
---|---|---|---|---|---|
Escola | Comunidade | Escola | Comunidade | ||
Araucária | Integrantes do QPM, desde que licenciados. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 12 anos) Pais ou Responsáveis |
Cada voto = 1 | Cada voto = 1 |
Cascavel | Integrantes do QPM, desde que licenciados. | Servidores, Professores e Estagiários | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Curitiba | Integrantes do QPM (sem indicação de formação). |
Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Guarapuava | Integrantes do QPM, desde que graduados ou pós-graduados em Administração ou Gestão Escolar. | Servidores e Professores | Pais ou Responsáveis | Cada voto = 1 x nº de pais ou responsáveis | Cada voto = 1 |
Ibiporã | Integrantes do QPM, desde que licenciados. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Londrina | Integrantes do QPM, desde que licenciados em Pedagogia ou com outra licenciatura + pós-graduação em administração ou Gestão escolar. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Paranaguá | Integrantes do QPM ou servidores, desde que licenciados em pedagogia ou graduados em curso normal superior. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
Cada voto = 1 | Cada voto = 1 |
Pinhais | Integrante do Quadro de servidores, desde que licenciado. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Ponta Grossa | Integrantes do QPM, desde que licenciados em Pedagogia ou com outra licenciatura + pós-graduação stricto sensu em educação. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
São José dos Pinhais | Servidores estáveis com formação superior na área de educação. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
Cada voto = 1 | Cada voto = 1 |
Telêmaco Borba | Integrantes do QPM, desde que licenciados ou com pós-graduação stricto sensu em educação. | Servidores e Professores | Alunos (+ de 16 anos) Pais ou Responsáveis |
50% | 50% |
Toledo | Integrantes do QPM, desde que licenciados em pedagogia ou graduados em curso normal superior. | Servidores e Professores | Pais ou Responsáveis | Cada voto = 1 x 3 | Cada voto = 1 |
Fonte: Atos legais ou normativos que regulamentam a eleição/consulta pública para designação de diretores nos municípios que instituíram Sistemas Municipais de Ensino no Paraná.
Nota: Dados organizados pela autora (2017).
*QPM = Quadro de Profissionais do Magistério.
Em relação às exigências para a candidatura e consequente exercício da função de direção, a maioria dos municípios prevê que os candidatos devem ser profissionais integrantes do Quadro de Profissionais do Magistério com formação em nível superior, com exceção de Curitiba em que não há qualquer menção a esse respeito9. Essa exigência está em consonância às normas nacionais sobre a formação para o exercício de funções de administração escolar, conforme estabelecido no artigo 64 da Lei nº 9.394/96.
Quanto à questão específica, objeto da presente análise, a participação no processo de escolha tem aproximações, visto que o colégio eleitoral se faz presente nos processos de escolha. No entanto, algumas questões diferenciadas precisam ser trazidas à discussão por não oportunizarem participação equitativa de todos os sujeitos afetos à escola. De forma geral, o colegiado eleitoral é composto por professores, funcionários, pais e alunos, mas há a inclusão de “estagiários” (CASCAVEL, 2014, p. 6), “[...] alunos com idade igual ou maior que 12 anos” (ARAUCÁRIA, 2009, s/p) a não previsão de participação de alunos (GUARAPUAVA, 2002; TOLEDO, 2014).
Quanto à participação de estagiários, é importante refletir sobre sua contribuição na gestão escolar. Embora o processo de escolha de diretores seja formativo e educativo, a sua participação no processo de escolha, apesar de importante, apresenta limites, visto que sua permanência no contexto escolar é efêmera, fato que os impede de conhecer as necessidades mais significativas da escola, os compromissos dos candidatos e, posteriormente, terem condições de acompanhar e fiscalizar as ações do diretor eleito. Além disso, a contratação de estagiários tem se caracterizado como uma burla às leis trabalhistas, pois tal contrato vilipendia a carreira docente por meio da exploração da mão de obra de estudantes em detrimento às contratações trabalhistas, criando uma situação ilusória de integração ao corpo de trabalhadores da escola, mas sem o reconhecimento da relação laboral. Por isso, a previsão de participação dos estagiários no processo de escolha de diretores esconde a exploração da mão de obra de estudantes, as condições precárias de trabalho no interior das escolas e, consequentemente, a desvalorização dos profissionais da educação.
A exclusão (ou não previsão) da participação de alunos (mesmo aqueles maiores de 16 anos) no processo, conforme normas dos municípios de Guarapuava e Toledo, precisa também ser analisada com cuidado, visto que tais dispositivos excluem sujeitos diretamente ligados às questões afetas à escola. Os alunos maiores de 16 anos que ainda estão na escola de ensino fundamental, nesse caso, são duplamente excluídos, pois, em sua maioria, tiveram um percurso escolar excludente, seja em razão das condições sociais, materiais ou educacionais e, quando permanecem na escola, são excluídos da participação no processo de escolha do diretor escolar, perdendo oportunidade ao debate sobre as questões educacionais, administrativas e financeiras que estão em pauta no período eleitoral. Nesse sentido, a vivência da democracia na escola é marcada pela exclusão já vivida no contexto social e, quem sabe, também no contexto educacional. A possibilidade de formação que o processo poderia oferecer fica perdida. No entanto, a inovação demonstrada pelo município de Araucária, ao incluir como votantes os alunos com idade igual ou superior a 12 anos, pode ser apontada como um avanço, visto que indica para um processo formativo de vivência da democracia e formação cidadã.
Quanto ao peso dos votos do colegiado eleitoral, os dados levantados demonstram como o processo democrático pode indicar para a igualdade dos sujeitos envolvidos ou mascará-los sob um manto de democracia, que omite como a participação da comunidade é considerada. Nos municípios de Araucária, Paranaguá e São José dos Pinhais, o voto é universal, sem qualquer discriminação entre os membros do colégio eleitoral (escola e comunidade). Dessa forma, o voto, independentemente do segmento, tem o mesmo peso na escolha, cada voto significa um voto. Essa forma contribui para o entendimento sobre a igualdade entre os votantes, sem qualquer privilégio em razão do segmento ao qual pertence o eleitor, pois “[...] o predomínio dos interesses da maioria – é sempre bom lembrar – é essencial à democracia” (ZABOT apudPARO, 2003, p. 90). Esse entendimento considera que a escola “[...] está a serviço da sociedade e o serviço por ela prestado extrapola ao interesse das categorias profissionais que nela trabalham (professores e funcionários)” (ZABOT apudPARO, 2003, p. 90).
Em que pese a importância da participação de todos no processo de escolha e da contribuição que essa participação oferece no processo formativo para a democracia, o voto proporcional é a forma mais presente para o processo eletivo em tela. Segundo Paro (2003, p. 88), o voto proporcional visa “[...] compensar com peso maior os grupos com menor número de indivíduos”. Os municípios de Cascavel, Curitiba, Ibiporã, Londrina, Pinhais, Ponta Grossa e Telêmaco Borba utilizam a proporcionalidade de 50% para cada segmento; o município de Toledo utiliza uma fórmula em que cada voto de professores e funcionários é multiplicado por três. No entanto, é o município de Guarapuava que guarda a maior curiosidade em razão à proporcionalidade: cada voto de professores ou servidores é multiplicado pelo número de pais ou responsáveis votantes, ou seja, todos os votos desse segmento valem, proporcionalmente, apenas um voto daquele - ato que, praticamente, inviabiliza um processo democrático e ignora a igualdade de participação. A esse respeito, considera-se que “[...] a democracia se deteriora quando o poder da minoria prevalece sobre os interesses da maioria! Igualar – em peso eleitoral – a maioria e a minoria – é subverter a democracia” (ZABOT apudPARO, 2003, p. 90). Todavia, é importante ressaltar, conforme abordado por Paro (2003), que
[...] o argumento importante dos que defendem o voto proporcional não é diretamente contra o voto de pais e alunos. Mas defendem que estes, por serem em muito maior número do que os professores e funcionários, podem desequilibrar as forças em seu favor pois, se os votos tiverem todos o mesmo peso, pode acontecer o caso de um grupo majoritário, pais por exemplo, elegerem sozinhos um diretor que porventura não tenha o apoio nem de funcionários nem de professores. (PARO, 2003, p. 90-91).
Inúmeras são as considerações que poderiam ser levantadas a respeito da proporcionalidade, mas a que mais se destaca é a possibilidade de ingovernabilidade da escola, caso o diretor escolhido não tenha o apoio interno (de professores e de funcionários). No entanto, tal argumento afronta cabalmente a democracia, visto que pode desconsiderar o poder de decisão de uma maioria contribuindo para a desvalorização da participação, tão necessária para o exercício democrático.
Por todas essas questões, o processo de escolha de diretores nos contextos locais pode vincular-se a diferentes compromissos e interesses, evidenciando concepções que se atrelam desde um clientelismo que deveria estar superado quanto uma democracia que omite e disfarça a direção da classe dominante que exerce poder local. Entretanto, a democracia, nos limites legais, normativos e políticos locais, precisa ser defendida, pois, caso contrário, abrem-se caminhos para avanços conservadores que negam e vilipendiam as conquistas em defesa da educação e gestão democráticas no contexto da escola pública.
A vivência da democracia no processo de escolha de diretores colabora para o desenvolvimento da consciência coletiva sobre a liberdade de escolha. Ao mesmo tempo, essa liberdade é acompanhada de responsabilidade pelos rumos da escola e da educação, pois “[...] só é liberdade aquela ‘responsável’, ou seja, ‘universal’, na medida em que se propõe como aspecto individual de uma ‘liberdade’ coletiva ou de grupo” (GRAMSCI, 2004a, p. 234). Por isso, a possibilidade de envolvimento da comunidade no debate a respeito da escola e na escolha de seu dirigente é um processo de formação ao mesmo tempo individual e coletivo que não pode ser negligenciado por aqueles que defendem uma educação para a liberdade, mesmo que nos limites da sociedade capitalista.
Considerações Finais
A análise a respeito das formas adotadas pelos Sistemas Municipais de Ensino para a escolha dos diretores de escolas relaciona-se com o entendimento sobre a democracia em geral e a gestão democrática da educação pública nos contextos locais.
Em um país como o Brasil, no qual a democracia, sob a influência dos interesses capitalistas, não está consolidada, pensar em perspectivas democráticas para a gestão educacional ainda é um solo pantanoso. Essa instabilidade torna-se determinante para os encaminhamentos municipais, visto que os interesses dos grupos dominantes, muitas vezes, se sobrepõem aos interesses da comunidade que está na escola pública e necessita dela.
As realidades investigadas apresentam diferentes normatizações a respeito da escolha de diretores, desde aquela que coloca nas mãos do gestor público a responsabilidade pela decisão, a partir do entendimento de “função de confiança”, atrelando-se a perspectivas clientelistas, até os processos de consulta pública com possibilidade de voto universal. A educação, portanto, evidencia, na qualidade de um dos elementos que materializa as contradições da sociedade, como o entendimento de democracia precisa ser ainda compreendido para que o princípio da gestão democrática deixe de ser formal e se torne real na condução das políticas educacionais e da escola.
Em face dos dados analisados e da defesa de um processo democrático formativo, com vistas à liberdade coletiva, da qual o sujeito não apenas participe com um voto mas se torne responsável pela decisão coletiva, é que as reflexões de Antonio Gramsci se tornam explicativas para entender como a gestão democrática pode colaborar para a formação de uma consciência coletiva.
Uma consciência coletiva, ou seja, um organismo vivo só se forma depois que a multiplicidade se unifica através do atrito dos indivíduos: e não se pode dizer que o “silêncio” não seja multiplicidade. Uma orquestra que ensaia, cada instrumento por sua conta, dá a impressão da mais horrível cacofonia; porém, estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um só “instrumento”. (GRAMSCI, 2007, p. 333).
Assim, a escolha de diretores por meio de eleição com participação ampla da comunidade é um processo contraditório que expressa verdade e engano sobre o entendimento da gestão democrática, mas, justamente por isso, contribui para o desenvolvimento da consciência coletiva, ultrapassando a democracia formal (liberal) e contribuindo para o alcance de uma democracia que tenha a liberdade como fim.