INTRODUÇÃO: APONTANDO PRESSUPOSTOS E VEREDAS DA PRODUÇÃO
A educação em tempo integral, principalmente a partir dos anos 1980 e 1990, vem sendo alçada à condição de política pública educacional no Brasil em estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, além de capitais como Curitiba e Belém. Nos dois primeiros decênios do século XXI, políticas federais - por exemplo, o Programa Mais Educação e o Ensino Médio Inovador (EMI) - construíram uma demanda social.
Acrescenta-se a esse avanço a presença cada vez mais consistente e insistente de documentos internacionais e nacionais direcionados à formulação de políticas de educação em tempo integral, com concepções cujos valores nem sempre se constroem dentro de um processo democrático e republicano. Sob os mais variados motivos (ou interesses), não raras vezes nos perguntamos a quem, na realidade, esses discursos e políticas, oriundas de campos sociais diferenciados, se dirigem, e com quais objetivos o fazem.
Em particular no que diz respeito a agentes que atuam no setor privado - ou, ainda, a partir de agências em que trabalham efetivamente ou prestam serviços temporários -, essas inserções proporcionam perspectivas diversas, que dizem respeito a também diferenciadas visões de mundo, dos seres humanos e da sociedade. Em nome de um projeto educacional sempre mais democrático, na maior parte das vezes tais processos são catapultados à condição de textos normativos e regulamentados que, quando materializados em práticas nos subsistemas educacionais, evidenciam seu semblante - mais ou menos democrático, mais ou menos “eficaz”. Assim, este é o objetivo da análise reflexiva do presente artigo: identificar, nos dados oficiais de monitoramento da Meta 6 do Plano Nacional de Educação (PNE), os resultados alcançados até o momento no Brasil, de modo a refletir sobre eles e propor formas de aperfeiçoar os indicadores nessa meta, bem como acompanhar sua implantação, na proximidade da elaboração de um novo PNE.
Para a consecução desse objetivo, políticas de educação em tempo integral são debatidas, por meio de um exercício metodológico que trabalha com a tríade constituída pelo enfoque das epistemologias da política educacional (EEPE) (Mainardes, 2017). Objetiva-se promover uma reflexão a partir de perspectiva pluralista e posicionamento crítico-analítico, sem descuidar do aspecto crítico-normativo (Tello & Mainardes, 2015; Stremel, 2014).
Ainda no tocante aos aspectos metodológicos que subsidiam o texto, considera-se procedimento de análise que relaciona dados quantitativos e qualitativos, tendo em conta os “distintos e variados desideratos da pesquisa nas ciências humanas, cujos propósitos não podem ser alcançados por uma única abordagem” (Souza & Kerbauy, 2017, p. 34).
Com os resultados, pretende-se fomentar reflexões que exponham fragilidades e potencialidades de propostas implementadas e de monitoramentos realizados, no sentido de estabelecer aspectos, critérios e dimensões passíveis de serem levados em consideração quando da formulação de um novo PNE que efetive o monitoramento e a avaliação desse processo, ao longo de seu próximo decênio.
META 6: CONTEXTUALIZAÇÃO, REGULAMENTAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÕES EM CAMPOS ENTRECRUZADOS
Avaliar e refletir sobre temáticas que estabelecem o andamento de políticas educacionais mais amplas, de âmbito nacional, é uma atividade necessária (Stremel & Mainardes, 2017, 2019). É nesse sentido que se considera relevante o movimento de discutir a temática da educação em tempo integral à luz do PNE 2014-2024.
No entanto, para que tal empreendimento se realize com precisão e qualidade acadêmica, pressupõe-se que é necessário apresentar um conjunto de reflexões que estabeleçam o compromisso que se tem para com a conceituação, a natureza e a análise da temática em questão - a educação em tempo integral, objeto da Meta 6 do referido PNE -, o que será feito a partir desta seção.
Para iniciar o debate propriamente dito, cabe destacar que a expressão “educação em tempo integral” vem se consolidando enquanto conceito em disputa nas políticas educacionais (Coelho & Sirino, 2018; Silva et al., 2021; Silva, 2023). Pesquisadores que se dedicam ao estudo dessa temática expõem que a profusão terminológica com que tal conceito é tratado nas produções acadêmicas é mais flagrante a partir dos anos 1980 e 1990, quando agentes de campos diferenciados passaram a participar do processo educacional brasileiro (Freitas, 2023; Silva, 2023).
Esses agentes têm se capilarizado com mais afinco pelos órgãos decisórios centrais de formulação e produção de textos, em nível de “ajuste” ao campo do Estado, elaborando discursos muitas vezes contraditórios, outras vezes aparentemente complementares, mas que deixam evidências de seus compromissos com agentes do campo acadêmico que conhecem os meandros das políticas de educação em tempo integral (Freitas, 2023; Silva, 2023; Santos, 2022; Silva, 2018; Costa, 2018). No bojo dessas disputas, creditamos questões de ordem estrutural, cujo cerne se situa em diferentes concepções de mundo, do ser humano e da sociedade e que afetam sobremaneira as políticas públicas contemporâneas em países periféricos como o Brasil, especificamente as que se dedicam à educação. Afetam, ainda, programas criados nesse sentido - em nível federal, estadual e municipal -, em todas as esferas da educação básica, o que constitui uma ampliação de seu raio de atuação para além do contexto de influência, caminhando também em direção ao contexto da(s) prática(s) (Adrião, 2022).
No plano da formulação e da implantação da(s) prática(s), destacam-se, em âmbito federal, nos primeiros decênios do século XXI, programas como o Mais Educação (2007-2014) e o Programa Novo Mais Educação (2014-2016), ambos dedicados ao ensino fundamental, bem como o Programa Ensino Médio Inovador (2009- -2016) e o Programa de Fomento às Escolas de Tempo Integral (2016-atual), dedicados à última etapa da educação básica. Tanto nesses programas federais quanto em programas estaduais e/ou municipais que vêm se constituindo ao longo dos últimos 10 anos, é possível encontrar “parcerias” com fundações e institutos que elaboram materiais, trabalham com gestão escolar ou, ainda, planejam formações continuadas de docentes, difundindo suas concepções e práticas de educação (integral) em tempo integral pelas redes de ensino. Inclusive - e não raras vezes - essas parcerias ocorrem por curtos períodos, o que impossibilita o monitoramento e a avaliação de tais “empreendimentos educacionais” (Nunes, 2019; Santos, 2022; Santos, 2023).
Nessa perspectiva de análise, programas com características afeitas a concepções educacionais de natureza mais empresarial ganham destaque e difundem por todo o país uma ideia de educação em tempo integral, situação que envolve uma racionalidade capitalista,1 caso da proposta do movimento Todos pela Educação, incorporada pelo governo federal em 2007, como parte do plano de metas denominado Compromisso Todos pela Educação (Decreto n. 6.094, 2007). Em tal normativa havia, no artigo 2º, inciso VII, a seguinte diretriz: “ampliar as possibilidades de permanência do educando sob responsabilidade da escola para além da jornada regular” (Decreto n. 6.094, 2007).
No escopo do planejamento educacional brasileiro, em substituição ao Compromisso Todos pela Educação, e após um longo processo de elaboração que envolveu participação de profissionais da educação do setor público e privado em duas conferências nacionais, precedidas por etapas estaduais, distrital e municipais, houve a promulgação, em 2014, da Lei n. 13.005, que estabeleceu o PNE 2014-2024.
Nesse contexto, também se percebe disputa entre agentes - os originariamente pertencentes ao meio acadêmico da política educacional/políticas de educação em tempo integral e aqueles que circulam, com mais propriedade, pelo campo econômico - que postulam interseções entre seu campo e os componentes dessa díade. Nesse contexto, identificam-se estratégias de luta entre campos, com a busca pelos espaços de atuação - tanto no Estado quanto nas redes e sistemas de ensino -, com predominância nos ciclos da influência e, especificamente, na elaboração de textos em âmbito oficial (Bourdieu, 2021).
A esse respeito, entre outros pesquisadores que se debruçaram sobre a questão no período, Dourado (2017), em coletânea, parte do princípio de que a materialização de um plano como o PNE 2014-2024 envolve ações políticas que, em disputa, vão construindo outras materializações e - acrescentamos - “esquecimentos” e “naturalizações” próprias das lutas entre agentes em seus campos interconectados. Nessa perspectiva, o autor apresenta quatro instâncias - como instituições regulamentadas pelo artigo 5º da Lei n. 13.005 (2014) - para monitorar e avaliar o PNE, a saber: o Ministério da Educação (MEC); o Conselho Nacional de Educação (CNE); as comissões setoriais específicas da Câmara dos Deputados e do Senado; e o Fórum Nacional de Educação (FNE). Em nossa análise, percebe-se que os agentes dessas instituições - dentro de suas atuações em seus campos - constroem discursos que materializam essas disputas.
Como exemplo, pode-se apresentar o papel preponderante do FNE na criação de condições que levaram à realização de reuniões municipais e estaduais, culminando com as conferências nacionais, que se firmaram enquanto instâncias preparatórias da produção do texto final do PNE. Nesses encontros, tomando-se por base a participação da sociedade, houve a “mobilização de diferentes setores e segmentos visando a efetivação de conferências com ampla e qualificada participação” (Dourado, 2017, p. 15). Uma reflexão possível sobre essa análise evidencia, assim, que, em meio às disputas em campos diferenciados, há também um grupo de agentes articulados e pertencentes a outros campos sociais, cuja presença nesses momentos decisórios de construção de uma política podem criar determinadas condições de acesso a uma educação de mais qualidade a todos os segmentos sociais.
Elaborado em vinte metas, o PNE apresenta os principais eixos que, norteados em estratégias, visam ao aprimoramento da educação nacional em todos os níveis de ensino. Preocupando-se em evidenciar algumas metas cujos objetivos estão centrados em questões que podem ser entendidas como transversais, na medida em que atravessam esses níveis de ensino, tangencia aspectos que - por sua natureza e/ou dinâmica - têm capilaridade no avanço das políticas relativas à educação básica, à alfabetização ou à educação de jovens e adultos (Coelho, 2016). Considerando especificamente a Meta 6 enquanto uma das que apresenta essa transversalidade, verifica-se que seu objetivo é “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos(as) alunos(as) da educação básica” (Lei n. 13.005, 2014).
Entende-se que a Meta 6 - a educação em tempo integral - define os programas da política educacional do Brasil voltados para a ampliação do tempo e a diversificação de oportunidades escolares, com o intuito de interferir na permanência e na conclusão da educação básica (Silva et al., 2021). Ao todo, a referida meta sintetiza-se em nove estratégias para o desenvolvimento de seu objetivo, sendo que duas delas - as estratégias 6.1 e 6.9 - tratam da difusão de uma concepção de educação em tempo integral que articula o tempo (ao menos 7 horas diárias) à diversificação de oportunidades escolares (acompanhamento pedagógico e multidisciplinares) e à ampliação progressiva da jornada docente em uma única escola (Lei n. 13.005, 2014). Esses aspectos possibilitam o entendimento de que essa ampliação proporciona uma formação mais ampla do estudante, tanto no que tange às atividades com as quais contará quanto no tocante às condições de trabalho do professor que permanecerá nessa instituição igualmente em tempo integral.
As estratégias 6.2 e 6.3 têm relação com o funcionamento da infraestrutura escolar, respectivamente, instituição e manutenção (no regime de colaboração) de programas de edificação de prédios escolares, com prioridade aos locais socialmente vulneráveis (Lei n. 13.005, 2014). Outras estratégias fomentam e estimulam a ação escolar na direção do compartilhamento de espaços educativos extraescolares (estratégias 6.4 e 6.5), inclusive orientando, por meio da estratégia 6.6, a aplicação da gratuidade que trata da “certificação das entidades beneficentes de assistência social” (Lei n. 13.005, 2014). Considerando o conjunto dessas cinco estratégias, infere-se - complementarmente às estratégias anteriormente citadas - que há uma previsão mais diversa do que o documento entende por “formação integral do estudante”, uma vez que se tem uma focalização definida em manutenção de equipamentos escolares, mas que priorizam determinadas populações, consideradas mais vulneráveis; nesse sentido, caminhando ao encontro do conceito de “proteção social” que adere à educação integral, na contemporaneidade.
O desenvolvimento de programas voltados para a educação em tempo integral nas modalidades da educação básica, indígena e quilombola está previsto na estratégia 6.7, a partir de consultas prévias e particularidades locais; bem como a educação especial, que também é contemplada com uma estratégia para o desenvolvimento desses programas (6.8), guardadas as especificidades legais (Lei n. 13.005, 2014).
Após esse panorama sobre as nove estratégias que compõem a Meta 6, reafirma-se que ela também é sujeita ao monitoramento, conforme previsão legal (art. 5º, § 2), a ser realizado pelo órgão específico do governo federal, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) (Lei n. 13.005, 2014), bianual- mente, processo que redundou em quatro relatórios de monitoramento das metas do PNE, divulgados em 2016, 2018, 2020 e 2022.
A próxima seção deste artigo tem o objetivo de realizar um diagnóstico que parta dos dados disponíveis, construindo uma análise compreensiva que problematize a Meta 6, nos indicadores de que se dispõe e nas inferências que se pode propor, a partir da realidade que se apresenta, ao longo do decênio que o PNE abarca.
CUMPRIMENTO DA META 6: UM DIAGNÓSTICO COMPREENSIVO
O levantamento realizado pelo Inep deve utilizar, de acordo com o PNE, as informações obtidas no Sistema de Avaliação da Educação Básica para produzir relatórios de monitoramento com indicadores bem abrangentes, referentes à qualidade da educação. São analisados dados como: o rendimento escolar, relativo ao desempenho dos estudantes apurado em exames nacionais de avaliação; os indicadores de avaliação institucional, estabelecidos a partir de características como o perfil do alunado e do corpo dos profissionais da educação; as relações entre as dimensões do corpo docente, do corpo técnico e do corpo discente; a infraestrutura das escolas; os recursos pedagógicos disponíveis; os processos da gestão. Esse trabalho resultou em quatro relatórios dos ciclos de monitoramento do PNE, ao longo dos últimos anos, e na constituição de um painel dos resultados do PNE, com a disponibilização de dados a partir dos indicadores definidos em cada meta.
Entre os resultados encontrados nesses relatórios, os dados do indicador 6a informam que, em 2021, 15,1% dos estudantes brasileiros estavam matriculados na educação básica, em programas voltados para a educação em tempo integral. Levando-se em conta o fato de que a meta prevista para esse indicador é de 25%, além de se perceber, 7 anos após a promulgação do PNE 2014-2024, a grande distância desse alcance, tem-se que, na série histórica, os dados também indicam uma variação negativa de 2,5 pontos percentuais quando comparamos 2014 com 2021, embora tenham sido observadas oscilações maiores ao longo do período (Figura 1), o que pode ser explicado considerando-se a descontinuidade, característica da política educacional brasileira (Saviani, 2008).
Outros dois eventos históricos também contribuíram, assim inferimos, para a explicação do resultado descrito anteriormente: um de natureza política, a saber, a aprovação da Emenda Constitucional n. 95, em 2016, pelo governo do presidente Michel Temer, que controlava o orçamento do governo federal, inclusive no concernente aos direitos sociais, como a educação; e a pandemia de covid-19 e a consequente suspensão das atividades escolares de forma presencial.
Fonte: Elaborada pela Diretoria de Estudos Educacionais (Dired)/Inep, com base em dados do Censo da Educação Básica (2014-2021).2
No que tange aos dados percentuais de matrículas de alunos por região do país (Figura 2), pode-se afirmar que seguem o desenvolvimento desigual de acesso, permanência e conclusão ao direito à educação (Araujo, 2011). No gráfico da Fi- gura 2, destaca-se a prevalência de matrículas nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste, bem como constata-se menor percentual de estudantes matriculados em programas de educação em tempo integral, sobretudo nas regiões Norte e Centro-Oeste.
Em estudo sobre as desigualdades de desempenho no âmbito da oferta do direito à educação no Brasil no final dos anos 1990, Castro (2000) já demonstrava diferenciações importantes entre as regiões do país, com maior proeminência, principalmente, das regiões Sul e Sudeste em relação às outras três, considerando séries históricas de: taxas de analfabetismo; matrículas em ensino fundamental, médio e superior; perfil docente; gasto por aluno; e resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
A educação em tempo integral segue a tendência à desigualdade, guardada uma exceção: o número relativamente maior de matrículas de estudantes na região Nordeste, inclusive em relação às regiões historicamente mais desenvolvidas economicamente, Sul e Sudeste. O que explica tal diferenciação? Ao que tudo indica, uma ação mais sistemática de governos estaduais e municipais (parte do Estado) em parceria com organizações da sociedade civil em relação ao indicador 6a.
Quanto à localização dos percentuais de matrícula de alunos em tempo integral na série histórica, verifica-se que, de 2014 a 2019, a proporção era maior na zona rural ou os números eram relativamente semelhantes. Somente em 2020 e 2021 os percentuais de alunos de educação em tempo integral passaram a ser maiores na zona urbana do que na rural (Figura 3). Campo e cidade têm demandas diferentes por escolarização, mas o que se verifica é que o aumento do tempo, sob ação de algum programa educacional, nessas localidades, está mais próximo de uma demanda por cidadania social e política do que de uma demanda alinhada aos processos produtivos e por inserção profissional, dada a intensificação da desigualdade social geral (Cury, 2002).
Especialmente no âmbito do ensino médio, é a rede federal de escolas que vem contribuindo para essa dinâmica de interiorização da educação em tempo integral.
Por dependência administrativa, verifica-se que o número relativo de matrículas de alunos em tempo integral nas instituições federais é mais significativo perante os números das dependências municipais e estaduais, uma consideração relevante, uma vez que as dependências federais concentradas na educação básica são muito mais reduzidas, numérica e geograficamente, do que suas congêneres estaduais e municipais (Figura 4). O que é diferente também entre as dependências administrativas e talvez explique a diferença de investimentos apontada é o maior poder da rede federal, em comparação aos estados e municípios, efeito da política de vinculação constitucional dos gastos públicos com educação e do próprio desequilíbrio fiscal do federalismo brasileiro (Pinto, 2018).
Os fundos de financiamento, como, nos anos 1990, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e, desde 2006, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que interferem no financiamento da educação em tempo integral (assim como em outros temas da política educacional), foram uma tentativa de correção das diferenças nos gastos públicos com educação. No entanto é importante entender que eles pouco acrescentaram em termos de novas receitas para a educação, pois foram, sim, mais responsáveis pela redistribuição das que já existiam, conforme assevera Davies (2006).
No que diz respeito às etapas da educação básica em relação aos dados de matrículas de estudantes em tempo integral (Figura 5), o que se verifica é uma tendência à manutenção na série histórica do número percentual (acima de 28%) de matrículas de estudantes em tempo integral na educação infantil. É provável que esse aspecto decorra da maior atenção (legal) destinada a essa etapa da educação básica, desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988; Lei n. 8.069, 1990). Acresce-se, ainda, o fato de órgãos de Estado, como o Ministério Público, passarem a exercer controle de forma mais sistemática em relação ao direito da criança à educação infantil (Feldman & Silveira, 2019).
No ensino fundamental, por outro lado, verifica-se uma queda do número relativo de matrículas de estudantes em tempo integral tanto nos anos iniciais como nos finais dessa etapa (de 21,2% e 15,9%, respectivamente, para 10,6% e 11,3%), embora no decorrer do período tenham sido observados momentos de crescimento. No ensino médio, contudo, observa-se um crescimento contínuo e constante das matrículas de estudantes em tempo integral na mesma série histórica.
Tal situação tem uma explicação que é próxima ao que já foi esclarecido sobre o declínio da curva na série histórica do indicador 6a: o fato de várias políticas públicas de educação em tempo integral que vêm sendo desenvolvidas em estados e municípios brasileiros se respaldarem em programas em curso na política educacional maior (do governo federal) e que determinam alterações no panorama educacional geral. Em específico:
A descontinuidade de programas no ensino fundamental, o que ocorreu em 2016, quando o Programa Mais Educação (Portaria Normativa Interminis- terial n. 17, 2007, seguida do Decreto n. 7.083, 2010) foi substituído pelo Programa Novo Mais Educação (Portaria MEC n. 1.144, 2016 e regido pela Resolução FNDE n. 17, 2017), por ocasião de mudanças no governo federal (Coelho et al., 2018).
O desenvolvimento do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI) em substituição ao Programa Ensino Médio Inovador (Portaria Interministerial n. 971, 2009), como parte das mudanças previstas na Lei n. 13.415/2017 (Silva & Vaz, 2021).
Passando ao indicador 6b, podemos observar pela Figura 6 que em 2021 apenas 22,4% dos estabelecimentos escolares (cuja meta é 50%) funcionam ao menos com 25% dos estudantes matriculados em programas voltados para a educação em tempo integral. Na série histórica, entretanto, embora tenham sido observadas oscilações maiores ao longo do período, quando comparamos 2014 com 2021 verificamos que houve uma variação negativa de 6,6%, ainda maior do que ocorreu com o primeiro indicador (6a).
Embora a série histórica mostre períodos sucessivos de crescimento e de queda, comparando-se 2021 com o ano de início do atual PNE, observamos que um número menor de estabelecimentos escolares desenvolveu programas voltados para a educação em tempo integral, o que representa um retrocesso em termos do desenvolvimento da política educacional geral e daquilo que diz respeito à educação em tempo integral. O que explicaria isso? A já citada descontinuidade da política educacional? Sim, sem dúvida, assim como a Emenda Constitucional n. 95, que controlou o orçamento do governo federal, e a pandemia de covid-19, que interrompeu as atividades escolares de forma presencial.
Considere-se, ainda, outro fator que deve ser percebido: a infraestrutura escolar, espaços, equipamentos e edificações que, nos últimos anos, têm representado um desafio para a política educacional no Brasil, em razão do financiamento insuficiente, mesmo sendo a infraestrutura reconhecida como uma variável fundamental para o bom desempenho escolar dos estudantes (Vasconcelos et al., 2021).
Percebe-se a manutenção da tendência à desigualdade nacional na oferta do direito à educação (Araujo, 2011) entre as regiões Norte-Nordeste e Sul-Sudeste e Centro-Oeste do país, uma vez que as primeiras apresentam os piores números relativos na série histórica de escolas com programas de educação em tempo integral em funcionamento com ao menos 25% dos estudantes matriculados. As regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste são as que têm os maiores números relativos de estabelecimentos escolares com programas em funcionamento (Figura 7).
A hipótese explicativa para esses dados tem relação com a menor capacidade administrativa das unidades federadas (estados e municípios) das regiões Norte e Nordeste na manutenção dos programas de educação em tempo integral nas escolas. Medeiros e Oliveira (2014, p. 580) chegam a afirmar, em seu estudo sobre desigualdades regionais em educação, que:
. . . sem a atuação de mecanismos capazes de reduzir radicalmente o peso da origem social na educação dos jovens não é de se esperar uma redução das desigualdades regionais em educação, bem como nas desigualdades internas de cada região. Há discussões sobre várias medidas possíveis para isso, tais como alongamento dos anos letivos e educação em tempo integral (duplo turno). Nossos resultados não permitem especular sobre quais devem ser essas medidas, porém é possível afirmar com segurança que, tal como se encontra hoje, o sistema educacional tem capacidades mínimas para reduzir a vinculação entre origem e destino em uma sociedade altamente estratificada.
No que se refere ao percentual de escolas por localização, observa-se que há maior concentração de programas em estabelecimentos escolares urbanos (29,4% em 2021) em relação aos rurais (11,4%), com grande diferença entre os números relativos ao longo da série histórica (Figura 8). O que poderia explicar essa diferença?
Em termos especulativos, a não adesão de escolas rurais pode ter mais relação com as demandas administrativas das instituições (como secretarias) e menos com as demandas por escolarização dos estudantes, o que também pode funcionar de forma oposta ou combinada nas zonas urbanas. Com isso, sugerimos que, apesar de envidados esforços de promoção da educação em tempo integral na política educacional, ela ainda é algo que depende significativamente da demanda dos sujeitos, e não de uma demanda didático-pedagógica das próprias escolas de uma unidade administrativa, o que reforça o entendimento de que, em muitas localizações, essas instituições cumprem uma função educativa, mas com forte viés assistencial, tendendo a ficar nas “franjas da filantropia” (Cavaliere, 2014).
Quanto ao número relativo de escolas com programas de educação em tempo integral por dependências administrativas (Figura 9), o quantitativo é significativo, assim como a curva crescente nas instituições federais (50,2% em 2021) de ensino, em relação aos estabelecimentos estaduais (16,1%) e municipais (23,9%), o que pode seguir a mesma explicação contida no indicador 6a, referente ao maior poderio de financiamento do governo federal associado a seu número menor de estabelecimentos na cobertura (Pinto, 2018).
Para finalizar este tópico, na relação dos estabelecimentos escolares com programas de educação em tempo integral por etapas da educação básica (Figura 10), a série histórica aponta para um crescimento contínuo e discreto ao longo do perío- do na educação infantil, o que já sugerimos ser, no indicador 6a, um efeito do movimento mais sistemático de reivindicação do direito à educação de maneira geral e da educação infantil de modo mais específico (Feldman & Silveira, 2019).
No ensino fundamental, embora tenham sido observados momentos de crescimento ao longo da série histórica, o saldo final foi uma variação negativa do número relativo nos anos iniciais (14,4% no período) e finais (15,0% no período) do ensino fundamental na série histórica, de modo semelhando ao ocorrido com o indicador 6a, o que também pode ser explicado pela mudança na amplitude dos programas de educação em tempo integral, conforme já apresentado (Coelho et al., 2018). No ensino médio, o panorama foi de crescimento contínuo, chegando a 20,6% em 2021, muito provavelmente, como também sugerido no indicador 6a, em razão da reforma do ensino médio, que contém um programa específico de fomento às escolas de tempo integral, conforme já citado neste artigo (Silva & Vaz, 2021).
Na sequência, após a exposição de diagnóstico referente ao monitoramento oficial e de explicações possíveis do cumprimento na Meta 6, apresenta-se uma possibilidade de monitoramento, considerando que outro plano nacional se encontra na pauta do dia.
REVISITANDO A META 6: UMA NOVA PROPOSTA DE MONITORAMENTO E DE AVALIAÇÃO DO PNE
As primeiras experiências de educação em tempo integral no Brasil remontam ao início do século XX, ou seja, não é um acontecimento recente (Cavaliere, 2009; Coelho, 2009). Entretanto, desde os anos 2000, elas têm entrado na agenda nacional, resultando em distintas políticas educacionais e abrangendo toda a educação básica. Junto a essas novas configurações, tem-se observado a constituição de um arcabouço normativo que serve de suporte e orientação às ações em curso (Silva et al., 2021).
Nesse movimento, que vem desde a Constituição Federal de 1988, consolida-se uma concepção de educação em tempo integral compreendida enquanto um processo ampliado, envolvendo diversas dimensões do trabalho formativo dos educandos - intelectual, física, emocional, cultural, política e social. Como ressaltou Miguel Arroyo (1988), o tempo de escola não deveria ser expandido apenas para que o estudante aprenda mais e melhor “do mesmo”, mas para que vivencie relações e situações mais abrangentes, indo além da mera instrução. Em outros termos, um aspecto importante a reforçar é que a educação em tempo integral deveria ser compreendida enquanto mais do que a mera ampliação do tempo na escola, ainda que esse seja um elemento relevante para a efetivação dessa concepção de educação, nesse espaço institucionalizado nas escolas públicas.
A análise dos marcos normativos vigentes no país relativos à educação em tempo integral indica que esse processo foi sendo construído gradualmente, nem sempre de forma linear, com a educação integral e o tempo integral sendo incorporados aos poucos nos textos legais. Com relação à extensão, primeiramente abrangeu apenas o ensino fundamental; em seguida ampliou-se, incluindo a educação infantil; e, por fim, o ensino médio. Atualmente, entende-se que abarca todas as etapas da educação básica (Silva et al., 2021).
A produção científica na área tem ressaltado outra dimensão relevante a ser observada nas experiências de educação em tempo integral, além do tempo e da extensão: a importância da centralidade da escola. A colaboração com outras instituições e agentes sociais é fator relevante para enriquecer o processo educativo, mas o investimento em projetos que valorizem mais o “aluno em tempo integral” do que uma “escola integral em tempo integral” corre o risco de resultar em uma educação fragmentada, com um projeto pedagógico pouco coeso e desarticulado, precarizando ainda mais a educação (Cavaliere, 2009).
Para acompanhar e avaliar como esses avanços relativos à educação em tempo integral têm se traduzido em ações e resultados, o PNE de 2014, com periodicidade decenal, traz em seu texto legal a exigência de um monitoramento realizado pelo Inep das metas, estratégias e prazos estabelecidos, conforme informado nas seções anteriores.
Com o objetivo de contribuir com o monitoramento e avaliação da Meta 6 do PNE, de acordo com as políticas e experiências em curso no país, recorremos à produção científica internacional e às metodologias criadas para acompanhar as experiências de educação em tempo integral a partir de indicadores que possam qualificá-la da melhor maneira possível.
De modo semelhante ao que ocorreu no Brasil, a Alemanha, em 2003, criou um programa federal para implementar escolas de tempo integral; dez anos depois, 50% de suas escolas funcionavam dessa forma. Contudo essa mudança não se restringiu a metas quantitativas relativas à ampliação do tempo escolar; também se exigia uma reorganização do planejamento e do trabalho pedagógico da escola, implicando uma mudança organizacional. Ou seja, compreende-se que é preciso promover uma mudança qualitativa da escola e pensar em como avaliá-la nessa dimensão, entre outras.
Para monitorar o processo de desenvolvimento de escolas de tempo integral, estabeleceu-se o Studie zur Entwicklung von Ganztagsschulen (StEG) [Estudo sobre o desenvolvimento de escolas em tempo integral], que, desde 2005, tem a função de acompanhar a implementação daquelas ações no país. Entretanto, diante dos resultados obtidos nos primeiros relatórios de monitoramento, percebeu-se a necessidade de aperfeiçoar o modo como realizavam tal acompanhamento, ampliando o conjunto de indicadores para que abrangesse, de forma mais detalhada, questões organizacionais e pedagógicas da escola.
Atualmente, o modelo de Holtappels (2005) é usado para aferir a qualidade da educação em tempo integral na Alemanha. Ele serve para monitorar as escolas (Kamski et al., 2013), em conjunto com a matriz de indicadores desenvolvida por Holtappels et al. (2009), em que se propõem diversas características que deveriam compor a avaliação dessas ações.
O modelo de aferição da qualidade elaborado por Holtappels (2005) propõe avaliar a escola em duas dimensões básicas: a organizacional e a pedagógica. Ao detalhar a primeira dimensão, estabelece um conjunto de seis características relevantes, em termos organizacionais:
Gestão de pessoas (p. ex., horário de professores, equipe gestora, integração de atores colaboradores);
Abertura da escola para o entorno (p. ex., estabelecimento de parcerias diversas);
Participação de estudantes e responsáveis nas tomadas de decisão (p. ex., constituição de espaços democráticos);
Configuração de espaços adequados para as múltiplas atividades desenvolvidas (p. ex., investimento em infraestrutura, equipamentos escolares e não escolares);
Fornecimento de refeições na escola;
Organização do novo tempo e ritmo escolares.
O tempo faz parte da avaliação da dimensão organizacional das escolas em tempo integral, mas é apenas uma de outras características relevantes que compõem e caracterizam esse tipo de escola e proposta educativa (Kamski & Schmitz, 2018).
Na dimensão pedagógica, o modelo de Holtappels (2005) identifica outras seis características (Kamski & Schmitz, 2018):
Acompanhamento pedagógico individual do estudante;
Desenvolvimento de atividades lúdicas e de lazer;
Diversificação das oportunidades de aprendizagens, de acordo com o interesse dos estudantes;
Articulação da escola com a realidade do mundo externo a ela;
Uma nova cultura de aprendizagem, com novos arranjos pedagógicos e metodológicos;
Aprendizagem social comunitária, de modo a fortalecer as interações e laços sociais.
Esse modelo de qualidade elaborado por Holtappels (2005) foi posteriormente aperfeiçoado e traduzido em uma matriz de indicadores, criada a partir da articulação das dimensões organizacionais e pedagógicas apresentadas. A matriz de indicadores desenvolvida por Holtappels et al. (2009), a partir das diversas experiências e pesquisas realizadas na área, foi organizada em três fases: qualidade do sistema/estrutura; qualidade da configuração e dos processos; e qualidade dos resultados. Em cada fase, estabeleceram-se dimensões da qualidade e suas características e critérios, que abrangem um conjunto de indicadores.
Essa matriz permite uma flexibilidade no uso de indicadores, de acordo com cada situação ou objetivo, e reúne ao todo 53 indicadores “referentes à dimensão da qualidade do sistema e da estrutura, 230 referentes à dimensão da qualidade do processo e 55 ligados à dimensão da qualidade dos resultados” (Kamski & Schmitz, 2018, p. 11). É um sistema de monitoramento e de avaliação razoavelmente complexo e abrangente, que vem funcionando há mais de 10 anos. Ao aperfeiçoarem ao longo dos anos seu mecanismo de acompanhamento e avaliação da educação em tempo integral, os pesquisadores alemães criaram uma sistemática de monitoramento que permite olhar distintas dimensões da escola de tempo integral no país, de modo a aferir sua qualidade.
No Brasil, com o processo de revisão do PNE 2014-2024 e de elaboração de um novo PNE, parece ser pertinente refletir sobre como poderíamos avançar em direção a um monitoramento mais qualitativo das ações da Meta 6 e das diversas experiências de educação em tempo integral em curso no país.
Com base nos estudos e pesquisas realizados na área (Silva et al., 2021), nas orientações do PNE 2014 (Meta 6) e nos dados estatísticos disponíveis no país, oriundos do Censo Escolar e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, propõe-se a construção de um quadro de dimensões, categorias e indicadores que possam ser utilizados para monitorar e avaliar a qualidade da educação em tempo integral, para além da dimensão do tempo quantitativo.
Para a elaboração de uma matriz de indicadores, foram consideradas três dimensões da educação integral a serem monitoradas na educação básica regu- lar: dimensão da organização escolar; dimensão de recursos e infraestrutura; e dimensão das práticas pedagógicas da escola.
A primeira dimensão, relativa à organização da escola, abrange um conjunto de seis categorias: a) atendimento escolar; b) equipe de profissionais da escola; c) momentos de planejamento; d) participação na tomada de decisões na escola; e) valorização profissional; e f) participação externa e envolvimento da comunidade do entorno na escola. Cada categoria se desdobra em indicadores, entre os disponíveis no momento do levantamento nos dados oficiais. A categoria atendimento escolar, por exemplo, é composta pelas taxas de matrícula dos estudantes em tempo integral e pelo número de escolas em tempo integral, estas subdivididas em três tipos: escolas com até 20% de estudantes em tempo integral; escolas com 20% a 70% de estudantes em tempo integral; e escolas com mais 70% de estudantes em tempo integral. A participação na tomada de decisões abrangerá a participação em conselhos escolares, no projeto político-pedagógico, na existência de grêmios escolares, entre outros.
Na segunda dimensão, que envolve os recursos e infraestrutura disponíveis na escola, são estabelecidas duas categorias: equipamentos disponíveis na escola, por exemplo, biblioteca, sala de leitura, quadra de esportes, laboratórios em geral, como os de informática e de ciências, auditório, sala de música, artes plásticas, acesso à internet; e valorização docente, aferida por meio de indicadores como contrato de trabalho e formações continuadas ofertadas.
Por fim, a terceira dimensão se refere às práticas pedagógicas adotadas na escola, de modo a compreender como o currículo se materializa em uma escola de educação em tempo integral. Para avaliar seu desenvolvimento, foram estabelecidas quatro categorias:
Realização de ações complementares às disciplinas tradicionais, com atividades lúdicas e de lazer;
Realização de ações de acompanhamento dos estudantes, com atividades como o reforço escolar;
Desenvolvimento de atividades comunitárias que envolvam aprendizagens éticas, sociais e políticas;
Atividades de inclusão de estudantes com necessidades especiais, indígenas, do campo, quilombolas e em situações de vulnerabilidade social.
Todas as categorias propostas dentro das três dimensões da qualidade da educação em tempo integral têm indicadores já disponíveis nos dados coletados pelo Inep no Censo Escolar e no questionário contextual do Saeb (professor, diretor de escola e secretários de educação) (Silva et al., 2021).
A existência dessas informações estatísticas possibilita que, desde já, seja possível materializar a formulação de um novo PNE que incorpore, na Meta 6, a perspectiva de avaliar a qualidade da educação em tempo integral. A Tabela 1 projeta uma síntese para tal monitoramento.
DIMENSÃO | CATEGORIAS | INDICADOR* | FONTE |
---|---|---|---|
Organização escolar | Equipe de profissionais | Diretores e professores em tempo integral | Questionário contextual Saeb - diretor e professor (questões 13 e 18) |
Participação na tomada de decisões | Participação no conselho escolar, grêmio, projeto político-pedagógico, forma de escolha do diretor, consultas em geral | Questionário contextual Saeb - diretor e professor (questões 14, 29, 30, 32, 51, 53 a 58) | |
Valorização profissional | Formação continuada | Questionário contextual Saeb - diretor e professor (questões 19, 21 a 24, 26, 27) | |
Participação externa e da comunidade | Envolvimento da comunidade externa na escola | Questionário contextual Saeb - diretor (questões 53 a 55) | |
Atendimento escolar | Taxa de estudantes matriculados em tempo integral (7h ou mais) | Censo Escolar | |
Estabelecimentos com tempo integral embrionário (5% a 20%) | Censo Escolar | ||
Estabelecimentos com tempo integral em desenvolvimento (20% a 50%, 50% a 70%) | Censo Escolar | ||
Estabelecimentos com tempo integral consolidado (acima de 70%) | Censo Escolar | ||
Recursos e infraestrutura | Equipamentos disponíveis na escola | Equipamentos eletrônicos | Questionário contextual Saeb - escola (questões 37, 39, 41 a 47, 49 a 52, 54 a 56) |
Acesso à internet | Questionário contextual Saeb - escola (questões 38, 40, 53) | ||
Existência de biblioteca, sala de leitura, quadra de esportes, laboratório de informática e de ciências, auditório, sala para atividades de música, de artes, brinquedoteca, espaço para estudos coletivos, pessoa responsável na biblioteca ou sala de leitura | Questionário contextual Saeb - escola (questões 57 a 64, 66, 67, 71) | ||
Valorização docente | Contrato de trabalho e formação continuada | Questionário contextual Saeb - diretor e professor (questões 16, 19, 21 a 24, 26 a 28) | |
DIMENSÃO | CATEGORIAS | INDICADOR* | FONTE |
Práticas pedagógicas | Atividades complementares | Atividades lúdicas e de lazer | Questionário contextual Saeb - diretor (questões 50 e 51) |
Acompanhamento de estudantes | Reforço escolar | Questionário contextual Saeb - diretor (questão 43) | |
Atividades comunitárias | Atividades que envolvam aprendizagens éticas, sociais, políticas | Questionário contextual Saeb - diretor (questões 53, 100 a 108) | |
Inclusão | Preocupações com a inclusão de estudantes com deficiência | Questionário contextual Saeb - diretor (questões 37, 41 a 43) |
Fonte: Elaborada pelos autores com base em Silva et al. (2021).
* Todas as informações estão disponíveis por dependência administrativa, regiões, estados, municípios.
O tempo (quantitativo) também é incorporado como uma categoria relevante, integrando os indicadores da meta, mas seria compreendido como uma entre as outras categorias que avaliam a dimensão organizacional da escola. Além disso, os indicadores que compõem cada categoria nas dimensões da educação em tempo integral podem ser ampliados e ressignificados à medida que o levantamento de dados também se torne mais detalhado e preciso, na direção de critérios mais qualitativos para a educação escolar pública.
Nesse movimento, uma revisão e maior detalhamento dos atuais indicadores da Meta 6 também são necessários, especialmente diante dos resultados apresentados nos últimos 10 anos. Em relação à Meta 6a, por exemplo, para ser fiel às orientações normativas da área e ao detalhamento das estratégias presentes no PNE, o objetivo de alcançar 25% dos estudantes em tempo integral nas escolas deveria ser estendido para cada uma das etapas da educação básica e dentro destas. Ou seja, o indicador da Meta 6a se desdobraria em um indicador para a educação infantil e, dentro dela, um para a creche e outro para a pré-escola. O mesmo para as etapas do ensino fundamental - dividido em anos iniciais e anos finais - e ensino médio.
No caso do indicador 6b, cuja meta é 50% das escolas do país funcionando em tempo integral no decênio do PNE (2014-2024), são consideradas as escolas com mais de 70% dos seus estudantes em tempo integral, uma vez que as escolas com menores números relativos de estudantes geralmente são organizadas em turno e contraturno e têm mais dificuldade em realizar um projeto coeso e articulado, definindo espaço e tempo adequados à perspectiva da educação em tempo integral (Cavaliere, 2009). Essa é uma proposta diferente da que ocorre atualmente, uma vez que, desde o 2º relatório do ciclo de monitoramento do PNE, as análises estatísticas passaram a considerar no indicador 6b os estabelecimentos com mais de 25% de estudantes em tempo integral, o que representa um avanço em relação ao que foi feito no 1º relatório do ciclo de monitoramento, mas ainda assim são escolas que funcionam em tempo parcial, para 75% dos estudantes matriculados.
A seguir, apresentam-se nossas considerações sobre o que foi elaborado neste artigo, como forma de sistematizar as reflexões e análises trazidas à discussão.
CONSIDERAÇÕES (NUNCA) FINAIS
O objetivo deste artigo foi analisar de forma compreensiva os dados disponíveis sobre a Meta 6 do PNE (Lei n. 13.005, 2014), que diz respeito à educação em tempo integral, e propor um arrazoado de indicadores que demonstre qualitativamente as necessidades mais fundamentais para que programas dessa natureza sejam desenvolvidos nas escolas públicas brasileiras. Consideramos em nossa análise e proposição o enfoque das epistemologias da política educacional (Mainardes, 2017), tendo em vista uma perspectiva pluralista, um posicionamento crítico-analítico e o aspecto crítico-normativo (Tello & Mainardes, 2015; Stremel, 2014).
O cerne da primeira seção foi a apresentação e problematização das disputas, no âmbito do Estado, em sua interseção com outros campos sociais (Bourdieu, 2021). Trouxemos ao debate as contradições, os limites e as potencialidades do PNE 2014- -2024, com enfoque na Meta 6. Nesse caminhar, ao constituir um panorama das nove estratégias que a (con)formam, enfatizaram-se veredas cuja finalidade foi a de, mais uma vez, reforçar tais disputas - tendo em vista a relevância que elas carregam.
Na sequência foram analisados, de forma compreensiva, os dados disponíveis sobre a Meta 6, com a realização de digressões de natureza técnica e teórica. Nos gráficos do indicador 6a, foram consideradas as matrículas de estudantes em tempo integral e, nos gráficos do indicador 6b, consideraram-se as instituições com estudantes matriculados em programas de educação em tempo integral.
A análise desse conjunto de dados indicou, na segunda seção deste artigo, que os indicadores da Meta 6 têm, até o momento, se focado no levantamento de dados (quantitativos) relativos às matrículas dos estudantes e aos estabelecimentos escolares com jornada ampliada. Observou-se que os dois indicadores (6a e 6b) não estão perto dos percentuais previstos no PNE, em razão, principalmente, do histórico movimento pendular da política educacional brasileira e de intervenientes econômicos e naturais (pandemia de covid-19). Também foi apresentado que, considerando as regiões geográficas do país, os dois indicadores apontam para a continuidade da tendência à desigualdade entre as regiões mais e menos desenvolvidas economicamente, a não ser por particularidades nas ações das unidades da federação. Por localização, verificou-se que as zonas urbanas concentram as matrículas de estudantes (6a) e estabelecimentos (6b) em tempo integral em relação às zonas rurais; o que não muda entre elas são as demandas por escolarização advindas mais dos sujeitos, em razão da desigualdade social, do que dos estabelecimentos escolares e seus projetos político-pedagógicos. A rede federal de ensino é a principal dependência administrativa em atuação no que diz respeito aos indicadores 6a e 6b, o que pode ser explicado por sua pujança econômica em relação às redes municipais e estaduais. Por fim, foi possível observar que as etapas da educação básica - educação infantil, ensino fundamental e médio -, na relação com os indicadores 6a e 6b, são sujeitas às características da política educacional.
Nesse sentido, dimensões como práticas pedagógicas, gestão democrática, infraestrutura, organização institucional e desenho curricular não são avaliadas, ainda que sejam parte das estratégias que compõem a Meta 6. Diante das limitações que se estabelecem no entendimento dos sentidos atribuídos à educação em tempo integral, na última seção, considerando dados já disponíveis na área educacional, foi proposta uma matriz de monitoramento da Meta 6, trazendo um conjunto de indicadores mais elaborados e detalhados para avaliar a educação em tempo integral em termos de sua qualidade, para além da mera ampliação do tempo na escola.
A ideia é que, na construção do novo PNE, em especial no que se refere à educação em tempo integral, tenhamos informações que contribuam para a superação das desigualdades escolares, da “crise” que Darcy Ribeiro (1979) - um intelectual identificado com a educação em tempo integral - afirmou existir em um simpósio sobre ensino público, na 29ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1977: “A crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso cujos frutos amanhã falarão por si mesmos”.