Introdução
A dissertação de mestrado que suscitou este artigo tem por objetivo analisar uma práxis educativa na escola estadual José Lins do Rego, localizada na periferia da zona sul da capital paulistana, durante o movimento de ocupação por estudantes e outros segmentos em escolas do ensino médio público ante a Medida de Reorganização dessa rede estadual de ensino validada pelo governo do estado de São Paulo em 2015. Nela, consolida-se a dimensão de análise das atividades desenvolvidas em uma escola e as formas de articulação entre estudantes, professores e outros sujeitos coletivos engajados nessa ocupação.
A mobilização dos estudantes que culminou na ocupação de escolas entre outubro e dezembro de 2015 ficou conhecida como primavera secundarista como opção política por parte dos sujeitos que estiveram engajados. A noção de secundarista é para designar a fase de escolarização dos estudantes do Ensino Médio; e primavera, a estação de florescimento, depois do castigo do inverno, resgata um acontecimento da história conhecido como Primavera dos Povos e a Primavera Árabe (HOBSBAWN, 1996).
Conforme constatação de Sanfelice (2010), no estado de São Paulo tem havido um conjunto de políticas públicas em educação concernentes a um projeto político de matriz ideológica neoliberal, movido pelas mesmas forças políticas que ingressaram no poder em 1995, com a eleição de Mário Covas (1995-1998; 1999-2001) pelo então Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). A este se seguiu o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com Geraldo Alckmin (2001-2002; 2003-2006), José Serra (2007-2010), Alberto Goldman (abril a dezembro de 2010). Geraldo Alckmin, candidato vitorioso em 2010, foi reeleito e governou o estado até dezembro de 2018. Sucedido por João Dória (PSDB) que tem mandato como governador do estado de São Paulo até 2022.
Neste contexto de continuidade nas gestões de um mesmo partido político, as reformas curriculares e a estrutura administrativa, movidas pela Secretaria da Educação para a rede de ensino em São Paulo (SEE/SP), têm suscitado enfrentamentos entre o governo e o sindicato representativo da categoria docente, por parte dos movimentos estudantis e de outros setores organizados da sociedade civil. Assim, a política para ensino público paulista, que foi anunciada em nota no site oficial da Secretaria da Educação do estado de São Paulo (SEE/SP), tornou-se objeto de contestação por parte dos estudantes. Ela consistia em dividir as escolas por ciclo único: primeiros anos do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental e ensino médio.
Propunha, por decisão do governo estadual, transferir mais de 311 mil estudantes para outras unidades escolares, de modo que encerraria as atividades em 94 escolas, com o objetivo de ceder os prédios ao governo municipal ou com outras finalidades. Diante desse anúncio, os estudantes se mobilizaram em torno de um movimento conhecido como “Não Fechem Minha Escola” que culminou com a primeira ocupação na Escola Estadual Diadema, região do ABCD paulista em nove de novembro de 2015. Esta ocupação foi acompanhada pelos secundaristas da Escola Estadual Fernão Dias, no bairro de Pinheiros na capital paulista e em dezembro eram contabilizadas 213 escolas ocupadas em todas as regiões do estado de São Paulo. Os acontecimentos analisados neste artigo correspondem à escola estadual José Lins do Rego, iniciados em 14 de novembro de 2015.
Na análise sobre o objeto de estudo – a primavera secundarista –, adotamos a literatura marxista neo-institucionalista como suporte teórico e metodológico para compreender o lugar dos jovens como classe social. Como Gaudêncio Frigotto (2015) não referendamos o conceito de sujeito enquanto indivíduo, tampouco o de classe social equivalente à renda nem o de ocupação associado a fatores econômicos, como entendem os liberais. Esta filiação foge à perspectiva marxista ante a função que assume para manter o status quo. Filiamo-nos, portanto, a Poulantzas (1980) que considera a complexidade nas determinações de classe e não as restringe à esfera econômica, mas com abrangência às esferas do “político e ideológica” da sociedade capitalista.
A ideia de engajamento estudantil postulada na pesquisa situa-se em oposição à acepção burguesa de protagonismo voluntário juvenil como também sugerem os neoliberais. Guedes (2007) considera que, a ideia de protagonismo na ideologia burguesa é individualista e têm gerado implicações que perpassam a vida escolar, social e profissional dos jovens, principalmente aqueles mais pobres, do campo e de periferias urbanas no Brasil. Tomamos, portanto, o engajamento dos estudantes secundaristas no movimento de ocupação como especificidade em um novo modo de reivindicação social, com agentes políticos, sujeitos de direito assegurado perante a lei.
Assim, pelo fato de estarem inseridas em realidades sociais distintas, conforme Frigotto (2015), os segmentos jovens da população não devem ser considerados no singular, mas no plural, como “juventudes”. Este termo é disputado por diferentes correntes teóricas, metodológicas e ideológicas, pois implica um processo de reconhecimento, por vezes de estranhamento destes, no e com o mundo, principalmente o mundo do trabalho (SPOSITO, 2008). O embate não deve, portanto, ser considerado algo natural, como se fosse dado, acabado, mas, encarado de modo a entender-se que a relação dos jovens com o mundo decorre, primordialmente, de processos que implicam educação familiar, escolarizada e que as supera.
Ressaltamos que, além da análise da literatura e documental, as imagens fotográficas ganharam destaque como fonte de conhecimento sobre a problemática abordada. À luz do método documentário, o procedimento consistiu na interpretação formulada, com a descrição de conteúdo da fotografia “[...] sem comentários ou interpretações do sentido imanente” da imagem” (BASSALO; WELLER, 2011, p. 303). O segundo momento da análise fotográfica correspondeu à aplicação da interpretação refletida, com a análise da projeção perspectivista da coreografia cênica e a interpretação icônica ou iconológica, orientada por sua composição formal e planimétrica (BOHNSACK, 2007; SEVERO, 2007).
Elegemos, ainda, como procedimento de pesquisa associada aos registros fotográficos, entrevistas semiestruturadas com aproximadamente trinta pessoas que participaram do movimento de ocupação da escola campo empírico da pesquisa. Delas participaram: quatro professoras e professores e dois militantes de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, totalizando onze sujeitos daquele universo de relações. Gravadas em áudio digital, foram transcritas e analisadas por meio da técnica do discurso do sujeito coletivo (DSC). A aplicação da técnica constou da produção de uma síntese das falas redigidas na primeira pessoa do singular com expressões chaves, selecionadas para composição de uma ideia central. Cada ideia central era eleita pelo pesquisador, que, por meio do programa DSCSoft, selecionou, organizou e extraiu as convergências nos discursos, apontando, também, as discordâncias entre os sujeitos entrevistados.
A escolha possibilitou analisar contradições e mediações na composição do discurso, sobre o qual optamos pela referência textual na tipografia itálica, para anunciar os “sujeitos coletivos engajados” nas citações diretas.
A escola e os sujeitos
A escola estadual José Lins do Rego está localizada na Estrada do M’boi Mirim, uma das principais vias de acesso aos distritos de Jardim Ângela, Jardim São Luís e do Capão Redondo, na zona sul periférica do município de São Paulo. Essa região específica da quinta cidade mais populosa do mundo compreende uma população de 832.033 pessoas, em um território de 75,7 km², o que equivale à densidade demográfica de 19.759 habitantes por quilômetros quadrados, uma das maiores médias registradas no último censo demográfico de 2010 em todo o Brasil. No tocante à realidade consideramos o cenário de pobreza e de violência a que estão expostas as pessoas que ali residem e/ou trabalham, como também o histórico de luta e de resistência em um território cuja população é “[...] predominantemente negra, migrante ou descendente de migrantes nordestinos [...]” (NASCIMENTO, 2010, p. 15).
Nesse contexto, as dificuldades cotidianas dos sujeitos são problematizadas de forma coletiva por meio de projetos em educação e cultura popular, no qual importantes coletivos e movimentos sociais coexistem numa cena de resistência composta, entre outras formas, pela Casa Popular de Cultura, Cursinhos Comunitários, Saraus e Cafés Filosóficos. Desses coletivos se destacam o Café Filosófico da Periferia, cuja proposta é levar a discussão filosófica para periferia e o Sarau Cooperifa, que é um movimento de resistência, já reconhecido culturalmente, que enfatiza a cultura sob o prisma da poesia. Verificou-se também a capacidade de articulação entre os sujeitos que operam em rede, reunindo escolas municipais e estaduais, universidades públicas, sindicatos e com a população em geral que ainda não se inseriu em espaços institucionalizados (DASSOLER, 2012).
O anúncio da Medida de Reorganização decretada pelo governo do estado de São Paulo em 2015, a ser apresentada em uma determinada data, convocada oficialmente, visava redistribuir os estudantes do ensino médio em unidades que ofertassem exclusivamente essa etapa de escolarização, surpreendeu os estudantes e seus familiares, pessoas diretamente interessadas e afetadas pela política. Parece simples afirmar que a escola José Lins do Rego já atendia ao requisito de ofertar, exclusivamente, o ensino médio, e que com a reorganização da rede de ensino a matrícula dos estudantes estaria condicionada à localização de sua residência. Mas, na realidade, tratava-se de alguns jovens terem que processar sua matrícula em outra unidade escolar, além de ter-se a transferência compulsória de outros tantos jovens para escolas mais próximas de seus domicílios. As mudanças tiravam do estudante o direito de escolher onde pretendia estudar, e tendia romper laços criados para quem frequentava a instituição em sua trajetória de escolarização.
Era um sábado 14 de novembro de 2015. A Secretaria da Educação do estado de São Paulo (SEE/SP) havia marcado para aquela data o chamado, oficialmente, DIA E, alusão a algo como “O dia na escola”. Embora o órgão oficial tenha atribuído o nome àquele “dia”, na memória coletiva dos sujeitos entrevistados a reunião ficou conhecida e permanece lembrada como o “Dia D”.
A terminologia corresponde a um vocábulo militar que denota o dia de um ataque ou uma operação de combate surpresa, em referência aos desembarques dos Aliados na Normandia durante a Segunda Grande Guerra Mundial. O nome carrega o caráter de urgência da convocação, sem que fosse devidamente organizada, tornando-o semelhante, senão propício, do ponto de vista oficial. Ninguém conversou antecipadamente com os estudantes e, assim, eles não tiveram tempo para se articular. Participaram do acontecimento na escola José Lins do Rego a equipe gestora, os professores, os estudantes, seus pais e mães assim como membros dos movimentos sociais.
Na imagem acima pode ser percebido, ainda que sem utilizar nenhum recurso tecnológico de identificação facial, a presença de aproximadamente setenta pessoas reunidas, sendo que, a maior parte delas aparece de pé. Há um grupo menor, em torno de nove pessoas, que aparentemente estão sentadas. No centro da imagem existe um espaço vazio separando quem está sentado de quem está em pé.
Para proceder à análise da composição planimétrica, traçamos uma linha horizontal, partindo do centro da imagem e acompanhando a separação entre o grupo de pessoas em pé daquelas que estão sentadas. No plano superior está um grupo de mulheres e homens (adultos) que compõem a quase totalidade daqueles que estão de pé, de frente na imagem. À direita, no canto inferior da fotografia, verificamos a presença de um menor número de pessoas mais jovens, de costas para a câmera.
No que tange à “coreografia cênica” (BASSALO; WELLER, 2011, p. 303), podemos identificar que o foco da imagem está voltado para o maior grupo de pessoas que se encontra de pé. Como pode ser visualizado na parte superior, ao fundo e do lado esquerdo da imagem, há outras pessoas presentes no espaço em que a fotografia registrou o evento, embora não estejam compondo o plano fotografado.
Destacamos como importante elemento iconográfico o registro de um homem, ao lado esquerdo, em pé, de chapéu na cabeça e braços cruzados. O símbolo em sua camiseta sugere que se trata de um militante engajado no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Os elementos cênicos e iconográficos conforme são identificados na imagem 1 revelam a intencionalidade do produtor da fotografia, de fornecer as bases para a análise da projeção perspectivista. Chama a atenção o interesse do produtor da imagem em registrar a presença de pais, estudantes, professores e militantes de movimentos sociais no pátio da escola estadual José Lins do Rego, durante a reunião do chamado Dia D.
Ao analisar a projeção perspectivista da imagem consideramos a intencionalidade com que foi produzida, portanto, o objetivo de quem a produziu. De acordo com Severo (2017), essa última etapa do método documentário é composta por instrumentos de análise e de interpretação sugestivos da visão de mundo dos sujeitos. Nela, consideramos o lugar que ocupam as pessoas envolvidas na cena, o contexto econômico, social e político no qual se inscrevem como parte constituinte da visão de mundo compartilhada pelos sujeitos.
Para os sujeitos coletivos engajados a mobilização do MTST em face da reunião na escola foi de fundamental importância e decorreu do fato deles acompanharem os acontecimentos na região e interessar-se terem os filhos estudando na José Lins do Rego. Assim, o grupo compareceu ao evento em grande número na busca de esclarecimentos e “[...] o movimento dos sem teto [MTST] já havia combinado de apoiar essa ocupação dos alunos da unidade” (SUJEITOS COLETIVOS ENGAJADOS, 2019).
Organização coletiva dos sujeitos engajados
Ao observamos a fotografia que segue, percebemos na parte inferior a presença de aproximadamente trinta e três pessoas reunidas em um grupo com aparência jovem, dispostas em forma circular. Enquanto na parte superior, do lado direito, são visualizados cartazes na parede amarela; em outra, no canto oposto, estão uma porta e uma janela azuis.
Por meio da “análise planimétrica” da fotografia desvelam-se “elementos cênicos” que, embora não sugiram terem sido coreografados, carregam valores e visões de mundo do “produtor da imagem” (BASSALO; WELLER, 2011, p. 303). No plano inferior, ao centro da fotografia, encontra-se um jovem de boné preto que se destaca do restante do grupo; ele olha para outro que está de camiseta branca, bermuda azul e tênis preto, e, pelo gesto com as mãos e a expressão facial, é sugestiva de que está se dirigindo ao grupo. No canto direito do plano inferior, podemos observar outro jovem com a mão direita levantada, enquanto no centro da fotografia visualizamos uma jovem de cabelos avermelhados voltando o olhar para este gesto; há outra jovem de camiseta lilás fazendo o uso do que parece ser um telefone celular.
Ainda, acerca das intenções que depõem sobre a visão de mundo do produtor da fotografia, verificamos no foco, a cena na qual um estudante fala, enquanto o outro levanta a mão parecendo aguardar sua vez. A disposição dos sujeitos representados na imagem, lado a lado, em círculo, corresponde à ideia central recuperada no discurso dos sujeitos coletivos engajados, de que não havia um líder, todos eles se constituíam lideranças e a organização das atividades se dava de forma coletiva, democrática em suas assembleias.
Para o historiador Eric Hobsbawm (1998), as ocupações em espaços públicos e privados têm se constituído importante ferramenta popular em diversos campos da luta de classes, principalmente no que se refere à luta pela terra e por moradia. No Brasil, essa estratégia tem ganhado expressão nas ocupações pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Corroborando essa perspectiva, Thompson (1998) destaca que historicamente as classes dominadas tendem a ocupar as ruas, avenidas, praças e prédios públicos e privados, num processo de fazer-se movimento social. Assim, o engajamento dos estudantes pode ser compreendido como um processo de mobilização e articulação política entre os sujeitos engajados na política contra a qual estavam lutando e em defesa do direito à educação que pretendiam como excluídos dos benefícios decorrentes da riqueza social por eles produzida.
Podemos assim concluir na análise das imagens sobre os eventos inscritos na reunião conhecida como DIA D, que a ocupação da escola José Lins do Rego contou com um importante apoio de coletivos e de pessoas ligadas aos movimentos sociais na região que os impulsionavam na luta política. Os estudantes – Sujeitos coletivos engajados (2019) no movimento – consideram que o apoio de militantes dos movimentos sociais foi importante na maneira de se organizarem, inclusive, na divisão de tarefas durante a ocupação. Pontuam, contudo, que as decisões eram tomadas em assembleias e todas as deliberações deveriam convergir para consensos.
No movimento, destacamos ainda a linguagem como ferramenta imprescindível ao salto qualitativo atribuído a esta luta política em defesa de determinados direitos, em particular a educação e a escola. Nele, termos como ocupação e lideranças eram reivindicados pelos sujeitos coletivos em contraposição à invasão e líder.
Nesse sentido, instaurou-se uma polêmica e o debate conceitual ganhou corpo nas assembleias de estudantes e na grande imprensa. Os jovens engajados insistiam no uso do termo ocupação por entenderem que o espaço da escola os pertencia, e, assim, o movimento não se configurava como invasão ao que pertencia a outrem. Sob essa ótica, o uso do termo invasão se tornaria pejorativo ao ideário e às práticas que os movia, ante a clara tentativa do governo em criminalizar as ocupações.
Sobre o conceito de lideranças, este ganhou status na conduta dos estudantes da escola José Lins do Rego, que atuavam de forma descentralizada. Montavam comissões iam às escolas vizinhas também ocupadas, tanto para difundir e colher informações sobre o que nela estava acontecendo, quanto para levar gêneros alimentícios e materiais de limpeza doados e distribuídos entre as demais.
A pesquisa que focou a dinâmica do movimento na escola e a tomada de decisões dos sujeitos engajados evidenciou, também, o debate sobre temas como: organização do espaço da escola (disposição de mesas e cadeiras por ocasião das atividades em sala de aula) e a conjuntura econômica, social e política nacional e internacional. No particular à ocupação da escola estadual José Lins do Rego, o dia se iniciava sempre com uma assembleia na qual as tarefas diárias eram distribuídas.
Nessa dinâmica os meninos se voltavam mais para a segurança na porta da escola, revezando-se a noite inteira. Outra parte se distribuía cuidando da cozinha, da limpeza e dos dormitórios, que eram as salas de aula improvisadas. Ademais, mantinham-se cuidados com a fachada e com a pintura interna da escola.
Além da rotina diária, no ambiente realizavam-se atividades como oficina de leitura, roda de conversa sobre temas como feminismo, movimento negro, movimento LGBTQ+. Para os estudantes engajados, as atividades realizadas durante a ocupação não se constituíam simples lazer, mas algo que implicava conhecimento. Na memória dos sujeitos tudo foi muito enriquecedor porque ajudou a quebrar paradigmas conservadores e preconceitos dando lugar a novas percepções da realidade e da própria escola como instituição educativa.
É convergente entre os sujeitos entrevistados a ideia de que todo mundo fazia um pouco de tudo e que essa perspectiva de horizontalidade e coletividade, decorre do compartilhamento da convivência com o MTST, “[...] porque eles mostraram tanta coisa pra gente, que a gente não sabia, montou as comissões e a gente ficou separando entre as pessoas mesmo” (SUJEITOS COLETIVOS ENGAJADOS, 2019).
Ademais, a ocupação desencadeava atividades culturais e aulas organizadas pelos próprios estudantes, cuja dinâmica não era devidamente compreendida pelos dirigentes da instituição. Havia aquelas que eram abertas à comunidade e contavam, inclusive, com a colaboração de pessoas externas à escola. Delas participavam militantes do Sarau da Cooperifa, do Café Filosófico da Periferia, do Bloco do Hercu e de outros coletivos, o Emancipa [rede de cursinhos populares], MTST, professores do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP). Estudantes da Universidade de São Paulo e de outras instituições de ensino superior convidados para conversar com os estudantes, desenvolver oficinas entre outras atividades educativas, como rodas ou círculos de conversa, saraus e shows.
Além do que acontecia na José Lins do Rego, no transcurso desse movimento estadual, muitas escolas foram visitadas por artistas famosos de diferentes expressões culturais: cantores, atrizes e diretores de teatro. Esta escola foi brindada com a presença de bandas de rock, hardcore e por um grupo de teatro. Um professor convidou o [poeta] Sérgio Vaz da Cooperifa para desenvolver um sarau na quadra de esporte.
No rol das iniciativas de caráter artístico, cultural e aulas públicas, os estudantes também se organizavam em comissões e definiam uma pauta de reivindicações, que foi protocolada na direção da escola, na Diretoria de Ensino Sul 2 e na Secretaria da Educação (SEE/SP). Nesse documento reivindicavam gestão de caráter democrático na escola, participação do grêmio estudantil no Conselho de Escola, que o colegiado fosse mais participativo e que com a prestação de contas houvesse a publicização dos gastos mensais da escola. Solicitavam, ainda, providências relativas à infraestrutura e à manutenção do prédio escolar como: instauração de um banheiro para uso alternativo, sem exclusividade de gênero – masculino ou feminino –, limpeza geral da escola, descarte de cadeiras quebradas acumuladas na unidade de ensino, manutenção da parte elétrica do prédio; melhorias na acessibilidade para estudantes e outras pessoas com necessidades especiais.
Reivindicavam, também, experimentar o uso alternado das salas ambiente, entre as quais os estudantes se deslocariam e os professores permaneceriam nas mesmas que iniciavam o turno. Outra solicitação importante consistia no tipo de alimento servido na merenda escolar que deveria ser adequado ao horário da refeição: café da manhã, almoço e jantar. O que fosse servido aos estudantes da tarde deveria ter características nutricionais semelhantes ao almoço, fechando, assim, o ciclo de uma práxis por eles almejada.
A práxis educativa na ocupação da escola José Lins do Rego
Nas análises podemos perceber que os sujeitos engajados organizavam críticas sistemáticas às práticas de escolarização formal, que tendiam a se impor ao ambiente escolar, desconsiderando-se o potencial dos profissionais, dos estudantes, das organizações sociais e da comunidade local. De acordo com Paulo Freire (2006, p. 41) no ensino tradicional, considerado o tipo “educação bancária”, o professor deposita nos estudantes conhecimentos que não possuíam ainda, por meio de práticas autoritárias e alienantes. Para o educador, essa pedagogia poderia culpabilizá-los pelo fracasso escolar resultante do tipo de educação que incide em conteúdos de ensino distanciados da realidade dos estudantes e de suas famílias, da vida coletiva e de práticas políticas e sociais transformadoras. Em contraposição, ressalta a importância da práxis que implique “[...] reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos” (FREIRE, 2013, p. 49).
Assim, o padrão tradicional do currículo na escolaridade, é criticado pelos sujeitos engajados porque ele se distancia da rotina criada pelo movimento de ocupação. Neste, os próprios estudantes coordenavam as rotinas da escola para assegurar que naquele espaço cada um e todos tivessem direito à fala e a ser ouvido. Na ocupação da escola estadual José Lins do Rego, a mobilização ensejava ver no outro uma nova possibilidade de cada um ser o que é.
Na periferia a gente tem muita gente com muito talento, de tudo, seja música, poesia, dança. E essas coisas que a gente levou pra dentro da ocupação, esses espaços, ambientes das pessoas poderem recitar aquilo que ela escreveu e que às vezes ela acha que não dá nada, mas no momento em que ela fala ela percebe que talvez ela possa fazer aquilo pra vida inteira. Então essa educação que a gente tem hoje, ela inibe que essa pessoa possa ter esses espaços ao menos uma vez. E esse espaço é o que justamente muda a vida da pessoa (SUJEITOS COLETIVOS ENGAJADOS, 2019).
O discurso desses sujeitos vislumbra a dimensão de uma práxis transformadora para estudantes e professores por meio da convivência coletiva no processo de ocupação. Dela resultava o engajamento no complexo funcionamento da escola, desde a organização em geral, passando pela limpeza, alimentação, segurança, aulas, atividades culturais, esportivas entre outras. À exceção das tarefas administrativas e o currículo oficial, se mantinham a cargo da equipe gestora, de funcionários e professores responsáveis por essas demandas, que não podiam exercê-las porque os estudantes os impediam de acessar a unidade naquele momento.
Na fotografia registra-se a presença de nove pessoas com indício de ter uma décima, cuja mão aparece sobre a mesa no canto esquerdo inferior. O grupo que está em volta de uma mesa branca, com bordas azuis, sobre a qual podemos visualizar canetas, revistas, apostilas e outros materiais impressos parece voltar-se para uma produção audiovisual associada à ocupação. Na parte superior da fotografia visualizamos um muro formando uma placa vermelha acompanhada por uma tela e, ao lado direito encontra-se uma aparente tabela de basquete, sugerindo tratar-se de uma quadra poliesportiva.
Acerca da composição formal, que remete aos planos em que a imagem 3 está representada, verificamos a evidência de profundidade no registro da cena. Nela, mostram-se elementos cênicos em ambos os planos: na parte inferior, à esquerda, encontra-se uma pessoa do sexo masculino, de barba e camiseta preta e, à direita, outra, do sexo feminino, com cabelos pretos presos, camisa azul e óculos, ambas fazendo uso de uma aparente folha papel e caneta, sugerindo que as pessoas estavam escrevendo. A cena conta, ainda, como elemento iconográfico, um tubo de plástico branco semelhante ao de cola escolar, ao lado de uma revista destacada em primeiro plano, cuja capa traz a imagem de uma criança.
Na parte superior da fotografia, o plano de fundo, mostra cinco jovens que estão aparentemente conversando. Ao lado direito um deles se volta para a pessoa de cabelos compridos, de camisa branca, com uma folha de papel nas mãos, fitando o conteúdo do texto numa aparente situação de leitura. No centro, ainda na parte superior, uma pessoa de cabelos curtos, camisa preta de mangas longas com estampa de letras brancas e repousando o braço esquerdo sobre o ombro de outra de cabelos compridos, vestindo roupa preta e se entreolhando.
Seguimos a análise da fotográfica com a projeção perspectivista – que é capaz de revelar as intenções e as visões de mundo dos sujeitos fotografados e do produtor da imagem – os quais, neste caso se confundem, considerando que a imagem é um registro dos próprios sujeitos engajados no movimento de ocupação da escola estadual José Lins do Rego. Os registros sobre a organização dos sujeitos engajados reivindicavam a memória da ocupação, na qual a escola sendo um espaço educativo estava aberta a novas práticas dessa natureza. Propiciava, dessa forma, aprendizagens múltiplas, que talvez a sala de aula convencional não suscitasse.
Ressaltamos nessa particularidade que o discurso sobre educação escolar historicamente está associado a um projeto de sociedade e Estado. Para ele convergem, ainda que seja divergente do ponto de vista político e ideológico, políticos, educadores, pesquisadores, pais de família, segmentos organizados da sociedade e a porção juvenil inscrita no sistema público e gratuito de ensino.
Para essa reflexão contribui Chizzotti (2020, p. 16) que, ao analisar os discursos e propostas em educação referidas por políticos entre outros, no pleito eleitoral de 2018, considerou que a efetividade do processo de escolarização deverá apontar para a “[...] realização das aspirações pessoais e sociais de cada aluno [garantindo a] integração de cada cidadão na vida social e no trabalho, e, assim, maior será a consistência política e social do Estado”.
Temos, portanto, uma práxis educativa que era levada a cabo pelos jovens durante a ocupação e ascendia à concepção freiriana. Assim, assumiam a direção de atividades educativas, culturais etc., sua idealização, execução e avaliação; estas, que eram atribuídas aos agentes da instituição, tornava-se quase inimaginável que estudantes viessem a desempenhá-las de modo eficiente. Sobre essa dinâmica os professores engajados no movimento apresentam sua percepção acerca do papel exercido pelos estudantes no movimento de ocupação, como sujeitos que ensinavam e aprendiam.
Segundo essa compreensão, à memória dos sujeitos coletivos engajados, no movimento de ocupação, eles puderam
[...] organizar uma roda de conversa, criar um nível em que todos os interlocutores estejam no mesmo patamar, que todos consigam aprender e ressignificar juntos, criando estratégias para que este movimento resista a uma perseguição policial, trouxe um novo viés de compreensão pedagógica do que é aprender. Então a ideia de aprender para esses envolvidos ficou atrelada também a ideia de resistir (SUJEITOS COLETIVOS ENGAJADOS, 2019).
Temos, aqui, outra importante dimensão no discurso daqueles sujeitos engajados na luta política: a resistência. Ante a identidade que se registrava entre as pessoas naquela região periférica da cidade de São Paulo (NASCIMENTO, 2010), os sujeitos agiam como forma de resistirem à política impositiva de Reorganização da rede escolar de ensino e à repressão policial por parte do governo estadual. A resistência como dimensão na luta dos estudantes engajados na ocupação, se mostrava para além da defesa da José Lins do Rego, mas do conjunto da rede de ensino. Ou seja, pela manutenção de um formato de gestão escolar que atendesse à diversidade dos jovens estudantes de ensino médio na comunidade circundante.
Retomando o ideário de Paulo Freire (2006) acrescentamos à sua pedagogia a categoria humanização, associada ao significado de transformação, resistência, coletividade, como práxis educativa mobilizadora de meninas, meninos e jovens estudantes do ensino médio envolvidos na ocupação da escola José Lins do Rego. Nesse particular, sobressai entre os sujeitos engajados a noção de que a
[...] escola é um espaço de aprendizado, mas que o ensino é um elemento dentro de um conjunto maior que é a educação. E a escola ocupada mandou esse recado para todos nós: “olha a escola precisa fazer mais do que ela tem feito”. A escola não é só reprodução de conceitos e de conteúdos mecânicos. A escola é um espaço de diálogo, de humanização (SUJEITOS COLETIVOS ENGAJADOS, 2019).
Corroboramos essa concepção de escola como espaço de múltiplas aprendizagens em interação com a diversidade econômica, social e cultural no conjunto da sociedade. Nela, educação significa mais do que processar ensino e aprendizagem de conteúdos tecnicamente traduzidos por especialistas com essa finalidade. Nesse campo,
[...] existem zonas indeterminadas da prática – a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores – escapam aos cânones da racionalidade técnica. [e assim, uma problemática não pode ser guiada por] fins claros que sejam consistentes em si e que possam guiar a seleção técnica dos meios (SCHÖN, 2000, p. 17).
É nesse terreno pantanoso que se assenta a educação como prática política e pedagógica que se articula e se complementa nos processos de ensino e aprendizagens, com vistas à transformação social. Nisso, consiste a importância da escola na qual se inscreve a práxis educativa libertadora. Como postura política de educadores, estudantes entre outros, esta é subsidiada pelo conhecimento científico e por tantos saberes mediados pelo senso comum originário da realidade na qual se inscrevem os sujeitos com a leitura de mundo nela traduzida.
Por meio da leitura de mundo se tem a leitura da palavra, e, por isso “[...] ensinar a aprender só é válido quando os educandos aprendem a aprender ao aprender a razão de ser do objeto ou do conteúdo [...]” (FREIRE, 2013, p. 112), que está sendo ensinado e aprendido por todos os sujeitos envolvidos em um determinado processo de aprendizagem, de vivências e de experiências.
Nas reflexões suscitadas pelas análises têm-se evidências da diferenciação entre a práxis educativa mobilizada pelos estudantes na ocupação da escola José Lins do Rego e o tipo formal de educação, que é herdeiro do modelo taylorista-fordista na produção material de existência. Como filiado à Teoria do Capital Humano, subjaz à racionalidade neoliberal em suas formas mais perversas de exclusão da maioria das pessoas em determinadas sociedades.
Nesse estágio temos o limite do neoliberalismo que acena para sua superação a qual, segundo Dardot e Laval (2016) prescinde de ações coletivas como as mobilizações que vem ocorrendo em escala mundial, capazes de criar uma novidade racional na qual vem a
[...] prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva, o autogoverno democrático sobre o comando hierárquico e, acima de tudo, torna a coatividade indissociável da codecisão – não há obrigação política sem participação em uma mesma atividade (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 9).
Nesse momento, os acontecimentos que abalam a humanidade com a pandemia pelo covid19, ante a barbárie neoliberal acena um mercado cambaleante e a exacerbação da pobreza em escala mundial desnudada como nunca na história do capitalismo. Resgatamos, portanto, o ideário freiriano que se aplica não somente à Educação, mas ao trato com o ser humano em geral, contrapondo-se à premência de libertar as classes populares da opressão a qual estão submetidas. É nessa perspectiva que se alinham professores e estudantes engajados na defesa da educação como possibilidade de transformação social e política, do diálogo entre saberes populares de “vida vivida” e o conhecimento que implica a ciência cuja leitura da realidade não pode escapar aos sujeitos na qual se inscrevem.
Considerações finais
Inicialmente, a intenção desta pesquisa era compreender as manifestações de repúdio à medida de reorganização da rede estadual de ensino apresentada pelo governo do estado de São Paulo em novembro de 2015. Questionávamos sobre a natureza da mobilização como luta particular de estudantes secundaristas em defesa de sua escola pública e gratuita; e sobre a importância da participação popular nas decisões – administrativas, pedagógicas, financeiras – da educação como direito constitucional subjetivo. Ao curso das investigações, revelou-se que a mobilização desses sujeitos na primavera secundarista insurgiu na crítica à política adotada pelo governo estadual que levava a cabo um projeto de educação que estava em curso nacional e internacionalmente.
Conforme as teorizações de Hobsbawn (1998) e Thompson (1998) acerca da ocupação como estratégia de articulação política das classes dominadas contra as opressões, pudemos compreender a primavera secundarista como uma luta para além da resistência. As proposições emanadas de estudantes, professores e outros segmentos organizados da sociedade civil, ainda que focados na escola estadual José Lins do Rego, não se limitavam a este espaço educativo.
Salientamos que, embora inicialmente, o coletivo não tivesse uma pauta efetiva, esta veio a se consolidar com as reivindicações específicas provenientes de outras unidades escolares ocupadas. Assim, tanto a adesão ao movimento quanto a decisão de encerramento, foi negociada no que se refere ao período e à forma de desocupação. O cenário de mobilização se intensificou movido pela solidariedade frente à repressão da polícia militar autorizada pelo governo estadual, feria a identidade e a coletividade entre os sujeitos engajados na luta.
Verificamos, ainda, que ante a ameaça de não poderem escolher a escola onde pretendiam estudar e do fechamento de unidades escolares e de salas de aula, irrompeu a mobilização pautada na defesa desses direitos. Exacerbaram-se os problemas que eram recorrentes na rede pública estadual de ensino, entre os quais a superlotação das turmas. A forma autoritária e repressiva como atuavam os agentes do Estado com a evidência de políticas controvertidas, tornou-se o estopim que desencadeou a articulação dos sujeitos engajados nessa luta.
Subsidiadas pelas ideias de Paulo Freire (2006, 2013), as análises sobre a conduta dos sujeitos engajados anunciam a possibilidade de rupturas (e de continuidades). Pois, o engajamento dos estudantes na primavera secundarista superou a aparência de que este foi motivado, exclusivamente, pelo fato ocuparem uma escola como forma de reagir ou responder à política impositiva do governo do estado de São Paulo. Nessa perspectiva, o formato assumido pela mobilização ganhou caráter ativo, e, portanto, propositivo, uma vez que, os sujeitos no movimento pretendiam superar o modelo tradicional de educação – bancário, autoritário, impositivo –, de escola, de ensino e vislumbravam um projeto que configurasse este ambiente educativo acolhedor, e, portanto, inclusivo.
Esta organização se identifica, conforme a teoria marxista adotada neste trabalho, com partidos políticos, sindicatos de categorias – docentes e demais profissionais –, instituições do campo educacional, movimentos sociais entre outros. Todos se encontravam na mesma trincheira, lutando pela garantia do direito constitucional à educação pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada e para todas as pessoas.
Na primavera secundarista se tornava evidente o caráter crítico e propositivo da mobilização estudantil em face da política educativa e da organização interna das escolas, impulsionado por movimentos dessa natureza. Os sujeitos engajados discordavam do modelo de educação opressor e alienante, e se engajavam numa práxis educativa que dava vida à convivência coletiva, horizontalmente organizada nas escolas ocupadas, aproximando-se, portanto, do que ocorria em outras partes do Brasil. A identificação entre quem ocupava as escolas em São Paulo e se apropriava do espaço educativo como parte dele, suscitava novos significados em um importante momento histórico que clamava pela formação de uma consciência de classe vislumbrando a transformação da realidade por meio de um agir coletivo.