INTRODUÇÃO
Passados nove anos desde a aprovação, o Plano Nacional de Educação (PNE) - sancionado em junho de 2014, na forma da Lei n. 13.005/2014 - entra em seu último ano de vigência sem o cumprimento de boa parte de suas vinte metas e respectivas estratégias. Urge a busca de alternativas democráticas de qualidade social após um período de retrocessos autoritários que abrigou ataques recorrentes ao direito à educação, perda de direitos sociais, discursos presidenciais favoráveis ao Projeto Escola Sem Partido, militarização de escolas públicas, promoção da proposta de homeschooling, aprovação da Emenda Constitucional n. 95/2016 - consolidada na Emenda do Teto de Gastos -, proposta de “reforma” do ensino médio e imposição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovada à revelia do processo democrático no qual vinha sendo gestada.
Em momentos em que se torna necessário o fortalecimento do Estado democrático de direito, a educação pública de qualidade social é vital para a construção de uma sociedade amplamente inclusiva. Esse caminho de reconstrução/construção demanda, necessariamente, que tanto a avaliação do PNE (2014-2024), em seu último ano de vigência, quanto a elaboração do novo plano para 2024-2034 priorizem o debate crítico sobre a política curricular, em busca de alternativas democráticas, participativas, não verticalizadas, alinhadas à justiça curricular.
Ao fazer um balanço do texto aprovado do PNE (2014-2024), fruto de amplo esforço e debate no campo educacional, este ensaio analisa o descumprimento do art. 13 do referido documento, que visou a instituir um Sistema Nacional de Edu- cação (SNE) responsável pela articulação entre os sistemas de ensino em regime de colaboração, para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do PNE (Lei n. 13.005, 2014). Argumenta-se que, se há intenção de priorizar processos de construção curricular mais participativos e democráticos, que busquem a formação consistente de todos os sujeitos do currículo e que resultem em formação de qualidade de discentes e docentes, o debate sobre a regulamentação do SNE, conforme tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 235/2019 no Congresso Nacional e as novas perspectivas para elaboração do PNE (2024-2034), não podem deixar de lado a discussão sobre a política curricular brasileira e os rumos da BNCC.
Com esse propósito, para o desenvolvimento deste ensaio, escrito a partir das produções do Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular (Gepejuc), cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sediado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e fruto de pesquisa empírica realizada por Costa (2022)1 em um contexto de política de currículo participativa, parte-se do pressuposto de que, sem a discussão da questão federativa brasileira e da regulamentação do regime de colaboração, por meio do debate em torno do SNE, dificilmente serão vislumbrados horizontes para a proposição de políticas curriculares comprometidas com a justiça social.
Trata-se de um debate essencial, sem o qual não se viabilizarão políticas curriculares construídas em diálogo coletivo e permanente, considerando as vozes dos sujeitos do currículo (professores/as, educadores/as, alunos/as, comunidade escolar) que protagonizam processos de luta e resistência, confiando em suas capacidades de analisar a própria realidade para, a partir disso, contribuir de modo efetivo na proposição de políticas públicas.
Justiça curricular (Ponce, 2018), tal como proposta neste ensaio, é compreendida como instrumento conceitual, chave de análise para avaliação de currículos e vivência educacional, que busca justiça social por meio do processo educativo formal. No significado da expressão, está implicado o conceito de justiça social que, conforme a concepção de Fraser (2012), constitui-se a partir de três elementos: a redistribuição dos bens e serviços produzidos pela humanidade, o reconhecimento das diferenças entre os grupos e indivíduos humanos e a representatividade entendida como direito à igual participação nos assuntos de natureza pública.
Também são três as dimensões a serem consideradas na proposta de currículo embasada na justiça curricular: 1) a do conhecimento, que preconiza que a seleção de conhecimentos para o currículo contemple os essenciais à formação ética, política, econômica e cultural de todos os envolvidos no processo curricular; 2) a do cuidado com os sujeitos do currículo, que preconiza o bem-estar e o bem-ser de todos os envolvidos no processo curricular; e 3) a da convivência democrática vivida e debatida como forma de sustentação e constante aprendizado da democracia, compreendida como um valor e uma necessária vivência que dá o suporte para um mundo mais humanizado. Ou seja, conhecimento, cuidado e convivência democrática (3C).
O reconhecimento, a redistribuição e a representação (3R) enlaçam-se às dimensões constitutivas da justiça curricular, os 3C (Costa et al., 2023a). Defende-se que a articulação teórica proposta entre 3R e 3C seja uma base epistemológica chave capaz de subsidiar as discussões acerca da constituição do próximo PNE (2024-2034) e da regulamentação do SNE, tendo como princípio a busca da dignidade humana e da justiça social. Compreende-se que tal referencial é capaz de elucidar as relações de poder e intenções subjacentes que atravessam as políticas educacionais (Costa et al., 2023b), bem como indicar caminhos para a proposição de novas políticas curriculares que considere o local e a concretude dos sujeitos envolvidos nos processos curriculares (Ball & Mainardes, 2011).
O FEDERALISMO BRASILEIRO E O REGIME DE COLABORAÇÃO: DESLINDAMENTO NECESSÁRIO PARA A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CURRICULARES DEMOCRÁTICAS E PARTICIPATIVAS
A relevância do regime de colaboração para a dinâmica do federalismo educacional brasileiro aponta para a necessidade de um olhar mais profundo sobre seu processo de regulamentação, dado que se trata de um país com elevados e crescentes índi- ces de desigualdades educacionais.
Compreender a organização do regime federativo no Brasil e os impactos históricos de tal adoção torna-se essencial para a análise de políticas públicas educacionais que demandem a articulação de ações entre os entes federados, como União, estados, Distrito Federal (DF) e municípios, tal como previsto no PNE (2014-2024). A estrutura do sistema federativo brasileiro é significativamente importante para o planejamento de políticas públicas educacionais e curriculares que se queiram democráticas e participativas, uma vez que interfere diretamente na garantia do direito à educação.
Desde a Proclamação da República, em 1889, o Brasil define-se como uma República Federativa, o que pressupõe um pacto entre os entes federados, implicando, ao mesmo tempo, autonomia e interdependência entre suas iniciativas (Cury, 2008). Pode ser caracterizado como um sistema de poder mais difuso, em que o Governo Federal convive com governos subnacionais autônomos, demandando instrumentos de articulação entre essas instâncias (Abrucio, 2017).
A complexidade dessa forma de Estado implica reconhecer as potencialidades e os desafios inerentes à sua configuração. Como potencialidades, destaca-se a possibilidade de maior participação democrática, via aproximação dos governos com suas comunidades e peculiaridades regionais. No que se refere aos desafios, encontra-se a dificuldade de conciliar os interesses locais com os gerais, além da necessidade de coordenar diversos esforços intergovernamentais para atuar em uma mesma política por meio de práticas colaborativas (Abrucio, 2010). Trata-se de garantir o respeito à unidade na diversidade, o que se torna ainda mais complexo no cenário brasileiro, com intensas assimetrias socioeconômicas e diferentes condições de acesso à educação.
A adoção do federalismo causou grande impacto na história do Brasil e na forma de organização das políticas públicas educacionais. A Constituição de 1988, conforme destaca Cury (2010), opta por um federalismo cooperativo, descentralizado, com funções privativas, comuns e concorrentes entre os entes federados na esfera educativa. Seu caráter descentralizado exige entendimento mútuo entre os poderes públicos por meio do regime de colaboração, o que se evidencia na redação do art. 211:
Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.
§ 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.
§ 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.
§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
A análise dos parágrafos supracitados, a partir das contribuições de Cury (2012), demonstra que a constituição, ciente da diversidade do país, do caráter federativo da nação e do Estado democrático de direito, estabeleceu, como princípio da articulação, o sistema de colaboração recíproca entre União, estados, Distrito Federal e municípios como meio para assegurar a educação como um direito de todos. Foram repartidas as competências e as atribuições legislativas entre os integrantes do sistema federativo, reconhecendo a sua dignidade e autonomia. A legitimação dos municípios como entes federados indica a opção pelo regime político plural e descentralizado, criando uma especificidade do federalismo brasileiro em relação às demais dinâmicas federativas existentes: a criação de um federalismo tridimensional ou tripartite (Araujo, 2010).
Quando definido, conforme o § 4º do art. 211, que, na organização de seus sistemas de ensino, os estados e os municípios definirão formas de colaboração com o intuito de assegurar a universalização do ensino obrigatório, instaura-se a demanda por um regime de colaboração em que as relações interfederativas não se dão mais por processos hierárquicos, mas por meio do respeito aos campos próprios das competências assinaladas, mediadas e articuladas pelo princípio da colaboração recíproca e dialogal (Cury, 2012).
Essa configuração, continua Cury (2012), demanda um ordenamento jurídico complexo e negociado, podendo tornar-se lento e difícil em uma União que congrega 26 estados, 5.570 municípios e o Distrito Federal. O modelo cooperativo previsto, complementa Dourado (2013), vai tecendo a dinâmica basilar do federalismo brasileiro e a necessidade de regulamentação do regime de colaboração entre os entes federados, que, mesmo gozando de autonomia, contam com competências privativas, comuns e concorrentes que devem ser efetivadas por meio de relações de interdependência, tendo a garantia do direito à educação como diretriz.
A partir desse desenho constitucional, a organização do sistema escolar brasileiro passa a depender muito mais da efetividade das relações intergovernamentais, o que não é algo fácil. A complexidade intensifica-se, pois, conforme aponta Abrucio (2017), o Brasil é um raro caso internacional em que há uma duplicidade de provisão da educação básica, com dois níveis de governo (municipal e estadual) atuando sob o mesmo universo de alunos, como no segmento do ensino fundamental. Para ilustrar, complementa o autor, podem-se encontrar em uma cidade, na mesma série escolar, escolas geridas pelo estado e outras pelo município.
Diante desse cenário, Dourado (2013) denuncia os limites que demarcam a relação política entre o constituído e o constituinte do federalismo brasileiro, que, indiscutivelmente, ainda apresenta resquícios patrimoniais, operando na lógica competitiva, em detrimento dos princípios que preveem um regime de colaboração entre os entes federados. Vale destacar que, na cultura política brasileira, não são incomuns disputas entre o nacional e o local, além do jogo de interesses das elites políticas, o que dificulta sobremaneira práticas cooperativas (Araujo, 2010). O desafio a ser enfrentado para a garantia do direito à educação é o de superar essas condições objetivas, articuladas à busca da redução das assimetrias regionais e sociais.
Tais aspectos apontam que o regime de colaboração, apesar de seu aspecto nuclear na definição de políticas públicas educacionais, tal como o PNE (2014-2024), ainda carece de concretização e normatização. Segundo Cury (2012), a normatização deveria ter sido regulamentada por meio da confecção de leis complementares, o que não ocorreu até o presente momento. Conforme a Constituição Federal de 1988, nos termos do parágrafo único do art. 23, “leis complementares deverão fixar normas para a cooperação entre a União e os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
Mesmo considerando essa recomendação, as normas para a cooperação não foram devidamente priorizadas, carecendo de esclarecimentos sobre como poderia ser organizada e efetivada nas relações interfederativas. Ao se preocupar com esse aspecto, Araujo (2018) assinala que a não regulamentação da cooperação educativa traz dificuldades para a promoção de políticas educacionais equânimes de acesso, permanência e qualidade em um país desigual, com ampla dimensão territorial e com dívida histórica quanto à garantia dos direitos sociais.
Para a autora, além de se constituir como um dos maiores desafios para as políticas educacionais, a cooperação federativa tem sido um processo marcado por omissões e ambivalências, no âmbito do Legislativo e do Executivo. Tais omissões dos parlamentares brasileiros evidenciam-se na não definição de como se dariam as ações integradas dos entes federados para a prestação dos serviços por meio do regime de colaboração, de forma a garantir oferta de educação com padrão de qualidade (Araujo, 2018).
A materialização de um federalismo de cooperação que articule a autonomia e a interdependência entre os entes federados depende da definição de diretrizes nacionais que, até o momento, não foram priorizadas, o que pode fazer com que essas orientações constitucionais não se traduzam em matéria de políticas públicas.
Plano Nacional de Educação e Sistema Nacional de Educação: Pautas essenciais para enfrentamento dos entraves federativos
Apesar das dificuldades anteriormente citadas, cabe frisar que algumas iniciativas foram empenhadas na tentativa de enfrentar tais entraves federativos, como pode ser constatado em documentos do Conselho Nacional de Educação (CNE). A Portaria CNE/CP n. 10, de 6 de agosto de 2009, por exemplo, ao avaliar o PNE (2001-2010), indicou que um dos principais problemas à consecução das metas previstas foi a ausência de normatização do regime de colaboração por meio da organização do SNE, o que deveria ser prioridade do Plano (2014-2024):
Na organização da Educação Nacional, o novo PNE precisa avançar, no sentido de dar maior organicidade às suas ações. Para tanto, há que estabelecer: o Sistema Nacional de Educação, como forma de garantir a unidade na diversidade; o regime de colaboração, no tocante à educação, que delimitará com propriedade e clareza os limites e responsabilidades de cada ente federado. (Portaria CNE/CP n. 10, 2009, p. 10).
Outra iniciativa relevante que discutiu a importância da regulamentação do regime de colaboração foi a realização, em 2010, da Conferência Nacional de Educação (Conae), cujo tema central foi a construção do SNE. Se articulado sob o PNE, o SNE pode levar a uma coordenação federativa mais clara e mais direta por parte da União, exercendo as funções equalizadora e redistributiva, assim como aprimorando as competências dos sistemas para um exercício harmônico do regime de colaboração (Cury, 2010).
A Conae 2010 defendeu premissas relevantes da construção do SNE, dando ênfase aos seguintes aspectos: 1) a construção de um SNE requer o redimensionamento da ação dos entes federados, garantindo diretrizes educacionais comuns a serem implementadas em todo o território nacional, tendo como perspectiva a superação das desigualdades regionais; 2) a ausência de um efetivo SNE configura a forma fragmentada e desarticulada do projeto educacional ainda vigente no país; e 3) a regulamentação do regime de colaboração e a efetivação do SNE dependem da superação do modelo de responsabilidades administrativas restritivas às redes de ensino, cabendo aos entes federados agir em conjunto para enfrentarem os desafios educacionais de todas as etapas e modalidades da educação nacional (Portaria CNE/CP n. 10, 2009, p. 10).
O PNE (2014-2024), elaborado a partir de tais reflexões coletivas, define a relevância da institucionalização do SNE e reitera a importância do regime de colaboração para o alcance das metas propostas, sinalizando a necessidade de institucionalização de instâncias permanentes de negociação entre os entes federados para a efetivação da cooperação. Conforme o documento:
Art. 7º A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração, visando ao alcance das metas e à implementação das estratégias objeto deste Plano.
§ 5º Será criada uma instância permanente de negociação e cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.
§ 6º O fortalecimento do regime de colaboração entre os estados e respectivos municípios incluirá a instituição de instâncias permanentes de negociação, cooperação e pactuação em cada Estado.
Art. 13. O poder público deverá instituir, em lei específica, contados 2 (dois) anos da publicação desta Lei, o Sistema Nacional de Educação, responsável pela articulação entre os sistemas de ensino, em regime de colaboração, para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do Plano Nacional de Educação. (Lei n. 13.005, 2014).
Passados nove anos da aprovação do PNE (2014-2024), percebe-se o descumprimento do prazo estabelecido para a definição de leis específicas sobre o SNE, conforme proposto pelo art. 13. De maneira geral, assiste-se a um descaso quanto às metas previstas no plano. Ao realizar uma análise sobre o período de vigência do documento, constata-se que apenas três das vinte metas foram parcialmente cumpridas, ao passo que as outras 17 foram descumpridas ou até mesmo apresentaram retrocesso (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2023).
O descumprimento do art. 13 do PNE legitima as preocupações de Saviani (2010) ao reafirmar que a forma própria de responder adequadamente às necessidades educacionais de um país organizado sob o regime federativo é exatamente por meio da organização de um SNE. O autor defende que, na efetivação do PNE e na construção do SNE, deve-se implantar uma arquitetura que tenha como ponto de referência o regime de colaboração entre os entes federados, efetuando a repartição das responsabilidades, estando todos com o intuito de prover educação com o mesmo padrão de qualidade a toda a população.
Corroborando os aspectos anteriormente apresentados, Abrucio (2017) reforça que o ponto mais problemático do regime de colaboração é a falta de um SNE. Destaca que, das principais políticas públicas, a educacional é a única que não institucionalizou um modelo nacional e sistêmico, com fóruns federativos que possam servir como arenas de debate e deliberação. Tal institucionalização, com previsão de participação equilibrada de todas as esferas de governo, seria um grande passo para que a cooperação se efetive nas políticas públicas educacionais e curriculares.
Após longo período de espera, recentemente, em março de 2022, foi aprovado, no Senado Federal, o PLP n. 235/2019, que cria o SNE, ainda a ser analisado pela Câmara dos Deputados. De acordo com as disposições preliminares do projeto em tramitação, busca-se fixar normas para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, em matéria educacional, visando ao alinhamento e à harmonia entre as políticas, programas e ações das diferentes esferas governamentais. Um dos objetivos propostos é o de organizar a cooperação vertical e horizontal entre os entes federados para implementação conjunta de políticas, programas e ações visando ao desenvolvimento da educação nos respectivos territórios.
De acordo com Cury (2022), o projeto em tramitação prevê a criação da Comissão Intergestores Tripartite da Educação (Cite), instância de âmbito nacio- nal, responsável pela negociação e pactuação entre gestores da educação dos três níveis de governo; e as Comissões Intergestores Bipartites da Educação (Cibe), instâncias de âmbito subnacional, responsáveis pela negociação e pactuação entre gestores da educação de estados e municípios. Propõe-se que a Cite e a Cibe sejam os fóruns responsáveis por definir parâmetros, diretrizes educacionais e aspectos operacionais, administrativos e financeiros do regime de colaboração, visando à gestão coordenada da política educacional (Senado Federal, 2022).
Cabe reconhecer a válida intenção de serem criadas novas arenas públicas de decisão. No entanto, segundo Cury (2022), o projeto precisa ser mais claro e específico com relação ao financiamento do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno-Qualidade (CAQ),2 definindo as devidas formas de distribuição para que seja levado adiante o princípio da equidade na pactuação e ação conjunta dos entes federados. Outro ponto a ser debatido e aprofundado, segundo Nota Técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2021), refere-se à necessidade de aprimorar a participação tanto dos municípios no sistema quanto da comunidade educacional, no sentido de garantir maior e melhor gestão democrática ao texto. Tal ponto é igualmente reforçado em manifestação do Fórum Nacional de Educação Popular (2021), ressaltando que processos de negociação mais horizontais, melhor distribuição de poder e capacidade decisória, além de maior participação social e fortalecimento da gestão democrática em todos os níveis, são algumas das dimensões que precisam ser consideradas na regulamentação do projeto em tramitação para estabilizar políticas de Estado no campo educacional.
Os refinamentos e aprofundamentos necessários para a organização do SNE precisam ser acompanhados com olhar vigilante, de modo a garantir diversidade com unidade, evitando a descontinuidade, a uniformidade e a dispersão das políticas educacionais (Cury, 2022). No entanto, em época de retrocessos autoritários em face de um Congresso Nacional com claras características conservadoras e tendências reacionárias, corre-se o risco de o processo ser mais uma vez preterido, revelando a não prioridade da regulamentação do regime de colaboração.
Defende-se priorizar o debate sobre a regulamentação do regime de colaboração e do SNE, no intuito de fortalecer as municipalidades a fim de aproximar a população dos processos de tomada de decisão, para garantia do direito à participação, por meio de políticas educacionais de Estado perenes que evitem a descontinuidade de iniciativas em função das disputas e trocas político-partidárias.
Assim, torna-se imperioso lutar para que a regulamentação do SNE, em tramitação na Câmara Legislativa Federal por meio do PLP n. 235/2019, priorize e garanta processos de negociação mais horizontais, melhor distribuição de poder e capacidade decisória dos municípios, além de maior participação social e fortalecimento da gestão democrática em todos os níveis educacionais (Fórum Nacional de Educação Popular, 2021).
PNE, SNE E POLÍTICAS CURRICULARES NACIONAIS: QUAIS AS LUTAS PRIORITÁRIAS EM TEMPOS DE BNCC?
A elaboração do PNE (2024-2034) e o debate sobre a tramitação do PLP n. 235/2019 acerca do SNE não podem deixar de lado a discussão a respeito da política curricular brasileira e dos rumos da BNCC. A temática Base Nacional Comum não é nova, está prevista na Constituição de 1988 para o ensino fundamental e foi ampliada para o ensino médio com a aprovação do PNE (2014-2024), a partir da Lei n. 13.005/2014, em consonância com a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que define as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Aguiar & Dourado, 2018). Cury et al. (2018) explicam que o processo normativo impulsionador para a construção de uma BNCC se arrasta por quase trinta anos, em face da previsão constitucional que determina a fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de modo a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais, artísticos e regionais (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Com foco na definição minuciosa de objetivos e competências, em 2017, a BNCC é aprovada3 (Ministério da Educação, 2017) como documento prescritivo e obri- gatório em âmbito nacional. Segundo Cury et al. (2018), a BNCC foi elaborada e aprovada sob o argumento da legalidade, uma vez que tanto a LDB, Lei n. 9.394/1996, quanto a Constituição Federal de 1988 reforçam a necessidade de propiciar a todos os alunos uma formação básica comum, pressupondo a formulação de um conjunto de diretrizes capazes de nortear os currículos e seus conteúdos mínimos.
Para Cury et al. (2018), a análise da constitucionalidade/legalidade da BNCC não pode prescindir do debate sobre aquilo que é reputado como básico, como comum, tendo em vista que tal interpretação, além de não ser neutra, traz conse- quências de difícil equação em um país tão desigual como o Brasil. De acordo com a compreensão dos autores, a Constituição de 1988 e a LDB, diante do princípio da dignidade da pessoa humana, da cidadania, dos valores sociais e da democracia, consideram como básico o respeito ao ser humano, à sua capacidade criadora e transformadora, à liberdade e à perspectiva de pluralidade de ideias e diversidade, o que se distancia de prescrições fixistas e descritores de habilidades, como previsto na BNCC (Cury et al., 2018).
Cury et al. (2018) reforçam que os princípios constitucionais defendem a necessária construção de uma sociedade justa, livre e solidária, que busque a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades, rejeitando todas as formas de discriminação. No que se refere à LDB, os autores corroboram que também é prevista uma formação comum básica, mas com a preocupação com o regional, com o local e com a diversificação da proposta do que seja básico. Nas palavras dos autores:
A ideia de base contida na LDB e que pode se extrair da CF [Constituição Federal] é pela definição de referências curriculares comprometidas com a pluralidade, a diversidade e não discriminação. Abraçar uma compreensão de prescrições fixistas e descritores de conteúdos, competências e habilidades é assumir uma contradição entre o pluralismo de ideias e um projeto universalizante de conhecimento comprometidos com a homogeneização. (Cury et al., 2018, p. 60).
A partir de tal perspectiva, apreende-se que a previsão legal de uma base, ou seja, de diretrizes curriculares respeitem a diversidade e pluralidade, entra necessariamente em contradição com o formato assumido pela terceira versão da BNCC, de caráter vertical e centralizador, tornando-se política prioritária no governo do presidente Michel Temer. Em vez de caracterizar-se como diretriz curricular, a BNCC destrincha inúmeras listas de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para orientar os/as professores/as quanto ao que fazer em sala de aula, defendendo uma unidade que inviabiliza o pluralismo e o reconhecimento da diversidade da sociedade brasileira (Cury et al., 2018), além de desconsiderar a premissa equitativa de que tratar igualmente os desiguais é perpetuar as desigualdades.
Um exemplo do detalhamento minucioso dos descritores de competências presentes no documento pode ser visto nas orientações para a etapa do ensino fundamental. No caso da área de língua portuguesa para os anos iniciais (1º ao 5º ano do ensino fundamental), são organizadas longas tabelas para discriminar as práticas de linguagem e seus respectivos objetos de conhecimento.
Para cada objeto de conhecimento, são derivadas habilidades identificadas por códigos alfanuméricos. Apenas na tabela do 3º ao 5º ano do ensino fundamental, na competência específica de língua portuguesa, são listadas 112 habilidades a serem desenvolvidas. Novas tabelas são apresentadas para cada área do conhecimento - arte, educação física, língua inglesa, matemática, ciências da natureza, ciências humanas (história e geografia) e ensino religioso. Somadas todas as habilidades listadas, em todas as áreas do conhecimento previstas do 3º ao 5º ano do ensino fundamental, podem ser contadas 355, que ainda precisam ser complementadas em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar por uma parte diversificada (Ministério da Educação, 2017).
Considerando as detalhadas prescrições, que, caso seguidas pelos/as professores/as, ocupariam e sufocariam todo o tempo escolar dos/as alunos/as, percebe-se a configuração de um documento normativo, ligado a matrizes tecnicistas que buscam controlar a vida na escola, prescrevendo listas de conteúdo a serem seguidas linearmente por todo o país, independentemente das características e desigualdades regionais. Para Cury et al. (2018), o nível de detalhamento da BNCC subestima os/as professores/as, assim como as orientações curriculares desenvolvidas pela Câmara Nacional de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (Resolução n. 7, 2010), desprezando o desenvolvimento de um projeto educativo nacional fundado em uma concepção dinâmica de currículo que valorize e reconheça os saberes e experiências dos vários atores presentes na escola (Cury et al., 2018).
Dourado e Oliveira (2018) enfatizam que não se pode esquecer de que a BNCC é parte de uma política mais ampla que vem sendo implementada com ênfase em formas de terceirização e privatização, que concebe a educação como mercadoria e naturaliza a dinâmica do mercado na educação, tendo em vista a concorrência interna, a individualização, a diferenciação e a premiação por resultados. Destaca-se que, conforme apontam Cury et al. (2018) e Avelar e Ball (2017), a Fundação Lemann,4 cujo fundador é um dos homens mais ricos do Brasil, Jorge Paulo Lemann, foi uma das principais influenciadoras, apoiadoras e divulgadoras da BNCC, promovendo, imediatamente após a homologação do documento, propostas de formação de professores, venda de materiais didáticos e soluções educacionais para as redes de ensino do país.
Ao analisar os impactos da política curricular atrelada à BNCC para a organização federativa brasileira, Dourado e Oliveira (2018) enfatizam que a lógica do respeito à diversidade, incentivo à autonomia e participação democrática dos entes federados como condição para o regime de colaboração dá lugar a uma perspectiva de uniformização e homogeneização curricular. Segundo os autores, observa-se a subtração do princípio constitucional cooperativo, baseado em relações descentralizadas, porém articuladas, a favor de uma centralização verticalizada, cujos planejadores da política federal assumem isoladamente as definições curriculares e os mecanismos de sua implementação. Dessa forma, o contexto de produção curricular da BNCC, caracterizada por forte centralização e protagonismo do governo federal, não contribui para o estabelecimento de políticas nacionais pautadas pela efetiva cooperação e colaboração entre os entes federados, entre seus sistemas de ensino, instituições educativas, bem como seus profissionais e estudantes (Dourado & Oliveira, 2018).
Como afirma Lopes (2018), tal perspectiva centralizadora, avessa a um federalismo cooperativo, acaba por reforçar os argumentos de que os municípios e estados são incapazes de elaborar suas próprias propostas curriculares e, por essa razão, precisam de detalhadas e minuciosas orientações. Sob tal argumento, muitas vezes os municípios - seja por ausência de financiamento, de formação especializada nas secretarias, entre outros - desobrigam-se da responsabilidade de debater e produzir localmente suas propostas curriculares em uma relação mais direta com as escolas, fato bastante negativo, pois o currículo não tem como ser desvinculado de demandas contextuais, das relações construídas no âmbito dos sistemas educativos intermediários que mais diretamente se dirigem às escolas.
Dessa forma, a discussão sobre política curricular está intrinsecamente vinculada à normatização do regime de colaboração, a partir da definição do SNE, situando o papel da União na coordenação das políticas educacionais, em colaboração com os demais entes federados, assegurando que as ações não sejam discutidas e implementadas isoladamente, mas fazendo parte de um conjunto de políticas articuladas e, consequentemente, coerentes com o ideal de uma educação emancipadora (Aguiar, 2018). Nessa perspectiva, complementam Cury et al. (2018), sem o deslindamento da questão federativa e do regime de colaboração, dificilmente serão encontradas saídas para o verticalismo em matéria de política curricular.
No que se refere à participação social no processo de homologação da BNCC, segundo Cássio (2019), um dos argumentos utilizados pelos setores defensores dessa base é o fato de que ela foi fruto de um processo democrático, tendo sido coletadas mais de 12 milhões de contribuições na consulta pública à primeira versão e outras milhares de contribuições nas etapas seguintes por meio de seminários e audiências públicas. No entanto, discorre o autor, não há nenhuma indicação nos relatórios públicos do Ministério da Educação (MEC), de como as contribuições foram analisadas ou incorporadas à segunda versão. Ele assinala também que as muitas horas das audiências públicas realizadas para a discussão da BNCC para a educação infantil e o ensino fundamental pouco impactaram o texto final do documento, indicando que a divulgada “participação social parece ter servido mais como peça publicitária do que como um processo sério de diálogo público, próprio das sociedades democráticas” (Cássio, 2019, p. 7).
Para Ponce (2018), a metodologia de elaboração adotada para a construção da BNCC acabou por privilegiar especialistas e subalternizar o diálogo com as comunidades educacionais e escolares, em um modelo centralizador de tomada de decisões. Na visão da autora, por objetivos alheios aos dos interesses da educação escolar emancipatória e com uma lógica de produção e implantação de currículo, a BNCC foi priorizada nas políticas educacionais com decisões apressadas em detrimento de demandas urgentes, como a da melhoria das condições gerais da escola pública para o atendimento com qualidade equitativa, da formação e das condições de trabalho dos/as professores/as brasileiros/as. Em perspectiva semelhante, Lopes (2018) defende que todo o esforço - financeiro, humano, intelectual - investido na produção de uma base curricular nacional deveria estar sendo direcionado à valorização do comprometimento dos docentes com seu trabalho, na melhoria das condições de trabalho, de estudo e de infraestrutura nas escolas, na formação de quadros nas secretarias para trabalharem com e sobre o currículo.
Infelizmente, da maneira como o PLP n. 235/2019 está configurado, corre-se o risco de a política curricular verticalizada alinhada à BNCC permanecer inalterada. Salienta-se que o art. 2, inciso XVI, do referido projeto dispõe que o SNE e a cooperação federativa em matéria educacional atenderão à diretriz constitucional de definição de BNCC, que orienta a composição dos currículos, a formação dos profissionais da educação e os processos de avaliação educacional. No entanto, não assegura por meio do texto apresentado a participação dos sistemas de ensino, da comunidade acadêmica e educacional e da sociedade civil em sua elaboração (Costa, 2022).
Por essa razão, sugere-se retomar as preocupações de Cury et al. (2018) de que, para pensar em políticas de currículo participativas, deve-se priorizar, nos debates sobre regime de colaboração, a égide da gestão democrática, abrindo a participação para os interessados no assunto, de modo a instaurar um diálogo consistente e sólido entre a administração da educação, os profissionais no exercício da docência e os estudiosos da matéria.
Defende-se a priorização de políticas de currículo construídas em diálogo coletivo e permanente a partir das vozes dos sujeitos que protagonizam processos de luta e resistência, confiando em suas capacidades de analisar a própria realidade para, a partir disso, contribuírem de modo efetivo na proposição de políticas públicas. Urge a demanda por políticas curriculares que fortaleçam os municípios em suas demandas financeiras e técnicas, reconhecendo que é no fortalecimento do município que se torna mais viável a participação social, pois é em cada localidade que a vida escolar acontece, é nos municípios onde se efetiva a participação dos sujeitos diretamente envolvidos na educação (Costa, 2022).
Políticas de currículo participativas, não verticalizadas, colaborativas, só serão minimamente factíveis mediante a regulamentação do SNE e discussão de um PNE (2024-2034) que busque aprimorar e garantir a participação dos municípios e da comunidade educacional nas instâncias de formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas educacionais. Políticas de currículo configuradas como uma experiência coletiva de luta, em que se definem demandas e indicam-se ações fundamentais para a efetivação do direito à educação. Políticas de currículo que permitam que as pessoas falem de seus problemas, suas preocupações, suas necessidades, das coisas que acontecem em seus territórios, das razões pelas quais a vida é do jeito que é e por que não é melhor, o que deveria ser prioridade e ponto de partida em todo e qualquer contexto de produção curricular.
POR POLÍTICAS CURRICULARES PARTICIPATIVAS ALINHADAS ÀS DIMENSÕES DA JUSTIÇA CURRICULAR: ALICERCES CONCEITUAIS PARA O PRÓXIMO PNE (2024-2034) E TRAMITAÇÃO DO SNE
Ao olhar para o próximo decênio do PNE e a tramitação do SNE, algumas urgências curriculares precisam ser priorizadas a partir das dimensões da justiça curricular - conhecimento, cuidado, convivência democrática (Ponce, 2018), essenciais para o alcance da justiça social - reconhecimento, redistribuição, representatividade (Fraser, 2012).
As considerações tecidas até aqui deflagram o campo de contradições que coexistem na definição do PNE, na constituição de um SNE e na promulgação da BNCC, bem como a centralidade do currículo escolar no âmbito das proposições de políticas educacionais. Por essa perspectiva, têm-se a justiça curricular e suas dimensões constitutivas (conhecimento, cuidado e convivência democrática) como possibilidades já vivenciadas de proposições de políticas educacionais alinhavadas à educação de qualidade socialmente referenciada e combativa contra qualquer tipo de desigualdade (Neri, 2018; Araujo, 2020; Costa, 2022; Ponce & Araújo, 2019).
Tendo como pilar ético a justiça social e como ancoragem epistemológica teorizações de matriz crítica, a justiça curricular define a educação escolarizada como um caminho de busca por justiça que se revigora ao desvelar os arranjos sociais e se reinventa na proposição de alternativas que tenham como horizonte a superação das desigualdades e a emancipação.
No âmbito da crítica contundente à produção hegemônica de currículos e apoiada nas considerações de Torres Santomé (2013) a respeito do conceito de justiça curricular, Ponce (2018) buscou dar consistência teórica e prática ao conceito, desenvolvendo-o a partir de três dimensões: a do conhecimento, reconhecido e valorizado por todos os grupos sociais e capaz de gerar vida digna; a do cuidado com todos os sujeitos do currículo, para que se viabilize o acesso ao pleno direito à educação de qualidade social, o que envolve a afirmação de direitos a partir da ótica daqueles que sempre estiveram à margem de qualquer tipo de direito; e a da convivência escolar democrática e solidária, para que se criem e se consolidem valores democráticos e humanitários, assim como uma cultura de debate e respeito ao outro na escola e para além dela (Ponce, 2018; Ponce & Araújo, 2019).
Com o intuito de estabelecer a justiça curricular como instrumento concei- tual de análise e de proposição de políticas e práticas curriculares, Costa et al. (2023a) articularam as dimensões do conhecimento, do cuidado e da convivência democrática às considerações que a filósofa norte-americana Fraser (2012) estabelece sobre redistribuição, reconhecimento e representação, como elementos fundantes da justiça social.
O enlace do conhecimento, do cuidado e da convivência democrática (3C), cunhados por Ponce (2018), ao reconhecimento, a redistribuição e a representa- ção (3R), estabelecidos por Fraser, são indicados por Costa et al. (2023a) como fundamento teórico metodológico para análise e proposição de políticas curriculares, bem como a construção de uma postura epistemológica ética e democrática comprometida com a dignidade humana e a justiça social.
Ao articular a dimensão do reconhecimento proposta por Fraser (2012) com a dimensão do conhecimento de Ponce (2018), observa-se que as reivindicações pelo reconhecimento das diferenças demandam políticas/práticas curriculares que validem conhecimentos historicamente silenciados, nascidos das lutas contra o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo, respeitadores da diversidade e realidade das pessoas e territórios, capazes de desestabilizar modelos epistemológicos dominantes e excludentes, na intenção de promover a justiça cognitiva e a inclusão social. As injustiças de reconhecimento das diferenças requerem uma transformação cultural que tanto valide os conhecimentos excluídos quanto desconstrua as ideologias dominantes (Fraser, 2012), não sendo possível deixar intactas as estruturas curriculares epistemológicas que geram o desfavorecimento simbólico.
No que se refere às lutas por redistribuição (Fraser, 2012), observa-se que elas se vinculam à dimensão do cuidado (Ponce, 2018) na reivindicação por políticas/práticas curriculares comprometidas com a redução das desigualdades educacionais, investimento na materialidade das escolas, na melhoria das condições de trabalho e formação dos(as) professores(as) e devido entrelaçamento com outras políticas públicas garantidoras dos demais direitos essenciais (saúde, moradia, segurança, alimentação, etc.). Defendem-se a afirmação e a luta pelos direitos sociais, em face da exigência de um Estado responsivo às necessidades educacionais, alinhando-se às demandas de justa distribuição igualitária dos recursos e financiamento da educação que possibilitem condições concretas para que os currículos sejam devidamente planejados, vividos, desenvolvidos e transformados nos cotidianos escolares. A partir dessa dimensão, questiona-se sobre as condições necessárias e essenciais para planejar/viver/desenvolver/transformar currículos em suas múltiplas dimensões.
Na articulação da dimensão da representatividade (Fraser, 2012) com a dimensão da convivência democrática (Ponce, 2018), urge a necessidade de políticas/práticas curriculares que considerem os/as professores/as e educadores/as em seu direito de pensar, participar e construir o currículo contextualmente, considerando as realidades concretas e a vida nas escolas. Currículos que priorizem os devidos tempo e planejamento para que se possa aprender a conviver democraticamente, a pensar e participar politicamente, por meio de experiências críticas emancipatórias no cotidiano escolar. Políticas/práticas de currículo que fomentem a intencionalidade pedagógica de formar subjetividades democráticas inconformistas capazes de se indignarem com a exclusão e participarem politicamente dos mais variados espaços coletivos. Currículos que oportunizem que os sujeitos conheçam seus direitos para que possam, então, seguir lutando por eles. Cabe ao currículo garantir condições simbólicas e culturais para que todos e todas possam participar democraticamente, com as devidas paridade e representatividade, nas mais diferentes esferas sociais.
Na busca pelo aprofundamento de tais articulações, parte-se da proposta de Fraser (2012): elaborar respostas políticas às injustiças sociais, defendendo a criação de categorias para diagnóstico e enfrentamento das desigualdades, bem como a definição de critérios normativos que possam orientar e dar validade a políticas públicas progressistas com objetivos emancipatórios. Transpondo para o campo do currículo, deve-se questionar sobre as respostas curriculares às injustiças sociais e quais estratégias podem ser elaboradas e priorizadas no próximo decênio do PNE e aprovação do SNE para orientar e dar validade a políticas e práticas curriculares comprometidas com a redução das desigualdades econômicas, culturais e políticas, tendo a justiça curricular como conceito analítico chave.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais ponderações, propõe-se que as discussões em torno do próximo PNE estejam enredadas no conhecimento, no reconhecimento e na valorização de saberes que historicamente estiveram à margem dos bancos escolares. A esse respeito, eleva-se a importância de pautar para a sociedade a seguinte questão: que conhecimento importa? O que ensejará outro questionamento: para que tipo de sociedade esse conhecimento importa?
As normativas legais que estabelecem uma base comum de conhecimento para a formação do cidadão brasileiro, e que foi uma das principais justificativas daqueles que advogaram pela constituição da BNCC, poderão ser repensadas em vista da sociedade que se deseja. As metas concernentes à BNCC estabelecidas no novo PNE deverão ter como horizonte um conhecimento comum que dignifique a vida humana e reconheça e valorize outras maneiras de conhecer a realidade, dando primazia ao conhecimento dos territórios que nascem da luta contra as diferentes formas de opressão. Articulá-los aos conhecimentos científicos e outros já legitimados em que o critério de seleção seja a partir do conhecimento capaz de gerar vida digna para todos, fortalece a convergência ética e política sobre os saberes selecionados e também a respeito do mundo desejado. Evidentemente que qualquer discussão em torno do conhecimento exige tempo, formação técnica e política, além de condições materiais para que ocorra. Assim, o cuidado com todos os sujeitos do currículo pensado a partir da redistribuição econômica deve estar presente como diretriz do novo Plano.
As discussões acerca do federalismo e da criação de um SNE devem estar assentadas na justa distribuição dos recursos e na reparação das desigualdades históricas entre os entes federados. Cuidar dos sujeitos do currículo significa garantir-lhes condições materiais e imateriais como direitos sociais, bem como empoderá-los para a ampliação de outros direitos necessários à justiça social.
A convivência democrática e solidária sustentada na articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa deve embevecer as plenárias e as conferências sobre a discussão do novo PNE, e pode ainda ser a diretriz política que fiscaliza e acompanha a consecução do plano, como é previsto com os fóruns de acompanhamento do PNE (2014-2024).
Ressalta-se que a postura epistemológica da dimensão da convivência democrática também tem sua face política que reconhece e valoriza outras formas de saber, de participar das deliberações, de se posicionar nos debates, de exercitar a escuta ativa dos saberes, sobretudo das crianças e dos adolescentes que comumente são invisibilizados. Reconhecer que, nos territórios, há muito experimentalismo democrático ocultado (Santos, 2018) é uma postura epistemológica transgressiva que contribui para transformar relações de poder desigual sustentadas no capitalismo, no patriarcado e no colonialismo em relações de autoridade partilhada (Santos, 2020).
O enlace das três dimensões da justiça social (3R) propostas por Fraser (2002, 2012) com as três dimensões da justiça curricular (3C) indicadas por Ponce (2018) pode contribuir desde a organização dos debates à finalização e acompanhamento da consecução das metas para um PNE emancipatório que se traduza na garantia e ampliação de direitos existentes e um porvir de direitos a partir da perspectiva daqueles que foram impedidos de ser quem são por concepções universalizantes que invisibilizaram seus saberes sobre direitos, dignidade humana, libertação e emancipação.
A partir de tais articulações, ensejando um PNE que alimente perspectivas curriculares emancipatórias, conclui-se que a BNCC caminha na contramão das dimensões da justiça curricular, não respeitando os princípios essenciais para o alcance da justiça social: reconhecimento, redistribuição e representação (Fraser, 2002, 2012). Na medida em que estabelece uma visão prescritiva, padronizada e hierarquizada de conhecimentos, não respeitadora da diversidade e realidade dos territórios brasileiros e sem priorizar os saberes historicamente excluídos, a base ignora o princípio do reconhecimento das diferenças como essencial para a construção da justiça cognitiva na intenção de desestabilizar modelos epistemológicos dominantes.
No que se refere à dimensão do cuidado, a política curricular da base falha na vertente redistributiva por não estar atrelada a medidas que visem a uma justa distribuição de recursos educacionais, investimento na materialidade das escolas, na melhoria das condições de trabalho e formação dos/as professores/as e devido entrelaçamento intersetorial com outras políticas públicas garantidoras dos demais direitos essenciais (saúde, moradia, segurança, alimentação, etc.).
Sobre a dimensão da convivência democrática, o processo de elaboração da BNCC ignorou o princípio da representação, paridade da participação, por alijar os/as professores/as e educadores/as de seu direito de pensar e construir o currículo contextualmente, considerando as realidades concretas e a vida nas escolas. Diante de tamanha carga de competências e habilidades prescritas, sufoca as rotinas escolares, não privilegiando tempo e planejamento necessários para que se possa aprender a conviver democraticamente, a pensar e participar politicamente, por meio de experiências críticas emancipatórias.
Com base nessa discussão, cabe questionar as possibilidades de produzir uma política pública curricular considerando o local e a concretude dos sujeitos envolvidos nos processos curriculares (Ball & Mainardes, 2011): seria possível resistir e criar alternativas contra-hegemônicas a um modelo de “elaboração” de currículos fora da escola com posterior “implantação” (Ponce, 2018)? Como superar a própria distinção entre “produção” curricular e “implementação” curricular (Lopes & Macedo, 2011)? Conclama-se um PNE (2024-2034) e um SNE que fomentem caminhos curriculares para além da BNCC, garantindo maior poder decisório dos municípios e participação social por reconhecer que é no cotidiano escolar que a pulsão do currículo acontece.