Introdução
Dentre as inúmeras possibilidades de compreender como se constitui a infância (Psicologia, Biologia, Educação, Antropologia, entre outras), optamos por discuti-la na perspectiva da Sociologia da Infância à luz de Plaisance (2004; 2005; 2006; 2010; 2015), Corsaro (2011), Sarmento (2004; 2005) e Ferreira (2004). Entendemos que abordar a infância sob a ótica da Sociologia da Infância nos ajuda a compreender a criança como um “ator social” na educação como propõe Plaisance (2004). Ator social porque cria, inventa, constrói e desconstrói sentidos da vida e das relações que estabelece com o mundo. O olhar sociológico permite pensar a infância como uma categoria social e geracional, como indivíduos de direito “[...] como atores sociais na sua diversidade e na sua alteridade diante dos adultos” (SARMENTO, 2005, p. 376).
Como professores de um curso de licenciatura em Pedagogia, nos sentimos desafiados a pensar em outras possibilidades formativas dos licenciandos(as) ao considerarmos a criança como ator social, dentro dessa perspectiva sociológica. Para superar a perspectiva fragmentada e disciplinar da formação inicial e continuada de professores, as instituições de ensino superior e das redes de ensino, necessitam repensar a sua orientação quanto às discussões teóricas e práticas que contemplam a infância em sua complexidade. Assim, tendo presente esses processos formativos, percebemos a existência de outras possibilidades que olham para a criança como ator social e, ao mesmo tempo, consideram o adulto como mediador que pode captar as subjetividades, criatividade e imaginação, presentes nas mais variadas cenas cotidianas da infância e do brincar. Esse movimento não se reduz a cumprir tarefas em devir, mas a considerar a infância no momento presente. Essa infância permite a liberdade para inventar, sonhar, reconstruir e criar o mundo na sua complexidade, o mundo que não é direcionado pelo adulto.
Assim, ao assumir o protagonismo do ato educativo – inventivo, livre e humanizador –, a criança terá possibilidades de vivenciar as experiências múltiplas que o corpo, o movimento e os processos de socialização expressam nessa idade. A participação na educação da criança na sua plenitude exige que abandonemos as perspectivas que as classificam apenas sob um ponto de vista (biológico, psicológico, pedagógico), ou seja, significa compreender a sensibilidade e o conhecimento dos pequenos para deixar que expressem as múltiplas linguagens. Esse olhar requer dos adultos práticas que oportunizem a brincadeira inventiva, a experiência da imaginação, a comunicação, a liberdade de pensamento e a expressividade que toda a criança tem em potencial.
Deste modo, levando em conta que a leitura, pesquisa, discussão e reflexão são fundamentais para apreender os processos sociais, no presente texto, objetivamos discutir e interpretar como a infância e a inclusão dialogam no contexto do filme ”O Jardim Secreto”, de Holland (1993). As reflexões realizadas neste texto resultam de um projeto de extensão intitulado ”A Infância em Sete Filmes: reflexões a partir da Sociologia da Infância”, desenvolvido por três professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense - IFC campus Camboriú (Santa Catarina), do qual o público alvo é composto por acadêmicos(as) do curso de licenciatura em Pedagogia e professores(as) das redes de ensino público da região. Com uma carga horária de quarenta (40) horas, o projeto se desenvolveu em encontros presenciais mensais, entre outubro de 2018 e abril de 2019, que foram precedidos pela disponibilização do link de um filme e um texto relacionado para discussão em cada encontro. A dinâmica de desenvolvimento do projeto, consistiu em assistir ao filme indicado e realizar a leitura prévia do texto para respaldar as discussões e reflexões ocorridas nos momentos presenciais.
Neste texto, a discussão sobre a inclusão ampara-se nos estudos de Plaisance (2005, p. 6) que entende que “[...] a inclusão se defronta com dois obstáculos: de um lado, as barreiras humanas e materiais; de outro, paradoxalmente, a invocação moral e abstrata em favor da inclusão que engendra formas dissimuladas de exclusão”. Essa concepção facilita a percepção de como estão naturalizadas a resistência ao “diferente” e aos estigmas nas ações cotidianas, pelos mais variados motivos: raça, cor, capacidade/incapacidade, comportamentos, cultura.
Dito isso, e considerando o propósito deste artigo, organizamos as reflexões apresentando inicialmente o contexto do filme seguido pela discussão interpretativa entre os processos de socialização, infância, imaginação e inclusão, a partir das cenas e diálogos vividos pelos personagens do filme.
O Contexto do Filme: ”O Jardim Secreto”
O filme selecionado é um drama canadense, produzido em 1993, sob direção de Agnieszka Holland, adaptado do clássico conto de fadas “The Secret Garden” (1911), de Frances Hodgson Burnett. O filme se passa no início do século XX, quando a personagem principal, Mary Lennox, uma menina indiana órfã, passa a viver na Inglaterra com seu tio Lord Craven em uma mansão cheia de segredos e de feridas abertas, oriundas dos contextos e histórias de vida familiar.
Entre os segredos e as dificuldades de adaptação, que a tornavam invisíveis do ponto de vista da convivência, Mary vai descobrindo novas possibilidades de socialização, imaginação e alguns desafios, entre eles, a convivência com um tio viúvo e indiferente, uma governanta rigorosa, disciplinadora e fria, a senhora Medlock, e o menino Collin Craven que vivia acamado e cercado de adultos que o percebiam como uma criança frágil e incapaz de superar os desafios que o colocavam na situação de pessoa com deficiência.
Em um contexto de indiferença por parte da família que havia lhe acolhido, a pequena Mary inicia seu processo de exploração do ambiente e de outras possibilidades de socialização, que incluíam a convivência com o filho da criadagem. Em uma de suas investidas, Mary descobre o jardim secreto, um lugar escondido e abandonado, que passa a ser mágico, onde a imaginação e o diálogo com seus pares se tornam possíveis sem o controle dos adultos. Ali é admissível brincar e viver a infância cercados pela natureza, lugar oportuno para incluir todos.
Entre a infância negada e a infância vivida: relações que nos ensinam
Selecionamos cenas com as quais dialogaremos considerando as interfaces entre a infância e as práticas sociais inclusivas. Nessa discussão, compartilhamos com Plaisance (2003, p. 1) o entendimento de que a socialização é ”[...] um processo geral que engloba toda a vida humana e constitui os seres humanos como seres sociais”. Desse modo, procederemos na direção contrária das concepções clássicas de socialização, que evidenciam imposições de normas e valores, e nos aproximaremos das concepções contemporâneas que destacam a construção do ser social nas diversas negociações presentes nos diversos contextos, entre eles destacadamente o papel da família.
A partir das interfaces mencionadas, discutimos, de modo articulado, os processos de socialização, imaginação, cultura de pares e inclusão vividos pelos personagens nas cenas do filme, no exercício de diálogo com os teóricos indicados. Nessa esteira de pensamento, os processos de socialização vividos, especialmente por Mary e Collin, são fundamentais para compreendermos a importância das trocas ocorridas com os pares de idade próxima, sem obviamente excluir as outras interações sociais com os adultos, uma vez que o convívio com o outro diferente é importante para a constituição identitária das crianças pequenas e fundamental para a reflexão crítica sobre a diferença e a inclusão.
Os autores selecionados para fundamentar nossas discussões (PLAISANCE, 2004; 2005; 2006; 2010; 2015; CORSARO, 2011; SARMENTO, 2004) consideram a família como a primeira agência socializadora das crianças pequenas, uma vez que, por meio do afeto e das interações, ocorrem as primeiras aproximações com as relações sociais e a cultura, por exemplo. Nesse aspecto, temos duas “infâncias” (Mary e Collin) que estão inseridas em ambientes econômicos e sociais privilegiados, com a ausência dos pais, fosse causada por morte ou simplesmente por afastamento, o que revela a exclusão dos pequenos. Desse modo, as referências que surgem nos diálogos das cenas das crianças deixam explícitos o distanciamento das relações com a família, dando lugar para às relações com outros adultos, que são os criados da casa. Esses elementos podem ser localizados nas seguintes falas: “Collin: [...] meu pai não quer me ver nunca porque eu não sou nada parecido com ele”; “Mary: Minha mãe não tinha tempo de mandar tirar meu retrato [...]. Na índia, quando chovia, minha ‘aia’ me contava histórias” (O JARDIM, 1993).
A solidão de Collin no ambiente familiar surgiu por sua situação de fragilidade física e pela superproteção dos adultos e de seu pai. Foi afastado do contato social com outras crianças e da natureza, até mesmo daquelas crianças que conviviam dentro de sua própria casa. Tal afastamento foi produzido a partir da suposta doença de Collin, sempre acamado e “protegido” de doenças e infecções que pudesse contrair. Mais grave ainda se tornam as relações sociais com os outros adultos por conta da sua própria incompreensão do que acontecia com seu corpo, uma vez que ele não entendia a sua condição física e os motivos que levavam os adultos a negarem sua relação com outras crianças. Esse cenário muda quando Mary chega e o retira da clausura, enfrentando esse contexto de maneira arrojada e corajosa, o que o levou a descobrir as possibilidades que tinha para desenvolver-se em contato com a natureza (O Jardim Secreto) e com os pares.
O afastamento social imposto a Collin configurou uma maneira de esconder a diferença ou, como aborda Plaisance (2006), constituiu-se em uma forma de desprezar a diferença. A consequência dessa abordagem é a exclusão social e cultural, sofrida por Collin em parte de sua infância. A situação de Collin nos impele a refletir sobre a perspectiva inclusiva de Plaisance (2015) quando afirma que esta precisa ser introduzida por meio da adaptação das estruturas existentes ao diferente e não do diferente às estruturas conformadas. A família de Collin, por pressuposto, o tratava como diferente e o colocou em uma situação que não o permitia comunicar-se, interagir e agir como criança. Foi somente a partir da sua relação com Mary, que Collin pôde compreender as suas próprias características limitantes e superá-las a partir da ”cultura de pares”, na perspectiva de Corsaro (2011).
Ao fazer a transição da cultura indiana para a inglesa, a pequena Mary continuou a ser ignorada e sem ter com quem dialogar. Fez várias tentativas de aproximação com pessoas adultas, inclusive com o jardineiro que também a ignorava e a deixava sem respostas, fato que a revoltava: “É revoltante como essa gente se comporta comigo” (O JARDIM, 1993). O fato de não ter vivenciado experiências de trocas com os pares também é evidenciado quando Mary afirma: “Eu nunca tive nenhum amigo” (O JARDIM, 1993).
O processo a que Mary foi submetida tem relação direta com a perspectiva de educação com objetivos de integração. Tal perspectiva, conforme Plaisance (2015), consiste em uma educação voltada à inserção do diferente em estruturas convencionais de educação, sem a preocupação de identificar situações que causem obstáculos à inclusão. A pequena Mary também se defrontou com ocasiões de integração quando se relacionava com os adultos e com seus pares, já que eles pouco consideraram a sua cultura e a sua educação. No entanto, sabemos que em qualquer ação de socialização ou ato educativo é importante ”[...] superar o moralismo abstrato para encontrar uma ética concreta que permita abordar a questão dos modos de acolhimento e de educação dessas crianças [...]. Portanto, a convicção deve ser articulada ao emprego de modalidades práticas da ação” (PLAISANCE, 2010, p. 21).
O fato de Mary ter tido recomendação de ficar isolada no quarto a conduz às primeiras explorações com a finalidade de conhecer os espaços da casa, inclusive aqueles proibidos/escondidos com portas trancadas, que culminam com o encontro de uma gaveta. Dentro dela havia uma chave, uma misteriosa chave, que mais tarde certamente seria de muita utilidade em suas explorações. Um dos primeiros diálogos de Mary é justamente com a criada Martha, incumbida de lhe servir e que lhe conta que há um jardim secreto na propriedade que está trancado há dez anos. Com o passar do tempo e observando que Mary desconhece as brincadeiras que ela conhece, Martha lhe dá de presente uma corda, conforme o diálogo seguinte:
Mary: Para que serve isso?
Martha: Não me diga que na Índia só sabem cuidar de elefantes e de tigres. Será que lá eles não sabem pular cordas?
Martha: Vem cá... olhe! Agora experimenta!
Após fazer várias tentativas até aprender:
Mary: Obrigada Martha e obrigada à sua mãe.
Martha: Como você é diferente! Se eu tivesse dado a corda para outra criança ela teria me dado um beijo.
Mary: Você quer que eu beije você?
Mary: Eu nunca pulei corda! (O JARDIM, 1993).
Neste breve diálogo, temos a presença de dois processos fundamentais para a socialização: a cultura indiana e inglesa e a interação como processo social determinante. Aos poucos, a exploração interna e externa dos espaços, a exemplo dos jardins, conduzem Mary a explorar e, consequentemente, expandir suas relações tanto com o mundo real quanto com o imaginário. No mundo real passam a fazer parte de suas relações, o jardineiro Sr. Ben, o irmão de Martha, Dickon, e seu primo Collin. No mundo da imaginação, por sua vez, seu primeiro contato acontece com um pássaro, as flores, plantas e a natureza em geral.
Cada um dos personagens citados influência nos processos de socialização conforme se tornam parte da vida cotidiana de Mary, como por exemplo o Sr. Ben:
Mary: Ei, ei você aí! Onde é a porta do outro jardim?
Ben: Quê?
Mary: O que têm as trepadeiras? Eu não vi a porta!
Ben: Não tem porta.
Mary: Ele tem que ter alguma entrada.
Ben: Ninguém entrou nesse jardim nos últimos dez anos.
Mary: Se conhece a entrada, me mostra! (O JARDIM, 1993).
Sem sucesso, o fato de ser um jardim secreto e proibido, aguça ainda mais a imaginação de Mary, que passa a dialogar com o pássaro: “Me mostra, por favor, me mostra a entrada?” (ela segue o pássaro e localiza a fechadura). “Obrigada sabiá!” e sai correndo, vai até a gaveta e pega a chave. Com a chave nas mãos, volta ao jardim e abre a porta. Ao abri-la, começa a explorar o ambiente, ouvindo o barulho dos pássaros. Limpa ao redor das plantas e diz para o sabiá: “Viu o que eu achei, sabiá lindo?”. Na sequência, encontra outro pássaro que acompanha Dickon: “O sabiá falou que estava te esperando. Os bichos me contam todos os seus segredos” (O JARDIM, 1993). E é justamente esse segredo que aproxima as duas crianças, tornando-as cúmplices:
Mary: Eu roubei o jardim, mas talvez esteja morto – eu não sei.
Dickon: Eu sei!
Mary: Vai mesmo saber dizer se está vivo?
Dickon: Claro! Espere aqui!
Dickon: O jardim não está morto – está vivo como tu e eu. Olha, aqui tem viço, olha o verde!!
Mary: Viço? O que é viço?
Dickon: É vida – cheio de vida. Vai haver tantas rosas aqui no verão que tu vais enjoar (O JARDIM, 1993).
Essa troca de conhecimentos ocorrida entre os dois personagens pode ser entendida como a “cultura de pares”, da qual Corsaro (2011) desenvolve o conceito de “reprodução interpretativa”. Conforme o autor, a cultura de pares se constrói quando as crianças trocam as relações, que antes eram majoritariamente familiares, por outras relações e passam boa parte do tempo juntos nas interações presenciais, nos contextos aos quais estão integradas. Desse modo, a ”cultura de pares” pode ser observada quando a(s) criança(s) cria(m) a sua própria brincadeira ou afazeres, lhes conferindo sentido, coletiva ou individualmente. Ou seja, nessas brincadeiras/afazeres, desenvolvem um comportamento infantil com valores e regras por elas criadas e negociadas e até mesmo como possibilidade de resistência ao mundo adulto.
A reprodução interpretativa está presente nesse processo, porque a(s) criança(s) quando “imita(m)” um fato da vida real, como quando, por exemplo, transformam a ação em brincadeira ao verificar se o jardim está vivo ou ao empurrar uma cadeira de rodas de uma criança deficiente imaginando empurrar um carrinho de corrida . Assim, evidenciam a capacidade de promover a inclusão sem rótulos ou preconceitos, que, via de regra, constituem-se em comportamentos e culturas presentes nas interações entre adultos. Ou seja, ocorre o movimento de produção e reprodução cultural a partir do mundo dos adultos e, apesar de desempenharem um papel ativo nas situações criativas, ainda estão subordinadas às convenções culturais dos adultos, o que gera medos, angústias e frustrações. Assim,
[...] à medida que as crianças se aventuram para longe da família, elas apontam para direções específicas, preparam-se para a interação com diferentes orientações interpessoais e emocionais, e recorrem a recursos culturais particulares, todos derivados de experiências anteriores (CORSARO, 2011, p. 130).
Por outro lado, o fato de os adultos participarem das rotinas das crianças, os influencia a aderir às culturas infantis.
Outro momento relevante do filme em análise refere-se ao fato de que Mary, além de encontrar o jardim secreto, de estabelecer a amizade com Dickon e cuidar das plantas e animais, se deparou com algo que seria o mais desafiador: descobrir que tinha um primo chamado Collin que vivia acamado, que nunca saia do quarto e nem abria as janelas. Ou seja, viveu dez anos escondido por ser considerado frágil e doente, situação que Mary, com sua ousadia e curiosidade natural, logo tratou de reverter. Ao ouvir alguém chorando durante a noite, abre uma das portas e encontra Collin:
Mary: É um fantasma? Não, você é? Quem é você? Que faz aqui?
Collin: Eu moro aqui
Mary: Quem é você?
Collin: Sou o senhor da casa, quando meu pai não está!
Mary: Seu pai, ele é meu tio. Ninguém me disse que ele tinha um filho.
Collin: Vem cá! Como se chama?
Mary: Sou Mary Lennox. Quem é você?
Collin: Sou Collin Craven!
Mary: Por que chorava?
Collin: Não consigo dormir. Arruma os travesseiros prima Mary.
Mary: O quê?
Collin: Os travesseiros. As minhas cobertas se enrolaram (O JARDIM, 1993).
Nesse diálogo, percebemos a condição de invisibilidade em que os dois se encontravam. Essa realidade expressa o isolamento a que Collin estava submetido e que, na tentativa dos adultos da casa de protegê-lo dos perigos, retiraram-lhe as possibilidades de “viver”, imaginar, sentir e conviver com seus pares. A condição imposta a Collin nos permite inferir que a perspectiva da ”cultura de pares” pode provocar, por meio do processo de ”reprodução interpretativa” (CORSARO, 2011), a instituição de outras relações entre as crianças. Podem ser movimentos de resistência ao processo de adultização e, ao mesmo tempo, possibilitam inventar novas maneiras de orientar outras práticas sociais e mudanças culturais na condição do adulto que impõe e dita as regras. Trata-se de considerar como possibilidades
[...] decorrentes de adoção, do confronto e contraponto à ordem adulta e/ou entre os pares, emergem rotinas, regras, e princípios de ação no interior do grupo de crianças, os quais, apropriados na interação social, são por elas usados como conhecimentos e competências sociais para participarem no mundo adulto e, ao mesmo tempo, para afirmarem perante eles. A assunção de critérios e valores próprios de saber, saber-fazer, saber-estar e saber-sentir, aprendidos e reproduzidos num quadro de relações sociais locais, estável e durável, torna-os patrimônio cultural inerente ao grupo de crianças (FERREIRA, 2004, p. 61).
No diálogo entre Collin e Mary, o encontro provocou questionamentos por parte de ambos e o temor pela subtração de uma condição de possibilidades que acabara de se configurar: a percepção de identificação entre ambos tanto nas questões referentes a perdas, negação e ausência familiares quanto em relação a suas faixas etárias. Essas dimensões de exclusão, às quais Collin e Mary foram submetidos, demonstram como o mundo adulto opera no sentido de intensificar as relações hierárquicas entre adultos e crianças, principalmente aquelas relacionadas à participação/exclusão social e o envolvimento com seus ”pares” (CORSARO, 2011). Na sequência das falas, claramente percebemos essas questões:
Mary: Olhe, não sei como se faz isso. Vou chamar a Martha ou a Senhora Madlock.
Collin: Nãoooo!
Mary: Por que não?
Collin: Ela não deixaria você ficar, teria medo de você me irritar, e que eu ficasse mais doente.
Mary: Eu faria? Vou lá!
Collin: Espere! Quantos anos tem?
Mary: 10 (O JARDIM, 1993).
Considerando a relação entre Mary e Collin, é possível observar o receio e a apreensão que Collin expressa quando responde à Mary para não chamar outra pessoa adulta, configurando uma relação melindrosa, contingente e precarizada (ARROYO, 2012). Essa perspectiva reflete como as relações sociais e educacionais permeiam um ambiente em que a tentativa de padronizar comportamentos relativamente aceitos no grupo social se sobrepõem à manifestação da cultura infantil orientada ao processo de ”reprodução interpretativa” (CORSARO, 2011). Reprodução interpretativa” significa:
O termo reprodução, ao enfatizar a ideia de que crianças são constrangidas e afetadas pelas estruturas sociais e pelas culturas existentes, isto é, pela reprodução social das sociedades das quais são membros, procura salientar que, pela sua participação efetiva, também elas contribuem recíproca e ativamente para a produção e mudança social e cultural do mundo adulto. O termo interpretativo, ao sublinhar os aspectos inovadores, transformadores e criativos dos pontos de vista e das participações das crianças nas interações sociais, salienta a apropriação seletiva, reflexiva e crítica que elas efetuam do mundo adulto, quando, ao interpretá-lo de acordo com seus interesses e preocupações como crianças, desenvolvem um troca e negociações intensivas de significados e intencionalidades que vêm, ao longo do tempo, a ser partilhadas subjetiva e coletivamente (FERREIRA, 2004, p. 60-61).
Em outra parte do diálogo, o jardim, a natureza e as possibilidades de exploração entram na pauta das crianças, demonstrando mais uma vez que Collin não conhecia nem mesmo os espaços da própria casa. Era alguém invisível e excluído que havia recebido a “morte” como única possibilidade:
Collin: Jardim? Que jardim?
Mary: Ah é só um jardim, existem muitos jardins aqui.
Collin: Existem?
Mary: É claro, você nunca foi lá fora?
Collin: Nunca.
Mary: Mas o que você tem?
Collin: Eu vou morrer!
Mary: De quê?
Collin: De tudo! Passei a minha vida nessa cama.
Mary: Então não sabe andar!
Collin: Você é real? Pessoas são tão reais, sabe? Quer que eu belisque para provar?
Collin: Aiii (risos).
Mary: Viu? (O JARDIM, 1993).
A convivência com o primo, ainda que de modo furtivo, possibilitou aproximação dos dois. Quando Mary conheceu as limitações que o primo afirmava ter, desafiou as regras até então estabelecidas, além de levantar muitos questionamentos. Como alguém poderia viver sem sentir o vento, sem ver as nuvens, as árvores, as flores, sem sentir seus cheiros, sem ouvir o cantar dos pássaros, sem movimentar-se? As palavras de Collin levaram Mary a estabelecer relações com sua realidade, o que expressa o modo como as crianças significam e ressignificam os acontecimentos cotidianos, construindo sentidos por meio da sua ”cultura de pares” como podemos observar no diálogo abaixo:
Mary: Posso abrir as janelas?
Collin: Não, não toque nelas, não abra, estão trancadas. Meus pulmões não aguentam germes.
Mary: Germes?
Collin: Eles vêm com o vento. A gente respira e engole, eles entram nos pulmões.
Mary: Mas antes de eu sair para tomar vento até meu cabelo era fraco.
Collin: Cabelo não tem vida!
Mary: Mas se não tem vida como é que ele cresce até depois que a gente morre? Bom, o seu talvez não cresça, até lá, pode estar careca.
Collin: Não seja burra, eu vou morrer antes de ter idade para isso. Vou ter uma corcunda como meu pai e vou morrer [...] (O JARDIM, 1993).
A ”cultura de pares” considera as crianças sujeitos que se afirmam no contexto social como atores sociais e
[...] permite às crianças apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia. A convivência com os seus pares, através da realização de atividades e rotinas, permite-lhes exorcizar medos, representar fantasias e cenas do quotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com experiências negativas. Esta partilha de tempos, ações, representações e emoções é necessária para um mais perfeito entendimento do mundo e faz parte do processo de crescimento (SARMENTO; 2004, p. 14).
Consideramos que o fato determinante para que Collin se sentisse incomodado/provocado por Mary, tenha sido as possibilidades a ele apresentadas, além do fazer “nada” na cama. Sua interação com Mary lhe permitiu exercitar os sentidos: ver, ouvir, sentir, tocar, cheirar, correr, pular, brincar e especialmente vivenciar outras relações que até então Collin não imaginava que existissem como verificamos no diálogo a seguir:
Collin: Para onde você vai?
Mary: Lá para fora ficar com o Dickon.
Collin: Dickon?
Mary: Ele doma animais como os encantadores de serpentes, ele sabe tudo o que existe sobre jardins.
Collin: Ele já sabe sobre o jardim da minha mãe?
Mary: O quê?
Collin: Você disse que a mamãe tinha um jardim.
Mary: Como ia saber do jardim? Está trancado, ninguém entra lá.
Collin: Posso mandar eles abrirem.
Mary: Não, não faz isso!
Collin: Por que não?
Mary: Porque se você mandar abrir a porta, se alguém souber, não vai mais ser um segredo. Você não vê que é muito melhor se for um segredo, tem que ser, talvez nem saiba guardar um segredo (O JARDIM, 1993).
Entre descobertas, transgressões e processos de socialização, o diálogo nos mostra que a manutenção dos “segredos” é fundamental na relação de ambos e é necessário que o novo integrante aceite a condição imposta, como questão de “sobrevivência” para ser acolhido ou continuar no grupo. Ao assumir o papel tácito de liderança, Mary constrói novas regras e desafia aquelas que considerava inadequadas. O primeiro desafio foi o de abrir as janelas para sentir o vento e ver a natureza, mas logo viria o segundo, levar o primo até o jardim, apesar dos seus medos. Nesse processo, o receio dá lugar à curiosidade como possibilidade de outras experiências.
A relação inicial de amizade estabelecida pelos protagonistas nos aproxima dos argumentos de Corsaro (2011) que problematiza as ações das crianças no contexto de socialização nas instituições de educação formal e se expandem para nossa discussão. As crianças negociam/determinam verbalmente a propriedade de áreas específicas como o jardim secreto para o lazer compartilhado, longe e protegido dos demais, preservando as relações de amizade. No lugar dos brinquedos, as flores, a natureza, os animais, os aromas, sons e cores assumem um lugar privilegiado.
Collin: Acha que eu posso ir lá fora, com germes e tudo?
Mary: Bom, eu não entendo coisa alguma de germes.
Collin: Se eu sair, talvez a gente ache a porta do jardim da minha mãe e, se acharmos, vamos, entra... O que é?
Mary: Não me atrevi a dizer, eu fiquei com medo de não poder confiar em você... De verdade... Estive no jardim secreto... Achei a chave há algumas semanas.
Collin: Me conta, continua...
Mary: Quando a porta se abre você não consegue ver nada, depois tem que descer uns degraus de pedra. Na hora em que chega ao fim desses degraus, você está cercado de flores. Todo dia novas flores se abrem, é como mágica e os filhotes de animais estão nascendo...
Collin: Vou sair na minha cadeira, e se o ar fresco não me fizer mal, posso sair todos os dias (O JARDIM, 1993).
Conforme podemos observar nesse diálogo, para conseguir o objetivo de remover o primo da condição inerte, a combinação ganha força e Dickon também se torna cúmplice nas transgressões das normas instituídas. No diálogo que segue, por exemplo, a imaginação de Collin dá lugar ao viver a realidade, e o desafio de superar a condição de deficiente fica mais forte. Aqui, destacamos que os processos de inclusão/exclusão são em sua essência processos sociais historicamente construídos pelos metarrelatos e paradigmas sobre quem é “normal” e quem tem “deficiência”. Esses rótulos historicamente construídos olham para o outro com o olhar das limitações e excluem o olhar das possibilidades. E no jardim:
Mary: Vamos... É só entrar eiheeh. Sai da e...
Dickon: Eu queira ajudar...
Mary: Não liga, tu vais andar antes que perceba.
Collin: Eu, andar, acha que consigo?
Mary: Tuas pernas são iguais às de todo mundo, não são?
Collin: São, mas eu nunca pensei que ia...
Mary: Feche os olhos Collin.
Collin: Já chegamos?
Mary: Quase... agora.
Collin: Éhhh... como eu imaginei.
Mary: O lago ficou cheio assim que entramos aqui.
Collin: Ahéé...
Mary: Está vendo aquela flor? É uma centáurea. Ali tem um ninho de sabiá. Foi ali que achei a Imperatriz da Índia e plantei todos os brotos e sementes.
Collin: Eu vou voltar aqui amanhã, depois de amanhã e no outro dia!
Mary: Viu? Tem que tirar todo o mato para dar espaço para as flores (O JARDIM, 1993).
A riqueza dos diálogos e do momento de exploração é interrompida pela percepção de que alguém os espreitava, o jardineiro:
Collin: Ah.. quem é aquele homem?
Sr. Ben: O que está fazendo aqui? Como você entrou? É muito entrometidazinha. Eu não gostei de você desde a primeira vez que te vi.
Mary: Foi o sabiá que me mostrou a porta.
Sr. Ben: Ahhhh, ahaahhhh! (O JARDIM, 1993).
Como adultos, costumeiramente olhamos para as crianças com olhos de reprovação quando se divertem, imaginam e criam em seus processos de socialização. As repreendemos pelo barulho e pelas transgressões às nossas regras, porque somos incapazes de exercer a alteridade, de nos colocarmos no lugar das crianças. No entanto, ao se reunirem como atores que constroem sua própria cultura, ressignificam suas ações com a finalidade de exploração e recreação imediata. Assim, como ocorria nas Trocinhas do Bom Retiro discutidas por Fernandes (2004, p. 236) “[...] o papel da vizinhança é importantíssimo, pois condiciona os contatos entre os indivíduos [...]” como aconteceu, por exemplo, com nossa protagonista Mary que formou seu grupo, incluindo elementos conforme as condições reais lhe permitiam, ou seja, tentativas de interações com adultos e sua efetivação com meninos e menina.
Considerando o exposto, adensamos nossa reflexão com os autores com o termo presente na concepção de inclusão de Plaisance (2006). A expressão “handicap” situa a pessoa que, por algum motivo, se encontra em situação de desvantagem social, neste caso específico, o menino Collin e a representação de sua incapacidade e limitação que a família construiu. O autor explica que algumas palavras envelhecem e passam a ser consideradas pejorativas. Entre elas estão os termos anormal, inválido, retardado, aleijado que subentendem obstáculos intransponíveis às pessoas com deficiência. Mas, além das primeiras aproximações, concordamos com Plaisance (2006) que nessa discussão afirma existirem proximidades entre as limitações, a cultura e a sociedade. Assim, independentemente de quem seja, cada pessoa está inserida em uma sociedade e em uma cultura que é determinante para a construção das representações, e, “[...] são essas representações, variáveis segundo as sociedades e as épocas, que constroem as realidades e que produzem o ‘handicap’” (PLAISANCE, 2006, p. 225).
A ideia de deficiência, que se altera no decorrer do tempo e das realidades, está atrelada às “[...] redes de representações, de denominações, de etiquetagens que estruturam as relações com a pessoa, engendram práticas [...]” (PLAISANCE, 2006, p. 225) e se constituem em inter-relações de diversos graus e variáveis que incluem aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Esses aspectos articulam realidade e representações sociais e nos levam a encarar determinadas pessoas de modo diferenciado, rotulando-as e subestimando-as como no diálogo que se segue.
Collin: Você sabe quem eu sou?
Sr. Ben: Quem, quem é você? É o aleijadinho.
Mary: Se ele tem algum caroço, é menor que uma ervilha.
Collin: Eu não sou aleijado.
Mary: Você não tem nada nas costas nem pernas defeituosas?
Collin: Quem foi que disse que eu tenho? Ninguém nunca disse (e começa levantar da cadeira de rodas).
Mary: Você consegue!!! Você consegue!!! Você consegue!!!
Collin: Olha só... olha só! (O JARDIM, 1993).
A partir dos argumentos aqui apresentados sobre a infância e seus processos de socialização que envolvem as ações inclusivas desencadeadas por Mary e Collin, observamos as mudanças de percepção dos envolvidos sobre a ideia de limitação e adequação de espaços entre o permitido, o proibido e o transgredido. Assim, como apresentam Fernandes (2004), Corsaro (2011) e Plaisance (2006) os processos de socialização, a cultura de pares e, atrelada a ela, a reprodução interpretativa, além das representações, são processos sociais construídos interdependentes da cultura e da sociedade nas quais estamos inseridos. No processo de alteração das percepções sobre incapacidade, inclusão e/ou exclusão na ficção, vimos, inicialmente, duas infâncias delineadas pelas negações e proibições criadas pelo mundo dos adultos.
No decorrer do filme, as infâncias de Mary e Collin transitaram da condição de isolamento que conduzia à exclusão dos laços afetivos familiares essenciais para a formação de laços afetivos e sociais indispensáveis aos processos de constituição da identidade pessoal. Ao fazer essa transição, houve a possibilidade de Collin mostrar suas potencialidades e se livrar da imagem de limitação que os outros lhe imputaram. Aqui a condição de handicap, problematizada por Plaisance (2006) quanto à desvantagem da pessoa com deficiência, foi minimizada quando Collin demonstrou sua capacidade de levantar-se da cadeira de rodas e andar. O fato o levou a desafiar-se explorando outras possibilidades, que até então lhe haviam sido negadas.
Ao final, a fala de Mary expressa o processo vivido, talvez como o jardim antes proibido, negado e escondido e que, ao ser cuidado, se abriu para as belezas com as quais as crianças e os adultos puderam aprender, imaginar e reconstruir suas relações. “Quebrou-se o encanto... Meu tio aprendeu a rir e eu a chorar... O jardim secreto agora está sempre aberto, aberto, acordado e vivo. Se a gente olhar na direção certa vai ver que o mundo todo é um jardim”. Essa afirmação expressa as possibilidades e a negação das limitações que, em última análise, conduzem à inclusão.
Conclusões
Consideramos que as análises aqui realizadas acerca das infâncias de Mary e Collin, tendo como referência a Sociologia da Infância, possibilitaram ampliar as concepções de como podemos compreender a criança como sujeito ativo, que cria e inventa possibilidades de mudanças sociais e culturais no contexto do mundo adulto/criança. A partir da perspectiva discursiva e interpretativa, demonstramos, nos limites do presente texto, como os processos de socialização, infância, imaginação e inclusão fazem parte do cotidiano, das relações culturais e das ”ordens sociais instituintes” (FERREIRA, 2004) no contexto da infância.
Por meio da socialização entre as crianças Collin e Mary, protagonistas do filme ”O Jardim Secreto”, percebemos as práticas e ações desenvolvidas pelos adultos sobre as crianças e as relações, que, por vezes, são coercitivas e reguladas por aspectos excludentes que passam pelos processos coletivos, transmitindo valores e normas de comportamento apropriados e ressignificados pelas crianças e pelos adultos. Nessa perspectiva, as crianças são consideradas como atores sociais que produzem culturas próprias, através das experiências e representações sobre o mundo adulto, sobre a natureza e sobre a cultura de pares.
Não raro, no contexto do filme, a inclusão e a imaginação misturam-se quando as crianças deixam fluir as relações com a natureza por meio do jardim secreto e quando a cultura de pares se desenvolve na sua potencialidade, produzindo novas relações e provocando novos sentimentos. Consideramos que a Sociologia da Infância contribui não somente para a análise deste filme, mas tem se tornado sobremaneira relevante para oportunizar diálogos interdisciplinares importantes com os professores e profissionais em formação. Nesse sentido, as diversas tendências teóricas e conceituais podem ser intercomplementares e produzir novas culturas, conhecimentos e práticas, principalmente quando a inclusão, a infância e a imaginação provocam a quimera e a superação do modelo tradicional dos processos de socialização a partir da cultura de pares.