Introdução
O século XXI é palco de grande avanço tecnológico e de conquistas importantes tanto nas ciências biológicas como em todas as áreas da saúde, porém não foi suficiente para deter a pandemia da Covid-19 iniciada em dezembro de 2019 (MARQUES et al., 2020). Esta, além de se apresentar como importante ameaça à saúde e à vida das pessoas, foi responsável por mudanças extremas no cotidiano de todas as pessoas. O distanciamento social, utilizado como principal medida de prevenção e contenção de proliferação da infecção pelo Coronavírus, foi o grande responsável por mudanças na forma de interação humana.
De acordo com o relatório produzido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGIBR, 2021), em razão da pandemia da Covid-19, houve uma ampliação da interação on-line, ocasionando alterações no comportamento das pessoas e no funcionamento de diversos segmentos, entre as quais destacamos: expressivo aumento no número de compras on-line; transferências dos espaços de trabalho para ambientes domésticos; mudanças na forma de realização de encontros e festividades familiares; grandes eventos sociais promovidos em palcos virtuais (lives, shows etc.); e a presença maciça de modelos digitais de ensino como medida emergencial para a garantia da manutenção de atividades educativas em todos os níveis de ensino e na maioria dos países.
Nesse cenário, o uso da internet foi considerado indispensável, pois garantiu a comunicação, o acesso à informação, a manutenção do comércio e da prestação de serviços na área da saúde, como os atendimentos por telemedicina, e da educação, ensino on-line, e permitiu a interação entre pessoas que pertenciam a diversas culturas e que estavam geograficamente distantes (CGIBR, 2021).
O acesso à internet tornou-se “bem de primeira necessidade” e a não possibilidade desse acesso determinou impedimentos no enfrentamento da pandemia. Nesse contexto de inevitáveis perdas e interrupções de vários segmentos da vida das pessoas, ter ou não acesso às TDIC demarcou modos diferentes de viver/sobreviver e denunciou a violação de direitos em diversas esferas, entre elas a educacional. A pandemia da Covid-19 afirmou a urgência de democratização da internet, como meio de efetivação da manutenção das atividades de ensino para estudantes de todas as classes sociais e de todos os níveis escolares (CASTELLI; SARVARY, 2021).
O acesso às aulas on-line não garantiu a efetividade do processo de ensino e aprendizagem, pois as demandas de educar no contexto da pandemia, em todos os níveis de ensino e por meio das TDIC, produziram mudanças no modo de fazer de professores e estudantes e, especificamente, exigiram do professor o adiantamento de competências não apenas técnicas, mas também pessoais, no sentido de melhor favorecer a efetiva aprendizagem dos estudantes. Por conseguinte, a pandemia exigiu respostas imediatas de todos os pesquisadores em educação acerca de um modelo que garantisse efetividade e qualidade do processo educativo (MOREIRA et al., 2020).
Marques et al. (2020), ao apresentarem o panorama histórico da pandemia da Covid-19, atentaram que o impedimento do contato social e a mudança no comportamento das pessoas possibilitaram a ocorrência de eventos que surgiram na contramão do caos ocasionado pela pandemia, a exemplo dos fenômenos da natureza que puderam ser detectados por satélites em virtude da redução da poluição atmosférica e da criação de redes solidárias para atender a privações de necessidades básicas de algumas camadas da população.
No cenário da educação, o fenômeno que destacaremos como a contramão dos problemas da pandemia, sem deixar de mencionar as diversas dificuldades do setor, é a presença das TDIC no fazer diário de professores, configurando a necessidade de investimento em qualificação profissional, o que propiciou mudanças na atuação de todos os que estavam na “linha de frente” da educação durante a pandemia (MOREIRA et al., 2020).
Estudos sobre a interação no processo de ensino e aprendizagem on-line (COSTA et al., 2009; PIMENTEL, 2010; SANTOS et al., 2016), mais especificamente da interação em atividades educacionais no contexto da pandemia da Covid-19 (CASTELLI; SARVARY, 2021; MOREIRA et al., 2020), permitiram-nos identificar a necessidade de investigarmos acerca dos cuidados éticos que devem balizar a interação em contextos educacionais mediados pelo uso de artefatos digitais.
Este artigo tem como objetivo investigar as possibilidades de interação on-line entre professores e estudantes e as implicações éticas determinadas por esse modelo virtual de interação, enfocando as interações síncronas no contexto das aulas on-line e os cuidados éticos.
Apresentaremos o conceito de interação on-line como ferramenta para o ensino e aprendizagem na educação on-line, destacando os recursos disponíveis para a efetivação desta, bem como uma análise a respeito dos cuidados éticos que devem balizar os encontros on-line entre professores e estudantes e as implicações relacionadas à ausência desses cuidados.
Metodologia
Este é um estudo exploratório, qualitativo e de revisão bibliográfica desenvolvido a partir de artigos publicados em periódicos disponíveis no repositório da Capes entre os anos de 2011 e 2021. Os descritores “interação”, “ensino on-line”, “ética” e os operadores booleanos “or” e “end” permitiram o acesso, em julho de 2021, a 38 textos, dos quais apenas 11 atendiam aos objetivos desta investigação. Foram utilizados também como referencial teórico para este artigo blogs da área de educação e comunicação, publicações na área das TDIC e materiais publicados em plataformas de vídeo, mencionados ao longo do texto.
A interação no processo de ensino e aprendizagem na educação on-line
Partindo de pressupostos sociológicos, é a interação entre os humanos que caracteriza a natureza social do próprio homem, determina o desenvolvimento da sociedade, assinala a identidade humana e distingue cada momento histórico. Dessa forma, a capacidade de interação humana permite a aprendizagem de todas as ações e o desenvolvimento das pessoas em uma sociedade. Assim, a aprendizagem está imbricada nos processos interativos, tem importância central na manutenção da vida humana e pode a própria vida em sociedade ser descrita como um processo interativo que possibilita o ensinar e o aprender constantes, acompanhando o homem até o dia de sua morte (CHARON; VIGILANT, 2012).
A aprendizagem depende da interação, e a história da educação escolar é marcada por diferentes formas de interação entre as distintas identidades que circulam os espaços educacionais (professores, tutores, estudantes), pelos mais diversos instrumentos de transmissão ou mediação do conhecimento (livros, quadros negros, lousas digitais, computadores) e pelos modelos pedagógicos de intervenção estabelecidos a partir da própria forma em que se dá essa interação (NÓVOA, 2015).
O processo formal educativo, presencial ou não, exige que sejam estabelecidos os objetivos de aprendizagem, o planejamento das intervenções pedagógicas, a preparação de materiais pelo professor e que este invista no desenvolvimento de estratégias de interação com o grupo de estudantes, viabilizando o processo de ensino e aprendizagem (ANTUNES; BATISTA, 2016).
No ensino on-line, há, também, a necessidade de outros saberes considerados complementares ou diferentes do ensino presencial, como: a organização e estruturação do curso no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) e os domínio das TDIC; a gestão do tempo em espaços não presenciais; recursos de interação on-line com os estudantes; e estratégias para o desenvolvimento de um ensino coletivo ou polidocência (FARIA; NUNES, 2020).
Nesse modelo de ensino, caracterizado por uma multiplicidade de atores, a interação é responsável pela qualificação do processo de ensino e aprendizagem. Pimentel (2010) apresenta a interação, a comunicação e a aprendizagem mediada como elementos fundamentais da educação permeada pelas tecnologias; considera a comunicação que se dá por meio das TDIC como multidimensional, geradora dos processos de aprendizagem e, essencialmente, dialógica.
Pimentel (2010) utilizou os pressupostos teóricos da Teoria Sociocultural de Vygotsky e apresentou as TDIC como instrumentos de mediação e o professor/tutor como mediador dos processos de ensino e aprendizagem. A interação é conceituada como uma ação recíproca que se dá entre professores e estudantes, ação que envolve aspectos subjetivos dos envolvidos e que pode ocorrer de maneira direta e/ou indireta, e ela se faz indireta quando mediada por algum recurso tecnológico. A ação docente se dá a partir do uso de recursos tecnológicos e mídias que possam favorecer a aprendizagem, tendo em vista as devidas adaptações e ampliações desses recursos a partir das necessidades demonstradas pelos estudantes.
A docência on-line, com o uso das TDIC, modalidade educacional que caracterizou mundialmente o panorama educacional durante a pandemia, convocou professores a utilizarem modelos interativos distintos dos modelos presenciais. Nesse cenário, professores de todos os níveis de ensino tiveram que se adaptar a variadas práticas pedagógicas on-line e a diversos recursos tecnológicos de interação e comunicação. A cibercultura foi trazida para os espaços de ensino e as possibilidades de aprendizagem em rede manifestaram-se em expressões como: conectar-se, postar, conversar, comentar, compartilhar, colaborar etc. (PIMENTEL; CARVALHO, 2020).
A educação on-line, compreendida como uma abordagem didático-pedagógica, ultrapassa o que se conhece do modelo tradicional de ensino não presencial fundamentado em uma perspectiva instrucionista-massiva. Nesse modelo de ensino tradicional a distância, as TDIC são utilizadas como recurso de apresentação de conteúdo para os estudantes, e não como recurso de interação com os estudantes; os conteúdos são fechados e o professor faz uso dos recursos de mídia para depositá-los em algum AVA ou espaço virtual e os estudantes realizam atividades com o intuito de comprovar que os conteúdos foram estudados, e, na maioria das vezes, essas atividades são realizadas isoladamente (PIMENTEL; CARVALHO, 2020).
A educação on-line que se diferencia do modelo tradicional de Educação a Distância (EaD), visando uma aprendizagem crítica e colaborativa, tem como proposta promover a (co)autoria, a autonomia e a criatividade do estudante e uma mediação docente voltada para a interatividade e partilha. A educação on-line estabelece a necessidade de modelos de interação diversos dos modelos de interação da EaD (SANTOS et al., 2016).
A interação em um espaço de educação on-line ocorre, fundamentalmente, mediada pelas TDIC e exige modos de fazer diversos do professor e do estudante. No intuito de alcançar os objetivos de ensino, o professor socializa os conteúdos em um AVA ou outros espaços virtuais e utiliza-se de estratégias que promovam interatividade e aprendizagem colaborativa. Nesse modelo didático-pedagógico, o estudante é um agente ativo e capaz de aprender a partir de suas próprias investigações, o que é caracterizado como autoaprendizagem (PIMENTEL; ARAUJO, 2020).
No contexto da educação on-line, a interação pode se dar em momentos síncronos, nos quais os recursos tecnológicos superam as distâncias, permitindo que professores e estudantes se comuniquem em tempo real e de forma assíncrona, na qual não há interação simultânea (PIMENTEL, 2010).
Em momentos síncronos, os estudantes podem interagir com os demais colegas e com o professor por meio de chat e do compartilhamento de vídeos, áudios e imagens de textos. Nas atividades educativas desenvolvidas de forma assíncrona, o professor utiliza-se de diversas plataformas para organizar e publicar os materiais didáticos e realizar atividades avaliativas. O trabalho assíncrono é caracterizado pelo uso de recursos como e-mail, fóruns de discussão, videoaulas, murais eletrônicos, blogs e aplicativos de comunicação (PIMENTEL; ARAUJO, 2020).
Em relatos de experiências de ensino on-line durante a pandemia, as atividades síncronas foram consideradas como aquelas que ofereciam mais benefícios a professores e estudantes por: patrocinarem maior envolvimento e interatividade; viabilizarem feedback imediato e colaborativo em tempo real de aprendizagem; favorecerem a construção de uma identidade coletiva e senso de comunidade; implicarem melhor desempenho do estudante e menor sentimento de solidão; e, destacadamente, foram relacionadas a índices positivos de saúde mental de professores e estudantes (CASTELLI; SARVARY, 2021) .
No cenário educacional determinado pela pandemia, as experiências de ensino on-line registraram ambas as formas de interação, alicerçando a manutenção desse modelo de ensino e aprendizagem para além do evento da pandemia e justificando problematizarmos neste texto os cuidados éticos que devem abalizar a atuação de professores e estudantes em momentos síncronos de interação.
Cuidados éticos nas interações no contexto das aulas on-line
A ética como ciência da conduta humana (ABBAGNANO, 2012) permite-nos contextualizar os espaços formais de educação como locais de exercícios éticos, pois, independentemente do momento histórico, a escola funda-se na perspectiva do certo e do errado, do bem e do mal e no que deve ser ou não ser ensinado/aprendido. Desde os primeiros anos da vida escolar, a ética atravessa todas as relações que se estabelecem nos âmbitos educativos e exige posturas relacionadas à moral e às virtudes (TUGENDHAT,1996).
Nessa perspectiva ética, a sala de aula é espaço comunitário no qual a relação professor/estudante se dá a partir de acordos éticos que, ocorrendo de maneira formal ou informal, devem garantir a não violência entre os sujeitos e assegurar que a natureza das relações que se estabelecem nos espaços educativos seja fundamentalmente humana. Sem a garantia de ser regida por preceitos éticos, a sala de aula perde-se pela aplicação de mecanismos de controle e vigilância impostos pela lógica produtivista e distancia-se de todos os princípios de uma educação humanista (BEZERRA, 2020).
Essa educação humanista pode ser caracterizada pelas mudanças na figura do professor consonantes com as transformações que a escola e o ensino vêm sofrendo ao longo do século. O professor da escola tradicional, tido como a autoridade e dono de todo o saber, não mais atende as demandas da sociedade tecnológica, que exige que a escola seja espaço de compartilhamento de saberes; nesta, o professor é considerado mediador do conhecimento (FREIRE, 1996).
Destacadamente, o processo de ensino e aprendizagem mediado pelas TDIC modificou os papéis do professor e do estudante e a convivência entre estes. As tecnologias possibilitaram um modelo de convivência virtual, no qual os estudantes aprendem a se relacionar com mundo, com o outro e com si mesmo. Assim, da mesma forma como se estabelece a necessidade de um comportamento ético nos espaços de convivência não virtuais, o ensino mediado pelas TDIC também preconiza uma convivência ética na qual “[...] a singularidade de cada um seja considerada em consonância com o bem comum dos demais [...]” (BARREIRO; CARVALHO, 2017, p. 40).
Os encontros entre professores e estudantes, presenciais ou não, devem ultrapassar a perspectiva de disciplinamento ou de espaços de aprendizagem formal, podem ser considerados como oportunidades de convivência com a diversidade, potencializando o imponderável, o improviso, a troca informal de experiências pessoais, conversas sobre questões sociais e a exposição da subjetividade dos sujeitos envolvidos. Potencialmente, a sala de aula é palco de trocas sociais, com acordos e disputas, além de formação humanista, cidadã e da reprodução e recriação de valores morais e éticos (MAGRI, 2020).
No cenário da pandemia, a urgência por essa convivência virtual representou muitos desafios e causou tensões, mas, em contrapartida, inaugurou várias questões acerca da atuação dos professores nesse modelo de ensino mediado pelas tecnologias e sobre os cuidados éticos que devem permear os encontros virtuais entre professores e estudantes.
As TDIC tornam possíveis encontros em meios digitais, face a face entre professores e estudantes. Em uma videoconferência, realizada por meio de algum sistema computacional, duas ou mais pessoas, que não estão compartilhando do mesmo espaço físico, podem estabelecer diversas formas de interação. A atenção acerca dos cuidados éticos em momentos síncronos está relacionada, primordialmente, à concepção da natureza humana desses encontros (MOREIRA et al., 2018). Durante a pandemia, em todos os níveis educacionais, os encontros síncronos registraram uma série de eventos considerados como não alinhados às condutas éticas que devem pautar os momentos de aula em qualquer modelo de ensino.
Bezerra (2020), apresentando questões éticas no ambiente educacional, faz referências a algumas das circunstâncias que denunciam a fragilidade ética que permeia os encontros síncronos, como: a desconexão temporária; a possibilidade de invisibilidade do estudante que se encontra on-line; a gravação e compartilhamento de imagens e conteúdos não autorizados por todos os participantes; a dispersão dos estudantes; as dificuldades do professor em utilizar as ferramentas tecnológicas; a interrupção da interação pela ausência do estudante de forma inesperada; e condutas insistentes dos professores para atrair a atenção dos estudantes e obter o feedback acerca de estar ou não sendo visto pelos participantes da atividade síncrona.
Publicações anteriores do cenário pandêmico acerca de questões éticas no contexto das aulas on-line não ocorreram no mesmo volume em que foram abordados temas práticos relacionados à docência on-line. Durante a pandemia, as produções científicas envolvendo cuidados éticos em atividades on-line também foram parcas se comparadas as inúmeras publicações que registraram matérias como: estratégias de ensino on-line, o uso das TDIC e avaliações em cenários não presenciais (ROMANCINI, 2012).
Pesquisadores na área da EaD iniciaram, há mais de uma década, discussões a respeito da ética na educação on-line (RAMOS, 2012; ROMANCINI, 2012; OLIVEIRA; CARNEIRO, 2005). Ao longo dos anos, essa temática permaneceu como objeto de investigação em alguns estudos (MOREIRA et al., 2018; BARREIRO; CARVALHO, 2017; SILVA; BEZERRA, 2017), mas ainda não existem normatizações formais que balizem as relações educacionais estabelecidas entre professores e estudantes em espaços virtuais (RAMOS, 2012; ROMANCINI, 2012), o que favorece a fragilidade ética a que estão sujeitos professores e estudantes e justifica a necessidade de investigação e publicações acerca do tema.
Apresentaremos três perspectivas acerca dos cuidados éticos em atividades interativas síncronas no contexto das aulas on-line em três subseções: a) exposição da imagem dos participantes; b) privacidade dos participantes; e c) situação de vigilância no contexto das aulas on-line.
a) Exposição da imagem dos participantes
“Não é possível pensar seres humanos longe, sequer da ética, quanto mais fora dela” (FREIRE, 1996, p. 16). Ensinar exige ética, privilegia o encontro pessoal entre o sujeito que ensina e os que aprendem e pressupõe que não há ensino sem respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do estudante e, ademais, não há como a pessoa do professor não ser a figura a quem o estudante deve ter em consideração sua identidade como pessoa, como mediador do conhecimento e sujeito produtor das interações que se dão nos cenários educativos (FREIRE, 1996).
Desde o início do distanciamento social, o setor educacional, como diversos outros, utilizou plataformas de videoconferência (Zoom, Microsoft Teams, Google Meet,Skypeetc.) para manter as atividades realizadas antes da pandemia. Professores passaram a problematizar estratégias de intervenção e a participar de cursos de capacitação para o uso das TDIC a partir de reuniões virtuais, e, simultaneamente, iniciaram as atividades on-line com o grupo de estudantes (MOREIRA et al., 2020). Portanto, o setor educacional retomou as atividades de ensino “[...] sem discutir as questões éticas para a boa convivência entre os agentes diante destas novas condições de exposição nas mídias digitais” (MAGRI, 2020).
Nesse cenário, o professor passou a gravar vídeos individuais, organizar webinários nas páginas de instituições de ensino e publicar seu conhecimento técnico nas redes sociais (MOREIRA et al., 2020). Essas ações produziram fragilidades éticas quando não consideraram a liberdade do professor de escolher ter, ou não, sua imagem exposta e/ou utilizada para representar e divulgar a instituição de ensino à qual pertenciam. Magri (2020) aponta que essa mesma exposição ocorreu em todos os outros setores que passaram a desenvolver atividades síncronas durante o período de isolamento social e atentar que a percepção digital da imagem do profissional passou a ser fonte de preocupação para as organizações às quais ele está vinculado e para ele mesmo.
A imagem do professor passou fazer parte dos arquivos eletrônicos de estudantes e, abundantemente, das instituições de ensino, favorecendo a possibilidade de uso delas, quer com conotações positivas e éticas, quer em situações depreciativas e não éticas (HADLER, 2020).
Peres-Neto (2020), ao mencionar ataques à imagem do professor em situações de aula on-line, não considera que esses comportamentos negativos tenham sido resposta ao choque dessa geração de estudantes em face das aulas na pandemia, pois até mesmo os estudantes que chegaram ao ensino superior em 2020 já cresceram em meio às tecnologias digitais. Conforme o referido autor, para essa geração o novo passou a ser o professor nas telas e a presença virtual do professor na casa dos estudantes regulando, de alguma forma, as atividades escolares no seio das famílias. “[...] é a partir deste ponto que começamos a vislumbrar questões éticas novas. Entender os limites, adequações e responsabilidades em cada espaço social é parte de um processo de socialização ético que vai além de qualquer fronteira [...]” (PERES-NETO, 2020).
O imperativo da adaptação do professor às TDIC sobrepôs-se à necessidade de pensar o lugar deste como sujeito virtual em interação com os estudantes, que também passaram a ser sujeitos nesse contexto. A responsabilidade por condutas que comprometem a pessoa do professor e do estudante não foi trazida como pauta de discussão prévia, não antes de diversos eventos desrespeitosos acontecerem em momentos síncronos e viralizarem nas redes sociais e serem judicializados.
As situações que ultrapassam os limites éticos e são enquadradas como criminosas denunciam a gravidade desse cenário, e não estamos nos referindo a apenas eventos endereçados aos professores por estudantes, mas também a posturas que, ignorando a escola como espaço ético, foram tomadas por professores em aulas on-line e que feriram valores morais e éticos (HADLER, 2020). Como exemplo, citamos: o caso do professor que foi afastado após se masturbar na frente de estudantes durante uma atividade interativa síncrona (LEÃO, 2020) e o do professor que pede para a aluna, que se diz sem roupa, abrir a câmera, também durante uma aula on-line, e, ainda, oferta pontuação para que sua solicitação seja atendida (SOUZA, 2020). Há vídeos disponibilizados nas redes que, apresentando o mesmo tipo de situação, denunciam a exposição da imagem do professor e a necessidade da atenção de todos os profissionais que compõem o cenário da educação on-line para a fragilidade ética presente nesses momentos de interação síncrona.
Um caso de repercussão internacional foi o que ficou conhecido como Reconnecting, no qual uma professora foi “trolada”1 em uma aula on-line. Nessa situação, os estudantes fingiram estar desconectados e causaram embaraço à professora, que, não conseguindo identificar se estava ou não sendo vista por eles, apresentou reações espontâneas de desespero diante da situação. A inabilidade de operar a plataforma zoom e sua consequente reação ao embaraço provocado pelos estudantes foi publicada no canal TikTok por um influencer digital americano e contou com mais de 75 milhões de visualizações e quase 11 milhões de curtidas e ainda foi repostada por milhares de jovens de várias nacionalidades (PERES-NETO, 2020).
O mais curioso é que o influencer digital que fez a publicação do Reconnecting não foi responsabilizado judicialmente, mas sim o canal TikTok, o que nos traz questionamentos sobre o uso da imagem de terceiros nas redes e a responsabilização de quem a publica (PERES-NETO, 2020). Podemos também citar as inúmeras publicações disponíveis nas redes sociais de salas de aula on-line, de trechos de aulas e da infinidade de sugestões de “como trolar seu professor”.
Consideramos que eventos semelhantes podem ocorrer em espaços de ensino presenciais, no entanto temos que considerar a gravidade das implicações destes quando se dão em meio virtual por razões peculiares ao universo digital, tais como: são de fácil compartilhamento e poderão fazer parte da rede de forma permanente, comprometendo, infindavelmente, a identidade dos envolvidos. Os encontros síncronos podem fragilizar a imagem do professor, pois há o risco de que o sujeito que não é visto de forma presencial possa não ser reconhecido ou fazer-se desconhecido por não se identificar com o que está sendo percebido por outros sujeitos do espaço virtual. Considerar que existem sujeitos atrás da tela é conceber o espaço de aulas on-line como formado por pessoas, não por participantes (HADLER, 2020).
b) Privacidade em momentos síncronos
Nas atividades síncronas, ocorrem interações entre professores e estudantes e entre os próprios estudantes de maneira semelhante ao ensino presencial. Esse movimento interativo acontece permeado por dialogicidade e possibilita a emergência de eventos além dos previstos pelo professor e que ultrapassam a mera transmissão de conteúdos (SANTOS et al., 2016).
A sala de aula, presencial ou on-line, é um espaço de aprendizado e exercício de interações que deve ser pautado por condutas éticas e valores morais. Além das interações relativas aos conteúdos formais, professores e estudantes interagem de forma espontânea e podem expor experiências pessoais ou posicionamentos individuais relativos a diversos contextos. Ademais, é possível que, a partir da convivência de sala de aula, surjam relacionamentos afetivos que extrapolem o espaço e o tempo das atividades de ensino. Esses espaços de ensino, por serem de natureza relacional, devem favorecer a formação humanista, cidadã e a reprodução e a recriação de valores morais (BEZERRA, 2020).
Em atividades presenciais, as interações ocorrem envolvendo um grupo de estudantes e o professor em um espaço físico demarcado por paredes e portas onde não há testemunhos além dos que estão aos olhos de todos os participantes. Nesse contexto presencial, acordos implícitos e explícitos e os limites do espaço físico garantem a privacidade dessas relações. Na sala de aula on-line, em atividades síncronas, é possível o registro permanente das imagens e das demais comunicações feitas por qualquer participante e, ainda, pode haver a presença não consentida ou acidental de pessoas que não estejam participando da atividade, mas que se encontrem no ambiente físico em que atividade esteja acontecendo. Para Castelli e Sarvary (2021), esse contexto ameaça a privacidade de professores e estudantes, pode tolher a espontaneidade dessas interações e dificultar a adesão de estudantes ao modelo de ensino on-line.
As aulas presenciais não estão livres de serem fotografadas ou filmadas, no entanto, no estudo de Bezerra (2020), os professores consideraram mais fácil o controle sobre essas ações no espaço de aula físico no sentido de que todos os participantes têm condições de proteger suas imagens. Por sua vez, no contexto de aulas síncronas, os participantes não conseguem visualizar as condutas dos participantes e estão sujeitos a apenas um clic para serem gravados ou fotografados.
É possível contratualizar a questão do registro da aula on-line por meio de vídeo, áudio ou imagens, estabelecendo com o corpo de estudantes qual parte do encontro síncrono poderá ser gravado, bem como definindo a priori em que local será feito o compartilhamento do material gravado. Bezerra (2020) sugere como uma das formas e cuidados éticos envolvendo essa questão que as gravações sejam limitadas aos momentos estritamente formais e conteudistas e realizadas diante da necessidade de disponibilizar o material para os estudantes ausentes e/ou para ser revisto pelos que se fizeram presentes como recurso de aprendizagem.
c) Situação de vigilância no contexto das aulas on-line
O advento contemporâneo das TDIC não nos permite invisibilidade, somos filmados e fotografados em simples atividades cotidianas, bem como não deixamos que nada escape aos nossos clics; mesmo que os vídeos que salvamos e as fotos que colecionamos nas galerias dos smartphones sejam posteriormente descartados, compulsivamente registramos tudo o que se passa a nosso redor. Zuboff (2018) descreve o poder da vigilância na sociedade contemporânea e aponta a ilusão da liberdade e a falsa sensação de segurança estabelecida pela vigilância de câmeras e sistemas computacionais.
Não é incomum olharmos o mundo através dos olhos de câmeras com altíssimas resoluções; se observarmos as atividades festivas presenciais realizadas na escola, lá estarão pais e familiares com câmeras assistindo seus filhos dançarem ou recitarem poemas. Tudo seguramente vigiado. Muitas vezes, os estudantes que estão se apresentando sentem dificuldades de identificar seus familiares na plateia, mas tudo estará na câmera. Faltou o encontro do olhar, mas teve um olho digital que registrou todos os momentos e, rapidamente, estes podem ser divulgados em uma rede social.
Nesse universo cibercultural, são possíveis o registro e o compartilhamento de forma quase automática, sem tempo de reflexão crítica (BAUMGARTNER, 2020). Estudantes e professores possuem redes sociais e tendem a alimentá-las com a rotina diária e, nesta, estão as atividades acadêmicas diárias, configurando-se a situação de vigilância a que estão sujeitos professores e estudantes em atividades síncronas.
Nos momentos síncronos, as interações entre estudantes e professores estarão seguramente vigiadas e tudo poderá ser registrado em nome da segurança da atividade: os participantes, a duração do evento, os dados dos participantes das reuniões e os recursos utilizados durante a videoconferência. Ademais, uma das questões mais citadas no contexto da vigilância pelas mídias durante a pandemia foram as aparições acidentais da intimidade dos participantes. As aulas on-line funcionando em ambientes domésticos capturaram além da imagem dos estudantes.
Uma das estratégias de proteção adotadas pelos participantes de momentos síncronos foi a utilização das câmeras dos dispositivos em “modo fechado” a fim de impedir que suas imagens fossem vistas por outros estudantes e pelo professor nas aulas on-line. Na pesquisa de Castelli e Sarvary (2021), os estudantes apresentaram como as principais razões para não permitirem ser vistos por colegas e professores: as dificuldades que têm com a própria aparência; por se sentirem envergonhados em mostrar o ambiente doméstico; e por não terem um local privado para participarem das aulas on-line síncronas em suas residências. Os autores defendem como conduta ética do professor e da instituição de ensino o respeito aos estudantes pela escolha de abrir ou não as câmeras durante os encontros síncronos.
Os professores, por sua vez, relatam dificuldades na interação com os estudantes, quando não conseguem visualizar o que está se passando com eles em momentos síncronos, e sofrimento e solidão durante os trabalhos síncronos. Da mesma maneira que os estudantes, alguns professores mencionam que sentem ter a vida pessoal exposta ao abrirem as câmeras e apresentarem espaços de suas vidas privadas em atividades profissionais (CASTELLI; SARVARY, 2021).
Situações com graves implicações éticas estão relacionadas ao fato de que os professores em atividades síncronas são supervisionados por outros profissionais em tempo real ou em casos em que são obrigados a deixar as aulas on-line nos repositórios das instituições de ensino em nome da qualidade do trabalho educativo ou da ampliação de acesso às aulas para os estudantes que se encontravam ausentes no momento síncrono.
A cultura da vigilância disseminada em espaços de ensino on-line aponta para a necessidade de se estabelecerem regras e contratos que favoreçam um clima de confiança em momentos síncronos e ampliem o diálogo entre professores e estudantes no sentido de garantir que o espaço educativo seja qualificado como ético.
Considerações finais
A pandemia da Covid-19 exigiu mudanças extremas no funcionamento de toda a sociedade e as instituições de ensino deram respostas imediatas, atendendo a necessidade de ensino a partir do uso das tecnologias digitais. A substituição da interação face a face por modalidades de interação assíncronas e síncronas determinou o pronto desenvolvimento de habilidades para o uso de ferramentas digitais de ensino e a adaptação a novos padrões de comportamento impostos por esse novo modelo de ensinar e aprender.
As experiências de interações síncronas vividas no cenário pandêmico mostraram que elas favorecem o aprendizado, mas que também produzem tensões, como as situações em que professores e estudantes tiveram as identidades expostas em redes sociais e ou/ plataformas de compartilhamento de vídeo, denunciam a necessidade de formação docente e reflexões junto a estudantes acerca dos cuidados éticos que envolvem estas interações.
As interações síncronas em espaços educativos on-line são semelhantes às que ocorrem nas salas de aula presenciais, mas, essencialmente, de natureza diversa por se darem em espaços educativos virtuais e favorecerem experiências de insegurança quanto ao limite da exposição da imagem, garantirem pouca privacidade e estabelecerem uma situação de vigilância constante pela exposição de professores e estudantes aos recursos de gravação de áudio e vídeo.
As interações em espaços educativos síncronos exigem contratualização entre professores e estudantes relativa às condutas éticas. Dessarte, o início das atividades síncronas necessita ser marcado por discussões acerca dos cuidados éticos que devem balizar as condutas a fim de que sejam estabelecidos os critérios éticos norteadores das relações virtuais garantindo a segurança e a privacidade dos participantes desses espaços.
A ausência de regulações éticas específicas para o contexto das aulas síncronas não justifica qualquer ato que torne vulneráveis professores e estudantes. Ademais, não apostamos na existência de leis ou normativas para dirimirem ataques à imagem e à privacidade de professores e estudantes; acreditamos que teremos melhores resultados a partir de ações educativas contínuas que possibilitem que os atores desse ensino mediado pelas tecnologias assumam condutas éticas.