A história da literatura é também uma história de ausências. O apagamento de determinados nomes e a difusão entusiasmada de outros, conduz, com frequência, a uma noção enviesada e equivocada sobre o que de fato constitui a história da literatura de um determinado país. Na Irlanda, o cânone literário sempre foi majoritariamente masculino, como em muitos outros países. É justamente com a intenção de abalar o cânone literário irlandês que recentemente foi publicada a coletânea de artigos intitulada A History of Modern Irish Women’s Literature, editada por Heather Ingman, pesquisadora visitante no Centro de Estudos de Mulheres e Gênero na Trinity College Dublin, e Clíona Ó Gallchoir, professora no Departamento de Inglês da University College Cork.
A edição, inédita dentro da proposta de apresentar uma visão abrangente da produção literária e cultural de escritoras irlandesas, parte do século XVII, apresentando as poetas de língua irlandesa dos anos 1600, passa pelo movimento “New Woman” do final do anos 1800 e início do 1900, dá atenção especial à produção literária de escritoras como Elizabeth Bowen, Kete O’Brien e Edna O’Brien, até chegar à escrita do período conhecido como o Tigre Celta (the Celtic Tiger), caracterizado por um rápido crescimento econômico.
Na introdução, as editoras comentam que, por um lado, essa obra chegou no momento certo, uma vez que existem pesquisas consolidadas e há muitas pesquisadoras e pesquisadores que investigam o tema da escrita de mulheres em todos os períodos abordados, mas, por outro, está atrasada em relação ao desenvolvimento da crítica literária e a história literária feministas em outros países. Ao longo da introdução, as editoras reconhecem e citam diversas antologias que começaram a ser publicadas nos anos 1990, na tentativa de lutar contra o apagamento da escrita literária de mulheres irlandesas. Salientam ainda que, com a publicação dessa obra, ao invés de encerrar o debate, a ideia é de fomentar a discussão sobre a escrita de mulheres irlandesas, cuja riqueza e diversidade merece ser explorada ainda mais em pesquisas futuras.
A edição é composta por vinte e dois capítulos. No primeiro deles, “Writing before 1700”, Marie-Louise Coolahan destaca os diferentes contextos e propósitos da escrita de mulheres em diferentes comunidades linguísticas e religiosas. As mulheres escreviam em irlandês, inglês e latim, tanto para fins pessoais quanto para fins comuns. Entre as formas de escrita destacavam-se: poemas baseados em fontes orais, narrativas autobiográficas, documentos oficiais, textos religiosos, correspondências, entre outras produções. No capítulo seguinte, “Eighteenth-Century Writing”, ao contextualizar o período, Clíona Ó Gallchoir aponta para o gradual desenvolvimento da consciência patriótica entre os anglo-irlandeses na Irlanda, fator que, segundo ela, favoreceu não apenas a escrita de mulheres, mas também a publicação de suas obras. Menciona também que a escrita nesse período tinha diversas funções para as mulheres, entre as quais a de ser uma maneira de estabelecer redes políticas e sociais, um meio de independência financeira, uma contribuição ativa para o desenvolvimento pessoal etc.
Em “Writing Under de Union, 1800-1845”, James Kelly demonstra que a participação das mulheres no cenário literário cresceu e se desenvolveu nesse período. A produção literária de escritoras como Maria Edgeworth, Sydney Owenson, entre outras, conseguiu articular as relações entre a influência feminina, identidade nacional e envolvimento político, e finalmente deu projeção à voz pública das mulheres. Matthew Campbell, em “Poetry, 1845-1891”, registra a existência de um vasto corpus de poemas escrito por mulheres nesse período, inclusive menciona a produção de Kelly Parnell, irmã do famoso político Charles Stewart Parnell. No entanto, esse corpus desaparece do cânone literário, e o autor do capítulo aponta esse acontecimento como sendo decorrente da temática escolhida, que estava relacionada às mortes no período da Grande Fome e às tristezas do exílio, que as gerações seguintes provavelmente passaram a não dar a mesma importância.
No quinto capítulo, “Fiction, 1845-1900”, James H. Murphy comenta sobre a escrita de mulheres na era vitoriana e salienta que as escritoras desse período, em sua maioria pertencentes à Ascendência Anglo-irlandesa (Anglo-Irish Ascendency), tornaram a questão de gênero um tema explícito em suas obras. Após citar diversas escritoras e comentar sobre suas obras, Murphy escreve que a ficção escrita por mulheres nesse período trouxe a possibilidade de uma alternativa feminista para os grandes imperativos patriarcais que viriam a dominar o Renascimento Irlandês. No capítulo posterior, “New Woman Writers”, Tina O’Toole descreve o movimento “New Woman” como sendo responsável por subverter normas sociais que determinavam os lugares reservados para homens e mulheres em relação à classe, gênero e nacionalidade. Diversas escritoras são mencionadas. O’Toole destaca especialmente Sarah Grand, como sendo uma figura crucial para “the feminist history of ideas” (Tina O’TOOLE, 2018, p. 114). No entanto, como essas escritoras buscavam temas e modelos fora da Irlanda, suas produções ficaram de fora do cânone por não serem consideradas suficientemente irlandeses. Mesmo quando o são, a exclusão ainda acorre, como no caso da antologia em três volumes The field Day Anthology of Irish Writing, publicada em 1991, fortemente criticada pela escandalosa exclusão quase que completa de escritoras. Para tentar reparar o apagamento, onze anos mais tarde foram lançados mais dois volumes, o quarto e o quinto da coleção, trazendo apenas escritoras.
Paige Reynolds, em “Poetry, Drama and Prose, 1891-1920”, discorre sobre o desserviço operado pelo Renascimento Irlandês, que negligenciou a escrita de muitas mulheres ao deixá-las de fora do cânone. No entanto, aquelas que incluíam temas consonantes com os objetivos da proposta do período, ou seja, buscavam seus temas no folclore irlandês, por exemplo, tinham um pouco mais de espaço. Reynolds destaca a produção na poesia, citando nomes como Katherine Tynan, Eva Gore-Booth, Dora Sierson Shorter, entre muitas outras; no drama, citando outra vez Eva Gore Booth, que também escreveu nesse gênero, Alice Milligan, Maud Gonne, muito vezes apenas lembrada por ter sido a musa de Yeats; na prosa, nomes como Eleanor Hull, Rosa Mulholland, Jane Barlow e muitas outras. No oitavo capítulo, intitulado “Writing for Children”, Valerie Goghlan escreve sobre o significativo número de mulheres escrevendo literatura infantil desde 1794, e lembra que a história da literatura infantil irlandesa escrita por mulheres é indissociável da história da Irlanda enquanto colônia britânica, com suas implicações políticos, sociais e culturais. A passagem do século XVIII para o século XIX foi marcada por uma transição temática na literatura infantil, que deixa de ser majoritariamente focada no entretenimento e passa a inserir temas como nacionalismo cultural, ou seja, um nacionalismo que buscava seu fortalecimento por via da cultura. Assim, através do imaginário de um passado heroico forjado pelo Renascimento Literário Irlandês, a literatura infantil irlandesa passa a recontar mitos, lendas e histórias tradicionais, como se pode constatar nas obras de Ella Young (1865-1956) e Augusta Gregory (1852-1932). A autora frisa ainda a qualidade da escrita e a relevância dos temas abordados. No capítulo seguinte, “Poetry, 1920-1970”, Lucy Collins explora a obra de cinco poetas: Mary Devenport O’Neill (1879-1969), Blanaid Salkeld (1880-1959), Sheila Wingfield (1906-1992), Freda Laughton (1907- ?) e Rhoda Coghill (1903-2000), destacando não só o que foi alcançado em termos literários, mas também os desafios enfrentados, uma vez que o ambiente era dominado por homens. Em seu estudo, Collins aponta que nas gerações seguintes essas mulheres foram apagadas das antologias, geralmente feitas para e pelos homens.
Em “Fiction, 1922-1960”, Gerardine Meaney argumenta que a ficção escrita por mulheres nesse período se concentra fortemente nos temas sexualidade, gênero e nacionalidade, e que tanto a crítica feminista da década de 1970 quanto a do período atual as negligenciaram. Outra importante questão discutida no texto diz respeito à dificuldade de publicação, o que fazia com que muitas dessas escritoras tivessem que escrever e publicar fora da Irlanda. Os três capítulos subsequentes são dedicados, respectivamente, à escrita literária de Elizabeth Bowen, Kane O’Brien e Edna O’Brien. No caso de Elizabeth Bowen, como argumenta Patricia Coughlan, as categorias gênero, classe, etnicidade e geografia se combinaram para marginalizar, até a década de 1980, umas das escritoras mais importantes do século XX. Kate O’Brien foi outra escritora marginalizada, segundo Eibhear Walshe, por conta de sua sexualidade. Sinéad Mooney aponta que um preconceito similar foi sofrido por Edna O’Brien até pouco tempo atrás. No capítulo “Fiction 1960-1995”, Anne Fogarty argumenta que a constante preocupação das escritoras desse período era encontrar uma maneira de articular e combater o mal-estar provocado pela falta de poder sobre o próprio corpo e por tantas ‘outras diversas formas de abuso. A autora discute ainda temas como o despertar político e sexual nos romances feministas escritos no período de 1980 a 1995, entre outros. Em “The Short Story”, Heather Ingman investiga os motivos para que os contos escritos por mulheres tenham sido negligenciados até recentemente, não obstante a indiscutível qualidade da escrita feminina nesse gênero desde o início. Ingman discute a obra de diversas escritoras, passando pela obra de Maria Edgeworth e Claire Keegan, e questiona se a maneira como vemos o conto irlandês seria a mesma caso a obra de escritoras e escritores fosse tratada da mesma maneira.
No capítulo seguinte, “Poetry, 1970 - Present”, Patricia Boyle Haberstroh inicia sua discussão apontando a importância da criação de editoras feministas como Arlen House, Attic e Salmon, bem como a inclusão gradual de poetas mulheres nas listas de diversas editoras consagradas. Outro fator importante para a visibilidade da produção poética feminina, como comenta Haberstroh, foi através de antologias e da crítica. No capítulo “Women’s Tradition in Theatre, 1920-2015”, Cathy Leeney percorre quase cem anos da história do teatro irlandês, analisando seus vários modos de existência, partindo de peças escritas por mulheres desde 1920 até peças atuais, como as escritas por Marina Carr, uma das dramaturgas irlandesas mais consagradas da atualidade. Ríona Nic Congáil e Máirin Nic Eoin, em “‘Writing in Irish’, 1900-2013”, apresentam um panorama da literatura escrita em língua irlandesa nesse período, partindo do pioneirismo de duas figuras centrais para o desenvolvimento da literatura de língua irlandesa: Úna Ní Fhaircheallaigh (1874-1951) e Máire Ní Chinnéide (1878-1967), passando pela produção literária em todos os gêneros nesse mais de um século, até chegar a poetas e romancistas da atualidade, como Dairena Ní Chinnéide, Colette Nic Aodha, Caeití Ní Bheildiúin, Aifric Mac Aodha, Caitriona Ní Chléirchín, Nuala Ní Dhomhnail, apenas para citar algumas. No capítulo “Fiction from Northern Ireland, 1921-2015”, Caroline Magennis argumenta que do passado ao presente, as romancistas da Irlanda do Norte fizeram uso de sua ficção para tratar da mutabilidade da sociedade na qual estão inseridas. A autora dedica uma seção à separação da Irlanda, que ocorreu oficialmente com a assinatura do tratado anglo-irlandês em 1921, após um período de guerra civil iniciado em 1919, e apresenta as escritoras que escreveram sobre esse período conturbado. Em seguida, trata da literatura escrita por mulheres no período do “The Troubles”, no final dos anos 1960, apresentando a obra de diversas escritoras, como Linda Anderson, Mary Costello, Mary Beckett, Deirdre Madden, Anna Burns, entre outras; até chegar ao século XXI com escritoras como Anne Barnett, Sharon Owens, Lucy Caldwell, Michèle Forbes, Bethany Dawson, entre outras.
No vigésimo capítulo, “Life Writing and Personal Testimony, 1970-Present”, Anne Mulhall discute sobre o crescimento da escrita de si (life writing) e o testemunho pessoal a partir dos anos 1970, no qual as mulheres falavam de suas experiências em orfanatos, como membros da comunidade viajante (Travelling community), emigrantes, mães solteiras, prostitutas e integrantes das comunidades LGBTQ; bem como salienta o poder dessas diversas vozes para evitar a construção de uma imagem única da mulher irlandesa. No capítulo seguinte, “Diasporic and Transnational Writing, 1950-Present”, Ellen McWilliams contextualiza a escrita diaspórica e transnacional, além de escrever sobre o silêncio histórico sobre a emigração irlandesa e as vidas das mulheres emigrantes. Muitas autoras que discorrem sobre a temática da diáspora são trazidas para a discussão, entre elas, Edna O’Brien e Anne Enright. Em “Celtic Tiger Fiction”, Susan Cahill enfatiza a importância de se prestar atenção na produção de escritoras desse período para ter um entendimento diferente da era do Tigre Celta, uma vez que muitas escritoras questionavam a narrativa do progresso irlandês - perspectiva corrente na época -, posto que exploravam outros temas considerados por elas urgentes a serem discutidos, como a questão do aborto, do abuso infantil, do infanticídio, da ecologia, do racismo e de famílias disfuncionais. Comenta ainda sobre o sucesso da Chick Lit e dos romances policias nesse período e finaliza a seção trazendo muitos nomes importantes da produção literária atual.
As diversas contribuições que integram o volume contribuem para questionar o cânone literário irlandês estabelecido, reivindicando um espaço que foi - e tem sido historicamente - negado às mulheres. A reescrita da história da literatura irlandesa através dessa obra é de um valor inestimável, trazendo inclusive uma miríade de possibilidade de novas pesquisas. A relevância de uma obra como essa não se restringe apenas ao público irlandês, mas também é fundamental para alargar o campo de pesquisa dos estudos irlandeses em diversos países, incluindo no Brasil, onde muitas pesquisas têm sido desenvolvidas nessa área.