INTRODUÇÃO
A educação escolar no contexto da sociedade contemporânea pode, por um lado, contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa pela formação de indivíduos capazes de intervir criticamente nessa sociedade e em seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, ela pode se constituir importante fator de mudança social. Mas, por outro lado, essa mesma educação escolar pode desempenhar outra função, a de manutenção e reprodução da estrutura social excludente e de relações de poder que marcam a sociedade de classes, especialmente quando se limita a reproduzir modelos e processos sociais que reforçam essa exclusão, as desigualdades, as relações de dominação nessa sociedade, como é o caso da brasileira.
Os/as educandos/as oriundos/as das classes populares, ao entrarem na escola pública e se inserirem no sistema educacional formal, trazem consigo as marcas de uma difícil realidade que se produz e reproduz no próprio desenvolvimento histórico da sociedade. Essa inserção se realiza em processos, práticas e instituições educativas que atendem de modo particular os filhos das classes dominantes, em que se busca assegurar uma preparação intelectual, profissional, cultural que confirme e consolide os privilégios e o poder econômico, cultural, político, ideológico dessas classes.
Esse modelo de sociedade, com esses processos, práticas e instituições educativas predominantemente excludentes, deixa e traz as marcas das políticas educacionais implementadas no contexto brasileiro, na medida em que tais políticas são delineadas em prol da sustentabilidade da lógica do capital e, na maioria das vezes, estiveram a serviço da manutenção das desigualdades, agudizando-se com o avanço do capitalismo. Nesse âmbito, a lógica do mercado passa a prevalecer, inclusive no Estado, para que ele possa ser mais eficiente e produtivo.
Ao analisar as políticas educacionais no contexto de redefinição do papel do Estado no Brasil, Peroni (2008) afiança que a gestão educacional é fortemente influenciada pelo ideário neoliberal de que o mercado e sua lógica sejam os parâmetros de qualidade da e na educação. Isso se dá, inclusive, no âmbito da educação infantil, em que a qualidade é cada vez mais baseada nos resultados e nos indicadores de desempenho dos educandos e das escolas.
Esse ideário e essa lógica se fazem igualmente presentes nas políticas públicas para a educação infantil no município de Teresina, Piauí, que se proclamam pautadas na concepção de modernização da gestão orientada pelas reformas educacionais levadas a cabo a partir dos anos 1990 aos anos 2000, em que o sucesso escolar está referenciado em resultados e indicadores de desempenho. Esses indicadores são definidos com base em modelos quantitativos, de natureza meritocrática, à luz do que preconizam perspectivas de gestão originárias do campo empresarial e os novos delineamentos advindos das orientações dos organismos internacionais e das diretrizes políticas da educação para os países da América Latina, pilares do gerencialismo e da Nova Gestão Pública no contexto das políticas educacionais.
Nesse âmbito que levantamos a seguinte problemática: Qual a relação entre a gestão da política de avaliação na educação infantil de Teresina e a lógica da meritocracia vigente?1
Volta-se o olhar para a realidade do município de Teresina pelo fato de se reconhecer a importância dessa rede de ensino na região Norte-Nordeste brasileira e, de outra parte, por contribuir para a compreensão dos caminhos que as políticas de educação infantil têm tomado no contexto brasileiro mais amplo, com suas implicações nas realidades locais dos entes subnacionais.
Para a realização deste estudo, tomou-se como fonte de dados os elementos coletados por meio da pesquisa bibliográfica e documental, ao lado da realização de entrevista do tipo semiestruturada, de acordo com os métodos apresentados por Gil (2008), Richardson (2014) e Lakatos e Marconi (2003).
No caso dos documentos, as fontes primárias consideradas foram levantadas nos documentos legais da Secretaria Municipal de Educação. Essa documentação foi localizada por pesquisa no site da prefeitura e do portal da educação da Secretaria Municipal de Educação (Semec-Te) e por contato direto com funcionários da secretaria. A entrevista foi realizada com a gerente de avaliação (GA), técnica responsável pela área da avaliação da Semec-Te, o que muito contribuiu para as análises com vistas à articulação dos dados coletados nessa entrevista com as informações levantadas tanto nas fontes documentais quanto na pesquisa bibliográfica.
A partir dos objetivos propostos e da problemática delimitada, o presente estudo está estruturado em duas seções. Na primeira seção, contextualizam-se os modelos de gestão educacional, e, na segunda seção, analisa-se a organização das políticas de educação infantil no município por meio do pilar da avaliação externa que dá sustentação à gestão da educação da educação infantil. As análises desenvolvidas se fundamentaram em uma perspectiva crítico-dialética, com base na totalidade histórica do movimento do real, de modo a possibilitar um olhar sobre a realidade investigada que apreendesse as contradições existentes e a relação entre o particular e o geral e suas mediações.
CONTEXTUALIZANDO OS MODELOS DE GESTÃO EDUCACIONAL
A noção de “gestão” orientadora da organização da educação no município de Teresina tem suas raízes e se fundamenta na perspectiva gerencialista da administração pública e da educação, na lógica da Nova Gestão Pública.
O modelo de gestão no âmbito do gerencialismo se consolida no contexto das reformas gerenciais do Estado levadas à cabo tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento ao longo dos anos de 1990, estendendo-se pelos dois primeiros decênios do século XXI.
Essas reformas tinham como pano de fundo a crítica ao estado burocrático, de base weberiana, considerado ineficiente, com alto custo para a sociedade. Em contraposição a esse modelo, tem-se o anúncio do esgotamento do Estado de Bem--Estar Social e a crítica à intervenção e atuação do estado nos diferentes setores da vida social e econômica; a defesa da livre iniciativa e do livre mercado como o regulador nacional das relações sociais e da necessidade de se passar de uma administração centralizada, baseada no controle por meio de normas e procedimentos, para um modelo que tivesse como foco a avaliação dos resultados. Como sintetizam Lopes e Castro (2012, p. 27):
Entende-se que, nesse contexto, era necessário promover políticas voltadas para a sustentabilidade das reformas estruturais, o que implicava modificar hábitos institucionais, rotinas, culturas, comportamento e, por extensão, a formação de outros valores e concepções acerca da função dos mecanismos e das estratégias inerentes à política e à compreensão diferenciada dos funcionários públicos em relação ao papel, objetivos e funcionamento das instituições.
Sobre esse modelo de gestão gerencial, Heloani (2018) nos apresenta algumas marcas importantes. De um lado, destaca que há um deslocamento do campo de uma compreensão política da gestão para o campo da busca pelo “desempenho e rentabilidade” em nome de se alcançar uma maior “eficácia e eficiência”. De outro, é colocado em evidência o desempenho individual para a consecução dos objetivos, metas e princípios previamente definidos, de modo que os sujeitos tenham autonomia para atuar com vistas a alcançar os resultados pretendidos e, como reconhecimento de sua “eficiência e eficácia”, terão a possibilidade de receber bônus de produtividade. Ou seja, é a ênfase na autonomia na perspectiva de uma autonomia controlada com a crescente responsabilização dos indivíduos pelos resultados alcançados, a plena “autonomia para obedecer”. Um terceiro aspecto destacado pelo autor se refere ao “pragmatismo operatório e objetivo”, que, sob a lógica das ciências exatas, procura traduzir “as atividades humanas em indicadores de desempenho”, no contexto de uma “ideologia utilitária”.
Castro (2007, p. 126), por sua vez, ao demarcar as principais características que orientam as reformas gerenciais no setor público nos últimos decênios, destaca:
A descentralização/desconcentração das atividades centrais para as unidades subnacionais; a separação entre os órgãos formuladores e os executores de políticas públicas; o controle gerencial das agências autônomas que passa a ser realizado levando-se em consideração quatro tipos de controle (controle dos resultados, a partir de indicadores de desempenhos estabelecidos nos contratos de gestão; controle contábil de custos; controle por quase mercados ou competição administrada, e controle social); a distinção entre dois tipos de unidades descentralizadas ou desconcentradas (as agências que realizam atividades exclusivas do Estado e os serviços sociais e científicos de caráter competitivo); a terceirização dos serviços e o fortalecimento da alta burocracia.
Tem-se, pois, o desenvolvimento de processos de gestão marcados pela flexibilização-diversificação de processos; redução dos níveis hierárquicos; aumento na autonomia de decisão no âmbito operacional-executivo dos gestores locais; introdução de práticas de avaliação, transparência e controle com foco nos resultados, referenciados por indicadores de qualidade que aferissem a eficiência e eficácia de atuação do Estado. É a consolidação da lógica da accountability na perspectiva de efetivação do Estado avaliador como sintetizado por Afonso (2001, 2013).
Ainda que o conceito de accountability, por seu caráter polissêmico, possa assumir diferentes dimensões e significados, como bem demonstram Schneider e Nardi (2015, p. 62):
Experiências em vários países revelam a predominância de políticas e práticas administrativas de accountability movidas por razões instrumentais, cujo maior interesse é a construção de novas formas de controle capazes de assegurar os objetivos do projeto hegemônico. Nesses países, a agenda que parece sobressair é a que reforça a prioridade de princípios do que se convencionou chamar de “nova gestão pública”. (New Public Management).
A New Public Management, ou Nova Gestão Pública (NGP), expressa, em boa medida, a reforma do Estado sob a perspectiva do modelo de gestão gerencial. Nela se sedimentam novas maneiras de organizar a administração pública, especialmente com a importação de práticas da administração privada. Dentre os princípios que a orientam, destacam-se: as demandas e exigências dos usuários como orientadores dos processos de gestão; a terceirização dos serviços e concorrência do setor público com o setor privado como mecanismo de administração; a consolidação dos chamados contratos de gestão por meio dos quais se reforça a perspectiva da gestão por resultados aferidos na consecução dos objetivos e na avaliação de desempenho; a ênfase nas responsabilidades e autonomia dos níveis locais na execução das políticas públicas sob a lógica da accountability; e a padronização das práticas profissionais, por meio da normalização, sustentada por evidências e experiências consideradas exitosas. Ou, como sintetizam Silva e Carvalho (2014, p. 219):
Em suma, Nova Gestão Pública significa uma perspectiva de organização e funcionamento do Estado que tem, como pilares, a atenção focada nos resultados, verificando se há eficiência, qualidade e eficácia dos serviços; gestão descentralizada; criação de ambientes competitivos dentro das instituições públicas; objetivos claros de produtividade e subornação do controle social.
A reforma gerencial do Estado sob a égide dessas perspectivas - gerencialismo, accountability, NPG - influencia e orienta os caminhos e condutas que se têm feito presentes nas políticas públicas no campo da educação. E, na realidade educacional do município de Teresina, tais caminhos se fazem igualmente presentes.
A organização federativa do Estado brasileiro implica o reconhecimento da relativa autonomia dos entes federados subnacionais. Porém, para Oliveira (2015), o modelo de gestão das políticas sociais caracterizado por uma expressiva centralização de planejamento e orçamento nas mãos da União, transferindo a execução para estados e municípios, é orientado pela lógica da NGP. E tal modelo coloca em risco as próprias relações intergovernamentais entre os entes federados - União, estados, municípios e Distrito Federal -, visto que, em certa medida, ameaça a dimensão de cooperação mútua prevista na Constituição Federal de 1988.
No caso específico da educação, com base na Constituição de 1988 e ao longo das políticas educacionais implementadas a partir de meados dos anos de 1990, a reorientação da condução das políticas sociais veio acompanhada da focalização da oferta e da descentralização que ocorreu nas dimensões administrativas, financeira e pedagógica. Essa reorientação tinha como um de seus pilares discursivos a necessidade de modernização da gestão educacional, desde o âmbito ministerial até o âmbito das escolas, consideradas burocráticas e ineficientes. Como resposta a esse quadro e para garantir a melhoria da qualidade da escola e aumentar sua eficiência, eficácia e produtividade, adotou-se como estratégia a descentralização da gestão, criando espaços para colegiados e para a participação da comunidade escolar no processo decisório e assegurando maior transparência e controle social pelos usuários da educação.
A descentralização da gestão da educação na perspectiva neoliberal é contrária à universalização da educação pública como responsabilidade do Estado. Isso porque, na visão neoliberal, um sistema estatal de oferta de escolarização compromete, em última análise, as possibilidades de escolha por parte dos pais em relação à educação desejada para seus filhos (HÖFLING, 2001).
Dessa forma, a lógica de mercado seria estendida às políticas educacionais na medida em que as teorias neoliberais propõem que o Estado transfira suas responsabilidades para o setor privado, pois, assim, por um lado, as famílias teriam liberdade de escolha do tipo de educação desejada para seus filhos e, por outro, abrir-se-ia um caminho para estimular a competição entre os serviços oferecidos no mercado, o que, segundo essa lógica, contribuiria para a manutenção de um padrão de qualidade, com maior eficiência e redução dos custos.
Trata-se, pois, de modelos de gestão, no campo da educação, de caráter gerencialista, sob o manto da NGP que, em nome de assegurar maior eficácia e eficiência nos resultados alcançados, alinham-se a uma agenda governamental fortemente marcada por práticas de avaliação e de regulação no acompanhamento da aprendizagem e dos recursos escolares, na perspectiva da accountability.
Nessas condições, accountability na educação consiste em estabelecer instrumentos de regulação ancorados nos conhecimentos que permitem avaliar os resultados, os outputs das organizações (pelo teste de certas aprendizagens cognitivas ou certas competências sociais ou emocionais) ou de assegurar um controle sobre o processo (pelo estabelecimento de auditorias que visam avaliar o modo de organização e as práticas pedagógicas internas de um estabelecimento) as quais se referem aos padrões de qualidade, às boas práticas de referência. Esses instrumentos de regulação são, portanto, mais baseados no conhecimento que noutros pontos clássicos do controle, referem-se à regra (a regulamentação como instrumento de regulação), ou ao dinheiro (seja uma regulação baseada nas formas de financiamento, de estímulos ou recompensas financeiras etc.). Por esse motivo, os dispositivos de accountability participam do que chamamos, de outro modo, regime de regulação pós-burocrático dos sistemas de ensino, inspirado no modelo do Estado Avaliador. (MAROY, 2013, p. 323).
No plano educacional, a realidade brasileira convive com uma relativa autonomia tanto dos estados quanto dos municípios, refletindo, assim, orientações políticas distintas, havendo políticas dirigidas à competição e à busca da eficiência no desempenho dos alunos nos exames em larga escala que contradizem a agenda governamental promovida pelo governo federal, no caso dos programas de inclusão social que visam à justiça social. Assim é que alguns estados e municípios têm adotado políticas para o cumprimento de metas de eficiência, mediante premiação, por meio de incentivos materiais aos docentes e às escolas de acordo com o desempenho dos seus alunos (OLIVEIRA, 2015).
Nessa perspectiva, Lustosa (2013), ao pesquisar a meritocracia na rede pública municipal de ensino de Teresina, indica que se trata de uma política inspirada em um movimento de responsabilização ensaiado tanto no Brasil quanto em outros países, principalmente nos Estados Unidos, que consiste na inclusão, dentre outros processos e mecanismos, nas políticas de financiamento das redes de ensino, do pagamento de prêmios e bonificações aos profissionais do magistério em função do desempenho dos docentes, dos alunos e/ou das escolas.
Adentremos, pois, um pouco mais na gestão das políticas de educação infantil no município de Teresina, considerando, de modo especial, o lugar que a avaliação assume nessas políticas.
O PILAR DA AVALIAÇÃO NA GESTÃO DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO INFANTIL NO MUNICÍPIO DE TERESINA
Particularmente em Teresina, a gestão da educação vem sendo orientada por um conjunto de medidas implantadas na lógica do planejamento estratégico, filiado à perspectiva gerencialista da NGP, e que teve como um de seus primeiros marcos a Lei n. 3.089 (TERESINA, 2002), cuja vigência se estendeu até 2005.
Por meio dessa lei, iniciou-se o pagamento da chamada Gratificação do Desempenho Escolar. O pagamento dessa gratificação era resultado de um “Ranking das Escolas Municipais”, em que, nas escolas mais bem classificadas, seus profissionais recebiam um bônus em sua remuneração, dentro da lógica da meritocracia focada no reconhecimento da eficiência, ou ineficiência, individual dos profissionais.
Nesse contexto, para Lustosa (2013), outra prática meritocrática que se manteve por muito tempo no contexto da rede pública municipal de ensino foi o Prêmio Professor Alfabetizador, que teve início em 2004 e se estendeu até o ano de 2014.
A Lei n. 3.514 (TERESINA, 2006) revogou a Lei n. 3.089 (TERESINA, 2002) e instituiu a Premiação de Desempenho Escolar às escolas da rede pública municipal de ensino de Teresina. Essa nova lei não alterou a lógica da bonificação de caráter meritocrático das legislações anteriores. Posteriormente, a lei foi revogada pela Lei n. 4.019 (TERESINA, 2010), que instituiu o Prêmio Equipe Escolar Nota 10, pago por meio do Prêmio Professor Alfabetizador aos profissionais envolvidos nos resultados alcançados pelas unidades de ensino, resultados esses auferidos com base na evolução do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das escolas da rede pública municipal de Teresina.
Especificamente no caso da educação infantil, sua inclusão nessa política de bonificação se deu a partir do ano de 2008, sendo que, para os alunos do segundo período, foi definido que a avaliação aconteceria uma única vez, no final do ano.
Essa lógica meritocrática, com fortes elementos de responsabilização dos sujeitos pelos resultados alcançados pelas instituições educativas em nome do controle social sob o viés da accountability, deixará suas marcas na legislação mais recente do município, objeto de análise deste estudo.
Nessa perspectiva é que situamos o Programa de Valorização do Mérito na Educação Infantil, em sua versão atual, instituído pela Lei n. 4.668 (TERESINA, 2014), que prevê incentivos pecuniários a diretores, com um reajuste de 70% em sua gratificação, bem como de toda a equipe escolar, por meio do referido programa. Sobre essa questão, o secretário municipal de educação de Teresina assim se pronunciou:
O valor distribuído entre as equipes escolares com melhores desempenhos passou de R$ 2 milhões em 2014 para R$ 5 milhões este ano. A cada edição avançamos no número de escolas contempladas. Essas pessoas orgulham a cidade, merecem ser aplaudidas e valorizadas. Hoje somos exemplo de um trabalho bem feito, com crianças lendo aos 5, 6 anos de idade [...]. (SANTOS, 2019).
Nesse trecho da reportagem, a prática meritocrática é evidente, visto que o município premia toda a equipe escolar por meio de incentivos materiais com base na evolução do desempenho das crianças. Isso nos ajuda a apreender a centralidade que o pilar da Avaliação assume na gestão da política municipal de educação de Teresina. Além disso fica igualmente evidente a compreensão de que o desempenho dos profissionais da educação estaria expresso nos resultados alcançados pelas crianças. Mais uma vez, uma política focada e orientada pela avaliação de resultados.
Segundo a Lei n. 4.668 (TERESINA, 2014), em seu art. 2º, o Programa Valorização do Mérito da Educação Infantil tem como finalidade
[...] reconhecer e valorizar o trabalho escolar coletivo, considerando as habilidades desenvolvidas pelos alunos do 2º período da educação infantil, no que diz respeito à leitura e a escrita. Desta forma, por meio de avaliação externa, será aplicado teste escrito aos estudantes do segundo período da educação infantil que avaliará descritores de leitura e escrita.
Ao final de cada ano letivo, os alunos do segundo período são submetidos a uma prova que tem como objetivo avaliar os conteúdos de Língua Portuguesa, contemplando as habilidades de leitura e escrita. Essas avaliações são realizadas em dois dias por meio da parceria entre a rede municipal de ensino de Teresina e o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), de Minas Gerais. No primeiro dia, os alunos fazem uma prova referente às habilidades de leitura, e, no segundo dia, uma prova de escrita, para a classificação dessas habilidades. A premiação, conforme explica o art. 9º da lei, poderá alcançar o valor máximo de 9 mil reais, divididos em 12 parcelas mensais. Recebem a premiação não apenas os professores que atuam na educação infantil, mas também diretores, vice-diretores, diretores adjuntos e pedagogos (coordenadores pedagógicos e supervisores escolares) efetivos do quadro da unidade de ensino, desde que lotados há no mínimo seis meses e com participação direta de, ao menos, 90% no mesmo ano letivo que se deu a avaliação (SILVA JUNIOR, 2019).
Como se depreende, a lógica da meritocracia é uma marca fundante das políticas de educação infantil, notadamente na etapa correspondente ao segundo período - pré-escolar -, no município pesquisado, o que não se coaduna com as perspectivas e diretrizes apontadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI) de 2010. Isso porque, dentre outros aspectos, essas diretrizes enfatizam a importância dessa etapa de escolarização enquanto momento para o desenvolvimento integral da criança, tendo como eixo principal as interações e as brincadeiras.
Sobre os instrumentos que compõem a política de avaliação do município de Teresina, a gerente de avaliação entrevistada esclarece que
A educação infantil, a gente avalia, é uma avaliação externa que é dentro do sistema de avaliação educacional de Teresina, que é o Saethe, ela acontece com os alunos de 5 anos, são os alunos que estão matriculados no que a gente chama de segundo Período. É uma avaliação que acontece no final do ano, de leitura e escrita, e ela é censitária, com todos os alunos. Além disso, a gente tem uma avaliação processual, ela acontece no meio do ano e no final, essa é uma avaliação que é elaborada pela secretaria, mas é aplicada pelos professores e corrigida também. Isso para analisar a implementação do currículo, mesmo, e, ao longo do ano, fazer ajustes no planejamento. Então, são esses dois aspectos. (GA, 27 ago. 2019).
A avaliação externa a qual a entrevistada se refere - o Sistema de Avaliação do Município de Teresina (Saethe) - é aquela que resulta da parceria entre a Semec-Te e o Caed. Este último realiza os testes com os estudantes do segundo período da educação infantil, apresentando os resultados, para que posteriormente a própria Semec-Te, com base nos critérios da legislação municipal, elabore o ranqueamento para fins de premiação.
O instrumento de avaliação utilizado é de caráter classificatório para efeito de premiação e/ou bonificação. Ao lado do que Cassettari (2012) encontra em seus estudos, também em Teresina se encontra um modelo de bonificação que tem como referência os resultados da escola, em que a premiação é conferida a todos os docentes e, em alguns casos, aos funcionários e até aos alunos das unidades escolares que alcançaram os objetivos previamente definidos. Ou seja, trata-se sempre de um bônus pago em decorrência dos resultados alcançados na avaliação externa, de modo a não possibilitar a incorporação permanente de um acréscimo ao salário, obrigando o professor a reconquistar os seus prêmios ao final de cada processo avaliativo. É o modelo do contrato de gestão da NGP entrando na sala de aula.
Quando questionada sobre quais os indicadores analisados na avaliação da educação infantil, a entrevistada explica que:
É o desempenho em Língua Portuguesa, no caso, leitura e escrita que a gente chama, acerto por descritor, padrão de desempenho, em relação à nota, o percentual de acertos para saber qual atendimento aquela escola precisa. Aí, a gente tem quatro padrões de desempenho, se a escola está entre 0 e 2,9, aquela escola precisa de um apoio de recuperação; se ela está entre 3 e 5,9, é reforço; se está entre 6 e 7,9, aí precisa aprofundar; e, se está maior que 8, precisa desafiar. Então, a gente cria essas escalas, isso para qualquer avaliação na rede, para dar o apoio que cada criança precisa. No caso de leitura e escrita, nas crianças de 5 anos [...]. (GA, 27 ago. 2019).
Como se observa, a definição das políticas e ações a serem adotadas decorrem do desempenho em Língua Portuguesa e o respectivo escalonamento com base em padrões de desempenho previamente definidos. Esse modelo de condução das políticas de educação acaba, por vezes, incentivando comportamentos e práticas que não contribuem para a melhoria da qualidade da educação, como, por exemplo, a competitividade entre as escolas, a seleção e exclusão de alunos e a redução do currículo ao que é cobrado nas avaliações.
Em outro momento da entrevista, a interlocutora discorre sobre o desenvolvimento dos instrumentos de avaliação para a educação infantil no município de Teresina:
É, a gente primeiro avalia os resultados do ano anterior. Com base nesse resultado, a gente define a matriz de referência, que a matriz é uma parte do currículo, onde tem várias coisas, vários eixos, mas a avaliação detém apenas a parte de leitura e escrita, e não é tudo do eixo de leitura e escrita, porque tem a parte de oralidade, tem a parte da ludicidade, tem a parte dos jogos, da música, do movimento. Então, a gente não avalia esses aspectos, eles estão presentes no planejamento, [...], mas ele não é avaliado. [...]. Aí a gente escolhe a matriz de referência, ela é um recorte do que é ensinado no currículo, e, dentro disso, a gente garante essas habilidades, no planejamento e dentro também da avaliação. Aí a gente define a matriz, elabora os itens, os itens são elaborados pelos formadores, o setor de avaliação valida esses itens e são enviados para a escola a prova montada, a escola aplica, corrige, e os resultados a gente passa para o setor de formação discutir com eles, e vão ser para que os formadores possam discutir com os professores, e também os diretores trazem esses resultados também para discutir com a equipe técnica para o desempenho da escola. Em relação à frequência, a gente também inclui, não na avaliação, mas nessas reuniões, a gente discute também, e a frequência dos alunos observamos se tem melhorado ou se não tem, e o desempenho dessas crianças também em relação a essas avaliações [...]. (GA, 27 ago. 2019).
Constata-se a definição de uma matriz de referência pautada em uma parte do currículo, referente à leitura e à escrita, deixando bem claro que aspectos como a oralidade, a ludicidade, os jogos, a música e o movimento não são avaliados no trabalho educativo que deve ser desenvolvido no contexto da educação infantil, ainda que possam estar previstos no planejamento desse trabalho. Isso indica que o currículo na educação infantil de Teresina está sendo reduzido às atividades de leitura e escrita, contrariando as recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010), que concebem a criança como sujeito histórico e de direitos, que interage com o mundo, que pensa e age nele, e, nesse contexto, produz cultura. Sendo assim, a educação infantil, centrada na criança, visto que sujeito do processo, educa e cuida por meio de interações e brincadeiras a fim de prover o seu desenvolvimento integral. Para tanto, devem ser promovidas experiências de aprendizagem que envolvam conhecimentos que façam parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico, sempre considerando a integralidade e a indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança.
A gerente de avaliação da Semec-Te trata, ainda, do formato do Saethe:
E, no caso do Saethe, que é a avaliação final, além desses processos, não é a gente que elabora, mas a gente define a matriz e envia para a instituição que executa, ela elabora a prova. A prova, a gente não tem conhecimento da prova. Como é usada para premiação, tem que ser sigilosa. Aí o aplicador é externo, e são dois dias de aplicação, um dia para prova de leitura, outro dia para a prova de escrita. São dois aplicadores por turma, a prova é guiada, ele lê a prova, e esses resultados [...]. (GA, 27 ago. 2019).
Com efeito, esse relato nos informa que, por um lado, o formato da avaliação do Saethe contradiz o que preconizava a Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996), que prevê que a avaliação da educação infantil deve ser realizada mediante o acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de seleção, promoção ou classificação, mesmo para o acesso ao ensino fundamental.
O parecer n. 17 da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE) “[...] reafirma essa ideia e explicita que não é admissível, nessa etapa, a utilização de provinhas ou outros instrumentos de avaliação que submetam as crianças a qualquer forma de ansiedade, pressão ou frustração” (BRASIL, 2012, p. 11). Estipula, ainda, que a avaliação será sempre da criança em relação a si mesma, e não comparativamente a outras crianças, sendo competência da escola sua realização. Assim, a seleção, promoção ou classificação das crianças, tal como apontado pela gerente de avaliação, está em desacordo com a legislação vigente.
No que se refere aos resultados da iniciativa de avaliação, o relato a seguir da mesma gerente de avaliação evidencia mecanismos de accountability, na medida em que associa os resultados da avaliação a uma prestação de contas.
É. E aí o resultado, quando vem, vem como uma prestação de conta para a escola, mas ele também vai para a escola que os alunos serão matriculados no ano seguinte. Então, as duas instituições conhecem o resultado, tanto quem ficou com a criança o ano todo para avaliar o trabalho dela, mas esse resultado vai para a escola seguinte. (GA, 27 ago. 2019).
Como bem lembra Silva (2016), pode se distinguir o uso dos resultados das avaliações em três gerações. A primeira diz respeito às avaliações diagnósticas, sem consequências diretas para a escola e para os currículos escolares, consideradas como de baixo risco e ausência de divulgação de resultados; portanto, sem mecanismos de competição. A segunda geração consiste nas avaliações cujos resultados são divulgados por escolas, municípios e estados, possibilitando mecanismos de responsabilização dos sujeitos envolvidos. Essas avaliações são consideradas como de responsabilização branda, porque possibilitam a comparação entre as escolas por meio da nota do Ideb. Na terceira geração são implantados, a partir dos resultados das avaliações, mecanismos de premiação e punição aos profissionais da educação e às escolas. Essa geração é considerada de alto risco, porque traz consequências fortes para os professores e gestores ao responsabilizá-los pelos resultados, e é precisamente essa terceira geração que está a orientar o pilar da avaliação na gestão da política de educação infantil no município de Teresina.2
Quanto ao sentido e papel da avaliação na educação infantil, há que se destacar, ainda, que a realidade encontrada no município de Teresina, em boa medida, expressa as contradições das diferentes abordagens desse tema no cenário educacional brasileiro. Por certo, os marcos legais nacionais mencionados neste estudo, que orientam a organização da educação infantil, não apontam na direção do sistema de avaliação adotado no município estudado. Contudo, essa direção vai ao encontro daquelas abordagens de avaliação que defendem uma lógica e processos de avaliação orientados pela perspectiva do ranqueamento, da bonificação, da accountability.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os anos de 1990 foram período de investigações do impacto das políticas ou programas educacionais na qualidade do ensino. Esse impulso pode ter decorrido dos resultados das diversas avaliações de sistema que passaram a ser feitas no Brasil ou por influência das agências financiadoras dos diversos programas que foram implementados com o objetivo de melhorar a educação brasileira (BAUER, 2013).
Nesse contexto, a avaliação em larga escala ganhou destaque, ancorada no contexto de redefinição do Estado ocorrida a partir dos anos de 1990, sendo amplamente utilizada pelos diversos estados da Federação. Foi, portanto, com base nesse movimento de legitimação dos sistemas de avaliação em larga escala, em termos de política governamental, que se deu a implantação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb),3 em 1990, que serviu como referência para a criação de sistemas estaduais de avaliação da educação básica e avaliações de rede nos municípios.
A máxima defendida pela reforma do Estado foi de melhorar a distribuição de recursos, tornando o Estado mais eficiente e menos burocrático, sendo que a eficiência não se concretizou, mas a reforma se configurou como instrumento neoliberal, estendendo a lógica de mercado para as instituições. Nesse ambiente de implementação de políticas neoliberais, há uma diminuição da autonomia da escola, que passa a ser gerida pelas regras do mercado. Nesse cenário de reformas, as exigências aumentam em relação ao trabalho do professor, requerendo dele mais dedicação e adequação aos padrões de qualidade do Estado no cumprimento de metas e objetivos.
Os desdobramentos oriundos das reformas educacionais resultam em exigências de melhores resultados, que podem variar de acordo com a escola e sistema educacional no Brasil.
No caso do município de Teresina, a perspectiva da accountability, sob a égide da NGP, vai se fazer presente, também, nas políticas de avaliação externa em geral implementadas no município, assim como naquelas avaliações externas voltadas para a educação infantil.
Como demonstramos, o Saethe testa os estudantes do segundo período da educação infantil, apresentando os resultados, enquanto a própria Semec-Te, a partir dos critérios contidos na legislação municipal, elabora o ranqueamento para fins de premiação (Programa Valorização do Mérito). Todo esse processo culmina em uma classificação para efeito de premiação e/ou bonificação, sob a lógica da responsabilização individual do docente e/ou da instituição educativa, da competitividade, da ênfase na busca da eficiência aferida nos resultados.
Nesse contexto, o modelo de gestão adotado pelo município de Teresina está comprometido com recomendações e regulações pautadas na NGP e na accountability, cujos resultados da avalição estão associados à responsabilização e à prestação de contas. Tem-se, pois, que a perspectiva da accountability orienta e interfere na organização da gestão da educação municipal da educação infantil, em uma lógica de planejamento estratégico que tem como um dos eixos a avaliação externa. A avaliação, interna e externa, sustentada na produção de indicadores com vistas ao estabelecimento de metas, cada vez mais, é definida como elemento central para a promoção e garantia da educação de qualidade, sendo que essa perspectiva irá impactar, inclusive, no financiamento da educação.
Além disso, sob o manto da NGP, marcada pelos fundamentos da accountability, do modelo gerencial de gestão e consolidação do Estado avaliador, o que temos é que, no contexto da gestão da educação infantil no município, a descentralização, a autonomia e a participação preconizadas se orientam pela lógica das políticas neoliberais, que articulam modelos de gestão corporativos com novos e rígidos controles do trabalho docente, das escolas e dos próprios sistemas de ensino.
Assim, o modelo de avaliação externa na educação infantil e os modelos de gestão educacional levados a cabo no município de Teresina que a sustentam, estariam contribuindo, efetivamente, para a perspectiva de construção de uma avaliação que estivesse alinhada à identidade e ao currículo da educação infantil expressos nos marcos regulatórios dessa etapa da educação básica e que tenha como horizonte a formação integral da criança para o exercício da cidadania.
Na verdade, o que foi possível constatar é que, mais uma vez, a lógica da bonificação de caráter meritocrático se faz presente; em um exercício da autonomia controlada, ou seja, aquela autonomia para obedecer, no contexto de uma “ideologia utilitária” que marca os modelos e concepções gerencialistas que engendram a gestão pública, inclusive no campo da educação em geral e da educação em Teresina, de modo particular.