"Eu acho que a escola é uma coisa, mas escola da vida é outra coisa", anuncia Cláudia. Ela é uma jovem negra, não concluinte do ensino médio e moradora de uma região periférica da cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais). Iniciar esse texto com sua afirmação é proposital, numa iniciativa que busca apreender dimensões da socialização escolar, narradas e refletidas pelos(as) próprios(as) jovens. Nesse sentido, a proposta consiste no deslocamento da compreensão sociológica, que centraliza seu olhar na instituição escolar, para a análise nos sujeitos jovens, focando neles o eixo de reflexão sobre a experiência escolar. A intenção é perceber o social em seu estado incorporado e, assim, adensar a análise dos processos de socialização e experiências de exclusão escolares à escala individual.
Em diferentes circunstâncias, há uma tendência em conceber o tema da exclusão como um problema circunscrito a um conjunto de lugares e pessoas: população de baixa renda, marginalizados, pertencentes às classes populares ou trabalhadoras. No imaginário social, não é rara certa caracterização homogênea dos sujeitos excluídos: moradores de determinadas regiões da cidade - espacialidades segregadas e periféricas −, coletivos populacionais que compartilham precárias condições socioeconômicas e que, por isso, vivenciam coletivamente a exclusão social.
Esse jogo de palavras e representações que caracteriza a exclusão também se constrói no contexto escolar. Não raramente, "repetentes", "alunos com dificuldades de aprendizagem", "alunos difíceis", "famílias desestruturadas" são denominações que identificam condições de crianças e jovens nas escolas públicas brasileiras. Não obstante, as palavras constroem e exprimem a vida social e estão em jogo na luta política, pela imposição do princípio de visão e de divisão legítima do mundo social (BOURDIEU, 1990). Deste modo, problematizam-se os usos de nomeações generalizantes que indicam a existência da "desigualdade", mas não alcançam a multiplicidade de vivências e reflexividade dos sujeitos "excluídos". Ao estabelecer uma dimensão única de análise, geralmente, não se alcançam os pontos de vista e posições daqueles caracterizados por tais classificações. Logo, é preciso não apenas ajuizar a grande importância das palavras na disputa política, já que elas são categorias de classificação e transmissão da estrutura social, mas, sobretudo, por à vista o que os "excluídos" da escola têm a dizer.
Assim, este texto busca apresentar compreensões sobre a escola a partir das memórias e narrativas de jovens que estão, atualmente, fora do ambiente escolar. Portanto, a análise se constrói por uma perspectiva não escolar no estudo da escola, visto que "[...] a relevância analítica da instituição escolar não implica o seu estudo empírico" (SPOSITO, 2003, p. 215). A produção é resultado de uma pesquisa qualitativa com jovens moradores(as) do Aglomerado da Serra, complexo de vilas e favelas na região centro-sul da cidade de Belo Horizonte, realizada entre os anos de 2012 e 2014. Busca-se expor e analisar a singularidade da experiência escolar de dois jovens personagens, optando por uma postura metodológica da "sociologia dos indivíduos" (DUBET, 1994; LAHIRE, 2004; MARTUCCELI, 2007).
Há um privilégio metodológico por explorar os sentidos da escola a partir das narrativas individuais da experiência e memória desses sujeitos. Como adverte Marcel Mauss (1974, p. 181) "[...] nas sociedades, mais do que ideias ou regras, apreendem-se homens [mulheres], grupos e seus comportamentos." De maneira consonante, nas palavras de Bernard Lahire (2005, p. 31 e 32), há um esforço investigativo de "[...] não negligenciar as bases individuais do mundo social, e que estuda, assim, indivíduos atravessando cenários, contextos, campos de força etc., diferentes".
Nesta versão dobrada da realidade, o individuo não é redutível à sua origem social ou à sua posição social. Os sujeitos são definidos pelo conjunto das suas experiências socializadoras e de seus pertencimentos passados e presentes. Nos indivíduos, sintetizam-se ou combatem-se, combinam-se ou se contradizem diferentes elementos e experiências (LAHIRE, 2004). Assim, há potencialidade analítica nos relatos biográficos que apresentam memórias narradas do ponto de vista de quem as evoca (PAIS, 2001).
A sociologia da experiência social só pode ser uma sociologia dos actores (sic). Ela estuda representações, emoções, condutas e as maneiras como os actores (sic) as explicam [...]. Importa então estudar a subjectividade (sic) do actor (sic) e a sua atividade (sic). Não se trata de analisar só as suas representações, mas também os seus sentimentos e a relação que ele constrói com ele mesmo (DUBET, 1994, p. 262-263).
Diante da pressuposição de que "[...] os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados [...]" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), p. 116) potencializar ao máximo o encontro entre práticas e discursos, conceber os/as jovens como dotados(as) de reflexividade e teorizações próprias, lidar com "[...] a capacidade de suportar a palavra nativa" (GOLDMAN, 2008, p. 8) são tarefas fundamentais para teorizações sobre a escola que veem nos(as) jovens potentes interlocutores(as). Em outros termos, e parafraseando François Dubet, o texto busca privilegiar o encontro da sociologia dos sociólogos com a sociologia dos (as) jovens (DUBET, 1994).
A orientação teórica e metodológica consistiu-se na perspectiva de compreender as histórias de vida juvenis através de duas dimensões, necessariamente, imbricadas: os processos socializadores e os modos de individuação dos sujeitos, as relações de interdependência entre instâncias de socialização e a constituição dos indivíduos. A socialização, enquanto processo que envolve a construção e a manutenção dos laços sociais, é tema primordial da sociologia, desde os clássicos, e da sociologia da educação, particularmente. A socialização permanece, na atualidade, como potente conceito heurístico que viabiliza distintas maneiras de avistar teoricamente as dimensões do indivíduo e da sociedade. Em outras palavras, há múltiplas formas de apreensão e reflexão sobre as articulações entre instituições e sujeitos nas teorizações sociológicas, ora dando ênfase às imposições sociais sobre os indivíduos, ora privilegiando a autonomia dos indivíduos e suas ações ante as injunções sociais.
Decerto, as formas de entendimento da socialização acabam por possibilitar maneiras de examinar a questão amplamente colocada pelas ciências sociais, traduzida na relação entre ator e sistema, indivíduo e sociedade. O pressuposto é que de nada serve decodificar os grandes processos sociais sem ser capaz de compreender "[...] a vida das pessoas, a forma em que vivem, lutam e enfrentam o mundo" (MARTUCCELLI; SINGLY, 2012, p. 11). Por isso, entre as estruturas sociais e as singularidades biográficas, a atenção está voltada para as experiências juvenis, as maneiras de ser e estar no mundo, particularmente, relacionadas ao ambiente escolar. Por isso, junto às práticas socializadoras, os processos de individuação são dinâmicas imprescindíveis na análise sociológica contemporânea (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012). Entende-se a noção de socialização como um "[...] processo construído coletiva e individualmente capaz de dar conta das diferentes maneiras de ser e estar no mundo [...]" (SETTON, 2013, p. 199) e que abre possibilidades de reconhecer, nas dinâmicas socializadoras escolares, os processos de constituição dos indivíduos.
A proposta de refletir sobre a escola do ponto de vista juvenil consistirá em "[...] religar processos estruturais, espaços e itinerários pessoais" (SETTON; SPOSITO, 2013, p. 250). Para apreender em nível biográfico as vivências socializadoras e desafios estruturais enfrentados por jovens nos processos de escolarização, são apresentados Eduardo e Cláudia e suas experiências singulares1.
As entrevistas biográficas procuraram apreender a lembrança da vivência, a singularidade de situações, os fatos e as interpretações que os sujeitos deram às suas experiências na trajetória escolar. Buscou-se a memória do vivido, ou seja, as reminiscências de situações ocorridas entre oito e dez anos atrás, tecidas pelos próprios jovens, articuladores das dimensões vividas. Na posição de acompanhar os sujeitos e "[...] deixar expandir de maneira mais ampla e mais aberta possível o espaço da fala e das formas de existência do narrador" (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527, grifos da autora), a tarefa socioantropológica consistiu-se em estabelecer conexões entre as narrativas e as práticas juvenis com os esquemas conceituais acadêmicos, já que
[...] essa bricolagem é, afinal, o signo e a garantia de uma busca "humana" de compreensão e de conhecimento empreendida por seres singulares e endereçada a outros seres singulares. [...] Talvez o pesquisador, mesmo quando "armado" de seus modelos e grades, não faça e não possa fazer nada a não ser 'contar' por sua vez aquilo que lhe "contam" os relatos dos outros. É pouco e é muito, é o preço de uma ciência "humana" - e é seu tesouro (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 535).
Os encontros de pesquisa viabilizaram o acesso às narrativas biográficas e um acervo de experiências, práticas e reflexões individuais das vidas juvenis. José Machado Pais (2001), em obra que percorre narrativas biográficas juvenis, diz que os estudos de juventude precisam ser realistas num "sentido complexo", ou seja, há a necessidade de um conhecimento integrado, mesmo que, para isso, a tarefa do(a) pesquisador(a) seja juntar as partes, relatos fragmentados das contingências da vida, uma leitura entrelinhas que é tarefa de uma sociologia pós-linear a favor da interconectividade das experiências.
Eduardo: família e escola como suportes de individuação.
Eduardo era um jovem que se autodeclarava branco e tinha o ensino médio completo. Ele se identificava como artista plural − "MC [mestre de cerimônia] da cultura hip hop, poeta, compositor, ator, arte educador e gestor da sua própria carreira" (EDUARDO, 2012). Na época das entrevistas, tinha 22 anos. É o filho caçula de uma família de três filhos. Seu pai era motorista e a mãe trabalhava em casa, fazendo doces e salgados por encomenda. A mãe do jovem não terminou o ensino fundamental, estudou até a 4ª série e seu pai concluiu o ensino fundamental. A irmã mais velha cursou superior de jornalismo e cursava o mestrado em uma universidade pública federal. Seu irmão concluiu o ensino médio e cursava o ensino superior. A escolaridade mais elevada dos filhos em relação aos pais se evidencia, dado condizente com a situação de maior escolaridade da juventude brasileira em relação a seus pais, sobretudo nas classes populares. Tal elemento corrobora o reflexo da expansão do ensino médio a partir dos anos de 1990 e ampliação da obrigatoriedade e gratuidade desse nível de ensino (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011).
Mesmo que proveniente de uma família pobre, Eduardo não precisava contribuir intensamente para o sustento da casa. "Porque eu não tenho uma obrigação, assim, de ajudar aqui em casa. De pagar uma conta, sabe. Alguma coisa assim. Isso já ajuda demais na correria e tal" (EDUARDO, 2012). Mas lembra que, desde criança, era preciso "correr atrás" para adquirir suas coisas, fossem brinquedos e jogos eletrônicos, na infância, ou roupas e calçados, na adolescência. Diz ele: "Os meus pais, tipo, sei lá, não tinham muito recurso, assim. Éramos três filhos. Nunca chegamos a passar fome, dificuldade, assim, essas coisas, sabem... Mas tudo que a gente queria era meio que aquela coisa de 'vai atrás!'" (EDUARDO, 2012).
Assim como o título do conhecido livro de Cyntia Sarti (1996), "A família como espelho", a mesma imagem é usada pelo jovem como metáfora para narrar as íntimas relações entre as experiências e valores dos pais e os aprendizados dos filhos. "Acho que é muita influência isso, sabe. É espelho total do que os dois são e o quê que todos os filhos também são", narrou Eduardo. Em outras palavras, o jovem reconhecia-se como herdeiro, não de determinados bens de consumo, mas testemunha de uma história/laço em comum (SINGLY, 2007).
Com muita admiração, ele evidenciava a importância, principalmente da mãe, em seu percurso educativo. Para ele, uma mulher que, apesar das limitações em sua própria trajetória escolar, sempre foi presente e rigorosa no acompanhamento dos filhos. Destaca-se no relato uma frase contundente sobre a centralidade da mãe: "É só a presença mesmo!".
Que minha mãe ensinou pra gente. Com um pouquinho de estudo que ela tem. Ela é mó massa. Estudou até a quarta série e, tipo, ensinava a gente a fazer dever. Acho isso mó massa. É só a presença mesmo! Porque hoje em dia fico vendo, tem muita mãe que não ensina assim, sabe. E tem um estudo assim e tal. Ela não tinha, e ensinava e a gente aprendia, assim, tipo, tabuada, essas coisas e tal. Vamos pesquisar junto. A gente tinha uma enciclopédia que ficava até aqui. Tirou porque não tem mais hoje um porquê você ter uma enciclopédia em casa. Mas os trabalhos que a gente fazia, assim, tipo, olimpíadas, essas coisas, ela ajudava a gente a pesquisar. Ditava pra gente. Era como se fosse um Google assim [a enciclopédia]. E gigantesca... (EDUARDO, 2012).
O jovem estabeleceu uma forte relação da função socializadora da família atrelada à socialização escolar; as interdependências pessoais e ligações emocionais foram também densamente vividas e reconhecidas por ele. Contudo, nas relações familiares de Eduardo, percebe-se uma consciência de sua alteridade, uma dinâmica decisiva da sua construção individual como sujeito. As demarcações da autonomia como indivíduo eram possibilitadas também por outras instâncias fundamentais, os coletivos juvenis e a sua produção artística. A família incentivava, valorizava e reconhecia sua existência pessoal marcada por outras matrizes de cultura. No espaço familiar, ele mantinha referências de afeto, segurança e acolhimento, mas também a própria família sustentava suas escolhas individuais. O espaço privado familiar se configurava por formas relacionais e autônomas a serviço de gerenciamento do "eu", ou, como aponta François de Singly, nessa configuração familiar alcança-se a possibilidade de "estar juntos e livres" (SINGLY, 2007).
Eduardo assinalava o apoio irrestrito da família à sua carreira musical e artística. Quando falava sobre esse reconhecido suporte em sua sustentação como artista, o jovem destacava que a assistência não se restringia a um amparo enfraquecido. Mesmo que ele estabelecesse outros fortes referenciais identitários para a construção da sua própria história (como a cultura hip hop, curiosamente, outra instância nomeada como família), as práticas e narrativas no âmbito da família corroboravam o consenso de sua escolha por um estilo musical como profissão. Cyntia Sarti (2004) afirma que os/as jovens buscam outros referenciais para a construção da identidade fora do ambiente doméstico, prática de um processo de afirmação individual e social, recriando "famílias" (como construção de "nós"), fora de seu âmbito familiar de origem. Em expressões das culturas juvenis, é comum que grupos próximos se autodenominem como família, evidenciando uma reconstrução simbólica das relações familiares em outras bases (DAYRELL, 2005).
A família era, para Eduardo, espaço não só possível, mas ambiente favorável e referência para suas construções individuais. Era ao mesmo tempo "alicerce de identidade" (SARTI, 1999, p. 100) e "[...] suporte para sua individuação [...]" (MARTUCCELLI, 2007, p. 9) como artista, mesmo que o estilo musical não fosse apreciado por seu pai, conforme relatou.
Minha família apoia demais. Demais, assim. Não é aquele apoio do tipo "ah, vai lá fazer o show", sabe. É um apoio meio de tipo "o que precisar tá aqui". Tava pensando nisso esses dias, assim, tipo, minha família, mó, é... Mas, é, no início meu pai não gostava muito da música rap. Mas nunca foi contra eu cantar. Só tipo "ah, não gosto dessas músicas, não" e minha mãe sempre me deu ouvido. Mas a família sempre foi de boa, assim. Meu pai e minha mãe hoje em dia é alicerce pra mim, sabe (EDUARDO, 2012).
Entre os 15 e 17 anos de idade, Eduardo frequentava o ensino médio noturno em uma escola situada no centro de Belo Horizonte que recebia alunos de vários bairros da cidade e mesmo da região metropolitana. Todo o ensino fundamental foi cursado em uma escola pública dentro do Aglomerado da Serra. Segundo ele, a mudança de escola e a escolha pelo período noturno foram necessárias para conciliar a escolarização e o trabalho. E também foi oportuna para ampliação da sua rede de relações, para a descoberta e o interesse pelo movimento estudantil e pelo encontro com outros jovens que, como ele, "amavam rap" (EDUARDO, 2012). As experiências escolares no ensino médio foram lembradas de maneira muito positiva, sem lembranças sobre a relação com professores(as), mas, principalmente, por narrativas que centralizavam a sociabilidade e as relações de amizade. Apesar de não se considerar estudioso, Eduardo não teve qualquer reprovação em sua trajetória. Coincidentemente, no dia anterior a uma das entrevistas, ele retornava da escola com seu histórico escolar.
Ontem, eu peguei meu histórico. Sabe qual foi minha maior nota no ensino médio? Setenta e um. Eu era muito ruim. Ontem, eu tive a certeza que eu nunca fui bom aluno. De ter uma nota boa mesmo, e tal. Jamais. Setenta e um é muito ruim, né. Nossa! Que é isso! Não sei por que eu passava de ano assim. Eu nunca fui de matar aula. Nunca, nunca, nunca! Nem quando estudava no bairro aqui. Sempre achei a escola um lugar massa, assim, de ir, conviver, trocar ideia. E eu não lembro, assim, na minha trajetória, assim, de escola, eu parando pra estudar mesmo, de verdade, sabe. Eu sempre, tipo, "ai vai ter prova amanhã, estudo isso aqui" e tal (EDUARDO, 2012).
A noção de experiência considera a heterogeneidade dos princípios culturais e sociais que organiza as condutas em uma sociedade que não é una, mas a justaposição de comunidade, mercado e historicidade. Assim, Dubet afirma que, numa prática reflexiva, os indivíduos agem por meio de três lógicas de ação: uma lógica de integração, a lógica estratégica e a lógica de subjetivação. "O sujeito social é definido por um jogo de tensões, por um trabalho e não por um ser [...]" (DUBET, 1994, p. 260), por isso, a necessidade da sociologia voltar-se para a experiência de indivíduos particulares que constroem seu mundo e sua subjetividade numa história singular. Os processos de construção do significado da experiência são cada vez mais uma prerrogativa dos atores. Partindo da conceituação de Dubet (1994) sobre as três lógicas de ação e suas relações interpenetráveis, a experiência escolar de Eduardo configurou-se pela tríplice combinação. Nessa fala do jovem sobre sua tática de estudo que possibilitou êxito nos resultados das atividades avaliativas, vê-se o acionamento da racionalidade instrumental, numa lógica estratégica com relação ao seu desempenho. Os recursos foram movimentados com a capacidade de responder às exigências escolares, permitindo alguma integração ao sistema, ao mesmo tempo em que questionava a própria lógica da instituição.
Contudo, a escola, especialmente a de ensino médio, foi espaço basilar para experimentações e construções identitárias e de subjetivação pela música e pelos coletivos juvenis. Assim, se os sujeitos desempenham diversas lógicas de ação, é também porque os espaços e, aqui, a escola veem-se também estruturados por diferentes princípios e lógicas. Por isso, a experiência escolar deve ser entendida pelas condutas individuais e coletivas "[...] dominadas pela heterogeneidade de princípios constitutivos e pela atividade dos indivíduos que devem construir o sentido de suas práticas no seio desta mesma heterogeneidade" (DUBET, 1994, p. 15).
Eduardo se identificava como pertencente à "turma do fundão", mesmo sem se considerar indisciplinado ou do tipo que deu "trabalho aos professores". Quando era necessário realizar alguma atividade, sua postura era: "Agora eu quero ser um aluno responsável, aí sento na primeira cadeira" (EDUARDO, 2012). Com ampliadas relações de interação, se considerava um "turista" na sala de aula, não porque era infrequente, mas porque se deslocava entre todos os grupos e lugares. Não se percebia como participante de turminhas, já que construiu interações de sociabilidade alargadas na escola e, por isso, afirmou: "Eu sempre fui meio de todas panelinhas... sei lá, acho que isso me ajudava também" (EDUARDO, 2012).
A escola foi também o ambiente de vivências no movimento estudantil. Eduardo envolveu-se com a luta pelo meio-passe para estudantes e tentou construir um grêmio na escola de ensino médio. As vivências do jovem na expressão musical do hip hop e a prática contestadora do rap, estilo reconhecido desde sua origem pelas denúncias de injustiças e opressões (DAYRELL, 2005), parecem ter se vinculado às possibilidades de participação na escola. Em outras palavras, entre o rap e o movimento estudantil havia práticas consonantes de denúncia e luta. A escola foi ainda o espaço de contestação e negociação. Suas características pessoais de carisma e liderança foram exercidas nesse contexto:
Eu queria fazer o grêmio. Eu causei lá na escola. Um dia lá qualquer, eu passei em todas as salas do segundo ano falando que... o discurso era mais ou menos assim, que "A gente é obrigado a ter um grêmio e eles não deixam". E falei mal da diretora e tal. Aí todo mundo desceu pro pátio. Você já foi nessa escola? Então, não tem aquela escada, assim? Foi incrível. Eu sem megafone. Eu no meio. O povo tudo aqui. Umas 200 pessoas aqui. Umas 200 aqui. E umas 500, assim, no pátio. A diretora enlouqueceu. "O que está acontecendo?". Nunca tinha acontecido isso. "Vão voltar todo mundo pra sala!". E sem megafone, eu: "A gente não vai voltar enquanto não tiver grêmio". E todo mundo "Não!" (EDUARDO, 2012).
A escola de ensino médio era um espaço referência para as relações de sociabilidade permeadas pela música. Entre tantas amizades, o jovem construiu forte relação com uma colega, Amanda, que "cantava e tinha uma voz bacana. Não cantava rap, só que ela amava" (EDUARDO, 2012). Assim, seu primeiro grupo musical teve início na escola. Antes do início das aulas e nos intervalos, Eduardo e Amanda cantavam as letras de grupos de rap brasileiros: SNJ (Somos Nós a Justiça), RZO (Rapaziada da Zona Oeste) e Racionais MC´s. Outro jovem estudante se juntou aos dois com a proposta de ser o DJ e completar a formação do trio2.
A escola foi palco para as primeiras apresentações musicais. Os três jovens passaram a cantar, regularmente, no momento do recreio e, pelo menos uma vez ao mês, no auditório da escola. Isso também era possível em função das articulações de Eduardo com a direção da escola, que parecia aberta para o diálogo com os/as jovens. Assim, nos momentos de intervalo, ligavam um som, improvisavam letras e dançavam. "Não sei dançar nada, mas na época eu fingia que dançava, aí, vinha um ou outro e dançava ali também" (EDUARDO, 2012). Com isso, o grupo formou um público da/na escola composto por jovens pertencentes a diferentes regiões da cidade. Eduardo relatou a variedade de sujeitos presentes na instituição escolar e que apoiavam o grupo, desde adultos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) - como se lembrou de uma estudante de cerca de 50 anos que se tornou "super fã" - aos/às jovens de outros morros e vilas periféricas da cidade, que se identificavam com o grupo. "[...] Eu dialogava com todas essas galeras, sabe" (EDUARDO, 2012). O grupo musical ganhou visibilidade, realizou diversas apresentações em Belo Horizonte e outras cidades. Eduardo narrou, por exemplo, um significativo show no Rio de Janeiro, convite que surgiu de um encontro do movimento estudantil na capital carioca e do seu envolvimento com a militância estudantil.
Como aponta Pais (2006), as culturas juvenis, além de socialmente construídas, têm também uma configuração espacial. De maneira inusitada, a escola constituiu-se como lugar referência na construção das vivências de Eduardo com a produção musical, já que essa não é dimensão comum às instituições escolares, tão marcadas por lógicas disciplinadoras e espaços rígidos. Essa instituição, ao contrário da sua prática político-pedagógica cotidiana, foi ressignificada pelo jovem como um ambiente de experimentação, estreitamento de relações identitárias e reconhecimento pela música que marcam substantiva e positivamente sua construção biográfica.
Portanto, a experiência escolar marcou densamente sua identidade juvenil e sua singularização, mas não por uma cultura escolar que valoriza os conteúdos formais e disciplinares, avaliações e aproveitamento, relações de ensino e aprendizagem. As reelaborações de Eduardo apontaram para outros sentidos da escola, valorizados pelos jovens. É o próprio jovem quem destaca que, no período do ensino médio, alargou o entusiasmo pelas experiências e descobertas do universo das artes e vislumbrou possibilidades de continuidade da sua trajetória em projetos profissionais ligados à cultura musical: "É isso que eu quero pra minha vida!" (EDUARDO, 2012).
Cláudia: entre espaços de socialização ambíguos e modos de individuação pelo enfrentamento e reconhecimento
Cláudia nasceu e cresceu no Aglomerado da Serra. A dança marcou a vida dessa jovem negra, única filha em uma família com outros cinco irmãos. Na época das entrevistas, a jovem, que não havia concluído o ensino médio, tinha 24 anos e vivia com sua mãe, a avó materna e quatro irmãos. Sua mãe era faxineira diarista e a avó era pensionista aposentada. A mãe e a avó não estudaram. Nenhum dos irmãos concluiu o ensino médio. Ela era educadora social e desenvolvia oficinas de dança em vários projetos sociais.
No momento das entrevistas, ela mantinha um contato mais distante com o pai. "Hoje eu não tenho tanto contato com o meu pai. No princípio, né, eu tinha bastante contato, assim, por causa da escola, né" (CLÁUDIA, 2012). A relação mais distanciada marca suas lembranças sobre ele, intimamente relacionadas às vivências escolares na infância. Entendendo a família como um "mundo de relações" (SARTI, 1996), há um emaranhado de distintas conexões da jovem com cada familiar. Assim, "[...] a família torna-se um campo privilegiado para se pensar a relação entre o individual e o coletivo" (SARTI, 2004, p. 13).
A situação financeira da família era difícil. As mulheres da casa tinham papel de liderança para sobrevivência. O sustento econômico era garantido, principalmente, pela avó e pela jovem.
Eu sustento, assim, a casa. Pagando algumas contas. Fazendo algumas coisas, né. Tipo, minha mãe faz as compra, assim. Porque minha avó faz a compra mais pesada. Minha mãe, tipo, faz a compra, assim, legumes em casa, essas coisas, assim. E minha avó paga conta de água e conta de luz. E eu pago, tipo, outras contas. E às vezes ajudo também no gás, ajudo quando a conta vem mais alta (CLÁUDIA, 2012).
Na experiência de Cláudia, família e escola se constituíam como espaços de socialização não apenas múltiplos, mas, principalmente, distantes, com poucos pontos de contato. A mãe, segundo a jovem, pouco incentivou a permanência dela ou dos irmãos na escola. Ou seja, não havia "[...] sinergia de projetos pedagógicos entre a família e a escola" (SETTON, 2011, p. 114).
Eu que tenho o estudo mais avançado, assim. Tipo, ensino médio. Os outros pararam bem abaixo de mim. Meu irmão mais velho parou, acho que, nem lembro... Eu sei que ele tava na minha frente. Eu acho que eu passei dele. Nem sei que série que meu irmão tava. O de 20 [anos] agora também parou. Na quarta série, acho. Quinta série. Mas mesmo assim, parou na quarta, quinta série, não sabia escrever o nome dele ainda até pouco tempo (CLÁUDIA, 2012).
A jovem assinalou a precariedade e tantas dificuldades do trabalho da mãe como empregada doméstica. Em variadas situações, Cláudia falava sobre tarefa cotidiana da mãe de ter que "[...] limpar o banheiro dos outros" (CLÁUDIA, 2012), expressando o reconhecimento da "[...] exploração que [a mãe e outras mulheres] sofrem no emprego, identificando os modos pelos quais são sujeitas a várias humilhações desnecessárias e situações degradantes" (HOOKS, 2013, p. 1353). Ela disse: "Porque minha mãe é um outro mundo também. Foi jovem mulher, com seis filhos. Trabalha. Cuida de filho. Então tem certos momentos que ela não vai preocupar com estudos" (CLÁUDIA, 2012).
Dessa forma, perante as situações familiares que se configuram constantemente como desafiadoras, a posição de Cláudia era assumir certas responsabilidades em relação aos irmãos mais novos. A jovem sentia-se comprometida em conduzir a vida dos irmãos, principalmente, na escolarização dos mais novos, na época com 12 e 15 anos e que estavam fora da escola. São as vivências de Cláudia em outras instâncias socializadoras que permitiram particulares modos de intervenção na família. A partir da sua rede de contatos com ONGs e projetos sociais no Aglomerado, a jovem procurou pessoas que pudessem auxiliá-la no contato com escolas ou na inserção dos irmãos em modalidades esportivas, artísticas e culturais em oficinas socioeducativas.
Aí tive que apelar! Fui na ONG e falei: "Ó, ele tá sem escola. Eu queria ver qual é a possibilidade". Como rede é melhor quando chega assim, né. Que aí vê a possibilidade de ver, né, pra ele voltar pra escola. Só que ele não queria voltar pra escola de lá [do Aglomerado da Serra]. Queria outra escola ou atividade. Daí ele escolheu natação. [...] E aí as coisas são muito grandes. As coisas são milhões e milhões de coisas que eu não dou conta de fazer sozinha. Porque aí fica tudo em cima de mim, assim (CLÁUDIA, 2012).
Ela assumiu a liderança da família, deu suporte importante na manutenção dos laços familiares e foi a referência nas vivências dos irmãos. Assim, recaía sobre a jovem o peso de sentir-se incapacitada para encarar tantas situações que a mobilizavam cotidiana e ordinariamente. Por isso, se a ambição da sociologia dos indivíduos está em perceber, a partir de experiências singulares, traços mais generalizados de determinado grupo social, é viável interpretar que as provas familiares que Cláudia enfrentava eram desafios de uma trama social compartilhada por outros sujeitos, moradores das periferias urbanas, que experimentavam a precariedade ou inexistência de algumas instituições e mesmo a ausência de direitos. Desse modo, as contingências da vida da jovem mostravam que
Os indivíduos enfrentam sozinhos, mais sozinhos em alguns lugares que outros, a vida social, posto que se veem obrigados a buscar respostas por si mesmos a uma série de falências. [...] Neste contexto, os suportes e apoio não se encontram principalmente nas instituições, têm que ser produzidos (ao menos sustentados e recriados) pelo próprio indivíduo (ARAUJO; MARTUCCELI, 2012, p. 243).
Cláudia reconhecia os limites escolares da mãe e da avó e a sua distância em relação a experiências em espaços de saber e poder, valorizados ou tidos no imaginário social como legítimos. A jovem expôs e refletiu as vivências das duas no contexto de sobrevivência de uma geração de mulheres negras, pobres e faveladas, que enfrentaram cotidianamente o machismo e o racismo com desafios na socialização familiar, na transmissão aos filhos e no controle de valores culturalmente reconhecidos. A família "[...] continua tendo essa função de dar sentido às relações entre os indivíduos e servir de espaço de elaboração das experiências vividas" (SARTI, 2004, p. 17). Assim, configurou-se como uma forte instância socializadora em sua construção como jovem mulher negra.
Contudo, a ambivalência marcava seu discurso em relação à família, ao mesmo tempo espaço de reconhecimento e de conflito. Mesmo diante da irrestrita defesa e gratidão à mãe e à avó, Cláudia também tomou distância de seus pertencimentos de filiação e concebeu que sua construção como sujeito é configurada por outras dimensões vivenciadas nos movimentos de mulheres e coletivos juvenis, por exemplo. Cláudia respondeu singularmente às relações internas na família, mas trouxe à convivência cotidiana "[...] a experiência também singular com o mundo exterior [...]" (SARTI, 2004, p. 19), não vivenciada e nem sempre compreendida pelos familiares.
Porque o que a minha avó e a minha mãe me passam é muito mais... É, assim, muito mais, mais forte do que eu hoje tô fazendo. É muito mais raiz que tudo, assim. Na verdade, ao longo do tempo, a gente vai crescendo e a gente vai perdendo essa origem, né. A gente tá vivendo pela gente mesmo, sabe? A gente não tá vivendo pela raiz da gente, que formou a gente, criou a gente. Que a gente tem isso tudo hoje é por causa de outras pessoas, sabe? [...] Mas, assim, quando começa a atingir, assim, minha avó, minha mãe, é outro contexto sabe? É uma outra história. Tá pegando numa coisa que é muito mais importante. É mais fácil chegar e dar em mim um couro do que chegar e xingar minha avó e tratar ela mal e minha mãe. Sabe, é uma outra coisa. São as pessoas que eu tenho e se eu puder proteger de todas as armas do sistema eu vou proteger, sabe? Como também meus irmãos e tal. Hoje, eu, Cláudia, respeito demais a cultura da minha mãe, a cultura da minha avó. Hoje o conhecimento que eu tenho partiu muito desse processo, né. Lógico, tipo assim, e respeitando que nem tudo que hoje eu sei minha vó sabe, minha mãe sabe. Então, às vezes, o que hoje o Brasil tá sendo, minha mãe e minha vó nunca vão conseguir entender. Por que tá vindo uma eleição, em quem que eu vou votar? Hoje elas não sabem muito bem. Então, tipo, o que eu posso fazer é tentar auxiliar no que eu posso. Sabendo que, tipo assim, isso é uma troca né (CLÁUDIA, 2012).
A narrativa de Cláudia sobre suas experiências escolares revelou mutações nos sentidos que atribuía às dinâmicas vivenciadas na infância e na juventude. Torna-se inevitável destacar o peso da escola como ampliado espaço de socialização em que as dinâmicas relacionais não estão restritas aos conteúdos do currículo escolar, mas inseridas em práticas da formação sociocultural, no complexo processo de humanização dos sujeitos (ARROYO, 2010). Na experiência de Cláudia, a trama de relações com os sujeitos da/na escola - professoras(es), direção, colegas - apresentou-se por processos de reelaborações constantes, principalmente a partir da adolescência, quando a jovem passou a questionar-se sobre o monopólio de uma cultura escolar que fixa e naturaliza uma identidade restrita de "aluno", desconsiderando o conjunto de experiências vivenciadas pelos sujeitos (DAYRELL, 2007). Por isso, de maneira mais ampla, a jovem entendia que sua formação dependia não da escola tradicional, mas, da escola da vida4:
Eu acho que quando a gente fala em escola, eu acho que a escola é uma coisa, mas escola da vida é outra coisa, sabe? É uma outra aprendizagem. Hoje tudo que eu falo, acho que a escola me deu a base, mas a realidade de viver comigo, com o outro e com as dificuldades foi que me formaram, sabe? Lógico que essas dificuldades vão me formar muito mais (CLÁUDIA, 2012).
"A escola impõe padrões de currículo, de conhecimento, de comportamentos e também de estética [...]" (GOMES, 2002, p. 45), por isso, Cláudia contou sobre sua relação particular com a escola configurada pela necessidade de resolução de muitos desafios. Em um ambiente marcado por rituais pedagógicos distantes da socialização familiar e dominado pela presença invisibilizada do racismo, a jovem teceu possibilidades da construção de si na escola, enfrentando estereótipos identitários e assumindo a sua existência diante de situações assimétricas de poder, frente "[...] aos labirintos e caprichos da instituição" (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 246). Assim, a partir da sua memória sobre a socialização escolar, percebemos como "Os indivíduos se constituem como indivíduos porque são atores capazes de lidar praticamente com desafios estruturais e o fazem porque têm aprendido, duramente, e desde a diversidade de suas experiências sociais, a enfrentar essas provas" (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 245).
Cláudia iniciou o ensino médio em uma escola localizada no Aglomerado da Serra. A jovem recorda-se do mau conceito da escola entre os/as amigos(as) e outras pessoas da comunidade. Ela revelou a identificação, reconhecimento e classificação da comunidade nas avaliações de diferentes instituições escolares. "Todo mundo falava que era um lugar muito ruim. Aí minha mãe várias vezes tentou mudar de escola, assim, e eu, 'nó, o que é esse ruim assim que as pessoas falam?'" (CLÁUDIA, 2012). Nesta escola empobrecida, do ponto de vista da sua materialidade, também as relações humanas se fizeram limitadas. Isso contribuía para um clima escolar negativo, marcado pela desorganização e pela dificuldade da jovem em se subjetivar como aluna. Cláudia vivenciou a experiência cotidiana de estudar em uma "escola pobre para pobres" (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p. 261).
No ensino médio, ela fala apenas sobre uma professora com quem estabeleceu relações positivas em função da abertura ao diálogo com a turma e de um currículo que se aproximava de demandas singulares da jovem. Em seu relato, verificou-se a importância e influência dessa professora, que mantinha relações pouco marcadas pela autoridade, privilegiando a comunicação com os/as alunos(as). Uma professora que não se pautava apenas pela lógica transmissiva dos conteúdos. Como nos lembra Inês Teixeira (2007, p. 426), essa experiência escolar significativa "[...] se instaura e se realiza a partir da relação entre docente e discente, presente nos territórios da escola e da sala de aula, em especial".
Tem uma professora que eu admiro pra caralho até hoje, assim. A gente tem muito pouco contato, mas a gente ainda se comunica... Exemplo, ela tá conectada ao Face [Facebook]. Assim, a professora de português me ensinou muito mais do que o português, sabe? Tipo assim, ela não ficava lá dando lição todo dia. Ela, tipo, tentava, conversava sobre negritude, conversava sobre direitos. A gente, tipo, tinha hora que ela falava assim e eu falava: "Não concordo". Ela, tipo: "Por que você não concorda?". E tinha momentos que a gente batia de frente, assim, mesmo, sabe? Mesmo ela sendo professora, ela não dizia autoridade, tipo, "Ah, eu tô aqui na frente, você vai ter que me respeitar e você não tem direito de não concordar". Mas ela, tipo, 'Você não concorda? Vamos saber por que não concorda e vamos bater de frente!' assim. E eu lembro, assim, que foram muitos exemplos assim, na vida, assim. Em pequenos momentos que eu estive com ela, assim, porque foi muito pequeno, foi uma coisa grande. Foi um aprendizado muito longo, assim. Um aprendizado forte também. E hoje, assim, se eu pudesse estudar, eu queria escolher com quem que eu queria ser minha professora pra estudar, assim, sabe? Então, por isso que eu tenho uma briga constante com relações escolares. Não tenho brigas, tenho uns questionamentos (CLÁUDIA, 2012).
A escola também foi um espaço de socialização que interferiu na construção da sua identidade negra. Se no interior da escola o olhar sobre o negro e sua cultura pode valorizar identidades e diferenças, pode também estigmatizar, segregar e até mesmo negar a diferença (GOMES, 2002). O ensino médio foi um período em que Cláudia vivenciou o racismo. Um apelido recebido na escola marcou sua história de vida. Diante da ampliação dos processos socializadores a partir da adolescência,
[...] a escola representa uma abertura para a vida social mais ampla, em que o contato é muito diferente daquele estabelecido na família, na vizinhança e no círculo de amigos mais íntimos. Uma coisa é nascer criança negra, ter cabelo crespo e viver dentro da comunidade negra; outra coisa é ser criança negra, ter cabelo crespo e estar entre brancos (GOMES, 2002, p. 45).
Em um episódio em sala de aula, um dos colegas a chamou de "macaca". O professor nada fez. Esse ritual que consiste na "[...] agressão às crianças negras (ao chamá-las de 'macaco', 'preto beiçola', 'tição', 'carvão'...) [...] foi acompanhado [...] de um silêncio (cúmplice) dos professores" (GONÇALVES, 1985, p. 314). Assim, o silêncio operou enquanto ritual pedagógico a favor da discriminação racial. O professor não mediou a situação, ela se irritou e jogou um estojo de lápis no rapaz, motivo pelo qual Cláudia foi expulsa de sala.
Aí eu falei: 'Ah, engraçado, porque ele me chama de macaca tenho que aceitar e porque eu jogo um negócio nele você vai me retirar da sala? Tipo assim, e aí? Tem que ser os dois. Se for só eu, não vou sair. Vou ficar aqui'. Então, assim, eu lembro que isso foi muito tenso, assim, porque eu discuti muito e tal, assim, mesmo sabendo o quê que era assim. Mas eu não aceitava. E aí, tipo assim, e aí eu quebrei o pau, assim, na escola, tipo, aí chegou na diretoria, eu cheguei: 'Que que você tá fazendo?' e não sei o quê. Eu falei: 'Ah, engraçado, vocês sempre acham que eu sou a errada. O menino é que estava' (CLÁUDIA, 2012).
Cláudia quebrou o silêncio do racismo vivido na escola numa linguagem não verbal, expressa em seu gesto. Porém, nesse episódio, a escola a percebeu como a agressora diante da reação ao xingamento desumanizador que recebeu. Se o corpo "[...] disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de fala" (LOURO, 2000 p. 21), a punição à resposta expressiva da jovem reforçou um estigma construído na própria instituição escolar.
Convém refletir como, além da condição socioeconômica, o pertencimento racial é forte condicionante na escolarização dos(as) jovens. Contudo, o insucesso escolar não pode ser limitadamente percebido como efeito exclusivo de situações de pobreza, já que, nas dinâmicas escolares, "[...] quem leva a pior em termos de insucesso, fracasso, repetência, abandono e evasão escolar é o aluno de ascendência negra" (MUNANGA, 2000, p. 235).
O abandono da escola no 1º ano do ensino médio é também justificado por Cláudia pela necessidade de trabalhar. "Eu acabei dando mais espaço pra responsabilidade do que pro estudo, assim. Saí. Tentei estudar, fazer supletivo. Depois saí de lá. Tentei, não dei conta" (CLÁUDIA, 2012). A jovem mostrou-se desestimulada e descrente da rotina e dos conteúdos escolares. Além disso, sua fala expressava uma nova forma de desigualdade, já que a escola não se configurava como espaço de acesso a recursos de subjetivação, gerando a produção do fracasso escolar e pessoal (DAYRELL, 2007). Em sua narrativa, percebe-se a imagem do indivíduo responsável pela sua experiência e identidade pessoal em um contexto social e escolar em que a realização desse projeto parece impossível, configurando uma experiência subjetiva de exclusão escolar. Cláudia questionava, portanto, os efeitos da posse de uma qualificação/certificação como garantia de mobilidade social. Porém e ao mesmo tempo, ela teceu uma crítica contundente sobre a escola fechada em si mesma, com seu projeto disciplinador, uma instituição prescritiva com conteúdos poucos significativos para os jovens sujeitos.
Tipo, 'Ah, por que a escola, ou, o que a sociedade quer pra mim? O que a escola define pra mim? Ah, eu tenho que estudar pra eu ser alguém? Então tá. Se eu não estudar, eu não sou alguém? Então tá'. Aí, tipo, ficava fazendo muita pergunta, assim, né. E até hoje eu tenho uma relação de muito conflito, assim, com a escola, assim. Porque o que eu faço da minha vida eu não estudo na escola. Tipo assim, eu vou estudar, estudar, estudar e no final das contas eu vou conseguir porra nenhuma e vou morrer. Entendeu? [...] E aí hoje a escola pra mim é uma coisa que é, tipo assim, 'Ah, preciso, mas não sei como, mas não sei como ir'. Ainda é bem travado pra mim, assim. [...] Sei da importância, mas ao mesmo tempo, tipo, não é uma coisa que predomina, é, tipo assim, não tá na importância maior da minha vida, sabe? Eu não quero falar um português que a sociedade quer, pra mim, estar numa universidade, pra mim, estar numa sociedade, sacou? Eu quero ser eu, Cláudia, do jeito que eu sou e quero fazer parte da sociedade. [...] Então eu acho que, tipo, eu acho que a maioria das vezes a rua me ensinou muito mais do que uma escola, assim, sabe? A rua (CLÁUDIA, 2012).
Considerações Finais
Nessas "escritas da vida", fragmentos das experiências familiares e dos processos de socialização familiar e escolar entrelaçam o "devir biográfico" dos jovens (DELORY-MOMBERGER, 2012). Portanto, nesse texto há nuances da narrativa cronológica e (des)alinhada da vida, mas, também das experiências vivenciadas em diferentes tempos, bem como os imponderáveis da existência. Afinal, esse "contar sobre si" é "[...] fruto da capacidade individual de construir e reconstruir, sempre de novo, molduras de sentido, narrativas sempre novas, a despeito da moldura temporal presentificada" (LECCARDI, 2005, p. 49).
A família assumiu lugar estruturante nos processos de individuação vividos por Eduardo e Cláudia. Seus depoimentos anunciaram marcas densas de afetividade e respeito nos laços familiares, principalmente, com as mães. Ambas as histórias evidenciaram as limitações escolares dos pais e mães, mas fundam-se no imenso respeito e gratidão por seus familiares que lutaram pela sobrevivência cotidiana. Avista-se uma dupla dimensão da família, como "suporte" e "prova" nas trajetórias individuais (MARTUCCELLI, 2007). A família se configurou como suporte de individuação para ambos os jovens na medida em que esse espaço socializador é lugar de apoio e referência. Por outro lado, a precariedade das condições de vida, as dificuldades do sustento financeiro, a existência de conflitos e tensões mostram como a família foi também uma dimensão particularmente significativa que Cláudia precisou enfrentar em sua trajetória. Contudo, a família é matriz socializadora de construção de identidade e também espaço de alteridade para os sujeitos.
Mesmo que Cláudia e Eduardo não estivessem atualmente inseridos em espaços de escolarização formal, foram significativas as compreensões que deram ao peso da instituição escolar em suas constituições como indivíduos. As narrativas sublinharam fortes e dessemelhantes marcas da escola em suas construções identitárias, lugar de reconhecimento e de rejeição, visibilidade positiva e racismo. Dentre outros significados, a escola pública foi para Eduardo espaço de socialização que não limitava sua condição ao papel de aluno. A escola de ensino médio, mesmo com seus rígidos padrões curriculares, foi um espaço basilar para relações de amizade e sociabilidade, experimentações e construções identitárias e de subjetivação pela música e pelos coletivos juvenis. Eduardo se apropriou da experiência escolar, reelaborando os seus sentidos em detrimento da sua proposta pedagógica cotidiana. Foi ele quem construiu, programou e elaborou as dimensões educativas que o sistema escolar insistia em desconhecer e desvalorizar. A sua trajetória escolar reforça a centralidade das relações sociais no cotidiano escolar, em especial a sociabilidade ali existente, o que é reiterado por inúmeras pesquisas sobre juventude e escola. Sua identidade como jovem homem branco não foi problematizada, talvez indicando os privilégios de tal condição nas vivências escolares.
Já a experiência escolar de Cláudia corroborou a interdição dialógica entre os sentidos institucionais escolares e aqueles da jovem aluna. O silêncio como ritual pedagógico a favor da discriminação racial (GONÇALVES, 1985) agiu junto a outras varáveis em sua trajetória, resultando na exclusão escolar. A construção de si na ambiência escolar foi configurada pelo enfrentamento de estereótipos identitários racistas que resultaram em uma silenciosa produção do fracasso escolar, colocando em questão o discurso hegemônico que atribui tal fracasso aos limites cognitivos e/ou comportamentais e explicitando que o possível desinteresse pela escola seria uma produção do próprio sistema escolar. A trajetória de Claudia revelou a complexidade do fenômeno nomeado por fracasso escolar. Assim, frente aos desalinhos em seu percurso educativo formal, a jovem confirmou os limites e descrédito da escola como suporte para sua individuação.
Diante de desafios estruturais no contexto de múltiplas desigualdades, esses dois personagens deram respostas singulares que resultaram da pluralidade de suas posições nos espaços socializadores, de seus recursos e estratégias, do pertencimento racial e de gênero e dos suportes que contribuíram para sua sustentação nesse mundo. A singular experiência de Cláudia e Eduardo mostrou-nos que os dois deram soluções biográficas às contradições sistêmicas. O/a jovem são hiper-atores relacionais (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012) já que manejaram situações e enfrentaram diversas contingências de maneira profundamente pessoal, mesmo quando recorriam a certos frágeis recursos institucionais. Suas histórias complexificam o entendimento de que as instituições escolares podem produzir experiências plurais e significados para os/as jovens estudantes, revelando a importância central da escola em reconhecer e buscar estratégias que possibilitem apreender e dialogar com a realidade dos(as) jovens. Assim, a experiência escolar carece ser lida e compreendida no contexto das trajetórias individuais, nas escritas da vida, visto que são os próprios indivíduos que ligam os pontos, tecem suas redes, reconfigurando-as ao longo de suas trajetórias, em um trabalho sobre si mesmos.