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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.29 no.71 São Paulo ago. 2018

https://doi.org/10.18222/eae.v0ix.5013 

ARTIGOS

Juvenilização da EJA como efeito colateral das políticas de responsabilização

Juvenilización de EJA como efecto colateral de las políticas de responsabilización

Juvenilization in EJA as a side effect of accountability policies

Talita Vidal PereiraI 

Roberta Avoglio Alves OliveiraII 

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; http://orcid.org/0000-0002-1442-0124; p.talitavidal@gmail.com

IISecretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias; Fundação de Apoio à Escola Técnica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; http://orcid.org/0000-0002-5527-1671; roberta.avoglio@gmail.com


RESUMO

O fenômeno denominado juvenilização da Educação de Jovens e Adultos (EJA) é analisado no presente artigo como consequência da expulsão de jovens em defasagem idade-série da escola regular. O pressuposto é que o fenômeno tem se intensificado na medida em que a correção de fluxo tem funcionado como mecanismo de escape, utilizado por gestores com o objetivo de evitar as sanções previstas nas políticas de responsabilização às escolas e aos professores que não alcançam as metas de desempenho estabelecidas pelas diferentes esferas do sistema. São utilizados dados estatísticos sobre o histórico de matrículas na EJA na rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro para sustentar que as políticas de avaliação em larga escala, anunciadas como garantidoras da qualidade da educação, têm favorecido a manutenção de processos de exclusão escolar. Aportes pós-estruturalistas, em especial a Teoria do Discurso, sustentam a problematização de uma concepção instrumental de qualidade.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilização; Educação de Jovens e Adultos (Eja); Qualidade da Educação; Avaliação da Educação

RESUMEN

Se analiza el fenómeno denominado juvenilización de la Educação de Jovens e Adultos (EJA) en el presente artículo en función de la expulsión de jóvenes en desfase edad-año de la escuela regular. Se presupone que el fenómeno se ha intensificado en la medida que la corrección de flujo funciona como mecanismo de escape, utilizado por gestores con el objetivo de evitar las sanciones previstas en las políticas de responsabilización a las escuelas y a los profesores que no alcanzan las metas de desempeño establecidas por las diferentes esferas del sistema. Se utilizan datos estadísticos sobre el historial de matrículas en EJA en la red municipal de enseñanza de la ciudad de Rio de Janeiro para sustentar que las políticas de evaluación en gran escala, anunciadas como garantes de la calidad de la educación, han favorecido el mantenimiento de procesos de exclusión escolar. Aportes post-estructuralistas, en especial la Teoría del Discurso, sostienen la problematización de una concepción instrumental de calidad.

PALABRAS CLAVE: Responsabilización; Educação de Jovens e Adultos (Eja); Calidad de la Educación; Evaluación de la Educación

ABSTRACT

This article analyzes the phenomenon called juvenilization in Educação de Jovens e Adultos (EJA [Adult and Youth Education]) as a result of the exclusion of young people with age-grade discrepancy from regular school. The assumption is that the phenomenon has intensified, as the flow correction has worked as an escape mechanism used by managers to avoid the penalties prescribed in the accountability policies for schools and teachers not reaching the performance targets established for the different levels of the system. Statistical data about the EJA academic transcripts from the municipal school network of Rio de Janeiro are used to support the large-scale assessment policies. These policies, announced as guarantors of the quality of education, have favored the maintenance of school exclusion processes. Poststructuralist contributions, particularly Discourse Theory, support the problematizing of an instrumental concept of quality.

KEYWORDS: Accountability; Educação de Jovens e Adultos (Eja); Quality of Education; Education Evaluation

INTRODUÇÃO

Com o rebaixamento, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), das idades mínimas para que os candidatos possam prestar exame supletivo (15 anos para o ensino fundamental e 18 anos para o ensino médio), a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) baixou a Resolução n. 03/10 (BRASIL, 2010) estendendo a idade mínima estabelecida também para a matrícula na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Essa redução tem intensificado um fenômeno que os pesquisadores identificam como processo de juvenilização da EJA, em função do rejuvenescimento da população que a frequenta, consequência do aumento significativo das matrículas de jovens a partir dos 14 anos nessa modalidade de ensino (RUMMERT, 2007). Esse fenômeno tem agravado o grau de “indeterminação do público-alvo e diluição das especificidades psicopedagógicas” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 122) que caracteriza a EJA como modalidade de ensino.

São fatores que têm contribuído para a intensificação desse fenômeno: a evasão e a repetência, consequências das gravíssimas deficiências do sistema escolar e que explicam a defasagem existente entre idade e série; a dificuldade de acesso; a ausência de motivação para permanecer na escola; a busca por certificação escolar por parte de uma parcela da população majoritariamente constituída por negros e/ou pobres. No entanto, sem desconsiderar que todos esses fatores podem favorecer a juvenilização, neste artigo interessa-nos refletir em que medida as avaliações em larga escala, associadas às políticas de responsabilização, podem intensificar esse processo, dado que, nos últimos anos, a redução das idades mínimas para prestar exame supletivo e para matrícula na EJA criou condições para que as instâncias normativas estaduais incorporassem estratégias que possibilitam a progressiva identificação do ensino supletivo com mecanismos de aceleração do ensino regular, com o objetivo de corrigir distorções no fluxo escolar (HADDAD; DI PIERRO, 2000), provocando uma grande demanda por matrícula nos programas de educação inicialmente destinados a adultos.

Brunel (2004) destaca que fatores pedagógicos, políticos, legais e estruturais favorecem esse fenômeno, que, segundo Fernandes (2008), tem merecido a atenção de pesquisadores e educadores. Brunel (2004) também aponta a existência não apenas de um contexto legal demarcado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelece em 15 anos a idade mínima para que os jovens prestem os exames para conclusão do ensino fundamental, mas também de um contexto social e pedagógico que favorece processos migratórios desses jovens da escola regular para a modalidade EJA.

Em relação ao contexto legal evidenciado por Fernandes (2008), Rumert (2007) afirma que se trata de uma medida que objetivava a correção do fluxo escolar, além de possibilitar a antecipação da conclusão dos estudos de jovens que, devido às condições de vida, encontram dificuldades para frequentar a escola regular. Assim, a redução da idade mínima para ingresso na EJA - tanto nos cursos quanto na inscrição para os exames supletivos - favoreceu o deslocamento de estudantes matriculados no ensino fundamental para essa modalidade. Grande parte desse deslocamento é resultado de um processo educacional fragmentado, marcado por experiências de evasão e/ou reprovação no ensino fundamental e médio regulares, um quadro que evidencia a fragilidade do atendimento escolar, que produz significativo contingente de jovens que, por diferentes motivos, são levados a se evadir da escola, agravando um contexto histórico de privação de direitos básicos. Jovens que normalmente apresentam um histórico de experiências pouco exitosas na escola regular e que nem sempre encontram na escola de EJA as condições pedagógicas adequadas para o desenvolvimento de um trabalho que atenda de forma satisfatória às suas demandas específicas (CARRANO, 2007). Esse autor afirma que tal quadro tem contribuído para gerar conflitos geracionais nas escolas de EJA.

Neste artigo, não desconsideramos a complexidade envolvida nesses processos e os inúmeros fatores legais, sociais e pedagógicos que favorecem essa migração. Também não deixamos de considerar a necessidade de pesquisas que possam contribuir para a reflexão sobre os objetivos e formas de funcionamento pedagógico da EJA. No entanto, nossa análise se volta para o impacto que as avaliações em larga escala, associadas aos mecanismos de responsabilização, têm produzido nas escolas, favorecendo a intensificação dos processos de exclusão de contingentes de jovens do ensino regular para a modalidade EJA. Isso acontece como resultado das estratégias de escape utilizadas por gestores escolares com o objetivo de corrigir o fluxo de estudantes e evitar as sanções de toda ordem que decorrem do não alcance das metas de desempenho estabelecidas pelos gestores educacionais das diferentes esferas do sistema (RAVITCH, 2011).

No texto, são problematizadas as associações entre avaliação e qualidade e discutidos os efeitos das políticas de responsabilização, tendo como exemplo a rede municipal de ensino da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro para refletir sobre os processos de juvenilização da EJA como consequência dessas políticas.

AVALIAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO DOCENTE: A SERVIÇO DE QUAL QUALIDADE?

Bonamino e Souza (2012), Brooke (2006, 2008, 2012), Ortigão e Aguiar (2013), Ortigão e Pereira (2016), Ravitch (2011), Carnoy e Loeb (2002) e Fernandes (2013), dentre outros, com base em perspectivas teóricas diversas, têm salientado a forma pela qual a avaliação assume o lugar de peça central das reformas educacionais que proliferam em inúmeros países a partir da década de 1990, apontando inclusive muitas similaridades entre si, o que, segundo Brooke (2012), tem reforçado a percepção de que essas políticas, ao serem implementadas, seguem uma mesma lógica. Similaridades que parecem expressar que são políticas implementadas em diferentes países com base em uma agenda mundial comum. Uma dessas similaridades é mencionada por Bonamino e Souza (2012, p. 375) quando evidenciam que “as iniciativas de avaliação associam- -se à promoção da qualidade do ensino, estabelecendo, no limite, novos parâmetros de gestão dos sistemas educacionais”.

Barriga (2014, p. 147) também destaca como os sistemas educativos, em especial na América Latina, têm implementado

[...] políticas que formalmente se ostentam como políticas de qualidade, a partir das quais se multiplicam os programas e os mecanismos de avaliação em todos os níveis e campos do sistema educativo.

Outra similaridade, que tem relação com a busca por qualidade, diz respeito à incorporação de políticas de responsabilização que articulam avaliação, gestão democrática e responsabilização como mecanismos indutores e garantidores da qualidade.

Analisando o caso norte-americano, Ravitch (2011) afirma que a responsabilização passou a figurar com centralidade no vocabulário de líderes políticos e empresariais a partir da década de 1990, todos interessados em obter resultados mensuráveis que pudessem expressar retorno dos investimentos feitos em educação pública. Uma perspectiva em que a educação é “considerada um ônus para o gasto social” (BARRIGA, 2014, p. 150), processo que se intensificou durante o mandato do presidente George W. Bush com a No Child Left Behind Act [Lei Nenhuma Criança Fica para Trás], aprovada pelo Congresso em 2001, que admitia: “a importância da responsabilização para professores, diretores e escolas, especialmente se seus estudantes não estivessem apresentando bons desempenhos” (RAVITCH, 2011, p. 171) nos testes padronizados.

Assim como destaca Ravitch (2011), os argumentos apresentados neste texto não têm como objetivo negar a importância da avaliação, nem mesmo dos testes, dado que resultados de testes bem elaborados e confiáveis podem oferecer informações significativas tanto para gestores e professores quanto para os responsáveis e estudantes. O Brasil conta hoje com uma produção teórica e metodológica sofisticada no que se refere a esses testes; se bem utilizados, eles podem ser instrumentos importantes na identificação de potencialidades e fragilidades pedagógicas e organizacionais, auxiliando na reorientação desses processos com ganhos significativos para todos. Ainda concordando com Ravitch (2011, p. 172), o que é questionável, tanto no contexto analisado pela autora quanto em outras experiências, como no caso do Brasil, são os usos equivocados das testagens, inclusive aqueles que se pautam pela

[...] crença de que os testes poderiam identificar com certeza quais estudantes deveriam ser retidos, quais professores e diretores deveriam ser demitidos ou recompensados [...] e a ideia de que essas mudanças iriam inevitavelmente produzir uma melhor educação.

É essa crença que tem descaracterizado o uso das testagens e favorecido a multiplicação de indicadores quantitativos, contribuindo para a hegemonização de um discurso que articula o êxito obtido nos indicadores com a melhoria da qualidade da educação (BARRIGA, 2014). Essa é uma associação reducionista que tem contribuído para a desqualificação da escola pública.

A busca pela qualidade da educação tem sido um argumento recorrentemente utilizado pelos defensores dessas políticas na tentativa de legitimá-las, apresentando-as como necessárias para a promoção de uma mudança de rumo nas políticas educacionais. No entanto, cabe salientar que, nessa perspectiva, a qualidade da educação se reduz à qualidade do ensino e/ou de aprendizagem de conteúdos padronizados/ estandardizados. Ou seja, trata-se de uma concepção reducionista de educação. No entanto, ainda que, pautado por tal concepção, seja possível concordar que, nas últimas décadas, as avaliações em larga escala produziram resultados reveladores dos processos de desigualdades que permeiam os sistemas educativos (ORTIGÃO; PEREIRA, 2016), também é preciso levar em conta as críticas produzidas com base em estudos que evidenciam que os processos avaliativos têm sido orientados por lógicas “de mercado que justificam práticas meritocráticas” (ORTIGÃO; PEREIRA, 2016, p. 159), conduzindo, da mesma forma, a uma compreensão muito restrita de qualidade. Além disso, é preciso considerar que é necessário problematizar a relação linear e aligeirada que muitas vezes é feita entre os resultados obtidos pelos estudantes nos exames e a aprendizagem efetiva, uma relação sustentada na concepção de que a qualidade pode ser aferida pela quantidade de conteúdos apreendidos - o que, por sua vez, explica a associação entre as políticas de avaliação e as reformas curriculares (LOPES, 2012, 2015).

Não se pode desconsiderar que a qualidade da educação é uma demanda importante nas sociedades contemporâneas, inserida na pauta de reivindicações sociais dos mais diversos segmentos da sociedade brasileira, porque, se é fato que as lutas pela democratização da educação garantiram ampliação do acesso e a quase universalização do ensino fundamental em diferentes regiões do país, também se deve reconhecer que “a ampliação da oferta escolar não foi acompanhada de uma melhoria das condições do ensino” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 125). As condições de permanência ainda são muito desiguais e comprometem a terminalização da escolaridade para muitos “que passam pela escola sem lograr aprendizagens significativas” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 125). Ao analisar, de uma perspectiva pós-estrutural e apoiada na Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010),1 Lopes (2012) tem procurado entender a ideia de qualidade da educação como um significante vazio. Um significante que se esvazia na medida em que está saturado de sentidos (LACLAU, 2011). Sob esse ponto de vista, Lopes (2012) afirma que o consenso que parece existir em diferentes formações discursivas em torno do significante qualidade da educação expressa processos de disputa pela significação do que é qualidade da educação e/ou da escola e/ou do ensino. Disputas que envolvem “concepções, valores e finalidades que vão se modificando no próprio processo de lutar politicamente em sua defesa” (LOPES, 2012, p. 26). A autora propõe pensar essas disputas rompendo com a ideia de que existem projetos fixos de sociedade e, consequentemente, de qualidade, uma ideia sustentada em concepções de sociedade como “um todo estruturado que demarca as posições dos sujeitos e dos saberes na estrutura social” (LOPES, 2012, p. 24). É dessa perspectiva que a autora busca explicar a proliferação de adjetivações conferidas à qualidade, dado que, uma vez defendida por todos, faz-se necessário “identificá- -la como um projeto distinto de projeto do Outro” (LOPES, 2012, p. 15), o que contribui pouco para que possamos enfrentar a complexidade do problema.

Com relação aos significados de qualidade em disputa nos discursos educacionais, Barriga (2014) alerta para a conformação do termo associado à determinação de valores de um produto, própria da lógica de mercado, e destaca a insuficiência de fatores meramente quantitativos para pensar qualidade no âmbito educativo. Segundo o autor, o superdimensionamento dos índices quantitativos acaba por impactar as decisões curriculares sem que o desafio de alcançar maior qualidade seja de fato enfrentado.

É sob esse enfoque que, neste texto, são problematizados sentidos de qualidade da educação, identificada como aquilo que é definido no currículo e realizado nos processos de ensino e aprendizagem. Sentidos que se hegemonizam nos discursos educacionais, seja nas orientações das agências de fomento internacionais - como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial -, seja nos documentos produzidos localmente pelas diferentes instâncias gestoras que integram o sistema nacional de educação. Na verdade, essa associação também é uma tradição presente no campo educacional, tradição aqui entendida como rastros de sentidos que se articulam, negociam e hibridizam ao longo do tempo, configurando os discursos educacionais.

Nesse terreno fértil, tem sido reforçada a relação entre qualidade e aquisição de conteúdos. Dessa perspectiva, a qualidade da educação é carregada de sentidos instrumentais de conhecimento e pode ser aferida pelos testes padronizados.

Por sua vez, concepções de qualidade que incorporam metas de inclusão e são nomeadas como qualidade social também operam com a de um conhecimento válido para ser ensinado na escola. Um tipo de conhecimento capaz de possibilitar aos estudantes usufruir as benesses sociais, econômicas e culturais de nosso tempo. Em ambos os casos, é mantida a lógica em que a qualidade permanece

[...] significada por intermédio de mecanismos que tentam controlar o conhecimento escolar e se torna um conjunto de índices com base em diagnósticos supostos inquestionáveis (MATHEUS; LOPES, 2014, p. 341),

o que favorece o estabelecimento de vínculos diretos “entre padrões curriculares e melhoria de qualidade da educação” (LOPES, 2015, p. 455) e justifica políticas de avaliação como instrumento garantidor de que esse vínculo se realize, com a qualidade associada à ideia de equidade e da possibilidade de ser garantida pela avaliação, concebida como instrumento capaz de controlar a eficácia no cumprimento do currículo. Dessa forma, as propostas curriculares assumem cada vez mais:

[...] uma concepção objetivista de conhecimento, tornando possível a articulação entre o discurso de distribuição desse conhecimento de forma igualitária, entendido como capaz de produzir a qualidade social da educação e o discurso de garantia do acesso ao conhecimento, também difundido pelos discursos da qualidade que se pretende total. Há assim uma equivalência entre sentidos de conhecimento que favorece a hegemonia de uma política centralizada de currículo e de seus modos de avaliar, articulando o que, nos anos 1990, muitos de nós talvez tenhamos julgado impossível de ser articulado. (MATHEUS; LOPES, 2014, p. 351)

Esse objetivismo sustenta a pretensão de que é possível verificar a apropriação dos conteúdos propostos nos currículos com a utilização de testes padronizados; dessa forma, as avaliações de larga escala acabam sendo significadas como instrumentos garantidores da qualidade da educação, na medida em que se julga ser possível verificar se as aprendizagens estão sendo efetivas. Soma-se a isso o equívoco de pressupor que esses testes sejam instrumentos precisos, como se os resultados produzidos por eles não fossem passíveis de sofrer interferências subjetivas de toda ordem. Como alerta Ravitch (2011, p. 174), não só os gestores, mas também o público em geral tendem a acreditar “que os testes possuem validade científica, como um termômetro ou um barômetro, e que eles são objetivos, não sendo enviesados por um juízo humano falível”. Todas essas crenças são articuladas em discursos carregados de sentidos de um realismo epistemológico que se alimenta da ilusão “de que o conhecimento precisa se referir a um real ou, mais propriamente, a uma das suas múltiplas facetas” (VEIGA-NETO; MACEDO, 2007, p. 11).

São sentidos realistas atribuídos à escolarização, ao ensino e ao papel do professor nesse contexto que contribuem para alimentar a ideia de que as políticas de responsabilização podem funcionar como mecanismos indutores de qualidade, punindo ou premiando as escolas e os docentes com base nos resultados de desempenho apresentados pelos estudantes nos testes padronizados. Nessa perspectiva, avaliação e responsabilização são articuladas como mecanismos de busca e garantia de qualidade da educação (BONAMINO; SOUZA, 2012).

COMO FUNCIONAM ESSES MECANISMOS?

O processo de reestruturação econômica que o mundo passa a experimentar como tendência a partir da segunda metade do século XX tem sua origem na crise fiscal que afetou a capacidade do Estado de atender às demandas sociais, pondo em questionamento a viabilidade de um Estado de bem-estar social, esvaziando o modelo de Estado-Nação que passou a ter a sua capacidade de intervenção no sentido de responder às demandas sociais ainda mais limitada, dado que o caminho encontrado para superar a crise de acumulação combinada com as altas taxas de inflação e baixas taxas de crescimento tem se dado na busca de uma nova lógica de organização do sistema produtivo que incorpora princípios da lógica neoliberal de mercado (BURBULLES; TORRES, 2004).

As políticas públicas, dentre elas as políticas educacionais, também passam a ser direcionadas por essa lógica. Qualidade total, modernização da escola entendida como sua adequação à lógica de competitividade do mercado, utilitarismo e produtividade passam a ser princípios orientadores, em maior ou menor grau, dessas políticas. No Brasil, não aconteceu diferente e cada vez mais os gravíssimos problemas educacionais de que padece o sistema são tratados como administrativos e técnicos, passíveis de serem superados se a escola passar a incorporar padrões competitivos de mercado. As políticas de avaliação em larga escala que proliferam em diferentes países seguem essa lógica.

Na lógica de mercado, a relação professor-aluno também se transforma. O aluno é concebido como consumidor e o professor, como funcionário prestador de serviço. Nesse contexto, o direito à educação passa a ser significado como o direito à aprendizagem de determinados conhecimentos e/ou competências e habilidades definidas para integrar o currículo. A educação se reduz à escolarização, e a qualidade desejada se restringe ao direito dos sujeitos à aprendizagem de determinados conteúdos estandardizados. Nessa lógica, a avaliação é apresentada como capaz de “garantir o conhecimento e as competências supostas como universais para todos, de maneira a assegurar o que se pretende para a qualidade da educação” (LOPES, 2015, p. 461).

Nesse caso, seja a qualidade associada à aquisição de aprendizagens necessárias à instrumentalização para a vida laboral, seja associada à apropriação de conteúdos orientados para a conscientização e problematização das questões sociais, trata-se de sentidos de currículo carregados de um instrumentalismo crescente em que, cada vez mais, a educação passa a ser significada como um instrumento a serviço do desenvolvimento econômico e/ou social. Uma tendência se reflete nas políticas de avaliação e nas políticas curriculares e confere legitimidade social às políticas de responsabilização, que, associadas, além de determinarem aquilo que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, estabelecem como meta resultados mensuráveis e padronizados de aprendizagem, com consequências para professores e instituições, reordenando, assim, aspectos organizacionais e de governança das escolas.

É nesse contexto que as políticas de avaliação em larga escala ganham centralidade (BARRIGA, 2014). Concebidas inicialmente como instrumentos cuja finalidade seria o acompanhamento da evolução dos índices de qualidade da educação, as avaliações vão sofrendo modificações que as tornam instrumentos de aferição mais sofisticados (BONAMINO; SOUZA, 2012; ORTIGÃO; PEREIRA, 2016) e - o que é o foco desse texto - reordenando objetivos com a incorporação de mecanismos de responsabilização que intensificam o controle sobre o que é realizado na sala de aula (BROOKE, 2006).

Bonamino e Souza (2012) afirmam que, juntamente com a participação, a contestação pública corresponde a formas básicas de responsabilização. Dessa maneira, se a participação nos sistemas democráticos se dá pelo voto nos processos eleitorais, a contestação pública e a fiscalização permanente daqueles que exercem funções públicas possibilitariam um maior controle institucional sobre o exercício dessas funções, contribuindo para o aprimoramento das instituições, para o acompanhamento dos programas governamentais e para a “maior transparência e responsabilidade nas ações de política pública” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 378). As autoras destacam que o controle social e o controle de resultados são dois mecanismos utilizados “no estabelecimento de novas formas de participação e controle da sociedade sobre as ações do Estado” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 378).

Nessa perspectiva, a responsabilização funciona como prestação de contas que o agente público deve à sociedade regularmente, informando e explicando suas ações e decisões.

Segundo Brooke (2008, p. 94), políticas de responsabilização têm por objetivo:

[...] melhorar os resultados das escolas mediante a criação de consequências para a escola ou para professores individuais, sejam elas materiais ou simbólicas, de acordo com o desempenho dos alunos medido por procedimentos avaliativos estaduais ou municipais.

Ainda que possamos concordar que o controle social é um aspecto que pode ser considerado positivo para o aperfeiçoamento democrático das instituições, são exatamente as “consequências” a que Brooke faz referência que têm propiciado o acirramento de práticas meritocráticas que têm favorecido o ranqueamento das instituições e intensificado as relações de competitividade entre escolas e profissionais,2 que podem ser punidos ou premiados em função dos resultados alcançados pelos estudantes nos testes padronizados. Dessa forma, se, como afirma Brooke (2008, p. 94), é fato que existem evidências de que “medidas de responsabilização podem promover ganhos no desempenho dos alunos”, também é possível concordar com Ravitch (2011, p. 177) quando afirma que “a pressão intensa gerada pelas demandas da responsabilização leva muitos educadores e diretores a aumentarem os escores de maneiras que nada têm a ver com a aprendizagem.”

Bonamino e Souza (2012) oferecem elementos importantes para que possamos compreender o processo em que as avaliações em larga escala ganham centralidade como mecanismo de aferição do desempenho das políticas educacionais com base na produção de resultados que possibilitem prestar contas à sociedade. Segundo as autoras, quando criado pelo Ministério da Educação (MEC), no final da década de 1980, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) tinha como finalidade avaliar, por amostragem e a cada dois anos, o desempenho de alunos regularmente matriculados nos 6º e 9º anos do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio: “Uma avaliação com desenho apropriado para diagnosticar e monitorar a qualidade da educação básica nas regiões geográficas e nos estados brasileiros” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 376).

Mesmo sustentando a crítica a essas testagens promovidas com base numa concepção reducionista de currículo, e sendo, portanto, incapaz de captar a complexidade dos processos de formação, o desenho amostral das denominadas avaliações de primeira geração (BONAMINO; SOUZA, 2012) cumpria a função de produzir indicadores que pudessem orientar políticas de investimento no sentido de buscar uma qualidade mais efetiva da educação, ainda que considerando a diversidade de projetos educacionais em disputa e colocando sob rasura o significante qualidade.

No entanto, a mera produção desses indicadores, com base num desenho amostral, não era suficiente, pois não permitia “medir a evolução do desempenho individual de alunos ou escolas” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 377); dessa forma, tais indicadores não se prestavam a fornecer parâmetros que pudessem sustentar “políticas de responsabilização de professores, diretores e gestores por melhorias de qualidade nas unidades escolares” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 377). É objetivando superar essas limitações que, em 2005, foi criada a Prova Brasil, instrumento “que permite agregar à perspectiva diagnóstica a noção de responsabilização” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 378).

Assim como o Saeb, a Prova Brasil cumpre a função diagnóstica e tem o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro. Os testes, aplicados aos estudantes matriculados no 5º e 9º ano do ensino fundamental, aferem o desempenho em Língua Portuguesa, com foco em leitura, e em Matemática, com foco na resolução de problemas. Desde 2007, as médias de desempenho nessas avaliações e as taxas de aprovação passaram a subsidiar o cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Os resultados são disponibilizados para as diferentes instâncias gestoras do sistema e para a sociedade em geral, que dessa forma pode acompanhar as políticas implementadas pelas diferentes esferas de governo. No caso da Prova Brasil, ainda pode ser observado o desempenho específico de cada rede de ensino e do sistema como um todo das escolas públicas urbanas e rurais do país.3 O princípio básico do Ideb “é de que a qualidade da educação envolve que o aluno aprenda e passe de ano” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 379), o que contribui para acirrar a disputa em torno da significação de educação e do currículo associada a sentidos instrumentais deles. Somado a isso, o Ideb passou a oferecer indicadores que subsidiam a definição, pelo governo federal, de “metas educacionais a serem alcançadas por escolas e redes estaduais e municipais” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 379). Metas que, segundo as autoras, visam a garantir o “maior comprometimento das redes e escolas com o objetivo de melhorar os indicadores educacionais” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 379). Ortigão e Aguiar destacam que, antes da criação do Ideb, o fluxo escolar e os resultados dos desempenhos dos estudantes eram tratados de forma independente.

Com a criação do Índice,

[...] as escolas se veem diante de um novo desafio: ao mesmo tempo que é necessário garantir que os alunos aprendam, é fundamental assegurar também que avancem em sua escolaridade. (ORTIGÃO; AGUIAR, 2013, p. 365)

Os resultados da primeira edição da Prova Brasil foram divulgados pelos meios de comunicação, disponibilizados na internet e enviados às escolas, medida que, segundo o MEC, visava a fornecer elementos que orientassem o planejamento pedagógico das instituições.

Na edição seguinte, em 2009, não houve retorno dos resultados para as escolas, mas, antes da realização da prova, todas receberam a Matriz de Referência da Prova Brasil e do Saeb (ensino fundamental) (BRASIL, 2009b) e a Matriz de Referência do Saeb (ensino médio e ensino fundamental) (BRASIL, 2009c), em um claro movimento de indução às práticas - que expressa uma interferência mais direta naquilo que as escolas fazem (BONAMINO; SOUZA, 2012).

As autoras caracterizam a Prova Brasil como uma avaliação de segunda geração, na medida em que ela está associada a uma política de responsabilização branda, porque, apesar do clima de competitividade favorecido pelo ranqueamento entre as instituições, ela não atrela os resultados obtidos a prêmios ou sanções, como acontece com as avaliações de terceira geração, que têm como característica a intensificação do controle sobre aquilo que as escolas devem ensinar e como devem ensinar.

As avaliações de terceira geração produzem mais impactos sobre os currículos; em geral, são postas em prática por redes municipais ou estaduais, que têm desenvolvido avaliações censitárias em suas redes, adotando a Matriz de Referência do Saeb e da Prova Brasil como parâmetro. O que caracteriza essas avaliações como de terceira geração, segundo Bonamino e Souza (2012, p. 377), são as apropriações feitas de seus resultados. Se as avaliações de segunda geração “envolvem a publicidade dos resultados dos testes por redes e/ou escolas”, as de terceira geração envolvem “também o estabelecimento de prêmios atrelados aos resultados dos alunos” (BONAMINO; SOUZA, 2012, p. 377), avançando da dimensão diagnóstica que caracterizava as avaliações de primeira geração.

Brooke (2008, p. 94) destaca que essas políticas de avaliação associadas às políticas de responsabilização não são bem vistas pelos docentes, em razão dos

[...] riscos educacionais reais associados a currículos orientados por testes, a aparente ameaça à autonomia dos professores e dúvidas quanto à validade das conclusões a respeito do desempenho das escolas, conclusões estas provenientes de sistemas de mensuração de larga escala que são pouco sensíveis às características específicas das escolas ou distritos escolares.

Assim, ainda que pese o considerável domínio teórico acumulado “ao longo de duas décadas de experiências em avaliações educacionais de larga escala” (BROOKE, 2008, p. 95), domínio que inclui a elaboração de instrumentos de medida cada vez mais sofisticados, os testes continuam pouco sensíveis às características complexas de cada sala de aula, sendo ainda necessário considerar que existem fatores, dentro e fora da escola que interferem inclusive nos processos de aprendizagens cognitivas, que não são apreendidos ou considerados na testagem (ORTIGÃO; AGUIAR, 2013). Muitos desses fatores extrapolam as responsabilidades da escola e/ ou dos professores.

A sofisticação limita, mas não exclui um grau de imprecisão que caracteriza os testes padronizados, o que, por si só, deveria servir de alerta para os riscos que a incorporação de políticas de responsabilização fortes, as chamadas high stakes, podem acarretar para os sistemas, na medida em que elas estabelecem consequências reais para as escolas e professores, o que significa dizer que, se os escores forem bons, podem ser bonificados; se forem ruins, serão penalizados.

Ao problematizar as políticas de responsabilização associadas às políticas de avaliação, o central é analisar a produção de sentidos que reconfiguram essas políticas e impactam as práticas escolares. Os discursos que projetam as avaliações de larga escala como possibilidade de garantia de promover a qualidade da educação vêm se constituindo como hegemônicos. Essa hegemonia precisa ser problematizada à luz dos impactos que gera no campo educacional - alguns com consequências graves, principalmente porque, assumidos como instrumentos precisos, seus resultados têm justificado a responsabilização dos “professores pela ascensão ou queda dos escores de seus estudantes” (RAVITCH, 2011, p. 173), com o comprometimento da reputação de professores e gestores. Dessa forma, a avaliação se converte “em uma ação de política de controle social” (BARRIGA, 2014, p. 152), um quadro que tem gerado instabilidades e favorecido aquilo que Ravitch (2011), analisando o caso americano, identifica como burla, práticas levadas a cabo por gestores com o intuito de burlar o sistema para atingir suas metas.

A autora destaca que, se a prática de preparar o aluno para o teste tem sido recorrente nas escolas e entre os professores, ela não se restringe a isso; a redução da participação de estudantes com baixa performance e a eliminação deles da escola também se caracterizam como burla, agravando os processos de exclusão e comprometendo as condições de permanência, na escola, de um contingente numeroso de adolescentes que passam pela instituição e que, sem lograr aprendizagens significativas, acabam sofrendo sucessivas repetências, aprofundando a defasagem série/idade e comprometendo o fluxo escolar.

Se essa situação já era carregada de gravidade, expressando aquilo que os autores definem como “um novo tipo de exclusão educacional” (RAVITCH, 2011, p. 176), com as políticas de responsabilização, ela assume uma dimensão ainda mais perversa, pois os gestores tendem a ver a exclusão dos “estudantes mais difíceis de educar” (RAVITCH, 2011, p. 177) como forma de reduzir o número de alunos com baixa performance nos testes, removendo cuidadosamente “as ervas daninhas” (RAVITCH, 2011, p. 178).

No entanto, uma série de fatores que podem explicar o desempenho desses estudantes escapa aos testes. Cor, gênero e escolaridade da família são fatores que podem explicar o sucesso/ fracasso dos alunos na escola (ORTIGÃO; AGUIAR, 2013). Os testes só conseguem aferir resultados que evidenciam diferenças, constatar processos de discriminação que acontecem na escola, pouco contribuindo para a superação deles; pelo contrário, as políticas de responsabilização podem estar acirrando as ações que visam à correção de fluxo, aprofundando os processos de discriminação com o descarte de jovens pobres e negros da escola regular para a EJA.

O encaminhamento deles para a modalidade EJA tem se tornado crescente, gerando inúmeros conflitos em uma modalidade de ensino já marcada por “certa indeterminação do público-alvo e diluição das especificidades psicopedagógicas” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 122).

A MIGRAÇÃO DE ADOLESCENTES PARA A EJA: O CASO DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO

Optamos por utilizar o exemplo da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro em virtude de algumas especificidades que ela apresenta: trata-se da maior rede de ensino fundamental do Brasil; os dados referentes às políticas de educação e seus índices de aproveitamento estão disponíveis na internet; adota orientações curriculares visando a obter resultados padronizados para verificar a aplicabilidade do currículo e, em função dos resultados obtidos pelos alunos, bonificar as unidades escolares e/os docentes que alcançam as metas estabelecidas.

As análises tomam como referência os dados de dois períodos, de 2011 a 2013 e de 2011 a 2015. Nesse período, a rede investiu pesadamente em políticas de avaliação e controle do trabalho docente, via instituição dos cadernos pedagógicos e das provas de verificação organizadas pela própria rede, de modo a assegurar a aplicabilidade de um currículo único.

A Secretaria Municipal de Educação disponibiliza uma série de materiais relacionados à formação docente, bem como sugestões de plano de aula, além de calendário das atividades, inclusive calendário único de aplicação de suas provas. O receituário do fazer pedagógico cria o imaginário em torno da garantia de que ele possa oferecer qualidade à educação, corroborando aquilo que afirmam Matheus e Lopes (2014). Por outro lado, o sistema de recompensas aos docentes e servidores de unidades escolares que atingem as metas projetadas pela prefeitura estimula a meritocracia,4 hierarquiza sujeitos e instituições, secundarizando demandas sociais em torno da qualidade da educação, a qual se fundamenta em um currículo articulado a um projeto de mundo competitivo e pouco solidário.

Nesse contexto, alunos que apresentam dificuldades de se enquadrar no modelo proposto vão progressivamente sendo excluídos. Na rede de escolas do município do Rio de Janeiro, há uma série de programas de correção de fluxo, apontando que o sistema não vem dando conta de garantir a aprendizagem de todos, o que se expressa na existência de uma grande lacuna para a permanência e conclusão da escolaridade dentro dos tempos previstos. Na falha do sistema, inúmeros adolescentes têm sido encaminhados à modalidade EJA.

Para refletir a respeito desse processo, são apresentados dados sobre o número de matrículas no Programa de Educação de Jovens e Adultos (Peja) da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro: Peja I (equivalente ao primeiro segmento do ensino fundamental) e Peja II (equivalente ao segundo segmento do ensino fundamental) por faixa etária entre os anos de 2011 até 2013.

Fonte: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro - Armazém de Dados. Disponível em: <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/>

GRÁFICO 1: Número de matrículas no Peja I (equivalente ao 1º até o 5º ano do EF) da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, por faixa etária 

Fonte: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro - Armazém de Dados. Disponível em: <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/>

GRÁFICO 2: Número de matrículas no Peja II (equivalente ao 6º até o 9º ano do EF) da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, por faixa etária 

Os dados apontam que o número de matrículas por faixa etária no município do Rio de Janeiro, se comparado com o resultado do Censo Escolar de 2013 disponível na página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),5 acompanha os números brasileiros. Há maior concentração de adultos cursando as etapas iniciais da EJA, enquanto, nas etapas finais, evidencia-se o processo de juvenilização, pelo enorme quantitativo (cerca de 40%) de estudantes na faixa de 15 e 17 anos.

A Resolução SME n. 1.428, de 24 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016), que regulamenta a matrícula no ano letivo de 2017, institui que alunos com 16 anos completados até o final do ano letivo de 2016 são transferidos compulsoriamente para a EJA, com exceção dos concluintes de 9º ano. Ou seja, existe na rede um indicativo de transferência para EJA, o que evidencia a existência de distorção série/idade que os programas de correção de fluxo não foram capazes de superar.

Assim, é possível concluir que, para esses alunos, as políticas de qualidade não foram capazes de assegurar o direito à educação. Os dados referentes à distorção série/idade no município em questão corroboram essa afirmativa.

Fonte: Inep/MEC, Censo Escolar 2011-2015. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/web/guest/indicadores-educacionais>

GRÁFICO 3: Percentual de alunos com distorção idade/série na rede municipal do Rio de Janeiro, por segmento de ensino 

Embora os índices permaneçam altos, identificamos queda nos percentuais totais e nos anos finais do ensino fundamental de distorção série/idade em 2011 e 2012. Em 2013, há elevação significativa dessa taxa e, a partir de 2014, evidencia-se novo declínio. A análise do Gráfico 3 parece indicar que, nos anos de 2013 e 2014, o percentual de alunos com defasagem idade/série foi maior do que nos demais anos considerados, em ambos os segmentos do ensino fundamental. Em 2015, ocorre uma leve queda. Entretanto, não podemos tratar uma mudança nos índices como se a questão estivesse se resolvendo, dado que os valores ainda são bastante elevados. Por outro lado, é preciso analisar em que medida essa queda não é resultado também da “expulsão” de um contingente de adolescentes da escola regular para a modalidade EJA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação obrigatória vem sendo pauta de reivindicação do povo brasileiro durante décadas e várias iniciativas têm sido efetivadas com o objetivo de garantir a sua universalização. Uma conquista importante na luta pela garantia desse direito foi a aprovação da Emenda Constitucional n. 59/09 (BRASIL, 2009a), que estabeleceu a obrigatoriedade da educação básica dos 4 aos 17 anos, passando a incluir a educação infantil e o ensino médio.

Nos grandes centros urbanos, como o município do Rio de Janeiro, por exemplo, a universalização é uma meta muito próxima de ser alcançada. No entanto, esse avanço não tem representado que a educação oferecida a grande parte da população tem sido capaz de garantir dignidade cidadã para todos. Mais ainda: mesmo admitindo a redução de educação a ensino e restringindo o direito à educação ao direito de adquirir determinadas aprendizagens básicas, como tem sido o caso das políticas que associam avaliação e qualidade, analisado neste texto, os resultados mostram-se pífios diante dos desafios postos para as sociedades contemporâneas, sejam quais forem os projetos em disputa. O que tem sido constatado é que a introdução de lógicas de mercado, meritocráticas, padronizadoras e hierarquizantes tem contribuído para a reconfiguração da gestão do espaço escolar sem que isso implique a superação de práticas excludentes e discriminatórias; pelo contrário, os dados sinalizam que elas têm recrudescido e o processo de juvenilização da EJA parece se inserir nessa perspectiva.

REFERÊNCIAS

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Notas

1Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010) desenvolvem a Teoria do Discurso assumindo uma perspectiva pós-estruturalista e pós- -fundacionalista em que o discurso é concebido como conjunto sistemático de relações que conferem significado aos fenômenos sociais. Uma formação discursiva é, dessa perspectiva, resultado de práticas articulatórias nas disputas por significação. Para os autores, toda configuração social é significativa e, na Teoria do Discurso, o discurso assume a dimensão de categoria analítica que possibilita investigar os mecanismos pelos quais os sentidos são produzidos e como eles conferem orientação aos fenômenos sociais. Suas contribuições, formuladas no âmbito da teoria política, têm sido produtivas em investigações produzidas no campo do currículo.

2As práticas de ranqueamento não são atribuídas aos gestores da política; são concebidas como “efeito colateral” de políticas que, direta ou indiretamente, obedecem à lógica de mercado.

3Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/prova-brasil>. Acesso em: 14 dez. 2016.

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Recebido: 07 de Outubro de 2017; Aceito: 09 de Março de 2018

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