1 Construção sócio-histórica das categorias: femicídio e feminicídio
A definição mais comum sobre femicídio e feminicídio corresponde ao assassinato de uma mulher por sua condição de ser mulher, condição feminina ou identificação com o sexo feminino. Esse conceito pode ser estendido para as meninas e os fetos com caraterísticas socialmente atribuídas ao sexo biológico feminino.
Um crime de feminicídio deve ser entendido como uma manifestação de violência extrema que termina na morte de uma ou várias mulheres e constitui uma violação aos seus direitos humanos. Os feminicídios são resultado de múltiplas, crescentes e contínuas manifestações de violência, que estão enraizadas historicamente nas relações desiguais de poder entre homens e mulheres e na discriminação sistêmica do gênero feminino, o que é sustentado por valores sociais, religiosos, econômicos, assim como por práticas culturais (Mary ELLSBERG et al., 2000). Um crime de feminicídio não constitui um evento isolado, repentino nem inesperado, ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas se caracterizam pelo uso de violência extrema; inclui uma vasta gama de abusos verbais, físicos e sexuais, e diversas formas de mutilação e de barbárie (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2020).
O termo femicide foi usado no tribunal de crimes contra as mulheres ocorrido em Bruxelas, em 1976, com o objetivo de mostrar as diferenças existentes entre os homicídios femininos e os masculinos. Diana Russell conceituou o femicídio como o ponto final de um contínuo de violência que tem como consequência a morte da(s) mulher(es) afetada(s) (Diana RUSSELL; Jill RADFORD, 1992). Desde sua criação, o termo começou a ser utilizado e se popularizou porque denuncia a manifestação violenta da misoginia que resulta em morte de mulheres. O termo foi adotado no âmbito acadêmico, na política, na legislação, na literatura, nas manifestações artísticas e políticas, assim como em outros espaços, para denunciar as formas de violência letal contra as mulheres e meninas e rapidamente legitimou-se.
O conceito de femicídio é desafiador. Na sua criação, o femicídio foi atribuído exclusivamente a assassinatos de homens contra mulheres em razão do seu gênero (RUSSELL; RADFORD, 1992; RUSSELL, 2011), posteriormente, contemplou crimes cometidos por mulheres em prol do interesse de um ou vários homens (Juan IRANZO, 2015; Magdalena GRZYB et al., 2018), e também foi aplicado à totalidade das mortes de mulheres independentemente do motivo ou status do perpetrador (Jacquelyn CAMPBELL; Carol RUNYAN, 1998).
O conceito de femicídio pode ser contingente e amplo por causa do componente de gênero (Joan SCOTT, 1995).1 Várias pesquisas têm feito esforços para investigar sobre o femicídio. Cientes da importância de uma definição clara e operacional para os sistemas de análise e monitoramento de dados, a definição tem sido ampliada levando em consideração os aspectos culturais e de gênero.
Várias definições têm sido propostas para feminicídio, mas ainda não há um consenso do que engloba o termo, justamente porque a definição pode incorporar ou prescindir de elementos segundo as características histórico-culturais e sociais do lugar e do contexto.
A Organização das Nações Unidas (ONU) define femicídio como:
O assassinato de mulheres e meninas devido ao seu gênero, que pode assumir a forma de: 1. o assassinato de mulheres como resultado de violência praticada pelo parceiro íntimo; 2. a tortura e assassinato misógino de mulheres 3. assassinato de mulheres e meninas em nome da ‘honra’; 4. assassinato seletivo de mulheres e meninas no contexto de um conflito armado; 5. assassinatos de mulheres relacionados com o dote; 6. assassinato de mulheres e meninas por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero; 7. assassinato de mulheres e meninas aborígenes e indígenas por causa de seu gênero; 8. infanticídio feminino e feticídio de seleção com base no sexo; 9. mortes relacionadas à mutilação genital; 10. acusações de feitiçaria que causam a morte da julgada; e 11. outros femicídios relacionados a gangues, crime organizado, traficantes de drogas, tráfico de pessoas e proliferação de armas pequenas (UNITED NATIONS AND ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL, 2013).
A criação de um termo “feminino” específico, diferente do homicídio, respondeu à necessidade de dar visibilidade às mortes das mulheres que são proporcionalmente menores quando comparadas às dos homens e ressaltar as particularidades dessas mortes. A palavra feminicídio tem uma dimensão política e de gênero, se opondo a homicídio, que é descrita como palavra neutra (Marcela LAGARDE, 2008). É importante notar que os estudos sobre feminicídio têm sido originariamente realizados desde as ciências sociais e a antropologia, motivo pelo qual a adaptação a áreas como o direito é desafiadora (Patsili TOLEDO, 2016).
Segundo a ONU Mulheres (2016), nomear as mortes de mulheres como femicídio ou feminicídio faz parte da estratégia para sensibilizar as instituições e a sociedade sobre a ocorrência desses crimes, combater a impunidade penal, promover os direitos de mulheres e estimular a adoção de políticas de prevenção à violência baseada no gênero.
2 Crimes de morte violenta de mulheres em perspectiva: homicídios e feminicídios
Os assassinatos de mulheres por motivos de gênero constituem uma questão global. Existem casos em todos os países e, em muitos deles, os crimes são tolerados, aceitos, justificados e permanecem na impunidade (Claire LAURENT et al., 2014). O estudo global sobre homicídios mostrou que quase 80% das vítimas de homicídio no mundo são homens, sendo a taxa de homicídios masculinos de 9,7/100,000; as mortes por homicídios em mulheres são quatro vezes inferiores a essa cifra e acontecem principalmente em contextos privados (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019). O lar é o lugar mais provável para uma mulher se tornar vítima, enquanto os homens têm maior probabilidade de serem assassinados em lugares públicos (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2011).
Mundialmente, a maior taxa de assassinatos femininos por cada 100,000 mulheres acontece na África (3,1), seguido pelas Américas (1,6), Oceania (1,3), Ásia (0,9) e Europa (0,7). No mundo todo, a taxa de femicídios é de 1,3 casos por cada 100,000 mulheres (UNODC, 2019). Em 2019, do total mundial de 87,000 assassinatos intencionais de mulheres, 58% corresponderam à tipificação de crimes de feminicídios íntimos. A estimativa contabiliza 137 mulheres mortas diariamente no mundo por um membro da própria família (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019).
É muito provável que os casos de feminicídio estejam subestimados porque parte deles estão encobertos como casos de suicídio ou mortes acidentais. Uma estratégia para estimar cifras de feminicídio mais próximas à realidade tem sido a compilação dos casos de crimes por parte do Estado, de parceiros íntimos e de outros membros da família para estimar as mortes relacionadas à condição de gênero, isso considerando a abrangência do conceito de femicídio/feminicídio (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019). Vale destacar que nem todos os homicídios femininos podem ser tipificados como crimes de feminicídio, uma vez que este está caracterizado na morte violenta da mulher pela sua condição de sexo ou por motivos de gênero.
No contexto brasileiro, o país apresenta um sério problema de violência contra as mulheres. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no Atlas da violência de 2019, reportaram o crescimento dos homicídios femininos. Estimaram-se 13 assassinatos de mulheres por dia no território nacional, sendo que, no período entre 2007-2017, houve aumento de 30,7% do número de casos, o que significa uma taxa nacional de 4,7 assassinatos por cada 100,000 mulheres. Os autores do Atlas chamam a atenção para o problema, dando destaque às questões relacionadas às desigualdades raciais. Assim, em 2017, do total das mulheres assassinadas no país, 66% correspondem a vítimas de raça negra (Daniel CERQUEIRA; Samira BUENO et al., 2019).
Na edição do Atlas de 2020, foi destacada uma taxa de 4,3 homicídios/100,000 mulheres no Brasil. Durante os anos 2017-2018, houve uma redução geral dos homicídios. Para 2018, a taxa de homicídios femininos foi estimada em 2,8/100,000 para mulheres não negras e 5,2/100,000 para mulheres negras (CERQUEIRA; BUENO et al., 2020).
Um estudo realizado no Brasil sobre mortalidade feminina por agressão com uma amostra de 19,459 mostrou que a mortalidade é elevada, mas não é uniforme nas regiões do país (Stela MENEGHEL; Vania HIRAKATA, 2011). Foi apontada como uma das causas do aumento da violência deletéria no país a mudança nos papéis tradicionais de homens e mulheres e o ingresso feminino no mercado de trabalho, que permitiu a maior independência econômica e reprodutiva das mulheres, sendo essa situação um potencial gerador de conflitos; os homens foram deslocados do papel tradicional de chefes do lar e isso gerou aumento de comportamentos agressivos (MENEGHEL; HIRAKATA, 2011). Inclusive, o desemprego masculino e a separação por parte da mulher são considerados fatores de risco para feminicídio (CAMPBELL et al., 2003).
O Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo levantou 364 casos de mortes violentas de tentativas e crimes consumados de feminicídio (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2018). O estudo também mostrou que os feminicidas praticam crimes durante o dia e à noite, todos os dias da semana, principalmente na casa da própria vítima ou do casal, dos parentes da vítima ou seus arredores, em 66% dos casos (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2018).
Em concordância com os achados internacionais, no Brasil, a maior incidência de crimes de feminicídio ocorreu entre pessoas que têm, ou tiveram, uma relação de união estável, seguido por namorados ou ex-namorados. As principais motivações dos crimes foram separação ou rompimento do relacionamento, atos de ciúmes/machismo e discussões banais. O modus operandi mais empregado para os ataques foram armas brancas e de fogo (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2018). A vitimização das mulheres dentro de casa, longe dos olhos da sociedade, reforça o caráter privado dos crimes ao mesmo tempo que o modus operandi empregado sugere a desvantagem física e a desproteção da vítima em relação ao agressor (ONU MULHERES, 2016).
No mesmo estudo, foram levantadas informações relacionadas à aplicação da Lei Maria da Penha. Nos casos, a hipótese de relação afetiva é comumente associada ao feminicídio, aparecendo como qualificadora em 87% deles. Nos demais casos em que também havia componente de gênero, houve denúncia por homicídio, mostrando a dificuldade da aplicação da Lei nos casos de gênero fora da relação afetiva. Do total dos casos, só em dois a vítima tinha medida protetiva e só em cinco dos feminicídios consumados havia denúncia prévia contra o agressor (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2018), o que mostra as deficiências da aplicação da Lei e dos recursos disponíveis para mulheres em situação de violência. Cabe mencionar que o país dispõe da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15), de 09 de março de 2015, que tipifica o assassinato de mulheres por serem mulheres e considera o feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.
3 Do femicídio ao feminicídio, o papel do Estado
A tradução literal do termo Femicide é Femicídio, no entanto, foi adaptada para o espanhol e português como feminicídio e é utilizada em vários países da América Latina para caracterizar os casos nas legislações. A diferença dos termos resulta em que feminicídio foi usado para declarar a responsabilidade do Estado na perpetração de crimes de femicídio.
A feminista e deputada mexicana Marcela Lagarde (2006) fez a adaptação do termo baseada em pesquisas sobre a realidade das mulheres mexicanas da Ciudad de Juarez2 - nesse sentido, uma discussão aprofundada do caso de Ciudad de Juarez pode se encontrar também nos textos de Rita Segato (2013) e Julia Monárrez Fragoso (2000). Lagarde argumenta que, para que o feminicídio aconteça, concorrem, de maneira criminal, o silêncio, a omissão e a negligência das autoridades Estatais encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. Assim, o Estado é parte estrutural do problema pelo seu signo patriarcal (LAGARDE, 2008). Dessa forma, o termo feminicídio denuncia a responsabilidade do Estado e suas instituições na ocorrência desses crimes. A autora defende que as mulheres não morreriam de forma precoce e violenta se a sociedade e o Estado garantissem o desenvolvimento de condições de igualdade e paz (LAGARDE, 2008).
Apesar de Diana Russell aprovar a modificação do termo no momento de fazer a adaptação de femicídio para feminicídio, a diferença tem gerado grandes debates e controvérsias entre as teóricas que preferem o uso de um ou outro. No discurso introdutório do Simpósio de femicídio das Nações Unidas de 2012, Russell declarou a necessidade de unificação dos conceitos e sugeriu o uso do termo femicide, argumentando que feminicídio pressupõe a impunidade do tratamento dos casos mesmo que estes tenham um tratamento jurídico adequado (RUSSELL, 2012). A despeito dos debates, femicídio e feminicídio continuam sendo empregados segundo o contexto.
Entre as diferentes formas, também é necessário distinguir as especificidades dos feminicídios. Não é igual um feminicídio no contexto de uma relação de casal e um feminicídio como os ocorridos na Ciudad de Juarez, assim como um feminicídio decorrente de complicações secundárias a uma clitorideictomia.3 São contextos totalmente diferentes que requerem análises particulares, porque, apesar de possuírem um componente comum de gênero, demandam intervenções diferentes para serem evitados.
A análise dos casos de feminicídio realizada pela Corte Interamericana de Direitos revelou uma resposta institucional inefetiva ante casos de violência contra a mulher que permite a impunidade, facilita a repetição de atos de violência e confirma as atitudes patriarcais das autoridades (Lorena SOSA, 2017). A impunidade dos casos, devido à investigação ineficiente, e o trato discriminatório estão baseados em estereótipos de gênero; a Corte evidenciou que as autoridades desacreditam e culpam as vítimas pela sua forma de vestir, por seu estilo de vida, e questionam suas relações pessoais e sexuais (SOSA, 2017). Nesse contexto, na América Latina, ainda é indispensável conceituar os crimes como feminicídios.
4 Todos os homicídios femininos são feminicídios?
Depois de definir a responsabilidade do Estado nos crimes, outro aspecto relevante é caracterizar indistintamente todos os homicídios de mulheres como feminicídios ou restringir o termo a uma categoria específica.
A respeito desse tema, Carcedo (2010) argumenta que nem todos os homicídios femininos são femicídios, só aqueles em que é possível identificar uma lógica de poder desigual entre os gêneros. Há mulheres que morrem em assaltos e outros fatos delitivos em que o alvo é tanto a população feminina quanto a masculina. Mas também há femicídios que tentam ser apresentados como homicídios, produto de delinquência comum. Por isso, no conjunto dos homicídios femininos, devem ser identificados os autores dos crimes, as dinâmicas e os contextos para distinguir os que são femicídios (Ana CARCEDO, 2010).
A antropóloga feminista Rita Laura Segato reforça que um feminicídio é um crime que caracteriza relações de poder desiguais. A autora estabelece uma relação entre o corpo feminino e o território. Ela aponta a dimensão expressiva e não só instrumental dos crimes; assim, a violência se torna uma linguagem, em que a presença de interlocutores é tão ou mais importante que a da própria vítima (SEGATO, 2006).
Em sua análise dos casos das mulheres de Ciudad de Juarez, Lagarde identificou um padrão comum de vítimas. Eram jovens, pobres, trabalhadoras das maquilas,4 morenas e de cabelo comprido; eram sequestradas, torturadas, mutiladas e estupradas antes de serem sanguinariamente assassinadas e muitos dos seus corpos jogados nas ruas, no deserto ou em terrenos baldios (LAGARDE, 2008).
O perpetrador busca demonstrar a seus pares sua capacidade de morte e crueldade, fazendo-a explícita no corpo da vítima. Esse tipo de violência é um fenômeno muito particular ocorrido na Ciudad de Juarez, no México, que precisa ser distinguido de outras formas de assassinato de mulheres, em que se agride um padrão genérico de mulheres com as quais não se tinha nenhum tipo de relação ou motivação pessoal. Distinguir esse tipo de crime de outros homicídios femininos e elaborar uma tipologia para caracterizar os diferentes tipos de feminicídios são atos que permitem obter dados específicos e precisos sobre este fenômeno. Tipologias específicas permitem avançar no entendimento da violência e criar categorias jurídicas e leis específicas para evitar a impunidade (SEGATO, 2006).
5 Cenários, categorias e classes de femicídio/feminicídio
5.1 Cenários de femicídio
Para operacionalizar o conceito, Carcedo trabalhou com a noção de cenários de femicídios. A autora descreve cenário como os contextos socioeconômicos, políticos e culturais nos quais se desenvolvem as relações de poder entre homens e mulheres, geradoras de dinâmicas de controle, violência e femicídio (CARCEDO, 2010).
Carcedo identifica nove cenários de femicídios: a família, as relações conjugais, o ataque sexual, o comércio sexual, o tráfico de mulheres, as redes criminosas, as gangues, as mulheres como território de vingança e a misoginia. Além disso, refere-se ainda aos cenários entrelaçados, quando, por exemplo, uma mulher é assassinada pelo parceiro que é membro de uma gangue, ou seja, são situações em que o risco de morte é elevado pela articulação entre elementos provenientes de cenários distintos. Finalmente, postula os cenários evasivos, que seriam aqueles que ainda não foram identificados pela fragilidade das informações ou pela dificuldade de acesso em função de uma possível ligação com forças militares e paramilitares da região (CARCEDO, 2010).
5.2 Assassinatos ativos e passivos
No relatório especial das Nações Unidas sobre violência contra as mulheres, suas causas e consequências, postulou-se que os assassinatos de mulheres podem ser classificados nas categorias ativas ou/e passivas da seguinte forma (Rashilda MANJOO, 2012):
Assassinatos ativos ou diretos
Nessa categoria, incluem-se os femicídios decorrentes de:
Assassinatos de mulheres e meninas como resultado de violência doméstica, infringida por um parceiro íntimo ou parceiro doméstico.
Assassinatos misóginos de mulheres.
Assassinatos de mulheres e meninas em nome da “honra”.
Assassinatos de mulheres e meninas relacionados a conflitos armados (como estratégia de guerra, opressão ou conflito étnico).
Assassinatos de mulheres e meninas por dote.
Assassinatos de mulheres relacionados à identidade de gênero e à orientação sexual (feminicídios lesbofóbicos).
Infanticídio feminino e seleção de sexo com preconceito de gênero (feticídio).
Assassinatos relacionados à identidade étnica e indígena.
b. Assassinatos passivos ou indiretos
A categoria passiva ou indireta de femicídios inclui:
Mortes devido a abortos inseguros ou clandestinos.
Mortalidade materna.
Mortes por práticas prejudiciais (por exemplo, aquelas resultantes de mutilação genital feminina).
Mortes ligadas ao tráfico de pessoas, tráfico de drogas, proliferação de armas pequenas, crime organizado e atividades relacionadas a gangues.
Mortes de meninas ou mulheres por negligência, fome ou maus-tratos.
Atos deliberados ou omissões por funcionários públicos ou agentes do Estado.
5.3 Classificação dos femicídios/feminicídios do modelo de protocolo Latino-americano
Nele se incluem 13 categorias diferentes, sendo que um femicídio pode se enquadrar em mais de uma categoria (Camilo SARMIENTO et al., 2014; ONU MULHERES, 2016):
Femicídio íntimo: morte de uma mulher cometida por um homem com quem a vítima tinha, ou teve, uma relação ou vínculo íntimo: marido, ex-marido, companheiro, namorado, ex-namorado ou amante, pessoa com quem tem filho(a)s. Inclui-se a hipótese do amigo que assassina uma mulher - amiga ou conhecida - que se negou a ter uma relação íntima com ele (sentimental ou sexual).
Femicídio não íntimo: morte de uma mulher cometida por um homem desconhecido, com quem a vítima não tinha nenhum tipo de relação. Por exemplo, uma agressão sexual que culmina no assassinato de uma mulher por um desconhecido.
Femicídio infantil: morte de uma menina com menos de 14 anos de idade cometida por um homem no âmbito de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder conferido pela sua condição de adulto sobre a menor idade da menina.
Femicídio familiar: Morte de uma mulher no âmbito de uma relação de parentesco por consanguinidade, afinidade ou adoção entre vítima e agressor.
Femicídio por conexão: Morte de uma mulher que está “na linha de fogo”, no mesmo local onde um homem mata ou tenta matar outra mulher. Pode se tratar de uma amiga, uma parente da vítima - mãe, filha - ou de uma mulher que se encontrava no mesmo local onde o agressor atacou a vítima.
Femicídio sexual sistêmico: Morte de mulheres que são previamente sequestradas, torturadas e/ou estupradas. Pode ter duas modalidades:
Sexual sistêmico desorganizado: Quando a morte das mulheres está acompanhada de sequestro, tortura e/ou estupro. Presume-se que os sujeitos ativos matam a vítima num período de tempo determinado.
Sexual sistêmico organizado: Presume-se que, nesses casos, os sujeitos ativos atuam como uma rede organizada de feminicidas sexuais, com um método consciente e planejado por um longo e indeterminado período.
Femicídio por prostituição ou ocupações estigmatizadas: morte de uma mulher que exerce prostituição e/ou outra ocupação (como strippers, garçonetes, massagistas ou dançarinas de casas noturnas) cometida por um ou vários homens. Inclui os casos nos quais o(s) agressor(es) assassina(m) a mulher motivado(s) pelo ódio e misoginia que a condição de prostituta da vítima desperta nele(s). Essa modalidade evidencia o peso da estigmatização social e justificação da ação criminosa por parte dos sujeitos: “ela merecia”; “era uma mulher má”; “a vida dela não valia nada”.
Femicídio por tráfico de pessoas: morte de mulheres produzida em situação de tráfico de pessoas. Por “tráfico”, entende-se o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, valendo-se de ameaças, uso de força ou outras formas de coação - quer seja rapto, fraude, engano, abuso de poder, concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios - para obter o consentimento da(s) pessoa(s), com fins de exploração. Essa exploração inclui, no mínimo, a prostituição alheia ou outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou práticas análogas à escravidão, a servidão ou a extração de órgãos.
Femicídio por contrabando de pessoas: morte de mulheres oriunda de situação de contrabando de migrantes. Por “contrabando”, entende-se a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado do qual a mesma não seja cidadã ou residente permanente, no intuito de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício de ordem material.
Femicídio transfóbico: morte de uma mulher transgênero ou transexual, em que o(s) agressor(es) a mata(m) por sua condição ou identidade de gênero transexual, por ódio ou rejeição.
Femicídio lesbofóbico: morte de uma mulher lésbica, em que o(s) agressor(es) a mata(m) por sua orientação sexual, por ódio ou rejeição.
Femicídio racista: morte de uma mulher por ódio ou rejeição à sua origem étnica, racial ou seus traços fenotípicos.
Femicídio por mutilação genital feminina: morte de uma menina ou mulher resultante da prática de mutilação genital (procedimentos que envolvem a remoção total ou parcial dos órgãos genitais externos ou ferimentos dos órgãos genitais femininos sem ração médica).
Essa lista não é exaustiva. Há outras formas de morte violenta de mulheres que também podem estar relacionadas a gênero.
5.4 Femigenocídio
Segato postulou o termo femigenocídio em 2011 como uma proposta para adaptar diferentes categorias de crimes ao aspecto jurídico, tanto em Cortes Nacionais como em Tribunais Internacionais de Direitos Humanos (SEGATO, 2012). A autora parte do conceito de violência sistêmica para enfatizar a necessidade de tipificar diferentes tipos de violência contra a mulher, marcando a diferença entre os crimes que podem ser personalizados, ou seja, interpretados a partir de relações interpessoais e aqueles que não. Os objetivos dessa tipificação são aumentar a eficácia da investigação criminal e criar condições para que parte desses crimes se torne competência da jurisdição internacional. O crime que alcance o tipo de femigenocídio obterá um grande impacto na visibilização do caráter violentogênico das relações de gênero em geral e a desprivatização dos crimes de gênero (SEGATO, 2012).
Segato defende a importância de criar protocolos de investigação diferenciados para garantir a devida diligência exigida pelos instrumentos de justiça internacional dos direitos humanos. Mesmo que o discurso das autoridades pressione para que os crimes permaneçam enquadrados no âmbito da privacidade, a autora argumenta que há sérios indícios da tendência em aumento dos crimes de gênero não confinados à esfera das relações privadas. A Corte Interamericana de Direitos já tem feito julgamentos declarando a responsabilidade dos Estados nos crimes de mulheres por razões de gênero.
Segato propõe que, apesar de toda a violência feminicida/femicida tratar-se de um epifenômeno das relações de gênero, devem-se distinguir dois tipos: 1. A que pode ser referida a relações interpessoais (violência doméstica e crimes seriais) e 2. As que têm características não personalizáveis (destruição das mulheres do bando inimigo no conflito bélico e na trata de pessoas) (SEGATO, 2012).
Somente os feminicídios de natureza impessoal são chamados de femigenocídio, porque têm um caráter sistemático e repetitivo que os diferencia dos crimes interpessoais. Assim, os femigenocídios são entendidos como crimes genéricos, sistemáticos, impessoais e pode ser deles removida a categoria de intimidade dos agressores (SEGATO, 2012).
Os assassinatos de mulheres por razões de gênero podem encaixar em diversas classificações e se apresentar nas formas individuais e coletivas, ativas ou passivas, pessoais e impessoais. A continuação ampliará as diferentes formas de feminicídio e seus impactos, começando pelo tipo que agrupa o maior número de casos. O feminicídio íntimo, presente nos entornos privados, é decorrente de agressões perpetradas por membros da família, usualmente precedido por diversas formas de violência, que variam em intensidade e severidade até ocasionar o evento fatal.
6 Violência por parceiro íntimo
A violência contra as mulheres é uma forma explícita de poder, recurso utilizado pelos agressores para garantir obediência e manter o controle sobre elas. O feminicídio habita na desigualdade estrutural entre mulheres e homens, assim como na dominação dos homens sobre as mulheres, que têm na violência de gênero um mecanismo de reprodução da opressão (LAGARDE, 2008). A violência se comporta de forma cíclica (Kerle LUCENA et al., 2016), alternando períodos de calma com episódios de agressão. Paulatinamente, as agressões vão se tornando mais fortes e frequentes e podem culminar no fim da vida da mulher.
Mulheres no mundo todo, independentemente da situação econômica, idade ou educação, estão expostas à violência (UNITED NATIONS, 2015). Entre 27,8 e 32,2% das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam haver experimentado alguma forma de violência física e/ou violência sexual cometida pelo parceiro íntimo durante a vida (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013). A prevalência da exposição à violência tem aumentado entre mulheres de 15-19 anos, o que sugere que a violência começa muito cedo nos relacionamentos. Todavia, o maior pico de violência está entre mulheres de 40-44 anos (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013). As estimativas de exposição à violência ao longo da vida variam amplamente de 7 a 77% no mundo. Estima-se que a exposição à violência durante o último ano esteja em torno de 10% (UNITED NATIONS, 2015).
Todas as formas de violência têm severas consequências na vida e qualidade de vida da mulher. Violências múltiplas, crescentes e contínuas podem terminar em feminicídio ou suicídio forçado.
Entre mulheres que têm sido vítimas de violência pelo parceiro, é muito provável que ocorra um ato de violência grave (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2002). O principal fator de risco para homicídio por parceiro íntimo é a violência doméstica prévia (CAMPBELL et al., 2007). Paradoxalmente, o término do relacionamento violento é um fator de risco para a violência letal pelo parceiro íntimo (CAMPBELL et al., 2003). E a separação do parceiro agressor nem sempre garante a secessão da violência, já que as mulheres continuam sofrendo violência em forma de ameaças, intimidação e perseguição, mesmo depois de deixar os parceiros. O primeiro ano posterior à separação é o período de mais risco para feminicídio (CAMPBELL et al., 2003).
7 Feminicídios íntimos
Esta é a categoria de feminicídio mais comum. Como mencionado anteriormente, feminicídios íntimos são os perpetrados por homens com os quais a vítima tem ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência ou afins, e incluem crimes cometidos por parceiros sexuais, maridos, namorados. As mulheres também podem ser autoras de assassinatos em entornos familiares. No entanto, a maior parte deles são consequência de ações em defesa própria ou em resposta a agressões físicas ou intimidação. Estima-se que 18% dos homicídios em contextos íntimos são perpetrados por mulheres, comparados, com 82%, que têm perpetradores masculinos (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019).
A maioria das mulheres que são alvos de agressão vivencia vários episódios ao longo do tempo. Geralmente, diversos tipos de abuso coexistem: psicológicos, sexuais, físicos, econômicos, morais, patrimoniais, entre outros. As mulheres com frequência estão envolvidas emocionalmente ou são economicamente dependentes de quem as vitimiza, contribuindo para a perpetuação e aceitação da violência (ELLSBERG et al., 2000; Etienne KRUG et al., 2002).
As justificativas para continuar em um relacionamento violento incluem medo de retaliação, falta de meios alternativos de suporte econômico, preocupação com os filhos, dependência emocional, falta de apoio da família ou amigos, esperança de que o homem abusivo mude o comportamento e a estigmatização associada a ser divorciada (ELLSBERG et al., 2000). Pesquisas mostram que o tempo médio que as mulheres passam em um relacionamento violento está em torno de 5 a 10 anos, dependendo da idade da mulher (ELLSBERG et al., 2000).
Uma pequena proporção de mulheres que sofre violência procura ajuda. Nesses casos, as vítimas recorrem principalmente a amigos, parentes ou instituições de saúde. A proporção de mulheres que consulta a polícia é inferior a 10%; entre os motivos para esta baixa procura estão, sobretudo, a limitada quantidade de mulheres policiais, falta de acessibilidade aos serviços, medo ou vergonha, acreditar que a polícia não pode fazer nada a respeito ou desejo de manter o incidente violento em privado (UNITED NATIONS, 2015). A resposta das mulheres ao abuso é muitas vezes limitada pelas opções disponíveis para elas. Considera-se, ainda, a falta de uma resposta positiva da sociedade e das instituições Estatais.
A análise dos fenômenos de violência por parceiro íntimo deve reconhecer a influência dos fatores culturais construídos em torno de papéis e comportamentos de homens e mulheres, assim como a situação desigual do poder das mulheres explicada pela falta de acesso aos recursos: sanitários, alimentares, educativos, tecnológicos, econômicos, laborares, jurídicos, entre outros.
8 Outras formas de feminicídio
Formas de feminicídio menos comuns, mas igualmente relevantes, como o feminicídio íntimo, em que é possível identificar um componente de gênero, afetam mulheres e meninas ao longo do ciclo vital. Apesar de a violência acometer todo o grupo de mulheres, algumas são mais vulneráveis a determinadas formas de violência e violência letal.
8.1 Feminicídios seletivos por gênero
A razão esperada de nascimentos varia de 102 a 106 homens por 100 mulheres; razões mais altas do que o normal - às vezes tão altas como 130:100 - foram observadas em alguns países do sul e leste da Ásia e países da Ásia Central (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2011). Abortos seletivos que favorecem os bebês homens podem ser rotulados de femicídio em alguns contextos (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019).
A tradição pela herança patrilinear e a função dos meninos de fornecer suporte econômico e garantir a segurança integram um conjunto de normas sociais que valorizam mais filhos do que filhas. Além disso, a tendência ao declínio do tamanho da família, promovido por políticas que restringem o número de filhos, é um reforço à preferência pela prole masculina profundamente enraizada na sociedade. Como resultado, as mulheres estão sob pressão familiar e da sociedade para gestar filhos. Fracassos podem levar a consequências que incluem: violência, rejeição pela família conjugal ou mesmo morte. As mulheres podem ter que continuar a engravidar até que nasça um menino, colocando assim sua saúde e sua vida em risco. A seleção do sexo pode ocorrer durante a gravidez, após conhecer o sexo pré-natal, por meio de aborto seletivo ou após o nascimento por infanticídio ou negligência infantil feminina.
8.2 Feminicídios em mulheres aborígenes e indígenas
Mulheres e meninas indígenas têm uma maior prevalência de violência física e sexual, principalmente proveniente de parceiros íntimos, e enfrentam contextos de marginalização social, cultural, econômica e política, o que agrava suas vulnerabilidades. Dados sobre assassinatos relacionados ao gênero neste recorte de mulheres são muito escassos, sendo um desafio analisar de forma abrangente este fenômeno. Dados do Canadá mostram que meninas aborígenes e indígenas podem experimentar níveis muito maiores de violência do que as mulheres não aborígenes, tanto em termos de vitimização como de violência letal. Casos de assassinato e desaparecimento de um grande número de mulheres aborígenes têm sido reportados no Canadá e na Guatemala (UNICEF, 2013).
8.3 Feminicídios decorrentes de mutilação genital
Em 29 países da África e do Oriente Médio, há a prática de mutilação genital. Mais de 125 milhões de meninas e mulheres sobreviventes têm sido submetidas a este tipo de lesão (UNITED NATIONS, 2015). A prática inclui procedimentos de remoção total ou parcial dos genitais externos que causam lesões por motivos não médicos. A mutilação genital feminina não beneficia meninas ou mulheres, pelo contrário, pode causar sangramento grave, problemas urinários, esterilidade, cistos, infecções e mortes.
De acordo com o relatório de 2008 da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Associação para o Planejamento da Família, existem quatro tipos de mutilação genital feminina:
Tipo I: remoção parcial ou total do clitóris.
Tipo II: remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios.
Tipo III: estreitamento do orifício vaginal por meio da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem remoção do clitóris.
Tipo IV: todas as outras intervenções sobre os órgãos genitais femininos, por exemplo, punção, perfuração, incisão, corte e cauterização.
A mutilação é realizada principalmente em meninas dos 0-15 anos de idade, mas mulheres adultas e casadas estão sujeitas à prática. A mutilação genital feminina é uma manifestação de desigualdade de gênero, que está enraizada em estruturas de ordem religiosa, social, econômica e política, e representa uma forma de controle social sobre o corpo da mulher. É considerada uma preparação para a idade adulta e para o casamento, porque reprime o desejo sexual das mulheres e garante a fidelidade conjugal, supostamente prevenindo comportamentos considerados imorais. Praticantes da mutilação genital feminina acreditam que retirar do corpo da mulher as partes “masculinas” que causam o prazer sexual pode ajudar a preservar a feminilidade e aumentar o prazer masculino (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; ASSOCIAÇÃO PARA O PLANEJAMENTO DA FAMÍLIA, 2008).
8.4 Feminicídios agravados por casamento infantil
O casamento realizado com crianças é uma prática altamente perigosa, além de ser considerado uma manifestação de discriminação contra as meninas. O casamento infantil é mais comum em países do sul da Ásia, na África subsaariana e na Índia (UNITED NATIONS, 2015). Casamentos infantis se dão principalmente em meninas de baixas condições econômicas, em áreas rurais, e usualmente com homens muito mais velhos do que elas, o que as torna potenciais vítimas de todo tipo de violência, incluindo a violência letal.
8.5 Feminicídios por “honra”
Assassinatos de mulheres e meninas relacionados com a “honra” são geralmente cometidos por membros masculinos da família que consideram que o comportamento de membros femininos envergonhou a família e precisa ser sancionado. Padrões de comportamentos percebidos como transgressores dos papéis patriarcais de gênero incluem relações pré-matrimoniais com um homem que não seja o futuro marido escolhido pela família ou ter sido vítima de estupro. Nesse contexto, o assassinato da mulher é considerado um meio de restauração do respeito e remoção da vergonha ou humilhação da família e da tribo (AFGHANISTAN INDEPENDENT HUMAN RIGHTS, 2015).
8.6 Feminicídios por dote
Femicídios de mulheres relacionados com dote são relatados nos países do sul da Ásia incorporados às tradições religiosas e culturais. Esses ocorrem quando as noivas são mortas ou levadas ao suicídio após serem submetidas ao assédio e abuso contínuo pela família do noivo em um esforço para ficar com o pagamento do dote ou aumentar seu valor (dinheiro ou bens). O dote é uma transação comercial que reforça a dependência financeira das mulheres em relação ao marido. Uma manifestação dessa prática é a queima da esposa e sua apresentação como um caso de incidente doméstico ante justiça criminal, alegando que o acidente foi causado por explosão de um fogão de cozinha.
Países em que as mortes por dote são prevalentes têm adotado legislações que proíbem a prática do dote, mas o costume ainda permanece em alguns deles (UNESCAP, 2012).
8.7 Feminicídios decorrentes de Cyber-bullying
Novas formas de violência emergentes do aumento no uso de dispositivos eletrônicos e redes sociais são cada vez mais frequentes. O cyber-bullying inclui a distribuição de conteúdo sexualmente explícito como fotos e vídeos para constranger e envergonhar as mulheres. A ampla difusão das imagens e a dificuldade em removê-las permanentemente da Internet significam que este tipo de abuso pode ter consequências duradouras (UNITED NATIONS, 2015). Mortes relacionadas a cyber-bullying podem incluir suicídios forçados pela degradação da imagem da mulher nas redes ou por agressão dos familiares ao descobrir os conteúdos.
8.8 Feminicídios decorrentes de situações de conflito armado
Violência sexual perpetrada por militares e policiais durante situações de conflito é uma das formas mais frequentes de violência sexual não perpetrada por parceiro íntimo. A prática é usada como arma de guerra para atacar moralmente o bando oponente. As partes em conflito recorrem à violência sexual como uma ferramenta para instilar o medo, humilhar e punir ou, no caso de grupos terroristas, como forma de reforçar sua ordem social e territorial (Christine CHINKIN; Madeleine REES, 2018). A violência sexual é usada para forçar confissões, extrair informações, punir, bem como aterrorizar opositores. As agressões incluem estupro, agressão, tortura e humilhação sexual.
Estupros e outros atos de violência sexual perpetrados por forças governamentais e milícias durante operações terrestres, invasões domiciliares, em postos de controle, constituem crimes contra a humanidade (CHINKIN; REES, 2018).
Os assassinatos de mulheres em situações de conflito bélico são frequentemente precedidos de abuso sexual. Mulheres, às vezes, são forçadas à escravidão e sujeitas a abusos sexuais contínuos e coletivos. Embora não seja possível registrar com precisão os assassinatos de mulheres e meninas relacionados a gênero durante o conflito armado, é importante notar que a violência sexual, o sequestro e a escravidão, acompanhados ou precedidos por assassinato intencional, têm sido sistematicamente usados contra as mulheres em tempos de conflito bélico (CHINKIN; REES, 2018).
8.9 Feminicídios por tráfico de pessoas
O tráfico de pessoas faz referência ao recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas por meio de ameaça ou uso de força ou outras formas de coerção, de abdução, fraude, engano, abuso de poder, em que a vítima está em posição de vulnerabilidade. Pode, também, envolver dar ou receber favores financeiros, tais como pagamentos e outros benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que exerce o controle sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá prostituição de terceiros ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas, servidão ou remoção de órgãos (UNITED NATIONS, 2000). As formas de tráfico afetam notadamente mulheres e crianças sendo predominantemente traficadas para exploração sexual.
Assassinatos violentos de mulheres ocorrem no contexto de fenômenos como crime organizado, tráfico de drogas, gangues, migração em massa e cadeias de tráfico de pessoas e drogas. Assassinatos relacionados a vítimas de tráfico de pessoas são susceptíveis de afetar mulheres e envolver motivos de gênero, ainda que não se saiba muito sobre assassinatos de mulheres relacionados ao gênero no contexto do crime organizado. Pesquisas em gangues mostraram que, embora os membros de gangues do sexo masculino geralmente experimentem taxas mais altas de vitimização, membros femininos estão expostos à violência sexual tanto por gangues adversárias quanto pelos membros masculinos da própria gangue. Mulheres vinculadas a homens membros de gangues têm maior risco de violência grave do que mulheres sem tais vínculos (MANJOO, 2012; UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019).
8.10 Feminicídios em mulheres com ocupações estigmatizadas
Incluem, além das trabalhadoras sexuais, strippers, garçonetes, massagistas ou dançarinas de casas noturnas. O assassinato de trabalhadoras sexuais é exemplo de homicídio de mulheres em que estão presentes atitudes de possessividade e superioridade masculina. Trabalhadoras sexuais têm maior taxa de vitimização que qualquer conjunto de mulheres. As fontes de registro de óbitos e de investigação podem subestimar os homicídios de mulheres vinculadas ao trabalho sexual. Prostitutas são mortas principalmente por clientes e assassinos seriais (Devon BREWER et al., 2006). Os motivos variam desde desacordos pelo valor do pagamento, ódio a profissionais do sexo e mulheres sexualmente ativas, roubo, discriminação por ser portadora de HIV ou outras doenças de transmissão sexual, desacordo no uso de métodos de proteção, entre outros.
Fatores que contribuem para um aumento do risco de crimes violentos incluem a falta de abrigo, proximidade a áreas de alta criminalidade, envolvimento em comportamentos de alto risco, doença mental e uma história de vitimização anterior. Isso significa causas derivadas da natureza do seu trabalho (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019).
8.11 Feminicídios por identidade de gênero e orientação sexual
Homicídios por orientação sexual e identidade de gênero estão insuficientemente documentados. Embora as estatísticas disponíveis sejam limitadas, os relatórios da sociedade civil sugerem que a violência física grave motivada pelo ódio e preconceito com base na orientação sexual e identidade de gênero é uma realidade diária para muitos. Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, intersexuais, queer, assexuais e outros grupos (LGBTIQA+), assim como ativistas que trabalham nesse setor, são alvejados por não se conformarem com estereótipos de sexualidade e/ou identidade de gênero, tornando-se vítimas de crimes homofóbicos (MANJOO, 2012).
Pessoas LGBTIQA+ são especialmente vulneráveis a muitos tipos de crimes violentos - desde assassinatos em espaços privados a assassinatos em espaços públicos, conhecidos como “limpeza social”. Também estão sujeitas à extorsão por chantagistas, que ameaçam revelar sua identidade ao público, e a abuso de funcionários do Estado, especialmente da polícia (MANJOO, 2012). Mortes de mulheres com identidade de gênero feminina devem ser consideradas feminicídios, uma vez que os corpos femininos e feminizados respondem à lógica das relações desiguais de poder.
8.12 Feminicídios por acusações de bruxaria
Assassinatos de mulheres por acusações de feitiçaria/bruxaria são crimes cometidos por suspeitas do uso de poderes “sobrenaturais”. São principalmente relatados em alguns países da África, Ásia e Ilhas do Pacífico. Os estudos que analisam as mortes naqueles países apontam que, embora as mulheres jovens, incluindo meninas, possam ser acusadas de bruxaria e, por isso, mortas, há um risco crescente de que mulheres sejam acusadas de feitiçaria à medida que atinjam idade mais avançada. Mulheres em áreas rurais, que vivem sozinhas, como costuma ser o caso das viúvas, estão particularmente expostas à acusação de bruxaria, assim como mulheres idosas com crescente dependência financeira dos membros masculinos da família. Entre mulheres percebidas como “perigosas” para os homens e rotuladas de bruxas/feiticeiras, o assassinato é mais frequente e justificado (MANJOO, 2012).
Considerações finais
Definições e classificações das diferentes formas de femicídio/feminicídio têm sido propostas na tentativa de abarcar todos seus desdobramentos e facilitar seu estudo, compreensão, análise, denúncia e rechaço social.
Diferentes formas de violência causam crimes de feminicídios e atingem grupos específicos de mulheres e meninas. Como visto, esses crimes podem acontecer desde antes do nascimento, com o aborto seletivo de fetos femininos; durante a infância por negligência, violência sexual, casamento infantil e maus-tratos; na adolescência e idade adulta, por meio de violência nos relacionamentos, dote, preservação da “honra masculina”, orientação sexual, ocupações estigmatizadas, conflitos armados, sequestros, tráfico, acusações de bruxaria e, recentemente, decorrentes de violência virtual.
São poucas as formas de homicídio feminino que não podem ser tipificadas como crimes de feminicídio. No entanto, ainda há invisibilidade da violência contra as mulheres e suas profundas consequências justificadas pelo pequeno número de vítimas, debilidade feminina, configuração genética, crenças religiosas, tradições históricas ou outros argumentos supérfluos que contribuem para manter e perpetuar o privilégio masculino estrutural.
Cientes da tendência crescente de assassinatos femininos no Brasil na última década, a queda na taxa de homicídios vista em 2018 não pode ser entendida como decorrente da melhoria das condições das mulheres no país. A pandemia do coronavírus e o crescente uso de tecnologias de informação aprofundam as antigas brechas de gênero, deixando as mulheres expostas a novas formas de violência, potencialmente letais dentro dos entornos privados, e a situações econômicas agravadas.
Os Estados e as instituições estão na obrigação de garantir a equidade de gênero e propiciar entornos de segurança para as mulheres em todas as etapas da vida, o que passa também pelo emprego das tecnologias para o aperfeiçoamento das condições de apoio - como segurança e emprego. Em países onde há taxas altas de assassinatos de mulheres, como Brasil, intervenções Estatais são imprescindíveis. Políticas, leis e programas para o enfrentamento da violência contra as mulheres precisam ser sérios, efetivos, participativos e financiados de maneira adequada para garantir sua sustentabilidade.
O fenômeno da violência contra as mulheres é complexo, multicausal e varia segundo o contexto histórico, cultural e social. O dito fenômeno não afeta somente as mulheres em particular, mas as mulheres no seu conjunto, seus filhos e dependentes (pais, idosos, pessoas com necessidades especiais) e até os mesmos homens que estão imersos em dinâmicas socioculturais que os violentam e os tornam sujeitos violentos. Formas coletivas de feminicídios ou femigenocídios também devem ser visibilizadas e punidas. A erradicação dos feminicídios não é uma tarefa de competência exclusiva de mulheres, mas de homens, que são os atores principais das violências feminicidas.
Desigualdade nas estruturas de poder e de gênero criam cenários nos quais as mulheres são mais vulneráveis à violência letal, principalmente no contexto privado, mas não restrito a este. Sistemas acadêmicos, jurídicos e governamentais fortes, com ampla participação feminina, são indispensáveis para mudar as normas sociais em torno da tolerância e do uso da violência. Dessa forma, prevenir e evitar casos de feminicídio são mecanismos necessários de acesso e apoio às vítimas, incluindo canais de denúncia, abrigos, serviços de saúde, apoio jurídico e empoderamento econômico para permitir o trânsito a formas de vida igualitárias entre homes, mulheres e pessoas com outras identidades.