O livro New Sporting Femininities: Embodied Politics in Postfeminist Times, organizado por Kim Toffoletti, Holly Thorpe e Jessica Francombe-Webb, editado pela Palgrave Mcmillan e lançado em 2018, realiza uma reflexão sobre “novas feminilidades” e “pós-feminismo” no âmbito do esporte. Embora as feminilidades apresentadas no livro não possam ser consideradas “novas”, como sugere o título da obra, elas auxiliam a questionar o atual impacto de normas instituídas por um complexo industrial de mídia esportiva, definidor daquilo que é considerado desejável em termos de representação social de mulheres.
Didaticamente, costuma-se chamar o período entre os anos 1960-80 como a “segunda onda” do feminismo, embora geralmente se tenha como referência a produção intelectual e as ações empreendidas por mulheres do Norte Global. Não há dúvidas de que esse movimento social, e outros que emergiram nos anos 1970, alteraram as noções acerca de comportamentos e expectativas em relação às mulheres. Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora a divisão comumente estabelecida entre “ondas” possa ser didática, ela confere a falsa impressão de uma continuidade histórica e espacial em relação a como as demandas por igualdade entre gêneros têm sido atendidas ao redor do mundo. O uso do termo “pós-feminismo”, realizado desde a década de 1980, pode servir para pensarmos quem está produzindo o feminismo; e ainda, para quem, de que forma e com quais objetivos. Considerando o atual contexto social e político brasileiro, de forte tendência negacionista e conservadora, refletir sobre os feminismos tende a não ser tarefa das mais simples, vide por exemplo a propagação de grupos antifeministas nas redes sociais, que se atêm a um feminismo “tradicional” e o apresentam como ultrapassado, radical e desnecessário (PEREZ, 2014).
Logo de início, as organizadoras do volume resgatam o termo “pós-feminismo”, apresentando três versões: a primeira se refere à existência de uma cisão epistemológica com o pensamento do feminismo de segunda onda, assim unindo-se a outros pensamentos “pós-” (como pós-modernismo, pós-estruturalismo e pós-colonialismo); a segunda compreensão é de que o pós-feminismo representaria uma mudança histórica para o ativismo da terceira onda, inserido no contexto do Norte Global ocidental neoliberal; e, por fim, o terceiro significado remete ao uso como uma posição política, ou uma rejeição aos feminismos do passado (Kim TOFFOLETTI; Holy THORPE; Jessica FRANCOMBE-WEBB, 2018, p. 24-25). Obviamente, tais acepções terão implicações ao longo dos capítulos apresentados. Entretanto, vale ressaltar que as organizadoras não consideram que haja uma superação do feminismo e nem se opõem a este movimento social. Em vez de entender que as reivindicações por igualdade entre os sexos já teriam sido todas alcançadas, ampliam as reflexões sobre os impactos do neoliberalismo na participação e representação de mulheres no mercado de trabalho, no ambiente educacional e na mídia, tendo o esporte como contexto.
Em termos de organização, a coletânea é apresentada em três partes, agrupadas conforme certa semelhança temática: a primeira realiza relações entre as mulheres e o complexo industrial de mídia esportiva; a segunda aborda questões interseccionais (raça/etnia, nacionalidade e geração); e a terceira aborda mídias sociais (importantes dentro do contexto de uma “quarta onda” do feminismo). Ao todo, apresenta catorze capítulos, com a participação de pesquisadoras dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia. As temáticas de pesquisa abordam diferentes esportes, tais como roller derby, skate, futebol, tênis e MMA. As metodologias de pesquisa são variadas, com entrevistas, grupos focais, pesquisas virtuais (em ambientes on-line), observação participante e pesquisa de cunho etnográfico, tendo as análises um caráter eminentemente qualitativo.
A primeira parte do livro apresenta cinco capítulos, que se relacionam com o pós-feminismo e o complexo industrial de mídia esportiva nos Estados Unidos, o qual se apresenta na atualidade como um emergente mercado de lucros e de relações. Nesse grupo, Cheryl Cooky analisa a desigualdade de recursos financeiros e tratamento para mulheres estadunidenses, tais como a tenista Serena Williams (escolhida como modelo esportivo em 2015) e a seleção campeã na Copa do Mundo de Futebol Feminino FIFA 2015 (que ajuizou uma demanda judicial exigindo equiparação salarial com os homens). São apresentadas, em seguida, reflexões sobre diferentes feminilidades e a apresentação midiática de corpos potentes, como o da atleta de MMA Ronda Rousey (no capítulo de Jennifer McClearen) e o da tenista Serena Williams (no de Kristi Tredway). No capítulo de Sumaya Samie e Kim Toffoletti são criticadas as agendas neocoloniais que atuam na exposição dos corpos de duas esportistas norte-americanas muçulmanas. O último texto dessa seção, de Jeffrey Montez e Molly Cotner, apresenta as estratégias da NFL (liga profissional norte-americana de futebol americano) para se aproximar das mulheres e aumentar sua base de fãs, tendo por base ideais do feminismo liberal.
A segunda parte do livro traz três capítulos que abordam o cotidiano de mulheres atletas e as negociações com o pós-feminismo. Laura Azzarito critica o efeito dos discursos neoliberais em garotas de minorias étnicas. Para a autora, o foco numa mulher exemplar (“super-woman”) seria responsável por reproduzir a imagem de uma branquitude bem-sucedida, reforçando ideais como o autogerenciamento e a autodisciplina, bem como a busca por um corpo aparentemente saudável - com a óbvia exclusão de corpos negros, grandes, musculares ou gordos. O capítulo de Adele Pavlidis, por sua vez, acrescenta novos insights. Com dados de uma “breve visita etnográfica” (Adele PAVLIDIS, 2018, p. 160) e dez entrevistas com atletas de uma liga local chinesa. A autora entende que o roller derby1, considerado um “esporte perigoso” (PAVLIDIS, 2018, p. 163), permite novas formas de experimentação do corpo e resiste às estruturas esportivas tradicionais. As suas participantes o incorporam tanto como protesto, quanto como desafio às normas de feminilidade. Finalizando esta parte do livro, Jessica Francombe-Webb e Laura Palmer apresentam os resultados de uma pesquisa de seis semanas em que foram realizadas quatro oficinas para ensinar futebol a garotas britânicas brancas, de 11 a 13 anos.
A última parte do livro traz contribuições sobre relações entre práticas esportivas e o mundo digital, tendo capítulos como o de Sarah Riley e Adrienne Evans sobre as representações (magra, light, fit) que reforçam e desestabilizam o poder disciplinar presente em discursos de liberdade, escolha e saúde em blogs Fitblr, de exercício do Tumblr. O capítulo de Cathryn Lucas e Matthew Hodler analisa os memes #takebackfitspo, que criticam os exercícios físicos intensos e dietas restritivas, buscando redefinir ideais danosos (como as normas de beleza padrão).
Kim Toffoletti, uma das organizadoras, apresenta no décimo segundo capítulo os resultados de uma análise de seis meses com oito atletas paralímpicas australianas, que competiram nos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Ao pesquisar sobre como constroem suas identidades esportivas nos espaços digitais, descobriu uma grande disposição das atletas com deficiências em apresentarem uma feminilidade convencional, com corpos poderosos e poses sexys, contestando estereótipos de abandono e dependência a respeito de pessoas com deficiências. O penúltimo capítulo, escrito por Meredith Nash, apresenta as escolhas semióticas no site australiano de moda fitness Lorna Jane. A autora conclui que o site oferta não apenas produtos para as mulheres, mas incentiva um estilo de vida de independência, poder e diversão. A partir da ideia de empoderamento e escolha individual, essas mulheres tornam-se responsáveis pelo contínuo autogerenciamento e autodesenvolvimento de estilos de vida ativos e saudáveis. Entretanto, cabe ressaltar que diferentes corpos (negros, envelhecidos e gordos) não são representados como pertencentes a essa “irmandade esportiva” (Meredith NASH, 2018, p. 294).
O último capítulo, de Holly Thorpe, Lyndsay Hayhurst e Megan Chawansky, apresenta o resultado de entrevistas realizadas com participantes de uma ONG e aborda o efeito de representações supostamente positivas de meninas afegãs em skates nas redes sociais. Para as autoras, as representações baseadas em agência e empoderamento podem passar uma imagem errada sobre a superação de desigualdades estruturais no Sul Global. A crítica das autoras é a de que muitos projetos, apesar de apresentarem um caráter libertador para fugirem de uma “pornografia da pobreza”2 (Holly THORPE; Lyndsay HAYHURST; Megan CHAWANSKY, 2018, p. 318), podem auxiliar na legitimação de intervenções neoliberais e na ocultação de desigualdades presentes das relações estabelecidas entre o Norte e o Sul Global. Num competitivo mercado de doações, as jovens skatistas afegãs são, portanto, retratadas de maneira positiva, porém de maneira descontextualizada e acrítica.
De maneira geral, entre as principais contribuições do livro, pode-se destacar o alerta para os impactos que expressões como agência, empoderamento, escolha individual e responsabilidade pessoal possuem sobre mulheres que realizam práticas esportivas ou de lazer. Os capítulos extrapolam a tradicional abordagem que ressalta a exclusão, a sexualização ou a opressão patriarcal das mulheres. Busca-se uma abordagem interseccional (Carla AKOTIRENE, 2018)3, que permita perceber os efeitos de dinâmicas de poder generificadas que operam nos esportes e nas atividades físicas.
Em relação às supostas “novas feminilidades”, as organizadoras têm como pretensão questionar binariedades essencialistas, mas cabe alertar para a lacuna de capítulos nesta coletânea que apresentem como temática estudos realizados com sujeitos trans, travestis, queer e não-bináries, pessoas que transbordam as fronteiras dicotômicas e desestabilizam as categorias existentes. Vale destacar, outrossim, que não há a devida atenção à expressão de feminilidades presentes em corpos de outros sujeitos (como os homens), que podem sofrer discriminações por apresentarem expressões de gênero ou orientações sexuais não normativas, como mostrou Wagner Camargo (2016b) no caso de jogos como os Gay Games ou, ainda, Leandro Brito (2018) acerca do voleibol queer. Ao voltarmos nossa atenção a países onde o futebol é entendido como espaço de expressão cultural de masculinidades, não se pode negar que tudo relativo ao universo feminino é considerado perigoso, contaminante, inferior. Vide, nesse caso, a ausência de futebolistas (homens) brasileiros autodeclarados homo/bissexuais, ou ainda os estigmas que recaem sobre aqueles que são proclamados pejorativamente como bichas ou veados.
Empreendendo uma análise epistemológica crítica (e decolonial), cabe mencionar a limitação das referências utilizadas nos capítulos da obra, que se referem a publicações em inglês, principalmente de editoras dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em termos de produção de conhecimento, trata-se de algo problemático, pois invisibiliza outros saberes e desmerece a importância da produção acadêmica que está sendo realizada fora do circuito restrito e privilegiado do Norte Global.
Nesse sentido, cabe pontuar que a produção intelectual latino-americana tem apresentado discussões produtivas, que auxiliam a refletir sobre o feminismo (Heloisa HOLLANDA, 2018) e as formas como os sujeitos fogem da governança dos corpos. Enquanto órgãos esportivos e administrativos de controle propagam mensagens de que o corpo bem-sucedido deve se enquadrar em determinados pré-requisitos (tais como: juventude, branquitude, heterossexualidade e cisgeneridade), podemos nos perguntar como são visibilizados os novos potenciais disruptivos de corpos dissonantes (CAMARGO, 2016a), que não se adaptam a padrões normativos de beleza, estética e/ou eficiência nas arenas esportivas.
Por fim, pode-se afirmar que o livro propõe um diálogo interessante (e de certa forma inédito), enquadrando-se em discussões contemporâneas que interligam feminismos e esportes, realizando uma reflexão crítica sobre ditames do neoliberalismo, que frequentemente fogem dos debates sérios sobre igualdade de gênero em arenas esportivas (relativos a salários equitativos, assédios sexuais e violência contra mulheres e outres). New Sporting Femininities inova ao apresentar uma coletânea com temáticas que não foram publicadas no Brasil e provoca a academia brasileira sobre os diálogos entre feminismo(s) e práticas esportivas