Destrinchar a ficção brasileira contemporânea escrita por mulheres é testemunhar, a partir da perspectiva arqueogenealógica (à luz das ideias de Michel Foucault) e do horizonte do pensamento crítico feminista (proveniente desde meados dos anos 1970), a problematização dos discursos de gênero, de corpo e de sexualidade. Recorrer às considerações propostas por Foucault é pressupor que os seres humanos são subjetivados a partir do processo mediado por dispositivos, em que o jogo de poder é indissociável do campo do saber (Michel FOUCAULT, 2016; 2017). Problematizar os discursos de gênero - trazendo gênero, aqui, a partir de Judith Butler (2018; 2019) e de Linda Nicholson (2000) - é verificar as relações que estes estabelecem dentro do dispositivo da sexualidade, agenciando os sujeitos (FOUCAULT, 2017).
Lúcia Zolin (2017) sublinha que a teoria feminista lê a literatura escrita por mulheres sob dois vieses: primeiro, para desconstruir discursos que atravessam opressões e discriminações direcionados às mulheres; e, segundo, para despir mecanismos de estética e de temática utilizados pelas práticas literárias de autoria feminina, as quais se destinam a representar o feminino em sua forma múltipla e heterogênea na contemporaneidade, e não pela sua redução a dicotomias de papéis de gênero já firmados socialmente.
As vozes das mulheres passam a exercer, na literatura brasileira escrita por mulheres, uma conduta subversiva de afastar-se do silenciamento deslocando-se para um ecoo de práticas de resistência. “Existindo antes dos livros feitos pelos homens, as suas histórias permitem-nos ouvir a voz do silêncio” (Susan GUBAR, 2002, p. 120, grifos da autora). Demonstrando o quanto essa voz se tornou o “seu amuleto” (Daniela STOLL, 2018, p. 163, grifos meus), em seu primeiro romance lançado, Do lado de dentro do mar, Daniela Schrickte Stoll, ainda que sob uma narração onisciente, fez aflorar três vozes femininas protagonistas, Sílvia, Margarete e Joaquina. A autora evidencia, através dessas três trajetórias que se cruzam, a multiplicidade de identidades, de experiências e de imagens de mulheres que vão além daquelas enquadradas no modelo normativo de “ser mulher”.
Daniela Stoll é mestra (2017) e doutoranda em Literatura no Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e é graduanda, desde 2018, em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas, na mesma universidade. Integra o Núcleo Literatual (Núcleo de Literatura Atual - Estudos Feministas e Pós-Coloniais de Narrativas da Contemporaneidade) e é pesquisadora da linha de pesquisa Crítica Literária Feminista e dos Estudos de Gênero. Em Do lado de dentro do mar, faz da ficção campo profícuo para alinhavar reflexões que permeiam as práticas sociais das mulheres, dentre tantas outras, das relações de gênero/subjetividades e de poder/resistência.
As três protagonistas e a heterogeneidade delas encontraram-se a partir de suas relações diretas (e indiretas) com o personagem André. Com a certeza de que precisava se separar de André, Sílvia se via presa a seu casamento, pois o companheiro implorava que protelasse esse fim, utilizando-se da saúde de sua mãe, Margarete, que sofria há anos de artrose nos joelhos. Alegando precisar da ajuda de Sílvia, André acomodou a mãe no quarto de hóspedes do apartamento do casal. Seguindo prescrições médicas, além do repouso, a mãe de André precisava fazer fisioterapia. Joaquina, fisioterapeuta recém-formada, tornou-se um suspiro, nas terças e quintas, não só para Margarete nas sessões que aliviavam seus joelhos, mas também para Sílvia.
Joaquina se tornou peça fundamental para que Sílvia e a sogra derrubassem os muros que André construiu entre elas. Essa tríade de mulheres passou a sentir, cada vez mais, a necessidade do convívio umas com as outras e, mesmo com suas diferenças de idade, educação, classe social, enfim, o que as conectava era a “solidão fundamental de ser mulher” - conforme indica Sheyla Smanioto (2018, p. 5) na apresentação do livro. Ao longo da narrativa, a exposição das invisibilidades e das formas de subjetivação negadas nas quais cada uma delas estava inserida e de como que elas se defrontavam com as suas inquietações, em uma constante “disputa dos espaços e dos corpos” (SMANIOTO, 2018, p. 5), evidencia a pluralidade de pontos de vista e ilustra que ser mulher não cinge o que alguém é ou deixa de ser. Acrescento, a este último ponto, que, não somente pelo fato de um sujeito ultrapassar as especificações tomadas para o seu gênero, mas porque, recorrendo ao pensamento de Butler (2019), o gênero não se concebe de forma coerente nos diversos contextos históricos e se constitui pelas interseções sexuais, classistas, raciais, étnicas e regionais, sendo os corpos e as identidades construídos por discursos e, a partir das teorias foucaultianas, por algo a mais que transcende esses discursos.
Além de terem criado uma relação de confiabilidade, as três mulheres do romance “tinham o mesmo jeito cúmplice de rir e abaixar a voz para falar de André” (STOLL, 2018, p. 37, grifos meus). Ambas, assim, compartilhavam de uma imersão em uma rede de práticas, ainda que em nível micro (FOUCAULT, 2016) - já que o poder não se limita ao Estado -, de um dispositivo de controle disciplinar. André, com seu autoritarismo e subjugação: na sua relação com Sílvia, mostrava-se ciumento, agressivo e intruso; na sua relação com a mãe, dava-lhe ordens e a controlava em seus relacionamentos, aproveitando-se da suposta vulnerabilidade que ela tinha por conta da dificuldade de locomoção que a acometia; e, na sua relação com Joaquina, pois desqualificava sua formação/profissão, marcando, nela, a constante insuficiência das mulheres profissionalmente - “Joaquina teria que explicar tudo em termos médicos [...]. Seria preciso argumentar e fundamentar até que ele se convencesse” (STOLL, 2018, p. 44). São esses casos de atos repetidos de performa (BUTLER, 2019) que vão ao encontro das normas de gênero, de subjetividades circunscritas a discursos que remetem à masculinidade e à feminilidade em um sistema cisheteropatriarcal (Paul PRECIADO, 2017). Entendendo o sexo como sendo discursivamente produzido (BUTLER, 2019; NICHOLSON, 2000), os corpos situam-se no interior do dispositivo da sexualidade, que, através de suas normas, produz indivíduos (subjetividades), os quais são passíveis de controle e de vigilância no âmbito do biopoder (FOUCAULT, 2017; 2018).
Nessa esteira, André, além de tudo, era considerado um homem corajoso, pois foi ele “que conseguiu converter a lésbica” (STOLL, 2018, p. 49, grifos meus). Sílvia, antes de André, namorou Valesca, e, depois de ser espancada, no meio da rua, pelo próprio irmão, foi André quem a ajudou. Isso se tornou mais uma amarra entre o casal, pois ele era o herói para família de Sílvia e, mais uma vez, a figura dominante, por ter feito com que ela deixasse de ser “machorra” (STOLL, 2018, p. 32). Os usos linguísticos, nos diálogos entre os dois, também são assinalados atos cisheterossexistas mais comuns e um deles são as piadas, os comentários hostis: “Ele falava sobre a sexualidade dela em público, às vezes. Na frente dos colegas, do chefe, do vendedor da loja de conveniência de um posto [...]. Que ele deu conta do recado” (STOLL, 2018, p. 49). Esse binarismo enquadrado na dinâmica cisheteronormativa não desqualifica somente as mulheres, “mas também qualquer outro corpo e identidade que não cumpram aquelas normas” (João Manuel de OLIVEIRA et al, 2014, p. 63-64), o que se converteu em sentimento de culpa em Sílvia. A fragmentação biológica, interna ao dispositivo do biopoder regulamentador, em que há a produção de uma hierarquia de raças, é o racismo a que Foucault (2018) se refere na produção de sujeitos “matáveis”, cujas subjetividades são de anormais, de perigosos e de degenerados. Diante de um biopoder que faz viver, a política de morte, de rejeição e de expulsão é a que mantém “a vida numa sociedade de normalização” (FOUCAULT, 2018, p. 215). Relacionando biopolítica à precariedade de gênero, Butler (2018) faz notar a existência de vidas racializadas e generificadas sobre as quais incide a precarização da vida como estratégia de governo e de práticas de violência.
Contudo, as correlações de poder, explica Foucault, “não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência” (FOUCAULT, 2017, p. 104, grifos meus). A separação conjugal de Sílvia com André marcou a trajetória dessa mulher que se deslocou e que, a partir do que a inquietava, buscou sua afirmação. Sílvia desfrutava disso:
Gostava de gozar sozinha. Gostava de tudo sozinha. De saber que depois levantaria e andaria sem roupa pelo apartamento, ainda melada entre as pernas. Abriria a geladeira, desafiaria os mamilos no frio, pegaria um pedaço de pizza da noite passada. No banheiro, as mãos ocupadas com a pizza, ela ouviria a própria urina cair na água da privada - e gostava de saber que o som percorreria o apartamento todo (STOLL, 2018, p. 56).
Se Sílvia resistiu aos discursos da normalidade que a moviam, Joaquina, também repleta de marcas (literalmente, em seu corpo), entregou-se à fluidez de sua relação com Sílvia, e Margarete se encontrou fora das amarras do filho. Há uma demonstração de que a resistência está justamente a serviço do poder. Em uma polivalência tática (FOUCAULT, 2008), os discursos, em sua ambivalência, operam tanto de forma a promover a sujeição dessas mulheres e de criar identidades a elas pouco maleáveis quanto de forma a provocar práticas de liberdade e de resistência aos discursos morais e binários. É o poder, assim, em sua positividade, que “fabrica, um poder que observa, um poder que sabe e um poder que se multiplica a partir de seus próprios efeitos” (FOUCAULT, 2010, p. 41).
Toda a trama, por sinal, delineou-se nas relações das protagonistas com o município de Florianópolis. A escritora transpôs, em certa medida e com riqueza de detalhes, para seus escritos nesse romance, particularidades da cidade, demonstrando que sua graduação concluída, em 2010, na UFSC, em Arquitetura e Urbanismo também deixa rastros em sua ficção. A conjuntura descrita por ela é que: se, por um lado, André e Sílvia eram arquitetos e isso possibilitou que se conhecessem, e Sílvia se deparava com irregularidades nas obras construídas na ilha, por conta da valorização imobiliária - “Tudo pela vista para o mar, os prédios se acotovelando dentro da ilha, sempre igual” (STOLL, 2018, p. 39); por outro lado, no continente, Margarete, sem dinheiro, esforçava-se para fazer uma obra em sua residência que pudesse lhe servir de renda com aluguel. Além disso, Joaquina, recém-chegada do interior do Paraná, buscava realizar seus sonhos na cidade que tinha mar. Mas, mais do que uma bucólica descrição das características regionais e do contexto local, Daniela Stoll (2018) possibilita, com esses elementos, mostrar deslocamentos das personagens mulheres, que vão além dos movimentos em terra, e simbolizam a contramão para as fixidezes de identidades. São movimentos que transpassam distinções de raça, gênero, sexualidade, classe, etnia, geração, época e localização, demonstrando identidades que são deslocadas dos paradigmas tradicionais e normativos de governo dos corpos das mulheres. É nesse ponto que, mais uma vez, pode-se assinalar uma convergência da escrita da autora com seu projeto de pesquisa que resultou em sua dissertação de mestrado (Deslocamentos urbanos na literatura brasileira contemporânea de autoria feminina).
Da sua realidade para a ficção, Daniela Stoll (2018) ressoa sua voz pela disposição de vozes de mulheres que resistem em suas mais diversas subjetividades. A costura estética que a autora possibilita é ver o mar como aquele que separa classes (do continente à ilha), que provoca a falsa avareza de sua vista (por entre os prédios), que recebe oferendas para Olokún (como tradição religiosa), que é fruto de desejo de fuga (molhar os pés na água) e que é buscado intimamente nos sujeitos - “Sílvia era feita de sal [...] Joaquina sabia ser praia” (STOLL, 2018, p. 131). É substancial acrescentar o mar como alegoria de infinito de possibilidades, cujos limites transcendem o mar que engole vozes, representam a inquietude, a renúncia aos binarismos, a identidade lesbiana sem laços (Tânia NAVARRO-SWAIN, 2000), subvertendo os clássicos e os cânones