Introdução
Este artigo resulta de uma parte de uma pesquisa qualitativa1 (2017) sobre o perfil de leitores universitários de três universidades brasileiras e tem como objetivo analisar as práticas escolares de leitura historicamente construídas em suas relações com as práticas de leitura na sociedade, apontando as rupturas e continuidades nesse processo. Faz-se necessário conhecer como essas práticas foram se formando no contexto das políticas públicas de acesso ao livro e à leitura, de produção e circulação de livros, de teorias e métodos do ensino da leitura na escola. Essa contextualização histórica possibilitou situar e analisar a formação leitora na escola e fora dela de forma a explicitar a relação entre o ensino escolar da leitura e o perfil leitor dos universitários ingressantes.
As maneiras de ler, na escola ou fora dela, não são uniformes, resultam entre outros fatores das relações escrita e oralidade que, embora percorram diferentes caminhos, se intercruzam no mundo da cultura escrita. Viñao Frago (1999) define a cultura escrita como o conjunto de produtos escritos que circulam em uma sociedade, em diferentes gêneros textuais e objetos diversos como livros, revistas, jornais, cadernos, panfletos, telas do computador etc. apropriados em múltiplas maneiras de ler. A escrita e a oralidade são, nessa perspectiva, duas práticas culturais diferentes, mas profundamente vinculadas, que precisam ser consideradas em suas relações. Para Chartier, R. (2004, p. 12), a relação entre o gesto e o escrito precisa ser explicitada, pois “o escrito está no próprio centro das formas gestuais e oralizadas das culturas antigas”.
As práticas de leitura em diferentes objetos culturais circulam na escola formatadas pelas referências de professores que as medeiam. Pode-se caracterizar a leitura no interior da escola como forma de trabalho, pois, de acordo com Chartier e Hébrard (1995, p. 577), “a leitura-prazer só comparece à escola como convidada, mesmo que estejam lá todos os seus suportes”.
Nessa perspectiva, ao tomar como objeto as práticas escolares de leitura historicamente construídas, consideramos a leitura de livros e de outros suportes de impressos que evidenciam sua íntima vinculação à escrita e à figura do leitor, este como um decifrador de letras e sinais gráficos. Na escola, mesmo com o avanço das tecnologias digitais, as práticas de leitura ainda se apoiam, em grande parte, no texto escrito, particularmente no livro didático (BATISTA, 1991; 1998); BRITTO (2011). Outros suportes impressos como jornais, revistas, panfletos, catálogos, folders também vêm sendo frequentemente utilizados em sala de aula.
Ao assumir uma nova função social na sociedade capitalista - responder às necessidades que as relações sociais passaram a exigir em consequência da nova forma de produção -, a leitura é desigualmente distribuída, pois permanecem as desigualdades de acesso à escrita que se multiplica em suportes impressos e digitais. Roger Chartier (2002, p. 8) mostra que, entre “as lamentações nostálgicas e os entusiasmos ingênuos suscitados pelas novas tecnologias”, a escolha da “perspectiva histórica pode traçar um caminho mais sensato, por ser mais bem informado”. Esse foi o caminho escolhido para este estudo.
Breve histórico da leitura e suas práticas: origens no espaço da Igreja
Três revoluções marcaram as maneiras de ler e impulsionaram novas práticas leitoras, na escola e fora dela. De acordo com Cavallo e Chartier (2002), a primeira revolução ocorreu com a mudança da leitura oral para a leitura silenciosa que, no século XII, estabeleceu uma nova função social da escrita: o modelo escolástico em substituição às práticas monásticas de leitura. O ato de ler, antes desvinculado do ato de escrever, uma vez que a função da escrita era preservar-se no suporte, foi substituído pela função do trabalho intelectual, passando da leitura em voz alta para a leitura silenciosa, o que não significa que a oralização não tenha sobrevivido até hoje. A segunda revolução, em torno do século XVIII, substituiu as leituras intensivas que obedeciam a cânones do sagrado e da autoridade, marcadas pela memorização e repetição, pela leitura extensiva em novos impressos, leituras fluidas, mais livres e despretensiosas. A seguir, a terceira revolução tecnológica gerou a transmissão eletrônica dos textos, mudando a relação do leitor com os escritos, criando novas maneiras de ler, suportes e gêneros textuais. Alteraram-se as etapas da produção, editoração e distribuição, pois as novas formatações possibilitaram aos leitores participar de todas elas, isto é, produzir, editorar e distribuir o escrito (CAVALLO; CHARTIER, 2002).
Vistas historicamente, as práticas de leitura requerem a busca de suas origens no contexto das Reformas Religiosas do mundo europeu, séculos XVI e XVII. A economia de subsistência do modelo feudal em transição para uma economia de mercado, as mudanças da sociedade rural para uma sociedade urbana organizada em classes sociais e a política fracionada dos burgos para um Estado centralizado deram início a uma nova ordem social, política e econômica na idade moderna, pressionando a Igreja Católica que enfrentou sua maior crise histórica. Nesse contexto, de acordo com Cavallo e Chartier (2002), ler tornou-se uma exigência que não podia ser ignorada pela Igreja que ocupava o centro das mudanças.
Na obra Didáctica Magna - Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, século XVII, Comênio aponta o caráter de universalidade implícito nas palavras do subtítulo todos, tudo, arte universal, uma proposta de educação para todos. Naquele momento, de transição do feudalismo para o capitalismo, o autor idealizou os livros didáticos: “Os livros didáticos serão, portanto, de dois gêneros: verdadeiros livros de textos para alunos, e livros roteiros (‘informatorii’) para os professores para que aprendam a servir-se bem daqueles” (COMÊNIO, 1985, p. 460).
A aprendizagem da leitura surge de fato depois do Concílio de Trento (1545-1553). Para Hébrard (2007, p. 14), o aprendizado da leitura, naquele momento,
[...] nasce, com efeito [...], a fim de permitir a todos os cristãos, mesmo os mais pobres, mesmo as mulheres, conhecer esta “ciência da salvação”, sem a qual ninguém poderia ser salvo. Por que uma escola ensinando os rudimentos de uma cultura escrita lá, onde o catecismo oral, até então era suficiente? Simplesmente porque as Reformas levaram a um tal ponto de complexidade o debate teológico, que para formar um cristão, por mais obediente que seja, se torna quase impossível passar de um recurso ao texto que fixa ne varietur a especificidade do dogma. Se desejamos que um pequeno católico permaneça católico, é preciso que ele conserve em toda sua vida o perfeito conhecimento da letra de seu catecismo porque, sem ela, arriscaria de não identificar os propósitos heréticos que as diferentes confissões propagam em torno delas. É preciso, sobretudo, que ele possa verificar no texto de seu catecismo, que ele não deformou nada da fé de seus ancestrais. Acontece o mesmo, certamente, com um pequeno protestante. Um e outro devem então aprender a ler, e a escola de sua catequização se torna, assim, a escola de sua alfabetização.
As práticas de leitura do escrito surgem, portanto, no contexto das Reformas com um caráter salvacionista, e nesse cenário o texto do catecismo e a catequização constituiriam historicamente o caminho para chegar à alfabetização, consequentemente, às práticas escolares de leitura. Em diferentes países da Europa, no final do século XVI, a alfabetização se limitou a ler apenas para memorizar o catecismo, as orações etc. Tratava-se de uma alfabetização que desvinculava o ato de ler do ato de escrever, cisão que atendia a outro objetivo: distinguir os grupos sociais para segregar os pobres dos ricos.
O método de leitura partia da soletração das letras para a silabação, passando pela leitura de frases que eram memorizadas e repetidas, uma prática de oralização em que se baseava a pedagogia ao juntar lição e exercício numa só atividade de aprendizagem. Contudo, a leitura como oralização evoluiu com as técnicas e as tecnologias de sua escolarização, embora suas práticas venham resistindo no espaço escolar como apontam pesquisas sobre alfabetização publicadas em periódicos. No século XVII, as demandas socioeconômicas passaram a exigir da escola mais que catequizar, ao ensino da leitura somaram-se o ensino da escrita e do cálculo. Nesse novo cenário, a escola moderna como escola de transmissão dos saberes constituiu-se como espaço para aprender a ler, escrever e contar, apoiando-se também na oralidade e na repetição de exercícios.
No século XIX, a invenção de máquinas com o avanço da industrialização na Europa barateou a produção do papel e como consequência iniciou-se a produção de cadernos. Segundo Hébrard (2007 p. 17), na França, o caderno passou a ser um “instrumento privilegiado do exercício escolar”. “Ordenando o espaço e o tempo do trabalho escolar [...] ele conduz o aluno a entrar no exercício repetido das suas capacidades de inscrever os saberes e savoir faire na escrita”. Nesse sentido, “ele dá, portanto, à escrita escolar seu sentido e sua especificidade: ela é antes de tudo um exercício” (HÉBRARD, 2001, p. 137). O exercício de escrita que implicava também o exercício da leitura.
No século XX, novos instrumentos revolucionaram as práticas de leitura e de escrita: os computadores e demais aparelhos eletrônicos com os quais passamos a conviver nos dias de hoje. Estes exigem mudanças nas práticas de leitura, desencadeando novas maneiras de ler, o que implica mudanças nas práticas escolares de leitura, ainda que a leitura em suportes impressos esteja presente no cotidiano escolar.
Políticas públicas de acesso e produção de livros e leituras no Brasil
Tendo em vista analisar a formação das práticas escolares de leitura no Brasil partindo de dois eixos: as políticas públicas de produção e o acesso ao livro e às leituras, e as teorias e os métodos que influenciaram suas práticas.
No Brasil, o processo de colonização pelos portugueses não se constituiu em “mera transposição de leis, dos costumes e da língua portuguesa. Foi um processo de adaptação, inclusive dos equipamentos culturais como escolas, instituições e bibliotecas que foram postos a serviço na Colônia” (ZAPPONE, SCRAMIM, SOUZA, 2003, p. 1). Os jesuítas, até sua expulsão em 1759, foram os responsáveis pela educação, período em que as práticas de leitura dos brasileiros pouco se desenvolveram em razão dos problemas políticos internos de Portugal, da defesa da terra conquistada diante das investidas estrangeiras e dos movimentos separatistas. Só no começo do século XVIII, com as descobertas das minas de ouro, Portugal voltou-se para o Brasil.
A chegada da Família Real no início do século XIX fomentou a vida cultural. Nesse contexto foram instalados o primeiro prelo, o sistema educacional com ensino superior, o ensino profissionalizante e a Biblioteca Real, com mais de 60 mil volumes. No reinado de D. Pedro, a educação foi marcada pelo caráter elitista, o ensino primário e o ensino secundário ficaram abandonados, ainda que a Constituição de 1824 estabelecera o direito de instrução primária para todos. O Colégio Pedro II criado em 1837-8 para ser o modelo de ensino secundário foi uma exceção. Excetuando-se as escolas do ensino superior e secundário da capital, as escolas do interior funcionavam precariamente, sem estrutura física, com poucos professores e livros e sem uma metodologia adequada. Essa situação atravessou a monarquia e continuou durante o governo republicano. Segundo Lajolo e Zilberman (1996, p. 17), “[...] Olavo Bilac é uma das muitas vozes a alardear a situação precária e insuficiente da educação brasileira, com dados estatísticos: apenas 2,9% da população brasileira em idade escolar frequentavam algum tipo de escola”.
Nesse cenário, de acordo com Zappone, Scramim e Souza (2003), foram instaladas as escolas normais para a formação de professores, que desde a criação dos programas de ensino primário e secundário não vinham exercendo com competência seu papel. No governo provisório de Getúlio Vargas (1930) foram fundados o Instituto Nacional do Livro e a Comissão Nacional do Livro Didático. Em 1945, o Brasil saía da ditadura Vargas experimentando o gosto da democracia. Com a conquista da Petrobrás, fortaleceu-se o discurso nacionalista, o salário mínimo aumentara em 100%, e os brasileiros começavam a ter acesso à cidadania impulsionados pelas conquistas sociais.
Na década de 1940 surgiram os comitês populares do Partido Comunista Brasileiro que incentivaram a educação em cursos de alfabetização de adultos e cursos técnicos gratuitos. Em 1945 foi criada a Unesco, agência das Nações Unidas que visava apoiar tecnicamente as iniciativas de combate ao analfabetismo. A partir de 1947 foram propostas as primeiras campanhas de combate do analfabetismo no país alimentadas por discursos que circulavam na sociedade estigmatizando o analfabeto a fim de propor uma solução salvacionista, atrelada aos interesses políticos da época. Em 1958, o governo de Juscelino Kubitschek abriu a “Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo”, cujas práticas voltadas para a educação popular vinculavam-se ao desenvolvimento do país e à ascensão profissional dos analfabetos.
Destacamos ainda a importância das leis que estabeleceram as diretrizes e as bases da educação brasileira e influenciaram as políticas públicas de leitura e do livro e, consequentemente, as práticas escolares de leitura. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB nº 4024, foi publicada em 20 de dezembro de 1961 pelo presidente João Goulart. Já havia sido prevista pela Constituição de 1934 e encaminhada pelo poder executivo ao legislativo em 1948. Nesse momento, nasceram em torno da alfabetização dos adultos os Centros Populares de Cultura organizados pela União Nacional dos Estudantes, os Movimentos de Cultura Popular vinculados a prefeituras da região Nordeste e o Movimento de Educação de Base no espaço da Igreja Católica.
Um novo marco na história de leitura no Brasil foi a aprovação da segunda Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 5.692. A nova lei foi publicada em 11 de agosto de 1971, em pleno regime militar, no governo de Emílio Garrastazu Médici. A terceira Lei de Diretrizes e Base, nº 9.394 (1996), foi sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ministro da educação Paulo Renato Souza no dia 20 de dezembro de 1996. Esta baseou-se no princípio do direito universal à educação para todos, trazendo mudanças em relação à primeira e segunda leis ao incluir a educação infantil - creches e pré-escolas - como primeira etapa da educação básica, ainda que seus avanços tenham sido pouco significativos no contexto histórico da educação brasileira.
Em 1964 entramos nos governos ditatoriais militares, os direitos civis e políticos foram praticamente eliminados com a cassação dos direitos políticos e as intervenções em sindicatos e organizações estudantis. O desenvolvimento educacional do país passou por um longo período de estagnação. Nesse cenário de repressão militar, sobreviveu o Movimento de Educação de Base, ligado ao Conselho Nacional dos Bispos Brasileiros. Em 1967, o movimento conservador de alfabetização liderado pelos evangélicos, sob o comando da United States Agency of Internacional Development (USAID), fortaleceu-se com os famosos acordos MEC-USAID, implementados no Brasil com a lei 5.540/68 para reformar o ensino brasileiro segundo padrões impostos pelos EUA. O governo ditatorial funda o MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, com recursos substanciais do governo para oferecer à população adulta uma alfabetização funcional, proposta no tripé leitura, escrita e cálculo, apenas algumas noções elementares (ZAPPONE; SCRAMIM; SOUZA, 2003).
Ainda no campo das políticas públicas, no final da década de 1960, foi criada a Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ) com o objetivo de qualificar a literatura infanto-juvenil na escola brasileira. Foi em 1968 como a seção brasileira do International Board on Books for Young People - IBBY, instituição de direito privado, estabelecida na cidade do Rio de Janeiro. Tinha como missão ampliar a divulgação de livros de qualidade para crianças e jovens, na defesa do direito dessa leitura para todos, e para isso propunha a criação e ampliação de bibliotecas públicas, escolares e comunitárias.
Foram patrocinados pela FNLIJ diversos projetos institucionais: Ciranda de Livros (1982-1985), Viagem da Leitura (1987-1988), Livro mindinho, seu vizinho (1987-1988), Leia criança, leia (1988), Meu livro, meu companheiro (1997/98/99), Ateliê do artista (1997/98/99). O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (desde 1992) realiza concomitante aos projetos vários concursos de incentivo à leitura. Os projetos governamentais de leitura/literatura nas escolas se estenderam nas décadas de 1980 e 1990.
Na década de 1990 foram lançados importantes programas de leitura para as escolas brasileiras - o PROLER em 1992 e o PNBE em 1997 - impulsionados pelos discursos de democratização do letramento, conceito que entra em pauta nas discussões sobre alfabetizar e letrar. O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER) foi criado pelo Decreto nº 519 de 13 de maio de 1992, com a finalidade de constituir uma rede de referência par valorizar socialmente a leitura e a escrita, buscando para isso se afirmar em qualidade, diversidade e inovação. Desenvolvido na década de 1990, como parte do Programa de Cooperação Educacional Brasil-França, foi criado e conduzido em parceria pelo MEC e pela Embaixada da França. O Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE (1997) teve como objetivo promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura de alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência.
Outro aspecto importante foi a produção e a circulação dos livros no Brasil, iniciada bem tarde com os poucos prelos que só se instalaram no começo do século XIX quando aqui chegou a Imprensa Régia. Esse atraso em relação à Europa, que possuía seus prelos em funcionamento desde o início do século XVIII, gerou uma carestia de livros que as editoras francesas e portuguesas não supriram. As escolas funcionavam precariamente com a falta de livros, uma vez que a importação tornava o acesso ainda mais difícil (ZAPONNE; SCRAMIM; SOUZA, 2003).
Apesar de ter se iniciado tardiamente a produção e circulação de livros no Brasil, a indústria livreira desenvolveu-se e hoje tem seu parque editorial consolidado, atendendo a variados segmentos sociais, embora a circulação de livros esteja diretamente relacionada às condições socioeconômicas e a grande parte da população de brasileiros pobres ainda não tenham pleno acesso a esse objeto de consumo.
O crescimento do mercado editorial se deve em grande parte às volumosas aquisições de didáticos e paradidáticos efetuadas pelos órgãos governamentais. Atualmente, o país tem a maior produção editorial do continente latino-americano (LINDOSO, 2004), adentrando no segundo milênio com seu parque industrial consolidado, com qualidade gráfico-editorial, respondendo por metade da publicação em livros em todo continente latino-americano. Contraditoriamente, apesar de possuir um parque editorial com qualidade gráfico-editorial, “o baixo índice de leitura de sua população talvez seja o obstáculo mais comprometedor para a superação das dificuldades e é uma consequência das condições socioeconômicas e educacionais da população do país” (ROSA; ODONNE, 2006, p. 183).
Uma pesquisa sobre a produção de vendas do mercado brasileiro realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe-USP), encomendada pelo Sindicato dos Editores de Livros (SNEL) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL), “aponta um crescimento real das editoras de 1,52% em 2013. Mas esse número só aconteceu graças às compras do governo que subiram 6,14% no mesmo período, já que as vendas em livrarias, internet e outras modalidades de varejo ficaram estagnadas” (ABOS, 2014). Já as bibliotecas públicas criadas não atendem suficientemente à demanda existente e são insuficientes os espaços públicos de leitura. De acordo com dados do Ministério da Cultura de 2016, embora sejam 6.701 bibliotecas públicas e cerca de 3 mil comunitárias, 112 delas sequer têm espaços para leitura.
Os livros de leitura também oferecem dados interessantes para se reconstituir a história de leitura no Brasil e de suas práticas. José Veríssimo, em 1906, defendeu que o livro de leitura deveria ser brasileiro, no sentido de transmitir ensinamentos sobre a pátria.
Olavo Bilac, Manoel Bonfim e João Köpke selecionaram para seus livros de leitura autores como José de Alencar, Machado de Assis e Eça de Queirós, cujos textos eram vistos como exemplares no ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Em 1917, Manoel Bonfim publicou seu livro de leitura intitulado Primeiras Saudades, destinado ao Curso Médio das escolas primárias. Na introdução, o autor esclarece que as lições de moral calcadas em fatos reais tinham como finalidade educar, sensibilizando os alunos por meio de suas histórias de bons exemplos e, paralelamente, transmitindo conhecimentos.
Duas décadas depois, Lourenço Filho prefaciou a 14ª edição do livro Leitura II, de Erasmo Braga, e reafirmou as intenções do livro de leitura que deveria prender a atenção do aluno pelos temas educativos e pela linguagem acessível. Rocha Pombo em 1917 apresentou seu livro de leitura chamado Nossa Pátria, de maneira que as crianças aprendessem a amá-la por meio da leitura (LAGUNA, 2003).
Em 1943, a Edições Melhoramentos publicou Série Pátria Brasileira-Leitura I, do autor Renato Sêneca Fleury, cujo prefácio declarava que um livro de leitura não poderia reduzir-se a exercícios de vocabulário, desvinculado do trabalho educativo da escola, devendo pautar-se pela formação do caráter e nortear o pensamento dos educandos. Como afirma Laguna (2003), a leitura era disciplina escolar e tinha um caráter interdisciplinar, os textos dos livros abarcavam assuntos de várias disciplinas.
Não foram apenas os livros de leitura e os manuais escolares que compuseram os acervos de leitura nas escolas brasileiras. Os manuais pedagógicos apresentavam propostas exemplares e ideais para a formação e atuação dos professores. Chartier, R. (1990) explica que os textos pedagógicos se caracterizaram como instância de instrução e ao mesmo tempo de controle do trabalho pedagógico dos professores, uma vez que estabeleciam o perfil de professor visto como ideal para a educação. Para Laguna (2003), os manuais pedagógicos fizeram parte do repertório de leitura dos professores e, consequentemente, de sua formação leitora. Elaborados para atender às exigências das escolas normais, resumiam uma gama de assuntos de diferentes áreas como a psicologia, a sociologia etc.
Além dos livros de leitura e dos manuais pedagógicos, lia-se também livros de literatura nas escolas brasileiras. Os textos literários eram escritos e adaptados para que os professores trabalhassem a formação de seus alunos leitores já nos primeiros anos de escolarização. Um dos primeiros foi Contos Infantis, de Adelina Lopes Viera e Júlia Lopes de Almeida, publicado em 1888 e adotado desde o final do século XIX até os anos 1940. O livro, editado pela Livraria Francisco Alves, mas impresso em Paris, com 27 textos originais e 31 poemas adaptados, tinha como objetivo “[...] exercer uma influência sobre as crianças a fim de estimulá-las a fazer boas ações, usando parábolas que lembram os ‘customs tales’ de Propp” (LYONS; LEAHY, 1999, p. 100).
Embora os textos literários de Contos Infantis apresentassem variações temporais e espaciais, a obra estruturada segundo o princípio da permutabilidade apresentava “[...] os temas, obedecendo à mesma causalidade: uma má ação constitui o nó que será desfeito por aconselhamento, arrependimento e expiação. É a educação pela culpa, com o sabor estritamente pedagógico do livreto” (LYONS; LEAHY, 1999, p. 100). O livro circulou nas escolas por mais de 50 anos e só deixou de ser adotado na década de 1930 com as novas demandas educacionais decorrentes do crescimento da sociedade capitalista. Nascia a literatura infanto-juvenil, segundo Lyons e Leahy (1999, p. 103), como “[...] um subproduto moderno da pedagogia escolar, surgindo um ‘gênero’ literário dedicado a esculpir e corrigir comportamentos naturalmente desviantes através da retórica da persuasão das lições morais aparecendo escritas de forma poética”.
No escolanovismo, a partir da década de 1920, de acordo com Abreu (2002), citando Maria Campos, o livro ocupava seu lugar de destaque nas escolas brasileiras, a grande questão colocada pelos escolanovistas não era aboli-lo, mas adequar sua utilização. À leitura oral se somava a leitura silenciosa, uma experiência individual de cada leitor, e juntava-se ao universo da leitura o universo da pesquisa empírica, não se tratava mais de memorizar, mas de produzir novos conhecimentos, de maneira que o livro como fonte da cultura universal passa a representar fonte de experiência.
Segundo Galvão e Batista (2018, p. 3),
Da década de 20 até meados da de 50, inúmeros livros de leitura foram produzidos e algumas editoras especializaram-se na produção de livros didáticos. Nesse momento, várias reformas de ensino foram empreendidas por diversos Estados. Chegava-se ao século XX com mais de 80% da população analfabeta, o que foi considerado, nos meios intelectuais, uma “vergonha nacional.” Nas reformas, a maioria dos Estados adotou, definitivamente, o ensino seriado. A rede pública de ensino expandiu-se enormemente. Novos métodos de ensino foram discutidos no país, sob a forte influência do movimento da Escola Nova. Novos modos de ler e inovadores papéis passaram a ser atribuídos à leitura na escola. A leitura silenciosa, por exemplo, passou a ser prescrita (nas outras instâncias da sociedade, também, a cada dia lia-se menos coletiva e oralmente).
A partir dos anos 1940-1950, de acordo com Belo (2002), as novas demandas de leitura, resultantes do processo de urbanização e industrialização da sociedade capitalista, determinaram novas maneiras de ler, outras formas de apropriação do livro, mudanças de rumo no mercado editorial, consolidando nesse contexto a figura do editor.
Em 1985, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) passou a distribuir o livro didático que se torna o principal suporte de leitura presente no cotidiano das práticas escolares de leitura. Concordamos com Lajolo e Zilberman (1996, p. 121) ao afirmarem que:
O livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor. Pode não ser tão sedutor quanto as publicações destinadas à infância (livros de histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as etapas da escolarização de um indivíduo: é cartilha quando alfabetização; seleta, quando da aprendizagem da tradição literária; manual quando do conhecimento das ciências ou da profissionalização adulta, na universidade.
O PNLD foi criado como resultado de políticas públicas iniciadas ainda em 1929, quando se criou o Instituto Nacional do Livro. No início da década de 1990, o programa alcançou a universalização do atendimento para os alunos do ensino fundamental de escolas públicas e começou a avaliar pedagogicamente sua qualidade. A partir da década de 2000, o programa ampliou o atendimento para alunos com deficiência adquirindo livros em braille e, mais tarde, agregou cartilhas, dicionários e CD-ROMs da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), chegando à acessibilidade eletrônica para deficientes visuais (BRITTO, 2011).
É nesse contexto de políticas públicas de acesso ao livro e à leitura e de produção e circulação de livros que se desenvolveram as práticas escolares de leitura nas salas de aula.
Entre teorias e métodos: a formação das práticas escolares de leitura
O segundo eixo sobre o qual este estudo se apoia são os métodos e teorias que também influenciaram a formação das práticas escolares de leitura. Na escola, os escritos ganham novos sentidos nas leituras escolares, a partir dos textos e das interpretações dadas pelos professores. Nesse sentido, a escola se configura como “comunidade de interpretação inaugural”. De acordo com Hébrard (1999, p. 77),
[...] a escola forma, em seu espaço próprio, sujeitos que leem, escrevem, mas também ordenam o mundo conforme as categorias que o corpus de textos e a palavra do professor tornam quase naturais. Comunidade de interpretação inaugural, a escola é obrigada a produzir uma recepção compartilhada dos textos, pelo único fato de que, sem a certeza do sentido, não haveria nem ensino possível, nem aprendizagem. As aprendizagens iniciais não são, portanto, como se acredita, saberes neutros, puramente instrumentais, prontos para servir a qualquer uso. Que leitores, que escritores tornam-se os ex-alunos quando encontram, longe da escola, as sociabilidades do trabalho, da família, da vizinhança? Que fazem com o equipamento mental de que a escola os dotou, com menos ou mais paciência ou violência? Como esquecê-lo ou transformá-lo para desenvolver novas habilidades, mais apropriadas às necessidades da vida social? Entre as figuras do leitor, cujas variantes a história cultural descreve e as figuras de escolares, que nós tentamos reconstruir aqui, existem desvios e continuidades cujos mecanismos nos escapam ainda.
À vista disso, tomamos a escola como uma comunidade de interpretação dos textos onde circulam, com seus cânones da tradição, figuras de leitores e maneiras de ler, formadoras das práticas escolares de leitura e de sua escolarização na relação com as leituras de escritos que circulam na sociedade e que se entrecruzam.
Para Vidal (1999), as práticas de leitura na escola brasileira de hoje podem ser explicadas em relação ao binômio escola nova e ensino moderno em contrapartida à escola livresca e ao ensino tradicional. Os ideais da escola nova contrastaram com os da escola tradicional que privilegiava a memorização de conteúdo ao propor um ensino calcado em trabalhos de grupos, experiências, de maneira a deslocar a função primordial do livro, visto como um velho objeto, depreciado pela ineficácia e abandonado ao silêncio, aparentemente antiquado, no novo discurso educacional. Entretanto, não era o livro que estava sendo afastado, mas as formas de manusear esse objeto milenar e seus usos. Em substituição à leitura oral, realizada até então mecanicamente para a formação de bons hábitos de leitura, iniciou-se uma leitura para ampliar a experiência individual do leitor: a leitura silenciosa.
No texto Práticas de Leitura na Escola Brasileira nos anos 1920-1930, Vidal (2001, p. 91) explica que:
[...] os educadores e educadoras comprometidos com o ideal escolanovista dedicaram-se a organizar novas práticas discursivas em torno do livro e da leitura, modelando seu uso escolar e normatizando as formas de apropriação do lido. Artigos sobre técnicas de leitura e estudo começaram a ser publicados em revistas especializadas, que também davam destaque ao debate desencadeado no fim dos anos 10 e ao longo dos anos 20 sobre as vantagens e desvantagens do método analítico de ensino de leitura em oposição ao método sintético, em voga no início do século. Programas de ensino foram reformulados, priorizando as atividades de discussão e seminário. Todo o campo disciplinar passou a ser desenvolvido, tendendo a discriminar o bom e o mau uso da leitura: técnicas de ler, posturas corporais do leitor, características do ambiente de trabalho.
Novos critérios de leitura foram produzidos e definiam as formas corretas de interpretação do texto escrito nas práticas de leitura. Lourenço Filho estava entre os educadores brasileiros que defendiam a nova proposta. Alguns médicos prescreviam a leitura silenciosa baseados em estudos fisiológicos que demonstravam as vantagens desse tipo de leitura. As pequenas bibliotecas escolares também deveriam se adequar à nova proposta educacional, os livros que eram antes reverenciados, inacessíveis, trancados em armários, distante das mãos e dos olhos dos leitores, ganharam novos espaços em lugares arejados, prateleiras abertas, ao alcance dos leitores para serem manuseados, escolhidos, lidos com prazer, trabalhados e apreciados. O espaço da biblioteca escolar adquiriu outros contornos: passou a integrar o cotidiano escolar, as atividades de sala de aula, os programas das disciplinas. Em 1929, a reforma de Fernando de Azevedo propôs a integração do ensino na área de leitura, de escrita e da biblioteca: A leitura oral de textos deveria ser substituída pela leitura silenciosa de textos literários e fichas com o resumo dos textos junto à biografia do autor, identificando-se a forma e a época em que foram produzidos (VIDAL, 1999).
O exercício de ler ampliou-se e passou a contemplar a leitura de livros, revistas e jornais. As bibliotecas foram organizadas em dois acervos, um para os alunos e outro para os professores, para isso se criou o cargo de bibliotecário na Escola Normal. Essas propostas colocadas em prática pela política da Diretoria de Instrução Pública do Rio de Janeiro, na gestão de Fernando de Azevedo, encontraram dificuldades para sua implantação em razão do alto custo dos livros e da falta de critérios para a adoção do livro didático.
O ato de ler silenciosamente, com rapidez e eficiência, múltiplas leituras em ritmos diferentes tornou-se uma exigência do mundo moderno que a escola já não podia ignorar. Nesse contexto, no escolanovismo, o livro associou três valores: ser instrumento de trabalho, ser objeto de prazer e ser fonte de saber. A multiplicação do impresso e a circulação de escritos se diversificaram para responder às necessidades da vida urbana. Exigia-se da escola a formação de leitores concebidos como aqueles que decifravam “uma cultura urbana cada vez mais associada a signos escritos; de uma cultura do trabalho relacionada com informes e manuais e de uma cultura social caracterizada pela profusão de informações por jornais e rádios e pela explosão de imagens permitida pelo cinema” (VIDAL, 1999, p. 353).
A segunda concepção de leitura, diferentemente da primeira, passou a considerar a importância de os alunos se apropriarem dos usos da leitura funcional, ou seja, assimilar a função social da leitura de textos instrucionais que podiam trazer benefícios à vida individual e social. Outra mudança implicou na união da pedagogia escolar da leitura e da alfabetização no âmbito da sociedade, fazendo com que critérios de leiturização reservados à escola se estendessem ao campo social como um todo.
No Brasil, a leitura passou a ser concebida por diferentes olhares, ampliaram-se os ângulos de visão como um caleidoscópio. Larrosa (2001, p. 101) esclarece que a leitura enquanto experiência é diálogo entre texto e leitor, diálogo que se constitui no jogo do dizer e não dizer, de tal forma que o sentido dado está para além do lido, na relação entre ambos - texto e leitor - de tal forma que o texto também interpela o leitor, consequentemente, “[...] ler um texto é, fundamentalmente, escutar a interpelação que nos dirige e fazer-se responsável por ela”.
Na perspectiva freiriana, ler caracteriza-se como um ato que estabelece relações entre o indivíduo e o mundo que o rodeia. Segundo o autor,
[...] a leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto (FREIRE, 1983, p. 11-12).
A leitura de mundo, para o autor, é sempre uma produção de sentido que se relaciona com o momento (tempo) e a situação (espaço) em que foi produzida em diálogo com outras leituras realizadas pelo leitor. Ler o mundo e ler a palavra são experiências existenciais que possibilitam recriar e reviver as experiências vividas atualizando-as ao atribuir novos sentidos. A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, é precedida também por uma forma de escrever e reescrever o mundo, como ação para transformar a realidade pela prática consciente. Há fatores pessoais e sociais que tomam parte desse processo, pois o “[...] ato de ler, [...] não se esgota na descodificação pura da palavra escrita, mas [...] se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (FREIRE, 1983, p. 11).
Hoje, as concepções de leitura que circulam na escola brasileira são múltiplas e revelam uma certa dispersão. A leitura como decodificação do código escrito da língua portuguesa dificulta a busca de sentido, pois nessa concepção o ato de ler instrumentaliza o processo de alfabetização e desenvolve habilidades mecânicas de leitura. Os textos, tomados como pretextos, servem aos treinos de ortografia, ensino da gramática, preparação para o vestibular. Já a leitura como compreensão, ao delimitar-se na localização de informações que fragmentam o texto também dificulta percebê-lo como uma unidade de sentido.
Outra representação de leitura presente no espaço escolar assenta-se em modelos interacionais nos quais o autor e o leitor constroem o sentido do texto. Entre eles estão os estudos cognitivistas que tratam a compreensão de um texto como resultado do uso de estratégias durante o ato de ler, por meio das quais o leitor reconstrói o sentido por meio de pistas deixadas no texto (GOODMAN, 1989; KATO, 1987; SMITH, 1991).
Assim, a leitura escolar vive hoje um paradoxo. De um lado, modelos interacionistas a conceituam como um processo de produção de sentidos, a partir de conhecimentos prévios em que o leitor se apoia. De outro, os sentidos atribuídos pelo leitor se constroem no universo de verdades legitimadas pela escola.
Ainda que possamos relativizar esses fatores, as práticas escolares de leitura se constroem em uma lógica que Magnani (1995) chamou de privação da leitura. Assim,
[...] as práticas leitoras contribuem para o engendramento de um tríplice (e mesmo) processo de identificação: a) entre menoridade cognitiva e menoridade social e cultural do ‘aluno das classes populares’; b) entre menoridade cognitiva, social e cultural e menoridade quantitativa e qualitativa do material de leitura a ele destinado: e c) entre literatura infantil e juvenil e literatura escolar, correspondendo a adjetivação do termo ‘literatura’ a atributos pejorativos decorrentes do estatuto de menoridade apontado em a) e b). De inter-relação desses processos de identificação e como efeito principal e síntese do projeto de escolarização da leitura, produz-se um certo modelo de ‘gosto’, que explicita a circularidade de uma lógica de privação da leitura (MAGNANI, 1995, p. 32).
O que resulta desse processo de privação da leitura é, para além da exclusão da cultura escrita, também a privação da leitura em razão de as próprias práticas se ampararem em um aparente respeito ao leitor, que acaba por reproduzir as mesmas fórmulas e, consequentemente, institucionalizando um modelo de leitura que infantiliza o leitor, vulgariza os materiais de leitura e impede o acesso à cultura escrita. Nesse sentido, a escolarização da leitura favorece apenas o entretenimento, o prazer, a diversão, mas pouco contribui para a formação humana.
Aliada à concepção salvacionista a ideia de promoção necessária da leitura, o projeto de escolarização da leitura vem se apresentando à comunidade escolar com algo inquestionável em suas múltiplas facetas: para aqueles que executam, desvinculados do processo de planejamento, cabe operacionalizar, cumprir tarefas para atender à produtividade do sistema político-educacional. O que se revela nesse cenário, de acordo com Magnani (1995), é o caráter técnico-instrumental da leitura, seu ensino é uma questão de metodologia enquanto a aprendizagem é vista como processo de autoeducação dos educandos. O professor passa a atuar como gerador de estímulos por meio de exercícios de leitura em textos, quase sempre selecionados pelo autor do livro didático, aparentemente para atender às preferências dos alunos. As práticas escolares de leitura se condicionam a esse processo.
Em relação à leitura literária, embora a produção de livros de literatura direcionados às crianças e aos jovens tenha crescido em quantidade e qualidade, as práticas da leitura literária vêm se caracterizando pela instrumentalidade em sua produção e abordagem, distanciando-se daquilo que as define - sua esteticidade -, como analisa Perrotti (1986) em seu livro O texto sedutor na literatura infantil.
Considerações finais
Tendo apresentado como objetivo analisar historicamente a formação das práticas de leitura e suas relações com a leitura na sociedade, buscamos levantar questões pertinentes para refletir seu papel na escola atualmente.
O acesso ao livro e à leitura para as camadas populares e as desigualdades sociais de acesso à escrita em diferentes suportes são ainda um entrave à democratização da leitura. O caráter salvacionista que historicamente marcou o acesso à leitura, inclusive limitando a alfabetização à memorização de textos e ao exercício de simples decifração, subsiste e pode ser identificado em propostas e práticas alfabetizadoras atuais.
Os livros didáticos, já esboçados por Comênio em sua Didáctica Magna, transformaram-se na atualidade no suporte de impresso mais utilizado nas escolas públicas, e responsáveis por boa parte das vendas das editoras privadas. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) responde hoje pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que faz a distribuição de livros didáticos às escolas brasileiras, principal suporte de leitura utilizado na sala de aula, evidenciando uma leitura escolarizada que em sua função didática foge da diversidade das maneiras de ler, usos e funções das leituras que circulam na sociedade.
Nesse sentido, as práticas escolares de leitura evidenciam um caráter instrumental e utilitário e se movem entre atividades de decifração do código linguístico, lembrando as práticas de oralização de textos que marcaram a história da leitura e a interação entre o leitor e os textos, como “processo de interação verbal entre indivíduos socialmente determinados: o leitor, seu universo, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e com os outros; o autor, seu universo, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e os outros” (SOARES, 2000, p. 18).
Em uma e outra atividade, os leitores não se reconhecem como interlocutores na perspectiva discursiva que caracteriza o ato de ler. O que emerge das atividades escolares de leitura é um quadro de escolarização de suas práticas que tornam improváveis as possibilidades de atribuição de sentidos para além dos modelos estabelecidos. As práticas escolares de leitura precisam ser compreendidas em diferentes perspectivas teóricas que requerem um olhar multidisciplinar do professor. Nesse movimento, em que se intercruzam e interpenetram a leitura escolar organizada em cânones, protocolos e finalidades e a leitura em diferentes grupos sociais e comunidades leitoras na sociedade, constituem-se as práticas escolares de leitura.
À guisa de uma conclusão, o que nos parece inadiável é a tarefa de compreendermos as práticas escolares de leitura em sua longa história, entre rupturas e continuidades, não para resgatar ou romper com seu passado, mas para compreender suas práticas atuais em diferentes materialidades e gestos: no papel e na tela, continua e descontínua, fragmentada e sua totalidade, em textos fixos e textos móveis, textos lineares e hipertextos, em novas maneiras de ler, novos suportes e gêneros textuais.