Introdução
A origem do termo féminisme se situa por volta de 1837 e é frequentemente atribuída ao sansimonista Charles Fourier (1772-1837). O termo descrevia, até onde se sabe (Karen OFFEN, 1987), os ideais de emancipação das mulheres do jugo dos homens. O mesmo não ocorre com a palavra féministe, cuja introdução no dicionário Le Robert de 1872 retoma o uso a partir de Alexandre Dumas Filho, mas, como atestado por Offen (1987), a carga era pejorativa e pouco elucidativa sobre as origens factuais do termo. Com o passar dos anos, à medida que a França se via inserida em turbulências políticas constantes, o termo féministe (feminista)1 adquire novas significações. Maira de Abreu (2010), ao trabalhar com o desenvolvimento semântico do termo ‘feminista’ com o passar dos anos, relata ser a sua definição uma atitude não neutra. O que se constata, ao contrário, são variantes segundo a época e o contexto, tornando-o um profícuo campo de reflexão no seio da história das mulheres.
Ao retomarmos os estudos da luta das mulheres ao longo do século XIX, levando em consideração a evolução dos ideais conservadores assinalados no período da Terceira República (Helen CHENUT, 2012), constata-se, em paralelo, a evolução do que ficou conhecido como sendo uma imprensa voltada para a reivindicação das mulheres por direitos.2 Maité Albistur e Daniel Armogathe (1977), ao realizarem o mapeamento das publicações desde o início da Terceira República, em 1870, relataram o aparecimento de 35 novos jornais em prol da luta feminina por direitos na sociedade francesa. Mesmo que boa parte dos periódicos não tenham obtido o sucesso desejado, o número não deixa de ser expressivo. São publicações dirigidas em sua grande maioria por mulheres, funcionando como importante canal de comunicação entre os propósitos das militantes que reclamavam por direitos às mulheres, preocupadas especialmente em estabelecer o diálogo com o seu público visado.
Dentre as personagens que ficavam a cargo da diretoria do que podemos considerar a nova vertente de fazer jornalístico, Hubertine Auclert destaca-se pelo seu pioneirismo ao se autodeclarar como féministe já em 1880, quando, após ter comparecido a um casamento na posição de delegada de uma sociedade de livre pensadores, escreve uma carta endereçada ao prefeito justificando sua atitude (Ángela PINTOR, 2016). Oriunda de uma área rural no departamento de Allier, Auclert se dirige a Paris em 1873, após ter tido contato com as propostas de feminismo defendidas por Victor Hugo e vinculadas à L’Association pour le Droit des femmes [A Associação para os Direitos da Mulher], instituição fundada anteriormente em 1870 e que estava sob direção de Maria Deraismes e Léon Richer. (Laurence KLEJMAN; Florence ROCHEFORT, 1985). Apesar dos benefícios do contato de Auclert com a Associação, o rompimento foi inevitável, sobretudo devido à adoção de uma abordagem mais agressiva da jovem face o tom moderado empreendido por Deraismes e Richer:
Hubertine empreendeu todo tipo de manifestações em defesa da causa feminista e sufragista: ela foi uma grande agitadora popular, organizando manifestações e marchas de protesto, participou de comícios e congressos políticos onde defendeu sua causa, recusou-se a pagar impostos e até propôs queimar publicamente o Código de Napoleão na comemoração do centenário de sua criação em 1904. (PINTOR, 2016, p. 2)3
Seus objetivos também começaram a se converterem em outra direção, marcados por uma causa principal: a instauração de um sufrágio que, de fato, considerasse as mulheres como cidadãs votantes. Joan Scott (2002) relembra que Hubertine Auclert se esforçava em demonstrar sua capacidade (e, consequentemente, as das demais mulheres) por meio dos seus atos. Suas batalhas eram travadas não apenas em manifestações de rua, mas sobretudo nas páginas do seu jornal, La Citoyenne, publicado entre 1881 e 1891. Mesmo após o fim do seu periódico, Auclert será convidada, graças ao reconhecimento que começou a ganhar nos meios intelectuais (PINTOR, 2016), a escrever em outras publicações, tais como La libre parole (1891-1894) e no Le Radical (1896-1909).
As manifestações de Hubertine em prol da luta das mulheres por direitos a levará, inclusive, após a sua estadia na Argélia para acompanhar o marido Antonin Levrier, entre 1888 a 1892, a redigir o Les femmes arabes en Algérie, publicado em 1900. Contudo, apesar das contribuições para o debate no contexto sócio-sexual, o olhar levantado pela obra serve como instrumento de compreensão sobre o desenvolvimento de um feminismo imperialista (Isabelle ERNOT, 2011). Nossa análise recai, nesse sentido, sobre os discursos produzidos por Hubertine Auclert retomados no seio do seu jornal La Citoyenne, de 1881. Primeiramente, observaremos o que foi a imprensa assumida hoje como sendo feminista, situada ao longo século XIX. Em seguida, nos deteremos na análise dos cinco primeiros editoriais, por meio da semiótica discursiva. Por fim, trazemos uma reflexão do papel do La Ciotyenne para a construção do significado do féminisme/féministe, sobretudo no cenário francês, bem como a importância do jornal para compreendermos o contexto francês das mulheres do século XIX.
Imprensa ‘feminista’ francesa: percursos e amadurecimentos
No momento de efervescência da escrita jornalística, durante a Terceira República, muitos jornais a cargo de mulheres surgem no cenário francês, cada qual à sua maneira. Georges Duby, Genevive Fraisse e Michelle Perrot (1994, p. 548-549) destacam que “o grau de emancipação feminina de uma sociedade e o seu grau de tolerância do feminismo podem ler-se através da evolução e do acolhimento da imprensa feminista”.
Importante nos atentarmos sobre os gêneros textuais que prefiguravam em tais publicações, onde se encontra o recorrente emprego de ironias, do recurso da ficcionalidade, do uso da forma conversacional e o recurso da escrita íntima, dado pela presença da primeira pessoa do singular projetada no interior do texto (Marie-Éve THÉRENTY, 2007). O desenvolvimento do gênero jornalístico propriamente dito se dará pela urgência da sociedade por atualidades, acompanhando o ritmo do dia do cidadão francês. O jornal torna-se, a partir de então, um instrumento capaz de oferecer um caminho privilegiado dos seus discursos para a cidade, alcançando, sobretudo, os grupos sociais dos indivíduos que tiverem o status de cidadão interditado (Alice PRIMI, 2006, p. 15). Tendo isso em vista, pode-se compreender a evolução da causa a partir do mapeamento prévio de uma imprensa preocupada pela luta das mulheres por direitos em três momentos específicos: iniciando pelo sansimonismo, perpassando pela Monarquia de 1830, até a Terceira República, instaurada em 1871.
No período da Monarquia de Julho de 1830, tem-se a estruturação de uma imprensa por mulheres socialistas, “hoje considerada como a primeira experiência conhecida no mundo de um periódico redigido por mulheres e destinado às mulheres” (Christiane VEAUVY, 2017, p. 18). São as publicações La Femme nouvelle (1832), de Suzanne Voilquin e Claire Bazard e, em especial, La Femme libre (1832). Jornal destinado às mulheres operárias, o periódico La Femme libre foi fundado por duas jovens trabalhadoras, Marie-Reine Guindorf e Désirée Véret. Ao contrário do que se possa imaginar, a origem humilde das editoras não foi um empecilho para a produção de conteúdo do jornal, marcada pelo recurso de uma escrita mais intimista, recorrente no período (THÉRENTY, 2007, p. 124). A contribuição desta publicação ressalta-se pelo fato de as duas editoras perceberam que “[…] sua ‘subalternidade’ como mulher é profundamente mais enraizada nas mentalidades do que sua interioridade como proletária”. (ALBISTUR; ARMOGATHE, 1977, p. 423, tradução nossa).
Anos depois, em meados de 1848, Eugénie Niboyet publica o La Voix des Femmes, considerado o primeiro jornal féministe da nova República (SCOTT, 2002). Autoproclamado como sendo um “Journal socialiste et politique, organe des intérêts de toutes” [Jornal Socialista e político, órgão dos interesses de todos], o jornal aparece na cena pública com publicações diárias por três semanas, passando a edições semanais até seu fim em 20 de junho do mesmo ano (Alexandre ZÉVAÈS, 1931). Em agosto de 1848, Jeanne Deroin, que também compunha o quadro de jornalista do La Voix des Femmes, decide publicar seu próprio jornal, o l’Opinion des femmes, dando continuidade ao periódico antecessor. O tom do jornal, conforme atesta Zévaès (1931), passa a ser mais sério, aproximando-se do caráter doutrinal.
Apesar dos avanços significativos da imprensa féministe no decorrer das transformações sofridas pela França, o marco do seu desenvolvimento ocorreu apenas com o fim da Comuna e início da Terceira República, em 1871. Conforme mencionado anteriormente, Albistur e Armogathe (1977), ao mapearem as novas publicações que circundam a sociedade francesa da Terceira República, relatam trinta e cinco novas publicações cujos conteúdos se voltam para a melhoria da condição das cidadãs francesas na sociedade. São jornais como o La femme (1878), de Sarah Mood, La femme dans la famille et dans la société (1880), de Louise Koppe e L’esprit de la femme (1880-1890), de Renée Marcil. Ao refletirmos sobre o número de novos periódicos que ganham forma a partir da Terceira República, podemos atribuir parte do fenômeno à promulgação da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, em que são postulados 70 artigos que definem a liberdade de imprensa, os espaços dedicados à sua circulação, bem o mínimo necessário para a publicação de um novo jornal: nome do periódico, local de funcionamento, nome do diretor e a indicação do local onde serão impressas suas edições.
A despeito da quantidade de publicações que passaram a circular pelo cenário francês, muitas tiveram um curto período de existência. Pode-se inferir a dificuldade de encontrar assinantes e de vendê-los em espaços públicos - sintoma de uma alta rejeição por parte da sociedade, dos conteúdos por eles divulgados (ALBISTUR; ARMOGATHE, 1977). O caso mais célebre que nos permite ilustrar a desaprovação enfrentada pelas publicações féministes do período, consiste no Le Droit des Femmes. Publicado por Léon Richer e Maria Deraismes, em 1869, o periódico se constituía a partir de campanhas em favor da emancipação civil da mulher. Contudo, conforme relatado por estudos da época (Li DZEH-DJEN, 1934), o recebimento da população consistiu em um ataque de risos, e, apesar do apoio de personalidades ilustres pela causa, como é o caso do nome de Victor Hugo, serão necessários mais alguns anos para que a nova imprensa nomeada féministe pudesse circular.
Dentre os jornais publicados na Terceira República, o La Citoyenne, corpus escolhido para nosso estudo, se destaca por ter permanecido em cena por um período de cerca de dez anos, indo de 1881 a 1891 sob direção da reconhecida militante Hubertine Auclert. É possível, ademais, localizar quase que a totalidade das publicações digitalizadas pelo acervo da Bibliothèque Spécialisées de Paris, cujo acesso pela plataforma é gratuito. Hubertine Auclert, ao dar início a longa jornada com o La Citoyenne, se encontrava, como mencionado anteriormente, engajada sobretudo em dar ímpeto à corrente que gradualmente se torna o foco de toda a luta das mulheres, o sufrágio universal (KLEJMAN; ROCHEFORT, 1985). O reconhecimento da importância do periódico para a luta das mulheres por direitos é emblemática e merece que nos detenhamos sobre o discurso por ele construído.
Apresentado o que julgamos ser a importância do periódico para o desenvolvimento do que se compreende hoje como ‘féminisme’, nos baseamos, para empreendermos a análise dos editoriais publicados, no aparato teórico oferecido pela semiótica greimasiana. Partimos da forma de apreensão das experiências do mundo representadas por meio da linguagem encontrada na construção dos editoriais, a fim de compreendermos o existir discursivo dessas mulheres. Começaremos pelo texto inaugural, que leva o próprio nome do periódico, “La Citoyenne” (1881) seguido dos quatro editoriais subsequentes: “É o hábito que faz o eleitor” (C’est l’habit qui fait l’électeur, 1881), “O poderio do voto” (La puissance du vote, 1881), “Uma objeção banal” (Une objection banale, 1881) e “As mães podem votar” (Les mères peuvent voter, 1881). Assumimos o editorial enquanto espaço onde são apresentados os objetivos do jornal e a quem ele visa estabelecer o diálogo. A escolha de se trabalhar com os cinco primeiros editoriais do jornal La Citoyenne nos leva à buscarmos uma justificativa nas reflexões levantadas por Norma Discini (2004). A autora permite compreendermos o discurso em suas estruturas separadas, ou unus (cinco editoriais), e o totus enquanto totalidade integral (La Citoyenne), em que “é o recorte do leitor que decide o que é considerado unus ou totus” (p. 34). A partir, portanto, do estudo dos editoriais selecionados, almejamos ilustrar “uma regularidade e uma previsibilidade de um modo de ser e de fazer” (Ibid., p. 35). Nossa discussão será amparada, finalmente, na reflexão em torno da história das mulheres, como também nos apontamentos levantados por algumas pensadoras como Judith Butler (2020), Michelle Perrot (2015), Monique Wittig (1985), Françoise Vergès (2019).
A semiótica do jornal La Citoyenne: o feminismo da terceira república
O primeiro detalhe que chama a atenção no estudo do jornal é a escolha do nome: La Citoyenne, mesmo nome atribuído ao seu primeiro editorial, publicado em 13 de fevereiro de 1881. O jornal se inaugura na cena pública a partir do emprego da forma feminina para a palavra francesa “citoyen” (cidadão), dando destaque à atribuição de um sujeito na posição de “citoyenne” (cidadã). A escolha do nome requer que façamos uma breve reflexão, tendo em vista que “[no] feminino, o título de cidadã conserva todo o seu valor subversivo, ele torna as mulheres indivíduos livres, capazes de pensar por elas mesmas, de apresentar demandas e de defendê-las com perseverança (Marie-Hélène ZYLBERBERG-HOCQUARD, 1993, p. 17, tradução nossa)”.
O narrador do jornal La Citoyenne ilustra o tom contestatório adotado pelo periódico, apresentando o anseio pela reivindicação de atributos de sujeito universal àquelas ofuscadas pelo sufrágio universal masculino de 1848 (SCOTT, 2002). Se formos buscar semelhanças do fenômeno de feminilização das palavras, encontraremos amparos nas obras de Monique Wittig (1985). Para a intelectual, a adoção do gênero feminino na linguagem faz-se relevante no papel de reverter a dominação masculina existente neste campo do saber, em que “erradicá-la não só modificaria a linguagem no seu nível léxico, mas perturbaria a sua própria estrutura de funcionamento” (WITTIG, 1985, p. 7). Anos mais tarde, com o fim do La Citoyenne em 1891 e a sua associação ao Le Radical, em 1896, Hubertine Auclert demonstrou ter permanecido próxima da questão da feminização das palavras, tornando esta luta uma das suas marcas registradas. (PINTOR, 2016)
Passando para o estudo do primeiro editorial propriamente dito, vemos a apresentação endereçada para o leitor do jornal de qual é, de fato, o objetivo almejado pela publicação
Para este jornal, cujo único objetivo é reivindicar a igualdade da mulher e do homem, não só a qualidade civil do Francês, mas também a qualidade política do cidadão, e também - pode parecer estranho para alguns - a análise dos eventos passados e a observação dos eventos presentes nos fazem subordinar a libertação civil das mulheres a sua libertação política. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881)4
A voz projetada pelo La Citoyenne apresenta o objetivo principal como sendo a luta pela reivindicação da “igualdade da mulher e do homem” (l’égalité de la femme et de l’homme). Contudo, tem-se a afirmação de que o jornal realizou “o exame de eventos passados e a observação de eventos presentes” (examen des événements passés et l’observation des événements présents), com vistas a fundamentar a noção de liberdade civil da mulher relacionada com a necessidade da atribuição da sua liberdade política. Podemos adiantar se tratar de um fenômeno de ordem educativa, em que é oferecido um saber de pouca circulação, o da história das mulheres do passado. O apagamento da história das mulheres, encontrado de forma embrionária nas discussões do La Citoyenne, é algo que permanece na ordem do dia (PERROT, 2015).
O retorno ao passado da história das mulheres é ademais apresentado nos editoriais subsequentes. São elencados posicionamentos que estiveram ligados com os aspectos políticos das cidadãs francesas do século XIX.
Em menos de um século, várias revoluções políticas ocorreram; as mulheres nelas estiveram mais ou menos misturadas, elas partilharam o perigo da Bastilha, mas não tiveram nenhuma vantagem na vitória ou na derrota das opiniões que dividem os homens. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881 )5
Antigamente, para ter direito à dominação, era preciso usar traje bordado. Mais tarde, quando o princípio da eleição censitária foi aceito, aqueles que usavam o levitas compartilharam o poder com aqueles que usavam o traje; então o sistema censitário se expandiu; sob Luís Filipe se podia votar desde que se fosse rico o suficiente para comprar uma palheta. Finalmente, em 1848, o trajado e o burguês podiam se aproximar livremente das urnas. (La Citoyenne, nº 2, fevereiro/1881)6
Que os bonapartistas temam ter a obrigação de servir a si mesmos, não surpreenderá ninguém, mas que os republicanos excluam as mulheres da lei, por temer que elas não sejam mais suas servas, isto é, na verdade, vergonhoso. (La Citoyenne, nº 5, março/1881)7
Como característica específica, vemos em textos históricos o recorrente uso de figuras do mundo real, no caso uma ancoragem histórica, que recobrem o discurso (Diana BARROS, 2002). Trata-se de um artifício argumentativo para fazerem os leitores terem mais chance de compactuarem com a verdade oferecida e a rejeitarem, em contrapartida, os atributos negativos que estão colocados em cena - os que restringiam as ações das mulheres. As figuras encontradas no percurso historiográfico recobrem os temas relacionados ao objetivo principal assumido pelo periódico, a saber, a emancipação jurídica das mulheres, bem como: I. Demanda por direitos iguais entre homens e mulheres; II. Reivindicação por melhorias na qualidade política do cidadão francês; III. Revisitação dos acontecimentos passados como ferramenta de luta pela causa das cidadãs; IV. Crítica ao sistema de tutela que coloca às mulheres no mesmo patamar que as crianças e os excluídos da sociedade.
Dando sequência à leitura aqui proposta, percebe-se a adoção do tom mais intimidatório na escrita de Auclert. Ao abordar aspectos relacionados à sociedade francesa, o La Citoyenne critica abertamente o fato da própria sociedade, tal qual ela se concebe no mundo, com suas leis e restrições, ser uma das fontes responsáveis pela discriminação da parcela feminina da população.
É a lei humilhante que, por certidão verbal ou escrita, assimila as mulheres aos homens imbecis e àqueles privados dos seus direitos. As mulheres não estão autorizadas a prestar testemunho nem na certidão de nascimento, nem na certidão de casamento, nem na certidão de venda. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881)8
O valor cidadania é apresentado como algo indispensável ao sujeito-mulher, em que apenas com a conjunção com a qualidade política de cidadã poder-se-á ter uma melhora da sua própria condição. Como forma de levar o destinatário a uma tomada de atitude, vemos sinalizados os valores negativos relacionados à humilhação das mulheres, em que se quiser evitar o destino trágico que a espera, deve concordar com a manipulação que lhe é proposta. Não meramente com a qualidade civil de francesa, outorgada desde a revolução francesa, mas apenas por intermédio da conjunção com os valores de direitos civis básicos a mulher conquistará, de fato, a liberdade face ao mal em que se encontra.
Entretanto, todo o percurso se vê perturbado pelo anti-sujeito homem, sendo este um fator que merece destaque. Ao associar a incidência com a historiografia da luta das mulheres, observa-se a interpretação de que o “sentimento anti-homem estava muito presente entre as ativistas do início do feminismo, que reagiram com ira à dominação masculina”. (bell HOOKS, 2018, p. 18). O problema de tal compreensão de mundo, como igualmente sublinhado pelas reflexões trazidas por Françoise Vergès (2019), é a simplificação da condição da mulher a partir de duas oposições de base, cujo caráter abstrato ignora as realidades existentes, atribuídas a outros marcadores sociais da diferença. O fenômeno, todavia, contribui para o caráter incipiente do féminisme construído por Auclert que, apesar das ressalvas apontadas, assegura a importância do jornal na compreensão do movimento.
Tanto no retorno histórico, quanto no trecho assinalado acima, tem-se a projeção da não-pessoa (ele) no discurso, simulando o efeito de imparcialidade, recorrente na escrita jornalística (BARROS, 2005). Entretanto, o discurso não possui aspectos que permite afirmar ser, de fato, uma escrita imparcial. Ao contrário, os fragmentos extraídos do jornal La Citoyenne apresentam formas explícitas dos valores defendidos pelo seu enunciador. São marcas semânticas que avaliam de forma pejorativa a condição das leis sobre as mulheres: humilhante (humiliante) e imbecis (imbéciles). Ademais, tal ocorrência não é um caso à parte. As ilustrações dos aspectos negativos relacionados ao ‘ser mulher’ na sociedade francesa do século XIX, caso nenhuma mudança radical aconteça, são recorrentes, incitando-as a um dever-fazer.
Isto faz com que não duvidemos que até a mulher não possuir essa arma - o voto - sofrerá do regime do direito masculino. Todos esses esforços serão em vão para conquistar as suas liberdades civis e econômicas. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881)9
Os valores negativos são apresentados a partir da adoção de uma estratégia argumentativa por ilustração, em que o “narrador enuncia uma afirmação geral e dá exemplos com a finalidade de comprová-la” (José Luiz FIORIN, 2018, p. 75). São apresentados os motivos pelos quais uma situação em que os homens permaneçam fazendo leis em benefício próprio não é mais possível, posto que “é o homem que fez as leis atuais, e essas leis não o incomodam. Pelo contrário, elas dão a eles todas as facilidades de nos incomodar” (La Citoyenne,nº 1, fevereiro/1881).10 O La Citoyenne não busca apenas apresentar um posicionamento crítico aos valores vigentes, mas também oferecer ao seu leitor aquilo que julga ser expressamente necessário para ocorrer a mudança: “O que as mulheres precisam para se libertarem da tirania masculina - feita lei - é a posse de sua parte de soberania; é o título de cidadã francesa, é o boletim de voto”11 (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881). Só que, afinal, a quem o jornal se dirige e de que forma estabelece esse contato? Para isso, retomamos, uma vez mais, o primeiro editorial do La Citoyenne. Desde o texto inaugural do jornal, encontramos com quem o narrador-enunciador busca, de fato, se comunicar.
Todas as mulheres preocupadas com os seus interesses e a sua dignidade - sejam elas pobres ou ricas - todas as mulheres darão seu apoio a este jornal que reivindica, portadora dos seus direitos humanos, os seus direitos de cidadã, porque todas as mulheres - de qualquer opinião ou condição que sejam - todas as mulheres sofrem ou podem vir a sofrer da legislação atual. Todas as mulheres têm interesse em possuir o poder de revogar as leis que as inferiorizam e as escravizam. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881)12
Não se trata de uma luta de mulheres isoladas, em que cada qual atua à sua maneira. Pelo fato do regime de dominação masculina estar presente na vida de todas as cidadãs francesas, todas elas são necessárias, se o objetivo é a conjunção com o objeto-valor de cidadã. Prevalece o tema da inexistência de classe social na criação de frentes de mulheres no combate à tirania política que afeta a todas.
A ruptura de barreiras vai além dos grupos das mulheres. O próprio periódico de Hubertine Auclert incita a identificação do seu enunciatário com os valores que a publicação representa, colocando-se lado a lado do seu leitor. É reforçada a necessidade de uma luta de todas as mulheres, visto que, se deixarem a legislação sobre o controle masculino, apenas os interesses destes serão contemplados.
Foi o homem quem estabeleceu as leis atuais, e as mesmas não o restringem. Pelo contrário, dão-lhe todas as facilidades para nos interditar. Além disso, em vez de suprimir essas leis que tornam a mulher numa escrava, o homem se encarrega de criar outras que alargam ainda mais o seu horizonte. (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881, grifos nossos)13
No fragmento, o emprego explícito do binômio ‘eu/tu’ (je/tu) instaura aquele com quem se fala, por meio do pronome ‘nos’ (nous) inclusivo, em que o espaço do ‘tu’ já é ocupado pelo narratário/enunciatário a partir do simulacro ‘as mulheres’ (les femmes). Ao fazer o movimento de aproximação (FIORIN, 2016), o jornal se coloca à imagem e semelhança do que seria, portanto, o seu público feminino, ou as mulheres leitoras do periódico. Conforme assinala Patrick Charaudeau (1992), “quando o interlocutor é múltiplo (as mulheres), o locutor, como no caso do eu colocado por tu, fala como se estivesse repetindo o assunto deste” (p. 153, tradução nossa). Isso não ocorre apenas na primeira publicação do La Citoyenne, mas nos editoriais posteriores, todos assinados com o nome de Hubertine Auclert: “Assim, nós mulheres nos unimos…” (La Citoyenne, nº 2, fevereiro/1881)14, “nós temos razão em acreditar que o homem está consciente de sua incapacidade de usuário” (La Citoyenne, nº 3, fevereiro/1881).15
Não se trata de uma conversa em que as partes se encontram em posições hierárquicas, em que o ‘eu’ do jornal transmite seu discurso de forma unilateral. O que se constata é sempre um ‘eu’ que tenta trazer o seu ‘tu’ correspondente para o discurso, em que se estabelece uma relação de igualdade entre enunciador e enunciatário. Não apenas colocando-se lado a lado do leitor, o uso da pessoa amplificada nós (nous) incita o compartilhamento dos valores expostos pelo La Citoyenne, bem como a empreenderem as ações esboçadas pela instância narrativa.
No uso da linguagem como dominação masculina, esboçados nos escritos de Monique Wittig (apud Butler, 2020, p. 203, grifos no original) assinala que “uma mulher não pode usar a primeira pessoa, ‘eu’, porque, como mulher, o falante é ‘particular’, e invocar o ‘eu’ presume a capacidade de falar na condição de humano universal”. Infere-se uma atitude contestatória do jornal, em que a mise en scène do ‘eu’, em associação com o ‘tu’, salienta o rompimento com os valores conservadores - contrários ao militantismo das mulheres por direitos (CHENUT, 2012) - vigentes na época. O La Citoyenne se esforça em elevar as mulheres à condição de sujeito universal, característica que lhes fora constantemente negada ao decorrer de todo o século XIX16, permitindo-lhes tomar a palavra na cena pública por intermédio do periódico.
No caso do fazer jornalístico no século XIX, o que se sobressaiu foi o desenvolvimento da escrita íntima, em especial no espaço dedicado ao editorial. Por mais que se pressuponha a singularidade de uma consciência, a escrita íntima, ressaltada pela presença do ‘eu’ (je), no caso a associação entre o ‘eu’ e o ‘tu’, invoca, ao contrário, consciências diversas, “afetadas pelos mesmos questionamentos universais e particulares” (THÉRENTY, 2007, p. 185, tradução nossa). O La Citoyenne aparenta se fundamentar na construção da sua singularidade na exposição dos seus valores. Singularidade esta, contudo, compartilhada por outras consciências, persuadidas da mesma necessidade da luta das mulheres por direitos.
Ademais, outro tipo de mecanismo é usado para abarcar outros possíveis leitores e levá-los à aceitação dos valores esboçados. Tem-se o emprego de um objeto de valor cultural considerado desejável pelo seu destinatário, resultando em uma ‘tentação’ subjacente. Vale lembrar que “a manipulação só será bem-sucedida se o sistema de valores for compartilhado pelo manipulado” (BARROS, 2002, p. 39). Observemos, agora, mais dois fragmentos extraídos do primeiro artigo:
A cidadã quintuplicará a eficácia da sua influência materna; ela criará o filho não para si mesma, não para ele: para a sociedade; ela lhe ensinará essas virtudes privadas e públicas, que farão a sua felicidade e a de seus semelhantes. […] A mulher investida dos mais elevados direitos sociais, a cidadã terá o poder de dotar as gerações de tão grandes visões morais, que nas relações humanas a fraternidade substituir-se-á ao egoísmo, e na sociedade - a harmonia - este objetivo das aspirações de todos - aos conflitos atuais. […] Uma vez que, na nossa opinião, a emancipação da mulher deve resultar uma fonte de bens para toda a humanidade (La Citoyenne, nº 1, fevereiro/1881 , grifos nossos).17
O recurso da tentação permite a discussão de temas de forma que não viessem a constranger sua relação com a sociedade francesa da época. São percursos temáticos que refletem os anseios do La Citoyenne: I. Libertação da mulher como necessária para o bem-estar da humanidade; II. Anseio pela construção de um legado a ser repassado às mulheres das futuras gerações; III. Subversão à ideia de que, por pertencer ao âmbito doméstico, a mulher fica interditada de possuir direitos; IV. Desmistificação da maternidade como fenômeno que restringe a liberdade das mulheres; V. Reivindicação para que as mães da sociedade não alimentam apenas o corpo dos seus filhos, mas que também possam nutrir seus espíritos por meio da educação cívica adequada.
Ao buscar empregar valores compartilhados por boa parte da população francesa, o enunciador não se direciona apenas à parcela feminina. O jornal reforça, ao contrário, um diálogo também voltado à adesão dos demais cidadãos franceses. O faz a partir da ilustração dos benefícios resultantes da conjunção das mulheres com seus direitos, os quais abarcariam toda a população francesa: “Não é porque a mulher votaria que ela deixaria de ser para a família, o que o sol é para a flor, uma estrela que a aquece com seu amor. Não! As mulheres podem gozar de todos os seus direitos e serem irrepreensíveis no cumprimento de seus deveres.” (La Citoyenne, nº 4, março/1881).18
Não apenas os cidadãos franceses são incitados a compactuar com os valores apresentados pelo jornal, mas o narrador-enunciador do La Citoyenne busca, ainda, estabelecer uma ponte de comunicação com discursos proferidos por mulheres de outros países.
Um exemplo eloquente, tirado do outro lado do Atlântico, confirma o que eu apresentei. Na América, nos estados do Wyoming e do Utah, onde as mulheres podem votar, como os homens, por dez anos, a prosperidade e o bem-estar fixaram domicílio em todos os lares. As mulheres baniram as coisas fúteis da coqueteria para se dedicar mais ao bem do seu país, dos seus deveres. (La Citoyenne, nº 4, março/1881)19
Há um empenho pelo estabelecimento de uma rede de discursos ‘féministes’ externa à França, instaurando o princípio de um ‘feminismo global’, em que outras militantes são convocadas a assumirem o seu espaço na construção dos que seriam os discursos feministas. Tem-se a incitação das mulheres francesas para, além de atuarem em prol de uma causa única, deixando de lado as diferenças de classe social, aliarem suas lutas com as das suas companheiras de outros países, com as ressalvas apresentadas anteriormente.
Por fim, antes de passarmos para as considerações finais, julgamos oportuno retomar outro fragmento do La Citoyenne que nos auxilie a sintetizar o que seria, portanto, esse féminisme proposto por Auclert. Em um fragmento extraído do editorial do dia 27 de fevereiro de 1881, tem-se a primeira vez em que o termo féministe aparece. O vocábulo vem acompanhado de um acontecimento que se desenrolou na Câmara dos Deputados na França, em uma situação em que as mulheres não tiveram voz de opinião quando levantada a questão do direito ao divórcio.
Tal orador feminista não se encontrava presente. A maioria da Câmara não quis votar uma lei que interessa principalmente às mulheres, porque as mulheres não têm soberania eleitoral, porque não têm o poder de impor, pela potência do seu voto, uma regra de conduta a um único deputado. (La Citoyenne, nº 3, fevereiro/1881)20
O que chama a atenção é a cobertura figurativa que se encontra na superfície do tema da reivindicação pelo direito ao divórcio, nesse caso pela nominalização do ‘orador feminista’ (orateur féministe). No estudo da evolução do termo ‘feminista’ na França ao longo dos anos, Abreu (2010) alega ser possível perceber que “devido à carga pejorativa que se imprimiu e se imprime ao termo em muitos contextos, ele não foi utilizado por indivíduos ou movimentos que seriam identificados frequentemente como feministas.” (p. 24). Apesar da carga de sentido pejorativa, o jornal decidiu empregá-lo para designar um sujeito que, se tivesse tido acesso à sessão da Câmara no dia em que foi votado o direito ao voto, votaria em favor das cidadãs. O La Citoyenne enquadra o ‘féministe’ a um caráter subversivo do que significa ser um orador féministe: orador que se posiciona em favor dos direitos das cidadãs, independentemente da situação de enunciação.
Considerações finais
Para se pensar na construção da luta das mulheres por direitos é preciso pensar, antes de mais nada, na sua gama de possibilidades de pesquisas. Conforme muito bem colocado por Simone de Beauvoir (1970), “a história da mulher é muito mais complexa” (p. 46). Nosso olhar recaiu sobre a forma de subversão empregada por uma mulher francesa, em um contexto do século XIX. Outras interpretações e compreensões poderiam ser apresentadas, se tomados outros posicionamentos, mesmo se trabalhado sobre a mesma materialidade discursiva, posto que “a maior parte de nossos pretensos objetos só fazem sentido quando sabemos reconhecer neles tantos outros sujeitos que, por sua vez, também nos olham” (Eric LANDOWSKI, 2001, p. 54).
Esboçado os pressupostos preliminares, retomamos, em primeiro lugar, o que define, na contemporaneidade, um jornalismo feminista. Jorge Salhani, Heloísa dos Santos e Raquel Cabral (2020) elucidam, como sendo os atributos necessários para se inferir, se tratar de discursos jornalísticos ‘feministas’,
[d]a inclusão de pautas prioritárias do movimento feminista nos meios de comunicação, contextualização adequada de temas, priorização de mulheres como autoridades, análises situando o gênero, quebra de representações e estereótipos de gêneros patriarcais, atenção às discriminações cruzadas (de raça, nacionalidade etc.) e cuidados na adjetivação. (p. 5)
Podemos destacar a inovação trazida por Hubertine Auclert no seio do movimento desde o século XIX, em semelhança aos conceitos compreendidos na atualidade. Tem-se o esforço do jornal La Citoyenne em não deixar o passado sofrido pelas mulheres desaparecer no curso da história, buscando colocar a histórias das mulheres em evidência, graças a mise en scène dos personagens outrora deixados à margem dos discursos. A dominação masculina não seria um acontecimento da ordem do dia, mas algo que, segundo sublinhado pela própria Hubertine Aulcert, vem sendo perpetuado ao longo dos anos, incentivando que os discursos vinculados à luta das mulheres por direitos caiam no obscurantismo.
Hubertine Auclert, por meio do seu jornal La Citoyenne, nos permitiu a compreensão de um féminisme capaz de uma reflexão aguçada do mundo ao seu redor e de como a dominação masculina afetava consideravelmente a vida das mulheres como um todo. O esforço realizado pelo jornal vem intensificado, ademais, da inserção massiva da voz que enuncia no interior do enunciado. Diferentemente de outros jornais da época, como o La Fronde (1897-1930), cuja reivindicação da luta das mulheres por direitos é muitas vezes colocada nas entrelinhas (Vanessa PASTORINI, 2021), Auclert é assertiva ao elencar todos os aspectos negativos que recaem sobre os ombros das cidadãs francesas, instigando-as, de forma constante, a tomarem uma iniciativa. Sua voz grita, colocando-se lado a lado das suas leitoras, evocando seus anseios e permitindo-as o acesso à cena pública, mesmo que sua atitude classificada como ‘violenta’ para muitos do período, recebendo o rótulo de “a suffragette francesa” (PINTOR, 2016). A apresentação dos pontos de vista da instância enunciadora funciona, em grande parte, para refutar valores tomados como aceitos pelo senso comum. O germe da inquietação se faz ali presente, e com vigor. É um discurso voltado ainda a todas àquelas que, cada qual à maneira do seu país, se empenham para que todas consigam ter acesso a condições mais dignas de vida.
Ao reconhecer quais eram os estereótipos que circundam as mulheres, compreendidos como sendo os responsáveis por afetar o seu desenvolvimento político, Auclert recorre a eles como instrumento para tentar convencer o seu leitor sobre a causa proposta. As mulheres, em posse dos seus direitos, seriam tudo aquilo e um pouco mais do que a França republicana pedia. Seu féminisme reconhecia o que era esperado que as mulheres fizessem, reclamando ir além da norma. Ser mãe, ser dona de casa, ser operária, nada disso seria prejudicado caso a emancipação política das mulheres fosse de fato concretizada. Contudo, é um féminisme revolucionário não afeito à vigência dos valores que remetem a uma suposta inferiorização das mulheres, e que intima o seu leitor a um dever-fazer. É, ademais, a construção de um féminisme preocupado em compreender a situação de todas as cidadãs que compõem o hexágono francês, como também todas as partidárias da causa são incentivadas a participar do diálogo. Se não houver uma união deste grupo marginalizado no âmbito jurídico, pouco ou quase nada, segundo a visão do jornal, será conquistado.
Uma última observação faz-se necessária sobre o papel do desenvolvimento de uma imprensa voltada para a reivindicação da causa feminina. Poder-se-ia concluir, nessa perspectiva, a ressignificação positiva e valorizada do termo ‘féministe’. Outrora empregado pejorativamente pela sociedade, em que os ideais féministes fariam as mulheres negligenciarem suas obrigações domésticas e familiares, além de as fazerem perder a sua feminilidade (CHENUT, 2012), o significado do féminisme é revisitado pelo jornal. Não se tem apenas uma ressignificação considerável daquilo que seria reconhecido pelos atributos elencados pelo periódico como sendo um sujeito feminista. Tem-se, sobretudo, a colocada em evidência nas páginas do La Citoyenne de quais seriam os valores associados ao ‘féminisme’, e como se efetuaria uma ação ‘féministe’.
A estruturação de uma imprensa agora interpretada como féministe abre espaço para o debate do movimento, permitindo a sua inserção no dia a dia do funcionamento da sociedade francesa. Não se trata mais de pequenas discussões restritas às reuniões de militantes ligadas às causas das mulheres. O sujeito em conjunção com os valores do ‘ser feminista’ ultrapassa as fronteiras dos discursos politizados, remodelando-se para servir como importante instrumento de luta das mulheres. Ser féministe ou saber sobre o féminisme passa a ser uma tarefa cada vez mais acessível. Torna-se mais fácil, em consequência, compactuar com a verdade proferida por esse discurso.
Por fim, ao retomar os estudos do feminismo para melhor compreender o cenário, sublinha-se que, com o passar dos anos, por mais que as lutas das mulheres por direitos se torne menos agressiva (ALBISTUR; ARMOGATHE, 1977), as proposições levantadas pelos jornais da Terceira República foram divisores de água. As mulheres, por suas próprias ações, abriram espaço na cena pública, outrora exclusiva aos membros da então supremacia masculina. São jornais como o La Citoyenne que permitiram, conforme afirma Li Dzeh-Djen (1934), às mulheres francesas conhecerem suas aptidões para novas profissões, bem como demonstraram a perseverança do que viria a ser amplamente conhecido como le mouvement féministe (o movimento feminista).