Introdução
O objetivo deste trabalho é problematizar os povos do campo no planejamento de políticas públicas municipais, em particular a educação. Apresenta resultados da pesquisa documental centrada nos planos diretores dos 29 municípios da Região Metropolitana de Curitiba (RMC).
Os municípios da RMC possuem características culturais, econômicas, sociais e territoriais diversas. Há municípios com densidade demográfica maior do que 150 hab/km², que são: Curitiba, Pinhais, Colombo, Fazenda Rio Grande, Almirante Tamandaré, Piraquara e São José dos Pinhais. Com densidade inferior a 80 hab/km² são 17 municípios. A Lapa é um dos 10 maiores em extensão no estado do Paraná1, possui um assentamento rural e nele está localizada a Escola Latino-americana de Agroecologia.
Existem municípios cuja economia está centrada na produção agrícola e agropecuária, outros com importantes áreas de proteção ambiental, além das características culturais, com presença de culinária específica e festividades vinculadas à produção agrícola.
No campo, há escolas públicas municipais e estaduais em 27 municípios da RMC. Dentre os 29 municípios, somente Curitiba e Pinhais não possuem escolas no campo. Portanto, refletir sobre o lugar que o território rural e que os povos do campo ocupam nos planos diretores é importante para a compreensão das políticas públicas locais.
A Lei nº 10.257 (BRASIL, 2001) dispõe sobre as diretrizes gerais da política urbana, também denominada de Estatuto da Cidade, que estabelece normas para um ordenamento público e social, com uma atenção especial ao uso da propriedade urbana em benefício da coletividade, sua segurança, bem-estar e, ainda, o equilíbrio ambiental. Destaca-se, no mesmo instrumento legal, o Capítulo III, dedicado especialmente ao “Plano Diretor”, que estabelece, em seu bojo, a função social da propriedade, sua obrigatoriedade, seus requisitos mínimos, entre outros.
Com o Estatuto da Cidade, regulamentaram-se os Artigos 182 e 183 da Constituição da República Federativa do Brasil, priorizando-se o tema da política urbana, por meio do plano diretor aprovado pela Câmara Municipal, considerado, ainda, o instrumento fundamental da política de desenvolvimento e expansão urbana da cidade. Dentro do espírito da chamada “Constituição Cidadã”, privilegia-se a participação popular na construção de todo o planejamento público e a feitura do plano diretor não é diferente.
Importante lembrar que, no parágrafo 2º do Art. 40 da Lei 10.257 de 2001, está expresso que “O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo” (BRASIL, 2001). Portanto, a preocupação com o lugar que os povos do campo e os territórios rurais têm nos planos diretores constituirá um elemento para a compreensão da política educacional, dentre elas o fechamento de escolas públicas no campo. É notória a luta dos povos do campo, das florestas e das águas no Brasil. Eles são agricultores familiares, extrativistas, pescadores, ribeirinhos, assentados, acampados, trabalhadores assalariados, entre outros indicados em Brasil (2010).
Eles conquistaram políticas públicas que atenderam, em parte, suas demandas, de também participarem do processo de construção de um planejamento público municipal. No entanto, os antagonismos de classe, os interesses de determinados grupos prevalecem em muitos territórios, evidenciando governos que secundarizam, invisibilizam ou ignoram os povos do campo e as ruralidades locais.
Neste artigo, fruto de pesquisa documental referenciada no materialismo histórico-dialético, evidencia-se a contradição que mantém os povos trabalhadores do campo à margem das políticas públicas e em permanente luta e disputa por reconhecimento e direitos. Está organizado em 4 partes: a primeira dispõe sobre o plano diretor; a segunda debate a RMC e disparidades; a terceira trata sobre os povos do campo na RMC; e a quarta contém a análise dos planos diretores.
Plano Diretor: ideal e realidade
O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (BRASIL, 2001), bem como do território que integra o município, incluindo, portanto, o campo, e deve ser revisto a cada 10 anos. Ainda com base na Lei, ele se sobrepõe ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e ao orçamento anual, que devem incorporar as diretrizes e prioridades nele contidas. Para a sua implementação, devem ser consideradas audiências públicas, com participação popular, publicidade e amplo acesso a documentos e informações.
No quesito obrigatoriedade do plano diretor, está explícito na Lei que compreende municípios com mais de 20 mil habitantes, municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico, integrantes de atividades com impactos ambientais e áreas suscetíveis a deslizamentos de grande impacto.
Assim, verifica-se que, no caso da RMC, todos os municípios têm a obrigatoriedade do plano diretor como um dos instrumentos balizadores da gestão municipal, haja vista que a maioria possui mais de 20 mil habitantes. Uma contradição evidente nos municípios é a negação ou invisibilidade dos povos do campo nas políticas públicas, mesmo que a economia seja centrada em produtos agropecuários. Outra contradição é identificada na política de nucleação e fechamento de escolas no campo, além da fragilidade na formação continuada de professores que raramente têm oportunidade de dialogar e aprofundar conteúdos vinculados ao trabalho, cultura e identidade do campo.
Segundo Villaça (2005), há uma tendência de se pensar que o plano diretor seria, em tese, o principal documento e traria, em seu contexto, a solução para todos os problemas enfrentados pelo município, bastando ao gestor municipal e sua equipe dar a devida execução ao contido no plano inicial, bem como a sua atualização a cada dez anos. Verifica-se que há uma tendência de se ter, em nosso país, planos materializados nas gestões de governo, porém com pouco ou nenhum resultado à realidade. Os problemas detectados quando da feitura do plano por vezes permanecem e, em alguns casos, se não resolvidos no momento oportuno, se avolumam para futuras gestões, tornando-se insolúveis a médio e longo prazo. Outro detalhe revelado por Villaça (2005) é a visão elitista do plano diretor, condição que sinaliza a imposição de ideias e propostas de soluções para problemas jamais enfrentados na prática, por pessoas de classes sociais mais elevadas.
A produção do plano diretor torna-se algo mecânico e orientado por equipes de assessorias que nem sempre conhecem a realidade e as disparidades municipais. Em que pese a Lei dispor sobre a necessidade da participação popular, a maioria dos municípios ainda a tem de forma incipiente, seja por problemas de organização dos coletivos ou por dificuldades de diálogo entre gestores e comunidades. Para que o plano supere a forma ideal e traga indicativos para a transformação da realidade local, é fundamental a participação popular.
Deste modo, é o conjunto de comunidades dos municípios que dará vida ao plano diretor, por conhecer e viver os principais problemas e direitos afetados. Contudo, os planos diretores dificilmente têm a participação da população do campo. O acesso às cidades é dificultado pela ausência de transporte público e, em épocas de chuva, pelas condições precárias das estradas.
Segundo Fontes (2010), quando da implementação dos planos diretores, houve uma campanha - em nível federal - no sentido de motivar os municípios que tinham a obrigatoriedade de realizá-lo, conforme previsto no Estatuto das Cidades. Considerando a fragilidade jurídica do instrumento, o mesmo autor aponta uma contradição fundamental na operacionalização do princípio da função social da propriedade, haja vista que, uma vez aprovado por lei ordinária, o plano facilmente pode ser modificado por leis municipais posteriores, com direcionamento diverso aos interesses populares.
Ultramari e Silva (2017) levantam um pressuposto importante, no sentido de que as várias mudanças nas leis dos planos diretores identificam que há um longo caminho entre o idealizado na legislação e o implantado e desejado pela população. Existe uma série de questões que não estão escritas na lei ou no plano, mas que afetam diretamente a realização do ideal então acordado no plano. Como exemplo, as questões burocráticas ou processos licitatórios, que são importantes dentro dos pressupostos legais, mas a forma como são conduzidos, por vezes, pode prejudicar sobremaneira a execução/finalização de um projeto/obra, impactando diretamente no plano inicialmente estabelecido.
Assim, percebe-se que, mesmo nos principais instrumentos de gestão pública, como o plano diretor, por exemplo, estão destacados os interesses orgânicos de classe sociais e de grupos econômicos que disputam o domínio pela cidade, diante de uma minoria que é, na verdade, a maioria, que sonha em ter um território gerido de forma democrática.
Afirma-se a necessidade de ampliar a ideia de município-direito, de modo a reconhecer a existência dos povos do campo, demandando a sua participação na organização do plano diretor. O que se observa é a dificuldade de reunir dados dos territórios rurais, do trabalho, da organização da produção e, por sua vez, de valorizar a educação, a escola pública e a infraestrutura necessária à população que vive no campo.
A Região Metropolitana de Curitiba: disparidades territoriais
Segundo a Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC, 2021), a RMC é constituída por 29 municípios, com uma população estimada para o ano de 2019 de 3.654.960 habitantes; ocupa uma área de 16.580,752 km², com uma população rural estimada, no ano de 2010, em 267.564 habitantes. Hoje, ocupa a nona posição, entre as maiores regiões metropolitanas do Brasil. A Figura 1 ilustra os municípios da RMC.
Existem realidades completamente diferentes que, colocadas juntas no processo de metropolização, tornam mais complexa a ideia de que os planos diretores possam vir a equacionar tais diferenças. Por exemplo, o município de Adrianópolis possui 1.341,33 km², ao passo que o município de Pinhais possui 61,19 km² (COMEC, 2021); o município de Doutor Ulisses possui uma população estimada, para 2020, de 5.552 habitantes, para uma área de 780,785 km², enquanto o município de Fazenda Rio Grande, na outra extremidade da RMC, uma população estimada, para 2020, de 102.004 habitantes para uma área de 116,776 km² (IPARDES, 2021b). Comparando-se os dois municípios, Fazenda Rio Grande possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) de 0,720, enquanto em Doutor Ulisses o IDHM é de 0,546. O que se observa é a concentração urbana em alguns territórios e a dispersão populacional em outros. Os municípios com ampla extensão territorial e com reduzida população tendem a ter baixo índice de desenvolvimento, revelando uma contradição básica. Ou seja, pode haver concentração da renda e da terra, bem como fragilidades nas políticas públicas de educação e saúde para atendimento dos povos que se distanciam dos centros urbanos.
Entre outras contradições observáveis, é possível indicar o adensamento populacional. Não obstante o índice de urbanização seja de 91,70 e a densidade demográfica de 220,43 (COMEC, 2021) para a RMC, a área urbanizada se destaca nas proximidades à Curitiba e nas cercanias dos principais municípios, evidenciando parcela expressiva do território da RMC ocupada com áreas de proteção ambiental, produção agrícola, agropecuária, mineração, plantio de florestas para comercialização etc.
FONTE: Souza e Pianovski (2019).
Nota: Imagem cedida por Marlene Aparecida Comin de Araújo ao Núcleo de Pesquisa em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas (NUPECAMP, 2020).
Os municípios da RMC destacam-se no estado do Paraná na produção de algumas frutas e alimentos, como tangerina e mandioca. Há municípios que produzem hortaliças e verduras, como cenoura, alface hidropônica e orgânica, morangos, cogumelos, entre outros produtos. Mesmo sendo expressivo na produção agrícola, o território rural fica à margem nos planos diretores. Esse fato evidencia a secundarização do campo e a supervalorização do urbano e seus problemas e potenciais.
A RMC possui peculiaridades que, se somadas e valorizadas em seus planos diretores, podem vir a compor um cenário de igualdade e prosperidade para todos, especialmente para os povos do campo, contribuindo, assim, para uma visão mais humana e integradora, a qual se espera que esteja presente no plano diretor municipal.
O projeto de campo para o Brasil tem sido centralizado nas atividades para exportação. Com isso, o campo como lugar de vida, trabalho e cultura fica dependente da resistência coletiva, da ação e demanda dos movimentos e organizações sociais. Expressa-se uma ideologia de classe no tratamento dado ao campo no Brasil e camuflam-se as potencialidades para o desenvolvimento do país que poderiam vir com a efetiva reforma agrária e as políticas que ela requer (educação, saúde, moradia, transporte etc.).
Os povos do campo e educação na RMC
O reconhecimento da existência dos povos do campo na RMC é um processo a ser construído. Considerando-se a historicidade que envolve a luta pela terra, exclusão e desigualdade social, cicatrizes presentes em nossa história e refletidas também na Região Metropolitana, os povos que vivem do trabalho na terra têm ficado à margem das políticas públicas. Assim, não estão muito distantes da memória verdadeiras guerras travadas contra esses trabalhadores, como a Guerra do Contestado e a Guerra de Canudos, por exemplo, para citar os mais conhecidos movimentos de resistência e massacre na sociedade brasileira rural.
Assim, o quadro histórico social dos povos do campo se reflete no estado do Paraná atualmente. Em razão de demandas sociais e políticas governamentais passadas, houve o reconhecimento e uma maior visibilidade dos povos do campo, principalmente com a edição do Decreto Federal 4.887 (BRASIL, 2003), que regulamentou “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”. Porém, sua constitucionalidade foi questionada, situação que foi resolvida somente em 2018, por decisão do Supremo Tribunal Federal, que o julgou constitucional.
No estado do Paraná, o reconhecimento de territórios Quilombolas foi efetivado, e o primeiro a ser reconhecido foi o de Invernada Paiol de Telha, em 21 de outubro de 2014, porém, não sem questionamentos à justiça, condição que levou o Ministério Público do Estado do Paraná a constituir uma moção pela constitucionalidade do Decreto Federal 4.887 (BRASIL, 2003), o que foi então julgado procedente pelo Tribunal Regional Federal (TRF4). Importante salientar, ainda no Paraná, a presença do Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM, 2010), instituído pela
Resolução Conjunta 01/2005-SEED-SEEC-SEAE-SEMA-SECS e posteriormente ampliado com a participação de outras Secretarias e com prazos prorrogados pelas Resoluções Conjuntas 01/2006 e 01/2007-SEED-SEEC-SEAE-SEMA-SECS-SESU-SEAB-SEJU-SETI-SETP-PMPR. (GTCM, 2010).
Dentre os trabalhos em destaque do GTCM (2010), está o mapeamento de territórios Quilombolas no estado do Paraná (Figura 2), com destaque para a descrição e localização na RMC.
Na RMC, há registros de comunidades remanescentes de Quilombolas nos municípios de Adrianópolis, Bocaiúva do Sul, Campo Largo, Doutor Ulysses e Lapa. São elas: Adrianópolis; Comunidade Remanescente Quilombola João Surá; Comunidade Remanescente Quilombola Praia do Peixe; Comunidade Remanescente Quilombola Porto Velho; Comunidade Remanescente Quilombola Sete Barras; Comunidade Remanescente Quilombola Córrego das Moças; Comunidade Remanescente Quilombola São João; Comunidade Remanescente Quilombola Córrego do Franco; Comunidade Remanescente Quilombola Estreitinho; Comunidade Remanescente Quilombola Três Canais; Comunidade Negra Tradicionais do Bairro dos Roque; Comunidade Negras Tradicionais de Tatupeva.
Nas Comunidades Quilombolas e nas Comunidades Negras Tradicionais, prevalecem a agricultura familiar, o extrativismo, a pesca e a criação de animais de forma socializada, sendo ainda comum os mutirões e o compartilhamento de espaços para toda a comunidade. Entre as questões sociais levantadas pelo Grupo de Estudo Clóvis Moura (CGTM, 2010), estão a educação, saúde, regularização fundiária e geração de renda. Com relação à Educação, por exemplo, quando do levantamento das informações, foram constatados 17,25% de analfabetos, uma média de 32% de concluintes dos anos iniciais (1ª a 4ª série), e menos de 4% da população adulta (de 18 a 65 anos de idade) chegou a concluir o ensino médio.
Outra dificuldade relatada no Grupo de Trabalho foi a condição de acesso à educação, em função das distâncias entre os Quilombos e Comunidades Negras Tradicionais com as instituições escolares.
Os dados já sistematizados sobre a realidade educacional de 10 (dez) dessas comunidades (525 pessoas) nos apontam inicialmente as dificuldades de acesso escolar, já que geralmente a sua localização aparece historicamente como fator estratégico para resistir à sociedade escravista ou ao contexto da sociedade racista que se seguiu ao pós-abolição. Nesse sentido cabe salientar que, a partir da sistematização desses dados, verificamos que elas estão localizadas, em média a cerca de 48 km de distância das sedes dos municípios onde se localizam, em uma variação que chega de 6 km (a mais próxima) a cerca de 110 (cento e dez) km (a mais distante - estas crianças se obrigam a atravessar um rio e ir estudar em Barra do Turvo-São Paulo). Por outro lado, as escolas que ofertam os anos finais do Ensino Fundamental localizam-se em média a cerca de 17 (dezessete) km de distância (mínimo de 5 km - máximo 28 km) das comunidades. As dificuldades de acesso têm sido apontadas pelos próprios quilombolas como um dos principais fatores que prejudicam a escolarização nessas comunidades (GTCM, 2010).
Na atualidade, conforme levantamento de Escolas Quilombolas e escolas que atendem estudantes oriundos das Comunidades Remanescentes Quilombolas (CRQ) e Comunidades Tradicionais Negras (CTN) (Figura 3), destaca-se o Colégio Estadual Quilombola Diogo Ramos, localizado na Comunidade Remanescente de Quilombo João Surá, no município de Adrianópolis, o qual apresenta um total de 1.397 matrículas para um total de 100 docentes da educação básica, alocados em 13 estabelecimentos de ensino, conforme IPARDES (2021a).
Com relação à questão fundiária, mesmo com o aparato constitucional, legislação ordinária e políticas públicas voltadas para os povos originários, ainda há certa preocupação com a manutenção das conquistas alcançadas até o momento. Na época em que o Grupo de Trabalho Clóvis Moura foi criado, havia outra conjuntura política no país, favorável às questões sociais, com o aporte de políticas regionais e locais que beneficiaram tais conquistas. Na conjuntura pós 2016, o quadro político mudou e percebe-se que não há qualquer intenção dos poderes constituídos em dar continuidade aos trabalhos que foram iniciados em décadas passadas.
Esse quadro tem recebido atenção em alguns estados brasileiros, com tratativas por meio de projetos e ações pontuais, embora a política no âmbito federal, na conjuntura 2016 a 2022, seja de desconsideração da população Quilombola.
Na Região Metropolitana, há que se destacar a presença de indígenas, como na Aldeia Araçaí, fundada há mais de 20 anos e localizada no município de Piraquara, cerca de 50 quilômetros de Curitiba, formada por famílias da etnia Mbyá Guarani. Em Curitiba, na região Sul, no bairro Campo do Santana, está localizada a aldeia Kakané Porã, formada por famílias das etnias Guarani, Xetá e Caingangue.
Com relação à Educação Indígena, pode-se afirmar que houve avanços no atendimento das tribos indígenas presentes no território paranaense e, em especial, na Região Metropolitana de Curitiba. A Secretaria de Estado da Educação (SEED) registra, no estado do Paraná, um total de 27 escolas em áreas indígenas, sendo 21 municipais, 4 federais e 2 estaduais (PARANÁ, 2021). No entanto, em relação às demais questões sociais, ainda há significativo preconceito quanto ao modo de ser e de viver dos indígenas no Brasil, quadro reavivado atualmente, com desrespeito à demarcação e invasão de territórios indígenas por parte de ruralistas e grileiros de terras. Importante ressaltar que os dados estatísticos da população indígena e rural no Brasil datam de 2010.
No Paraná, se destaca a presença do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que há 40 anos, aproximadamente, luta por reforma agrária e direitos sociais. E, mesmo diante de um quadro antagônico, de preconceito e até mesmo de perseguição e morte, o MST2 está presente no Estado por meio de seus assentamentos, demonstrando claramente a importância não só do trabalhador rural, bem como da distribuição igualitária da terra a quem por ela se interessa e deseja viver e produzir seu sustento. Na RMC, há o assentamento Contestado, que completou 20 anos em 2019, localizado no município da Lapa, com 110 famílias assentadas, com a Cooperativa Terra Livre de hortifrutigranjeiros e leite, a prática da agroflorestal e a bioenergia.
No assentamento Contestado, estão presentes ainda o Colégio Estadual do Campo e Escola Municipal do Campo Contestado, a Cooperativa Terra Livre, que engloba outros produtores do Município da Lapa e a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA).
Outro formato ainda pouco conhecido e remanescente da presença dos povos do campo, que envolve uma forma especial de convívio na área rural, é o faxinal, também presente no estado do Paraná e na RMC, marcado pelo manejo de criações soltas, pela manutenção de florestas nativas e uma sociabilidade centrada no uso comum da terra (ITCG, 2008).
A presença dos faxinais no Estado do Paraná e na RMC, com o passar do tempo, foi ameaçada pelas mudanças na agricultura e nos sistemas produtivos, com o forte incentivo à monocultura, com o aporte de agrotóxicos, além da instalação de reflorestamentos para empresas madeireiras e de celulose. Com isso, adveio a degradação da floresta de Araucária, com consequências diretas para o pequeno agricultor da agricultura familiar. Segundo Souza (2010, p.271), no Paraná há 207 faxinais, distribuídos em 32 municípios, sendo 6 da RMC. O município de Agudos do Sul tem 6 faxinais; Lapa possui 16; Mandirituba tem 15; Piên tem 4; Quitandinha tem 13 e Tijucas do Sul possui 9 faxinais.
Com relação à educação do campo, o Paraná possui em torno de 1.300 escolas no campo e as diretrizes voltadas para a educação do campo foram publicadas em 2006. Entretanto, o direito à educação continua sendo pauta de luta dos movimentos sociais, haja vista a lógica excludente predominante nos projetos políticos locais, estadual e nacional, em conjunturas específicas.
Assim, verifica-se que, com o passar do tempo, os povos do campo resistem e permanecem presentes, embora os processos de invisibilização do rural sejam, a cada dia, ampliados pela predominância do urbano. Soma-se, ainda, a imposição de um processo cultural que marca o rural como sinônimo de atraso, de pobreza e de abandono, uma condição que faz parecer que, para o campo, principalmente para o pequeno agricultor da agricultura familiar, qualquer coisa - até a mais simples - já é suficiente para atender as necessidades de homens, mulheres e crianças do campo.
A diversidade cultural, econômica, social e territorial tem sido considerada nos planos diretores municipais? Afinal, qual é o lugar do campo e dos povos do campo nos planos diretores?
Os planos diretores da RMC e os povos do campo
Com relação aos planos diretores dos municípios da RMC, considerando a condição de obrigatoriedade dos planos prevista no Estatuto das Cidades, verifica-se que todos os municípios possuem o plano diretor, fato fiscalizado pelo governo de Estado (PORTAL DOS MUNICÍPIOS, 2021), uma vez que a entrega do plano diretor e demais documentos municipais torna o município elegível ou não perante o Estado. A condição de elegível significa que o município possui um plano diretor aprovado pela Câmara Municipal, além de estar em conformidade com a Lei Estadual 15.229/2006 (PARANÁ, 2006).
No momento desta pesquisa, dentre os 29 municípios da RMC, estavam em condições elegíveis os municípios de Almirante Tamandaré, Campo Largo, Mandirituba, Fazenda Rio Grande, Piên, Lapa, São José dos Pinhais, Curitiba e Bocaíuva do Sul.
Além da condição de elegibilidade, verificou-se a presença ou não de referências aos “povos do campo” nos planos diretores dos municípios que compõem a RMC. Mediante levantamento de palavras-chave nos planos diretores de cada município, obtidos por meio do sítio Portal dos Municípios (2021), em formato de Portable Format Document (PDF), foi produzido o Quadro 1. A escolha das palavras-chave “povos do campo, agricultura familiar, educação do campo, quilombola, povos tradicionais, rural, educação rural e escolas rurais” se deu de forma a eleger palavras que podem conduzir à abordagem do tema “povos do campo” nos municípios.
No entanto, com as palavras-chave “povos do campo, educação do campo, povos tradicionais, educação rural e quilombola”, não se localizou nenhuma palavra semelhante nos Planos Diretores. No Quadro 1, foi inserido o total de escolas rurais por município, com o intuito de indicar a relevância do território e os seus sujeitos na formulação de políticas públicas, dentre elas a educacional.
Mesmo considerando o propósito do plano diretor, no sentido de ser um planejamento de nível macro para o município, um instrumento básico da política de desenvolvimento e da expansão urbana, a presença dos povos do campo não foi referência para aqueles que se ocuparam de sua elaboração e aprovação. Essa desconsideração dos sujeitos que vivem e trabalham a terra indica que há direitos sociais fragilizados no campo, como é o caso do acesso à educação. O fechamento de escolas tem sido pauta no debate educacional nacional e frente de luta de coletivos nacionais, como o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), e estadual, como a Articulação Paranaense Por Educação do Campo (APECPR). Na RMC, o trabalho de Pereira (2017) é referência no diagnóstico e denúncia de fechamento de escolas no campo.
Com o resultado alcançado junto aos planos diretores, verifica-se que a palavra-chave “rural” aparece de forma expressiva, com um total de 596 registros e uma amplitude de referências que vão desde o turismo rural e zoneamento rural até questões relativas ao transporte público. A palavra-chave “escolas rurais” surgiu apenas no Município de Fazenda Rio Grande, embora com informação desatualizada quanto ao número de escolas rurais. Destaca-se que, das quatro aparições, três estão relacionadas às propostas de unificação e centralização das escolas.
Assim, o quadro de invisibilidade do território e seus sujeitos se manifesta também quando da elaboração de um plano de abrangência municipal, mesmo sendo notório que, sem o campo, sua produção e biodiversidade, a cidade não subsiste. Contraditoriamente, a palavra-chave “agricultura familiar” aparece 23 vezes em vários planos diretores, com destaque para o município de Piraquara, no qual a palavra é citada 5 vezes. Assim, é comum a referência à agricultura familiar quando se refere à “Câmara Comunitária de Promoção da Agricultura familiar” ou ao “Desenvolvimento Local e Regional”.
Importa salientar que a presença da agricultura familiar está diretamente relacionada aos costumes e às tradições dos povos do campo, sua forma de ser e subsistir, mesmo com todas as carências sociais comuns ao espaço rural, muito presente na RMC. Por conseguinte, a existência de referências à agricultura familiar sem uma conexão como o modo de vida do campo, do rural, que, consequentemente, leva também a se perceber os povos do campo presentes em vários municípios da RMC, denota a inexistência desse debate no âmbito municipal.
Se não há o debate e não se reconhece a existência dos povos do campo, no principal plano municipal, as questões sociais que envolvem os povos do campo também permanecem invisibilizadas, como educação, transporte, saúde, por exemplo, entre outras tão importantes que visam a garantir a cidadania plena também aos povos do campo.
Dessa forma, exemplifica-se como as políticas sociais destinadas aos povos do campo têm pouco reflexo no âmbito dos municípios, principalmente em se tratando de aspectos essenciais como educação3, por exemplo, embora as conquistas obtidas em termos de políticas públicas destinadas aos povos do campo, no âmbito federal, até o ano de 2016 sejam substanciais.
Considerações finais
Os povos do campo se fazem presentes no cotidiano rural-urbano das cidades que pertencem à RMC, seja pela produção da agricultura familiar que alimenta a cidade, seja pela manutenção de tradições, costumes, festejos que atraem a população urbana, principalmente nos fins de semana e feriados, e, ainda, no caso de Curitiba, pelo represamento de águas, o que proporciona a água tratada para os centros urbanos. Embora invisibilizados, os povos do campo estão presentes e resistentes ao difícil quadro que, na atualidade, se anuncia.
Verifica-se também que, em relação aos planos diretores dos municípios que compõem a RMC, o processo de invisibilização dos povos do campo permanece, em que pese ser referenciado o “rural”, especialmente do ponto de vista do zoneamento municipal. A noção de rural é centrada na visão tradicional que separa o perímetro urbano do rural, desconsiderando que o sentido do território é dado pela ação dos sujeitos que nele trabalham. Assim, dentro de um ideário de planejamento público voltado às questões sociais, as demandas sociais dos povos do campo não se fazem presentes no plano diretor municipal, uma vez que eles sequer são citados em tal documento, mesmo em municípios que registram publicamente a presença dos povos do campo, como é o caso dos Quilombos e Comunidades Tradicionais Negras.
Considerando-se, ainda, que o plano diretor é um planejamento de nível macro para a cidade, englobando outros planos que se somam para pensá-la; e que, ao final de seu processo, o plano é aprovado pela Câmara Municipal, agrava-se a situação. Isso ocorre em vista de que os membros do legislativo que representam partes da cidade e, por consequência, do rural, não se manifestaram diante desse quadro que, em seguida, segue para uma gestão maior dentro da estrutura do Estado, que pode inclusive ser pauta de recursos financeiros para as demandas sociais. Assim, em todo esse percurso, a presença dos povos do campo segue de forma invisível aos olhos daqueles que dirigem a gestão pública. A terminologia central nos planos diretores é “cidade”, como se esse instrumento fosse reduzido ao território urbano. Nesse sentido, a concepção de cidade tem sido utilizada equivocadamente como sinônimo de município. Esse equívoco reforça a negação do campo e, com ela, a fragilidade de direitos, especialmente os sociais. A educação é um desses direitos, cujos movimentos sociais do campo e o Fórum Nacional da Educação do Campo (FONEC) têm estado vigilantes no que tange à oferta de vagas, permanência das escolas no campo, formação inicial e continuada de professores, bem como financiamento educacional.