SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número2Teoria social crítica de Lélia Gonzalez: reflexões para as Ciências da SaúdeJuventude e interseccionalidade: encontrando Lélia Gonzalez índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.33 no.2 Florianópolis  2025  Epub 01-Maio-2025

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2025v33n2105827 

Seção Especial: Lélia Gonzalez Presente!

“Amefricanidade” e as literaturas negro-brasileira e indígena de autoria de mulheres

“Amefricanidade” and black-brazilian and indigenous literature written by women

“Amefricanidade” y literatura negra-brasileña y indígena escrita por mujeres

Mirian Cristina dos Santos1 

Mirian Cristina dos Santos. Professora Adjunta de Estudos Literários da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (FALED/UNIFESSPA). Diretora Adjunta do Instituto de Estudos do Xingu (IEX). Autora do livro Intelectuais Negras: prosa negro-brasileira contemporânea, publicado pela editora Malê (2018). Doutora em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Políticas de Promoção da Igualdade Racial, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).


http://orcid.org/0000-0001-6270-2751; lattes: 5965860307581816

1Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, São Félix do Xingu, PA, Brasil. 68380-000 - iex@unifesspa.edu.br


Resumo:

As reflexões propostas neste artigo têm como objetivo pensar a produção literária de mulheres negras e indígenas brasileiras, no encalço da categoria político-cultural Amefricanidade, de Lélia Gonzalez. De acordo com a pensadora brasileira, “o termo amefricanas/amefricanos designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro, como a daqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo” (GONZALEZ, 2018, p. 330, grifo da autora). Logo, parece pertinente propiciar um diálogo comparatista entre as literaturas desses dois grupos, considerando previamente que a escrita dessas mulheres é atravessada pelo ponto de vista específico de mulheres que estão à margem do imaginário social e da crítica literária, principalmente ao levar em conta o perfil do escritor brasileiro contemporâneo - homem, branco, de meia idade, do eixo Rio-São Paulo (DALCASTAGNÈ, 2012).

Palavras-chave: Lélia Gonzalez; Amefricanidade; Literatura negro-brasileira; Literatura indígena

Abstract:

The reflections proposed in this article aim to reflect on the literary production of black and indig82enous Brazilian women, following Lélia Gonzalez’s political-cultural category Amefricanidade. According to the Brazilian thinker, “the term Amefricanas/Amefricanos designates an entire lineage: not only that of the Africans brought by the slave trade, but also those who arrived in AMERICA long before Columbus” (GONZALEZ, 2018, p. 330, emphasis added). Therefore, it seems pertinent to foster a comparative dialogue between the literatures of these two groups, considering first that the writing of these women is permeated by the specific point of view of women who are on the margins of the social imaginary and literary criticism, especially when taking into account the profile of the contemporary Brazilian writer - male, white, middle-aged, from the Rio-São Paulo axis (DALCASTAGNÈ, 2012).

Keywords: Lélia Gonzalez; Amefricanidade; Black-Brazilian Literature; Indigenous Literature

Resumen:

Las reflexiones propuestas en este artículo tienen como objetivo pensar la producción literaria de las mujeres negras e indígenas brasileñas, siguiendo la categoría político-cultural de amafricanidad, de Lélia González. Según el pensador brasileño, “el término amefricanas/amefricanos designa toda una descendencia: no sólo la de los africanos traídos por la trata de esclavos, sino también la de los que llegaron a AMÉRICA mucho antes que Colón” (GONZALEZ, 2018, p. 330, cursiva agregada). Por lo tanto, parece pertinente brindar un diálogo comparativo entre las literaturas de estos dos grupos, considerando previamente que la escritura de estas mujeres está atravesada por el punto de vista específico de mujeres que están al margen del imaginario social y de la crítica literaria, especialmente cuando se toma en cuenta el perfil del escritor brasileño contemporáneo -hombre, blanco, de mediana edad, del eje Río-São Paulo (DALCASTAGNÈ, 2012).

Palabras-clave: Lelia González; amefricanidad; literatura negro-brasileña; literatura indigena

É fato que a intelectual Lélia Gonzalez é figura substancial para as diretrizes do pensamento feminista interseccional, principalmente no que tange às reflexões sobre o contexto afro-diaspórico das Américas. Embora, hoje, o nome da pensadora seja reconhecido mundialmente, a potência do pensamento de Gonzalez ainda não atingiu de maneira maciça as academias brasileiras, de forma que a aclamada ativista e escritora norte-americana Angela Davis (2019), em visita recente ao Brasil, ainda precisou lembrar o público nacional da importância da produção intelectual de Gonzalez, para o movimento da crítica feminista. Com base nessa assertiva, para além das muitas elaborações teóricas possíveis a partir da contribuição do pensamento gonzaleano, as reflexões propostas visam pensar a produção literária de mulheres negras e indígenas brasileiras, no encalço da categoria político-cultural Amefricanidade. De acordo com a pensadora brasileira, “o termo amefricanas/amefricanos designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro, como a daqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo” (GONZALEZ, 2018, p. 330).

Diante disso, no encalço dessas reverberações, torna-se importante pontuar que Gonzalez traz a proposta de Amefricanidade a partir de questionamentos dos processos de perpetuação e validação constante do imperialismo dos Estados Unidos, mediante o tratamento de seus habitantes como “americanos”, como se os moradores de outros países deste Continente Americano também não o fossem. Logo,

as implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo [...]. Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) (GONZALEZ, 2018, p. 329, grifo da autora).

Portanto, parece pertinente propiciar uma conversa entre as literaturas de autoria de mulheres negras e indígenas, considerando previamente que a escrita dessas mulheres é atravessada pelo ponto de vista específico de mulheres que estão à margem da sociedade e da crítica literária. Sendo assim, falar nos processos dinâmicos de “adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas” de re-existir parece-me coerente com a história de ascendentes e descendentes dos sujeitos indígenas e negros brasileiros, em virtude do racismo. “Aqui, prevalecem as ‘teorias’ da miscigenação, da assimilação e da ‘democracia racial’. A chamada América Latina que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo por denegação” (GONZALEZ, 2018, p. 324-325). Dessa forma, de acordo com as reflexões da pensadora, esse “racismo disfarçado”, que violenta corpos negros e indígenas sem a denominação explícita de apartheid, “pode se desenvolver para se constituir na forma mais eficaz de alienação dos discriminados” (op. cit., p. 325).

O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais (GONZALEZ, 2018, p. 326).

Consoante a isso, torna-se comum o “racismo à brasileira” não ser identificado, uma vez que “todos são iguais perante a Lei”. Um exemplo sintomático disso é a constatação dos dados sobre o perfil do escritor brasileiro na contemporaneidade ser sinalizado como homem, branco, de meia idade, do eixo Rio-São Paulo (Regina DALCASTAGNÈ, 2012), em um país com mais da metade da população de pessoas negras. Embora isso poderia ser um escândalo, já que aponta para um mercado editorial racista, sexista e classista, os currículos acadêmicos ainda giram em torno da validação do cânone brancocêntrico.

Dessa forma, a proposta de um diálogo entre a produção literária escrita por mulheres negras e indígenas condiz com reflexões sobre decolonizar aquilo que se entende como literatura brasileira, uma vez que a produção dessas mulheres ainda é lida às margens da crítica literária. Tão comum quanto a mídia hegemônica considerar textos de autoria negra e indígena como “apenas testemunhos rasos” da própria vida é a academia sustentar esse não-lugar na literatura e na cultura brasileira a partir de leituras conservadoras e estereotipadas. Se pessoas negras e indígenas ainda hoje sequer são consideradas sujeitos, o que dizer das suas produções intelectuais?

Ainda dentro das considerações iniciais, torna-se importante fazer um adendo de caráter crítico sobre a aproximação das literaturas de autoria negra e indígena a partir da categoria gonzaleana Amefricanidade. Certamente, aproximar os povos colonizados da “raiz América” pode provocar incômodos para alguns, temendo um processo de re-colonização, já que o sangue da população negra e indígena ainda se faz adubo nestas terras. No entanto, a proposta, aqui, considera o pensamento de Gonzalez uma lente potente para a leitura dessas literaturas a partir de um lugar político-cultural-geográfico específico, que marca a diferença de outros povos da diáspora, como também de outros povos originários e, obviamente, da literatura canônica.

Antes de prosseguir com as reflexões propostas, embora não se trate do centro da abordagem, a título de localização do leitor, torna-se importante pontuar que, neste texto, trabalha-se com a nomenclatura “literatura negro-brasileira”, a partir das discussões do poeta e ensaísta Cuti (2010), em que o autor relocaliza a escrita de autoria negra na crítica, a partir de um lugar político de pertencimento. Ainda a partir desse universo, também de forma política, aqui, as mulheres literatas serão lidas a partir da lente do meu livro Intelectuais Negras (SANTOS, 2018), cuja proposta reivindica um lugar na intelectualidade brasileira para essas mulheres.

De volta às discussões propostas, refletir sobre a produção literária nacional exige um olhar atento para o cânone, pois se percebe que, ainda hoje, a produção literária feminina enfrenta um território de conflito. Pesquisas apontam que, embora as mulheres sejam as pessoas que mais leem, elas são as menos lidas na sociedade, haja vista o movimento de diversos coletivos que incentivam a leitura de obras de autoria feminina tentando mudar esse cenário. Se o campo aponta uma desproporção em relação à leitura de mulheres de maneira geral, o que podemos dizer em relação à leitura da produção de mulheres negras e indígenas?

Diante disso, ainda é coerente falar da relevância de analisar e interpretar obras produzidas por outros grupos “porque a literatura pode dar a ver situações que são tornadas ‘invisíveis’ e, assim, contribuir minimamente para a sua discussão, [sendo] importante que sejam inseridas novas vozes, provenientes de outros espaços sociais, em nosso campo literário” (DALCASTAGNÈ, 2014, p. 299). Assim, quando se leva em conta a crítica literária contemporânea, observa-se a necessidade de inclusão de diferentes corpos, tanto como produtores de conhecimento, quanto como personagens, para que um mundo plural seja possível também no universo da literatura.

Uma discussão que corrobora o exposto é trazer a dimensão da literatura negro-brasileira neste processo, uma vez que essa produção provoca análises e reflexões críticas acerca de produções literárias e teóricas sobre a literatura nacional, principalmente questionando o processo de constituição da identidade cultural no Brasil. De acordo com a professora e pesquisadora Fernanda Miranda (2019),

a outra face da potência que subjaz a ideia de literatura negra está no fato de que ela expõe/nomeia uma categoria para pensar o cânone forjada na alteridade do texto nacional, trazendo para a superfície do pensamento o que restava como norma oculta, ou seja, a “literatura branca” como categoria explicativa que define a “literatura brasileira” de modo mais condizente à realidade discursiva nacional hegemônica. Dessa forma, enquanto ideia, a literatura negra não apenas cria “quilombos” na ordem discursiva, ela também produz uma crítica corrosiva às estruturas da casa grande, porque nos permite ler o campo literário filtrando nele suas “posicionalidades” em disputa (p. 19, grifos da autora).

Sendo assim, refletir sobre a literatura brasileira enquanto “território contestado” (DALCASTAGNÈ, 2012) possibilita não apenas considerar o que está sendo produzido à margem do centro, como também observar as representações éticas e estéticas que estão formando a mentalidade brasileira. Especificamente sobre a representação da população negra na literatura, a intelectual Conceição Evaristo (2009) afirma que “talvez, o modo como a ficção revele, com mais intensidade, o desejo da sociedade brasileira de apagar ou ignorar a forte presença dos povos africanos e seus descendentes na formação nacional, se dê nas formas de representação da mulher negra no interior do discurso literário” (p. 23), de forma que as mulheres negras não são representadas como “musa, heroína romântica ou mãe” (EVARISTO, 2009, p. 23).

Em contraposição a isso, na literatura negro-brasileira escrita por mulheres, elas

abordam as principais demandas da mulher negra na contemporaneidade, dão visibilidade às culturas africanas e afro-brasileiras, denunciam a condição marginalizada e subalternizada do negro e fazem dessa literatura escrita por mulheres local de força, resistência, afirmação e denúncia (Mirian Cristina dos SANTOS, 2018, p. 15).

Para isso, a população negra é representada como sujeito-vivo, passível de diferentes atravessamentos no mundo.

Quando se problematiza representação na literatura brasileira canônica, é possível observar o apelo ao estereótipo negativo, a partir da ótica racista, também em relação aos povos indígenas. Dessa forma,

gerando sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura nacional. [...] Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a tantos ‘apagamentos’? (Graça GRAÚNA, 2013, p. 19).

O questionamento da pesquisadora e escritora Graúna (2013) aponta para a premissa do apagamento da presença da autoria indígena na literatura brasileira. Antes, nesse embate, também é importante registrar o não reconhecimento da população indígena enquanto sujeito e produtora de saber, já que um universo de representações estereotipadas, limitadoras e equivocadas ainda subjaz a cultura brasileira. Dessa forma, quando se intersecta raça, classe e gênero, considera-se a re-existência da escrita das mulheres indígenas, pois, em suas produções, “o feminino tem um lugar para autoafirmar-se e para valorizar tanto o sujeito histórico indígena na figura da mulher quanto para fomentar a preservação dos saberes imemoriais de que as mulheres fazem parte e promovem” (Julie DORRICO, 2017, p. 129), abordagens de extrema importância para uma sociedade que dizima indígenas e mulheres. Também na leitura da literatura indígena escrita por mulheres é substancial pontuar a revisão da história oficial e a preocupação com a preservação ambiental.

A literatura indígena na contemporaneidade tem em sua ação não somente a figura do escritor/autor que reflete sobre os saberes e as práticas ancestrais, mas também a presença e o protagonismo do intelectual indígena que defende os direitos próprios aos povos indígenas (existência, demarcação territorial, proteção às tradições, respeito étnico etc.) dentro e fora do cenário nacional (DORRICO, 2017, p. 114-115).

Embora, nesse cenário, a pesquisadora indígena Dorrico esteja levando em consideração a Literatura Indígena de uma forma geral, as temáticas enfatizadas também vão ao encontro daquelas delineadas pela autoria de mulheres: “os aspectos intensificadores da literatura indígena contemporânea no Brasil remetem à auto-história de resistência, à luta pelo reconhecimento dos direitos e dos valores indígenas, à esperança de um outro mundo possível, com respeito às diferenças” (GRAÚNA, 2013, p. 64).

À luz de tais apontamentos, percebe-se uma conversa entre as literaturas negro-brasileira e indígenas de autoria de mulheres, principalmente no que tange ao aspecto dialógico de quem circula nas bordas da crítica literária, a partir do uso produtivo do “ponto de vista único que o status de outsider within pode criar” (Patricia Hill COLLINS, 2016, p. 100). Sendo assim, o encontro dessas literaturas, ainda que levando em conta as diferenças e especificidades dos processos de criação e de produção das autoras, como também dos seus projetos estéticos, torna-se terra fértil na reescrita da história da literatura brasileira.

Discorrer sobre as literaturas das bordas, dentro de um país que faz questão de conservar o colonialismo enquanto tradição, pressupõe falar sobre usurpação, principalmente quando se leva em consideração o processo violento da imposição e de manutenção da cultura do colonizador enquanto norma. E a língua é instrumento poderoso nesse processo. “O olhar da palavra”, poema da escritora indígena Márcia Kambeba (2020), possibilita-nos algumas reflexões sobre isso:

O olhar da palavra

Palavra é memória

Senhora da história

Desenha sentimentos

Resistência, lutas, vitórias.

Palavra que dança no tempo

Vaga-lume que ilumina o amor

Palavra que marca o passado

Narra o presente

Do povo o clamor.

Palavra é o lugar

Do ver, do ser, identidade

Escrita que nasce do olhar

É a palavra vestida de liberdade.

Libere a palavra

Reescreva o final

Palavra é farpa

Poesia marginal (p. 126).

Percebe-se que, ao trazer o olhar da/na palavra, politicamente marcada, o eu-lírico se remete a uma herança cultural cheia de significados, uma vez que “a palavra”, enquanto substantivo, não aparece no poema de maneira isolada da condição de existência do sujeito. Sendo assim, não à toa, ela é memória, história, sentimentos, resistência, lutas, vitórias, adjetivos muito representativos quando se aproxima da realidade de luta dos povos originários para preservação das línguas indígenas. Nesse universo interpretativo, ainda é importante pensar a palavra enquanto identidade, liberdade e conquista, já que é a partir da oralidade que muito da cultura indígena permanece viva. Assim, “liberar a palavra” também pode remeter ao processo violento de silenciamento ainda hoje sofrido pela população indígena brasileira. Dessa forma, liberar a palavra significa deixá-la movimentar. Aqui, a “palavra é farpa”, que fura bolhas e causa rompimentos, de forma que “a prática escritural desenvolvida por indígenas mostra que esse registro literário é um instrumento relevante na busca pela autonomia em um processo no qual se tornar agente de sua produção contribui para desconstruir a objetificação e os estereótipos frequentes na representação elaborada pelo olhar alheio” (BARROS, 2022, p. 17).

Para conversar com essas reflexões, note-se “Um poema para o cânone”, de Cristiane Sobral (2019):

Um poema para o cânone

um poema para o cânone

tem que ser bem branquinho

alvejante como Omo

um poema para o cânone

precisa de muitos dígitos

pra convencer especialistas

que vivam para julgar

um poema para o cânone

tem que ter berço

pedigree, padrinho

nada de humildade

um poema para o cânone

tem que ser genético

behaviorista disfarçado de estético

Ah

um poema para o cânone

entenda

defende a concentração de renda

quase ninguém consegue entender

chique como caviar

ninguém precisa gostar (p. 48).

Para um primeiro diálogo entre a produção literária de autoria de mulheres negras e indígenas, optei por aproximar “O olhar da palavra”, de Kambeba, do texto “Um poema para o cânone”, de Sobral. Enquanto a poeta do povo kambeba traz a palavra enquanto força motriz, de maneira que subjetivamente encontramos no eu-lírico o “lugar de fala” da margem, no poema negro-brasileiro, tem-se, por meio da metalinguagem, uma leitura crítica, bastante contundente, àquilo que a crítica literária considera canônico.

Aqui, é possível ler em Sobral, por meio da ironia, um questionamento explícito - “a cor branca” - da Literatura Canônica Brasileira. Além de textos longos, com linguagens pouco acessíveis, contendo repetições estruturais, com “temas genéricos”, pode-se pressupor também o papel do “pacto da branquitude” na seleção das produções literárias, já que o poema canônico precisa ter “berço/pedigree, padrinho”. Defino aqui “pacto da branquitude” a partir dos estudos da intelectual Cida Bento (2022): “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios. [...] Esse pacto da branquitude possui um componente narcisístico, de autopreservação, como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’, o universal’” (p. 18, grifo da autora).

É interessante notar que todos esses aspectos dialogam com a lógica colonialista e a demarcação de poder e lugar de privilégio de um único grupo. Assim, os “temas genéricos” aproximam-se dos chamados “temas universais”, assim como a linguagem pouco acessível está associada à variedade padrão da língua portuguesa - essa a que poucos ainda hoje têm acesso -, o que nos leva a uma reflexão sobre desigualdades: “Uma vez que admitimos que o racismo está na estrutura das coisas, precisamos admitir que a língua é uma posição nessa estrutura” (NASCIMENTO, 2019, p. 19, grifo do autor).

Nessa perspectiva, é comum encontrar nas literaturas produzidas por mulheres negras e indígenas textos que trazem a língua/ a voz/ a palavra, e outros termos do mesmo campo semântico como temática de suas produções. E temos na contribuição do pesquisador Gabriel Nascimento argumentos para essa reflexão: “O epistemicídio é linguístico quando desapropria o sujeito de seu próprio direito de produção do saber. Ou seja, quando ao sujeito negro ou indígena é negada a possibilidade de ser sujeito da língua” (NASCIMENTO, 2019, p. 26). Dessa forma, entende-se que trazer essa temática para a produção literária indica relembrar o epistemicídio passado e ainda hoje vivido pelos descendentes dos povos colonizados. Como exemplo disso, sinalizo os “defensores da língua portuguesa”, que ditam ainda no presente o que é ou não literatura, a partir do uso da variedade padrão da língua.

Embora os poemas aqui em análise estejam escritos em língua portuguesa, pode-se considerar que a metalinguagem crítica aponta para uma espécie de reinvenção da língua do inimigo, conforme apontado pela pesquisadora Randra Barros (2022):

A escrita e o idioma português, quando utilizados a partir da visão dos indígenas, adquirem outro sentido. Essa tecnologia e língua que, a princípio, foram inseridas nas comunidades para colonizar e aniquilar as culturas dos filhos da terra estão sendo ressignificadas para imprimir nelas as vivências ancestrais e poderem circular por regiões para além das aldeias (p. 40).

Dessa forma, a escrita em língua portuguesa serve como passaporte para a circulação e e manutenção de saberes, bem como para reivindicar espaço, para aqueles que são jogados à margem da “própria língua oficial”. Ainda sobre o diálogo entre as literaturas negro-brasileira e indígenas escritas por mulheres, a aproximação possível das mesmas não se restringe ao universo da “palavra”.

Brasil

Que faço com a minha cara de índia?

E meus cabelos

E minhas rugas

E minha história

E meus segredos?

Que faço com a minha cara de índia?

E meus espíritos

E minha força

E meu Tupã

E meus círculos?

Que faço com a minha cara de índia?

E meu Toré

E meu sagrado

E meus “cabocos”

E minha Terra?

Que faço com a minha cara de índia?

E meu sangue

E minha consciência

E minha luta

E nossos filhos?

Brasil, o que faço com a minha cara de índia?

Não sou violência

Ou estupro

Eu sou história

Eu sou cunhã

Barriga brasileira

Ventre sagrado

Povo brasileiro [...] (Eliane POTIGUARA, 2018, p. 32).

No poema “Brasil”, de Potiguara, a poeta traz como fermento da escrita o fenótipo indígena. A partir do questionamento recorrente “Que faço com a minha cara de índia?”, o eu-lírico lança outras questões, que envolvem a cultura indígena, de forma que as interrogações apontam para um não-lugar desse sujeito no Brasil. E a reflexão ainda é realçada pelo fato de a identidade indígena estar circunscrita no próprio corpo desigual, aos olhos do opressor. Da mesma maneira que o rosto é o elemento principal para os primeiros questionamentos, os segredos, a história, a consciência, a terra, os costumes também o são, pois o que está em foco parece ser a diferença, já que “ser branco é a norma”.

Ainda sobre o poema “Brasil”, é importante destacar que o título já aponta para o processo de violência, intolerância, racismo, mediante o “choque cultural”, em virtude de experiências fora da aldeia. Coloco aqui “choque cultural” realçado por aspas, porque se sabe que “o racismo desempenhará um papel fundamental na internalização da ‘superioridade’ do colonizador pelos colonizados” (GONZALEZ, 2018, p. 324, grifo da autora).

Dorrico, ao comentar sobre a potência da obra de Potiguara, enfatiza a subversão às vozes colonizadoras que diminuem indígenas por causa da diferença. De fato, o protagonismo da mulher indígena no poema em análise torna-se elemento fundamental para o questionamento de um status quo que tem o corpo branco em destaque: “A poesia de Eliane apresenta a mulher como parte central da sociedade indígena para que ela também seja vista como sujeito histórico, capaz de falar, capaz de autobiografar-se como sujeito, protagonista e referência” (DORRICO, 2017, p. 130). Logo, esse movimento é muito representativo para um poema intitulado “Brasil”, principalmente considerando a fundação da sociedade brasileira baseada no estupro de mulheres indígenas e negras.

Finalmente, trago o poema da escritora Lubi Prates (2019), “Meu corpo é meu lugar de fala” para esta roda.

meu corpo é meu lugar de fala

meu corpo é

meu lugar

de fala

embora

a voz seja

apenas

um resto

arranhando a garganta

meu corpo é

meu lugar

de fala

e eu falo

com meus cabelos e

meus olhos e

meu nariz

meu corpo é

meu lugar

de fala

e eu falo

com minha raça

meu corpo

conta

por si só

histórias

além de mim [...] (p. 63).

Aqui, percebe-se que, por meio de uma subjetividade coletiva, o poema negro-brasileiro emociona ao capturar o sentimento inenarrável e incapturável da diáspora negra brasileira, o que torna cada leitura e/ou releitura única. Conforme se apontou no poema anterior, mais uma vez o corpo diferente é território de violências por estar fora do lugar da norma.

Para esta leitura, chamo a atenção para o título, uma vez que “meu corpo é meu lugar de fala” remete a um lugar específico de sujeitos que são avaliados a partir dos traços fenotípicos. Em um país em que ainda hoje se acredita no mito da democracia racial e que apenas a desigualdade social consiste em um problema latente, a chave de leitura proposta pelo poema de Prates provoca reflexões. Diante disso, o pensamento de Gonzalez, que atravessa as reverberações propostas, muito contribui ao analisar o racismo sofrido por pessoas negras de diferentes estratos sociais:

É nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego, é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas”) (GONZALEZ, 2018, p. 198-199, grifo da autora).

Muitas camadas podem ser destrinchadas a partir dessas reflexões da pensadora, contudo, para as ideias aqui propostas, pensar “o corpo negro como lugar de fala” por agora faz-se suficiente, uma vez que, como explicado pela Professora Nilma Lino Gomes, “é no corpo que se dão as sensações, as pressões, os julgamentos. Esses não acontecem de forma independente, mas estão intimamente entrelaçados, constituindo uma estrutura, uma unidade que tem uma ordem - a sua forma de corpo” (GOMES, 2008, p. 230). São exatamente nesses entrelaçamentos - sociais, históricos, geográficos, entre outros -, que corpos negros são lidos como sujeitos ligados ao subemprego, enquanto corpos brancos são associados a lugares de prestígio social.

Ainda sobre o poema de Prates, torna-se relevante uma observação sobre “esse corpo”, que reivindica protagonismo e um lugar de fala. A filósofa Djamila Ribeiro, em seu livro O que é o lugar de fala?, aponta que “pensar em um lugar de fala [a partir do ponto de vista feminista negro] seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado” (RIBEIRO, 2017, p. 90). Dessa forma, a expressão “meu corpo é meu lugar de fala”, tratando-se de um corpo negro, condiz com uma voz subversiva dentro dos sistemas de opressão colonialista. Já que este historicamente foi silenciado, lembro aqui a máscara de flandres, que jamais deve ser esquecida, vedando a boca da mulher negra.

Para finalizar (ou ainda movimentar?) as reflexões aqui delineadas, convém chamar para uma última conversa o poema “O olhar da palavra”, de Kambeba, com o texto em tela, uma vez que ambos sinalizam a oralidade - fala, palavra, dicção - enquanto agência. Propõe-se que “oralitura”, nos termos pensados pela professora e pesquisadora Leda Maria Martins (2003), auxilia nas reverberações:

O termo “oralitura”, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição linguística, mas especificamente ao que em sua performance indica a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. Como um estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos (p. 77).

Ainda que, no corpus desta discussão, esteja atrelado ao diálogo das literaturas escritas por mulheres negras e indígenas, no encalço da Amefricanidade, de Gonzalez, as camadas e os atravessamentos no solo desses textos, bem como a substância que é gerada a partir desta conversa, alinham experiências e temporalidades. No cerne da “oralitura”, encontra-se memória, saberes ancestrais, manifestações culturais, o que dialoga com a escuta dos corpos amefricanos subalternizados aqui destacados.

Portanto, retoma-se o pensamento de Gonzalez em que a “Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas)”, e ainda se considera a experiência comum dos processos de colonização, explorados pelo pensamento gonzaleano, conforme pontuado nas palavras iniciais deste texto. E para os textos aqui escolhidos, o Brasil consiste no ponto comum do locus horrendus.

Logo, nesse contexto, recupera-se que, nas aproximações dos textos de autoria de mulheres negras e indígenas, são recorrentes pautas compartilhadas no processo de re-existência e reivindicação. No encalço da fruição, já que a garantia do espaço literário para estas mulheres também é política, a denúncia pelo epistemicídio, pelo tombamento dos corpos, pelos processos de colonização moderna, pelo racismo, é recorrente, de forma a perceber que “embora pertencemos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas” (GONZALEZ, 2018, p. 330).

Referências

BARROS, Randra Kevelyn Barbosa. O canto de Graúna: uma poética da heterogeneidade nas literaturas indígenas brasileiras contemporâneas. Salvador: Editora da Universidade do Estado da Bahia, 2022. [ Links ]

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. [ Links ]

COLLINS, Patricia Hill. “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Tradução de Juliana de Castro Galvão. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016. [ Links ]

CUTI (Luiz Silva). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. [ Links ]

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte, 2012. [ Links ]

DALCASTAGNÈ, Regina. “Para não ser trapo no mundo: As mulheres negras e a cidade na narrativa brasileira contemporânea”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 44, p. 289-302, 2014. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/pdf/elbc/n44/a14n44.pdf . Acesso em 13/03/2015. [ Links ]

DAVIS, Angela. “A liberdade é uma luta constante”. Conferência. YouTube, 19/10/2019. Disponível em https://www.youtube.com/live/1xjgckTGE4s?si=KhUXS5X47CfKAVBO. [ Links ]

DORRICO, Julie. “Literatura Indígena e seus intelectuais no Brasil: da autoafirmação e da autoexpressão como minoria à resistência e à luta político-culturais”. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 11, n. 3, 2017. [ Links ]

EVARISTO, Conceição. “Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade”. Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2009. Disponível em Disponível em http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365 . Acesso em 14/01/2016. [ Links ]

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. [ Links ]

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez. São Paulo: Filhos da África, 2018. [ Links ]

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013. [ Links ]

KAMBEBA, Márcia Wayna. Saberes da Floresta. São Paulo: Jandaíra, 2020. [ Links ]

MARTINS, Leda. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. Letras. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Santa Maria, n. 26, p. 77, 2003. [ Links ]

MIRANDA, Fernanda F. Silêncios Prescritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Rio de Janeiro: Malê, 2019. [ Links ]

NASCIMENTO, Gabriel. Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019. [ Links ]

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro: Grumin, 2018. [ Links ]

PRATES, Lubi. Um corpo negro. São Paulo: Nosotros, 2019. [ Links ]

RIBEIRO, Djamila. O que é o lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017. [ Links ]

SANTOS, Mirian Cristina dos. Intelectuais Negras: prosa negro-brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Malê, 2018. [ Links ]

SOBRAL, Cristiane. Dona dos Ventos. São Paulo: Patuá, 2019. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANTOS, Mirian Cristina dos. “A ““Amefricanidade” e as literaturas negro-brasileira e indígena de autoria de mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 2, e105827, 2025.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 19 de Março de 2025; Aceito: 20 de Março de 2025

miriansantos@unifesspa.edu.br; cristinamirian@yahoo.com.br

Contribuição de autoria:

Não se aplica

Conflito de interesses:

Não se aplica

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons