Introdução
O artigo problematiza o ensino remoto no contexto do estado do Rio de Janeiro (RJ), considerado como um movimento de disputa dos sujeitos políticos na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) na proposição da política educacional de aprendizagem virtual para os estudantes da educação básica. Resultante de uma pesquisa documental, analisamos dois ordenamentos presentes na cena da política do estado, por meio dos quais os atores argumentam em favor da proposta do ensino remoto contextualizando-os a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996) e da regulamentação da Educação a Distância (EaD), pelo Decreto nº 9.057/17 (BRASIL, 2017): 1), o texto do Projeto de Lei nº 2.036/20 (RIO DE JANEIRO, 2020b) e 2), a Circular Interna (CI) nº 26, expedida pela Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) e pela Subsecretaria de Gestão da Rede de Ensino (Sugen) através do Sistema Eletrônico de Informações (SEI), em 23 de abril de 2020.
Adotamos como pressuposto de que a opção pelo ensino remoto constitui-se como efeito de uma política que atende às demandas de determinados grupos do contexto de influência (BALL, 1994) no estado, resultante da pandemia da Covid-19. Os interesses pela adesão a um projeto de educação on-line ganha objetividade pelos sujeitos do executivo do estado, os quais minimizam as evidências da precariedade de acesso digital dos estudantes, demonstradas por indicadores que contextualizam a desigualdade social brasileira. Nosso argumento assume como base três estudos:1) a “Pesquisa TIC Educação 2019”, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.BR),1 que apresenta informações sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil entre 9 e 17 anos de idade; 2) os dados do Observatório Social da Covid-19 (2020)2 (ambos os estudos constituem indicadores da possibilidade de acesso dos jovens às tecnologias); e 3) o informativo “Retratos da educação no contexto da pandemia do coronavírus: um olhar sobre múltiplas desigualdades”, que consiste na compilação de cinco estudos articulados sobre o contexto pandêmico, em diálogo com as redes de ensino, os docentes, estudantes e os responsáveis.3
Avaliamos que a situação pandêmica configura um cenário que expressa um oportunismo de ocasião para justificar a apropriação da educação remota como panaceia para o cumprimento do calendário escolar e suposta garantia dos direitos de aprendizagem dos estudantes, chamando-nos atenção uma seleção arbitrária de dados, quando parece ser conveniente a sustentação de uma política. Nesse movimento, não nos colocamos contrárias aos recursos tecnológicos como possibilidade de entendê-los como instrumentos de aprendizagem, entretanto argumentamos em favor de um planejamento pedagógico que permita oferecer soluções para o acesso aos recursos digitais e uma proposta que contemple tal modalidade de ensino.
Consoante à perspectiva pós-estruturalista (MOUFFE, 2000; 2014; 2020; MOUFFE; ERREJÓN, 2016), situamos no contexto meso da política (BALL, 1994) a articulação dos sujeitos políticos posicionados no executivo e no legislativo do estado, na compreensão das demandas que disputam a implantação da política do ensino remoto. Sobre a relação com o macrocontexto, a pesquisa documental realizada permite aproximar a do ensino remoto do RJ à produção de uma política alinhada a das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apresentada através do tema #AprendizagemNuncaPara, justificada pelo governo do estado no texto “Declaração pela Aprendizagem em Tempo de Pandemia na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro” (RIO DE JANEIRO, 2020b). No documento, de 30 de abril de 2020, publicado na página do Facebook da Seeduc, está ponderada a proposição de estratégias para a oferta de conteúdo remoto, através da mediação tecnológica, considerando a emergência da conjuntura mundial da Covid-19.
O quadro pandêmico significou a criação, em âmbito mundial, da “Coalisão Global da Educação” (tradução nossa) pela Unesco, que tem como objetivo “oferecer suporte para os países potencializarem a melhor prática de aprendizado a distância” (UNESCO, 2020, tradução nossa), através de uma parceria “indispensável entre os governos, sociedade civil e setores produtivos de inovação e de tecnologias” (RIO DE JANEIRO, 2020b, p. 2, grifo nosso). Dentre os setores privados parceiros, estão anunciados na página da Unesco (2020) o Google, a Apple, o Facebook, a Amazon e a Microsoft, grupo reconhecido pelo acrônimo GAFAM, considerado um gigante do mercado digital, com Produto Interno Bruto (PIB) global equivalente a 12%, perdendo para China e Estados Unidos (ROSSI, 2021). Acreditamos que essa escolha não é aleatória, pois é capaz de produzir um conceito específico do espaço econômico sobreposto ao conceito de distância que, na contemporaneidade, não se relaciona à proximidade do espaço geográfico, mas com as cadeias globais de fluxos e conectividade em um tempo que transborda o do mundo (PADOVANI, 2013). Como afirmam Fiormonte e Sordi (2019, p. 108, grifos dos autores, tradução nossa), o GAFAM assumiu “o controle das tecnologias que direcionam nosso consumo, evidenciando novos tempos e maneiras na produção e no acesso ao conhecimento digital” através de um ecossistema de “dispositivos e aplicativos”.
Nossa atenção volta-se para um movimento que tem refletido o Estado brasileiro. Dourado (2019, p. 12), afirma que assistimos a “complexos processos de privatização do público, sobretudo por alterações nas formas de gestão e organização desse nível educacional [educação básica] por meio de parcerias público-privadas (consultorias, assessorias, organizações sociais) e pela criação de escolas militares”. Sobre a influência das redes, como paideia dos projetos formativos, interessa-nos considerar o modo como os sistemas de comunicação global, ampliam seus negócios a partir da matéria-prima dos dados individuais como estrutura político-tecnológica dessas multinacionais (FIORMONTE; SORDI, 2019).
Esta articulação é nomeada por Mouffe (2020, n.p) como “capitalismo estatizado”: uma perspectiva em que o Estado e seus entes contribuem para a sustentação da economia de grupos econômicos privados, através do financiamento indireto. Não obstante, ressaltamos que, no caso do ensino remoto, essas ações configuram-se pela concessão de produtos educacionais que, embora possam não conduzir prontamente uma parceria, as redes, “como infraestrutura comercial se encarregam autocraticamente do desenvolvimento evolutivo das tecnologias digitais impondo seu próprio modelo de negócio” (FIORMONTE; SORDI, 2019, p. 115, tradução nossa), como ocorre com a escolha de aplicativos oferecidos aos grupos sociais.
A opção pela educação remota merece cautela, pois avaliamos que algumas estratégias pedagógicas podiam ser pensadas via tecnologia, mas levando em consideração, como atentam Oliveira, Gomes e Barcellos (2020), a forma heterogênea na qual uma diversidade de projetos educativos “passam pela qualidade dos programas e de sua implementação” (OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020, p. 563).
O informativo “Retratos da educação no contexto da pandemia do coronavírus: um olhar sobre múltiplas desigualdades”, compilado por Ana Lúcia Lima e que consubstancia cinco estudos realizados entre março e maio de 2020, sustenta, pela fala de professores, que 48%, menos da metade dos alunos, aprendeu o esperado e “em síntese, a interrupção das aulas presenciais atingiu de maneira desigual nossas crianças, adolescentes e jovens estudantes. E essa desigualdade tem claras determinantes regionais, demográficas e econômicas, muitas delas estruturantes das desigualdades sociais e educacionais brasileiras” (LIMA, 2020, p. 45).
Nessa composição, faz-se necessário analisar a proposta de ensino remoto de forma crítica - quais atores disputam a cena política por tal modelo? Por quê? - no propósito de assegurá-lo a partir de um projeto de educação que se fundamente numa relação mais igualitária para os estudantes, quando falamos de acesso aos conteúdos escolares e na possibilidade de permanência em uma escola com uma trajetória menos compulsória ou mesmo excludente. Em consonância com Oliveira, Gomes e Barcellos (2020, p.563), assumimos que “não é a disponibilidade de equipamentos e o acesso à internet que fariam diferença, mas sim como a tecnologia é inserida no contexto escolar”. Desse modo, entendemos a urgência de pensar em formas nas quais o ensino mediado por tecnologias pudesse não significar incongruência com valores de uma escola democrática, pensada para todos, como caracterizada pelo modelo republicano.
Para trabalhar o objetivo, dividimos o artigo em mais três seções, além desta introdução e das considerações finais. Em seguida, situamos o debate do ensino remoto no cenário da pandemia, numa possibilidade de leitura da relação Estado-estado, apontando algumas inquietações associadas à possibilidade de acesso à rede pelos estudantes e o contexto político no qual subjazem o posicionamento do estado do RJ. Na terceira seção, discorremos teoricamente sobre a construção de políticas educacionais em diálogo com o Estado, contextualizando a entrada da EaD como consenso de lei e anunciando o movimento do executivo fluminense que ressignifica a gramática dessa modalidade. Na quarta parte do texto, analisamos as disputas dos sujeitos políticos pela opção do ensino remoto, nos espaços institucionalizados da política, que configuram-se tanto no contexto meso, como no de influência e no de produção de textos. Finalmente, pensando a escola como espaço institucionalizado da política democrática, reforçamos os argumentos políticos que permitem orientar a construção de uma escola cujo acesso aos conhecimentos escolares configure-se para todos, apontando para as questões suscitadas no artigo como efeitos e resultados da política do ensino remoto.
Uma crítica ao (E)estado em pandemia
Argumentamos que a pertinência desse debate insere-se no cenário contemporâneo vivido do anúncio da entrada em um tempo caracterizado pelo esgotamento das demandas das relações de produção de nossa sociedade, que se traduzem numa suposta crise sistêmica. Suposta, pois a crise que se anuncia, como sugere Boaventura (2020), constitui-se como uma engrenagem, para que “as demandas que desafiem a ordem do hegemônico sejam apropriadas pela estrutura existente, a fim de serem satisfeitas, neutralizando o seu potencial subversivo” (MOUFFE, 2014, p. 84, tradução nossa). A pandemia como causa gera a demanda do ensino remoto, mas a pandemia como efeito responde às demandas articuladas por grupos de interesse no desenho da política do ensino remoto.
Nessa conjuntura, lançamos perguntas: é possível assumir a política educacional para uma parcela da população desconsiderando (ou pouco considerando) outra parcela? Podemos assumir que não há dilema na exclusão das formas de organização do novo modelo de escola - pautado pelo ensino remoto - daqueles que não têm a possibilidade de se integrar ao “mundo da mercadoria” (KRENAK, 2019, n.p) através das ferramentas tecnológicas?
A política do estado, ajustada ao macrocontexto, vem sendo orientada pela parceria com a empresa Google Classroom, por ser avaliada pela Seeduc como uma plataforma de “fácil acesso, independente dos aparelhos usados por professores e alunos, tais como dispositivos móveis, notebooks ou computadores pessoais” (RIO DE JANEIRO, 2020c, p. 5). Nos nossos dias, a questão que traduz nossa denúncia se dá entendendo os limites impostos pela exclusão social que impossibilitam a interação digital, tanto nas formas de cobrança da Seeduc pelo acesso do estudante ao conteúdo disponibilizado numa plataforma digital - a ser contabilizado como calendário letivo -, quanto nos dispositivos que permitem tal acesso. Nesse sentido, buscando adensar o debate dos grupos que analisam a situação brasileira atualmente afetada pela pandemia, avaliamos os dados da pesquisa realizada pelo CETIC.BR, entre outubro de 2018 e março de 2019, publicados no dia 9 de junho de 2020, sobre o uso da internet por crianças e adolescentes em território nacional para, posteriormente, entendermos como a política do estado do RJ foi sendo articulada.
Segundo a pesquisa, o celular “tem sido o dispositivo mais utilizado por crianças e adolescentes no Brasil para acesso à internet. Em 2018, cerca de 22,7 milhões de crianças e adolescentes brasileiros acessavam a rede por meio do celular, o que equivale a 93% de usuários de internet entre 9 e 17 anos do país” (CETIC.BR, 2020, p. 112). Uma justificativa para esse uso incide sobre o custo e diversidade de funções que tal tecnologia oferece, o que gera, de acordo com a pesquisa, “percentuais homogêneos entre os diferentes segmentos socioeconômicos analisados” (CETIC.BR, 2020, p. 113). De outro modo, no reforço da desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira, o uso do computador e da televisão não assume o mesmo caráter: tanto um quanto o outro “são mais utilizados entre as crianças e os adolescentes das classes socioeconômicas mais altas” (CETIC.BR, 2020, p. 113). Entretanto, a pesquisa ressalva que, embora a “posse de telefones celulares” (CETIC.BR, 2020 p. 77) apresente crescimento nos últimos anos, podendo ser considerada uma tecnologia de caráter mais “democrático” (CETIC.BR, 2020, p. 77) e significando a entrada numa cultura tecnológica, a “[...] qualidade e a frequência dessa conexão levam a questionamentos sobre o efeito dessa adoção para o aproveitamento de oportunidades on-line” (CETIC.BR, 2020, p. 113).
Sobre o acesso à internet, a pesquisa do Observatório Social da Covid-19 (2020) afirma que “20% dos domicílios brasileiros não estão conectados à internet” e, ainda assim, vivem nesses domicílios cerca de “42 milhões de pessoas, entre as quais 7 milhões são de estudantes, 95% matriculados em escolas públicas e 71% cursando o ensino fundamental” (apud COLEMARX, 2020, p. 33-34). Além disso, cerca de 40% das residências não possuem computador e, dentre as que têm, poucos possuem softwares atualizados e capacidade de armazenamento, além de servirem para o uso comum de três ou mais pessoas. Nessa realidade, nossa inquietação amplia-se: como pensar o ensino remoto para as famílias brasileiras que não têm acesso às redes, ou mesmo, quando o tem, compartilham um equipamento pouco propício à aprendizagem? Vale ainda questionar o tipo de ferramenta tecnológica e a qualidade do acesso a que estamos nos referindo: o celular pode, então, ser cogitado como uma tecnologia adequada para ser utilizada como uma plataforma de ensino de uso prolongado? Um pacote de dados para o uso de redes como o WhatsApp ou o Facebook estende-se para o uso contínuo a uma aprendizagem remota?
No que diz respeito à falta do equipamento necessário à aprendizagem via tecnologias, Dias e Pinto (2020), corroboradas por Oliveira, Gomes e Barcellos (2020), afirmam que a opção pela EaD como única via de acesso à aprendizagem “tende a exacerbar as desigualdades já existentes, que são parcialmente niveladas nos ambientes escolares” (DIAS; PINTO, 2020, p. 546), na medida em que as escolas podem “realizar iniciativas direcionadas a determinados públicos-alvos” (OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020, p. 563). Sobre tal pressuposição, Lima (2020) evidencia não somente os desafios a serem enfrentados no contexto de continuidade da pandemia, tais como: as “dificuldades para avançar no aprendizado em situações não presenciais; sobrecarga e ansiedade dos profissionais, dos estudantes e de suas famílias; riscos de abandono escolar” na educação básica (LIMA, 2020, p. 7), mas também “as profundas desigualdades educacionais do Brasil e a urgente necessidade de enfrentá-las e minimizá-las” (LIMA, 2020, p. 8).
Logo, o investimento único em ferramentas digitais pode atuar numa espécie de efeito rebote à premissa do aprendizado: ao invés de contribuir com uma melhora desse, estaríamos provocando “uma piora na aprendizagem dos alunos a curto e a médio prazos” (DIAS; PINTO, 2020, p. 546), pois, como afirmam os estudos compilados por Lima (2020, p. 31),
a proporção de professores que está em contato com seus alunos e a frequência com que isso ocorre - pode-se estimar a desigualdade na oferta de atividades: enquanto nas escolas da rede privada 43% dos professores mantiveram uma oferta “quantitativamente equivalente” ao padrão de regularidade das aulas presenciais, essa proporção foi de 40% nas redes estaduais e de 32% nas redes municipais. Quando a mesma estimativa é feita por região, observa-se uma grande desproporção, especialmente entre o Sudeste (40%) e o Norte do país (25%).
Consequentemente, na insistência de procurar saídas para o que está sendo proposto, arguimos com Mouffe (2000, p. 23, tradução nossa): estamos num tempo “político e teórico”. Político, pois a força da hegemonia liberal, pelos seus dogmas, vem significando uma ameaça às instituições democráticas, a saber, “os invioláveis direitos de propriedade, a omnipresença das virtudes do mercado e os perigos de interferir em sua lógica” (MOUFFE, 2000, p. 23, tradução nossa), e construindo um sentido comum imperante nas sociedades liberais-democráticas, fazendo desacreditar os grupos que se opõem a tal projeto, como o de uma escola democrática de acesso universal, transpondo para a escola uma pedagogia eficienticista em consonância à eficácia de uma empresa de caráter privado.
O efeito da crença da “assimilação das práticas da administração privada e de um espírito empreendedor supostamente capaz de regenerar o domínio público - como se as organizações privadas constituíssem um universo racional, eficiente e eficaz no plano económico e da otimização de recursos [...]” (LIMA, 2021, p. 6) produz um imobilismo da ação política e induz os setores populares e suas instituições representativas a descansarem à sombra, excluindo-os das prioridades políticas e sociais (MOUFFE, 2000). Tal situação acaba por conduzir a uma ilusão do consenso de direita como via de acesso único à construção da realidade, requerendo que sejam pensadas formas teóricas que “superem o atual ponto morto” (MOUFFE, 2000, p. 24, tradução nossa) da ação democrática para a ação política dos sujeitos e que permita “apreender a dinâmica da política democrática, que é o que subjaz a confrontação com os componentes do binômio liberal-democrático” (MOUFFE, 2000, p. 25, tradução nossa). Para a autora, o paradoxo contido na relação de uma democracia liberal constitui um antagonismo, o que permite as brechas para o movimento da política democrática, cuja negação esteja pautada no modelo de coerção decorrente do “contexto de uma cultura digital que se impõe como cultura de racionalização e dominação de escolas [...]” (LIMA, 2021, p. 11).
Se a pandemia se anuncia para nós como um dilema político através da decisão via remoto, por outro lado, na relação Estado-estado, ela oportuniza as “grietas” (MOUFFE; ERREJÓN, 2016, p. 39) - brechas - para políticas que continuem a deslocar a discussão do campo social para o campo financeiro, em um cenário oportunista de ocasião, com a entrada aberta de um integrante do GAFAM no estado: a plataforma de aprendizagem Google Classroom.
Na análise da política, focamos nossa atenção no debate do contexto de influência e de produção de textos, utilizando como ferramenta analítica o ciclo de políticas de Ball (1994), seguindo sua proposição acerca das análises da política. Segundo Castro e Amaral (2019), a opção pela análise dos contextos citados permite perceber os discursos de grupos de interesse que disputam a agenda política nos textos e, consequentemente, no âmbito da ação prática. Nesse movimento, algumas agendas e influências são reconhecidas como legítimas, e algumas vozes são ouvidas na construção de um texto político. Na Alerj, chama-nos atenção a “hibernação” (CASTRO, 2019) do Projeto de Lei nº 2.036/20 (RIO DE JANEIRO, 2020b), desde o dia 30 de abril de 2020, quando foi retirado da pauta da sessão por compor um quadro de forças não favorável à articulação4 do executivo com o legislativo do estado do RJ.
Qual política para qual destinatário?
Para Mouffe (2000), a política democrática constitui-se na tensão entre o consenso e o dissenso. O primeiro, pautado pela dimensão dos ordenamentos legais que instituem uma determinada ordem política e que pode ser entendido como ativo devido às disputas em seu entorno. O dissenso caracteriza-se pela diversidade de interpretação dos textos políticos no campo da ação, na dimensão da prática. Logo, um consenso institui-se como resultante da correlação de forças dos sujeitos políticos coletivos, os quais articulam as demandas por uma política, num espaço de representação institucionalizado: uma conjunção de “relações sociais específicas de formas e estruturas de organizações específicas” (BALL, 2015, p. 166) desdobrando-se na prática.
Nesse sentido, concebemos que Ball (2015) oferece-nos pistas analíticas para o entendimento das políticas além da leitura de sua superfície textual, pois o autor sugere que seja compreendida como “agenciamentos de valores instáveis, autoridade, significados e práticas, os quais reúnem vários estados de coisas e organismos, bem como declarações, modos de expressão, e regimes inteiros de sinais - tanto objetos materiais quanto imateriais” (BALL, 2015, p. 165-166), resultante de uma “relação complexa de objetos, de pessoas, de práticas de linguagem, relacionando-os como uma espécie de todo mais ou menos coerente” (BALL, 2015, p. 165-166). Dessa maneira, a política precisa ser “lida tanto com as condições de possibilidade e contingência histórica, quanto com a maneira como o discurso é escrito em corpos” (BALL, 2015, p. 166). Um processo denominado pelo autor de “assemblage [agenciamento]” (BALL, 2015, p. 166), que reúne elementos que se combinam na reivindicação de uma identidade, um território, na constituição de formações sociais complexas. Com essas ferramentas, acreditamos ser possível entender os arranjos pelos quais os sujeitos assumem a defesa e entram na disputa por diferentes projetos políticos na sociedade.
Como consenso, a EaD está definida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996) e regulamentada pelo Decreto nº 9.057/17 (BRASIL, 2017). Na LDB (BRASIL, 1996), a EaD pode ser ofertada como modalidade de ensino para o ensino fundamental de acordo com o art. 32, parágrafo 4º da Lei, afirmando essa possibilidade em “situações emergenciais”. Na rede do RJ, a modalidade de EaD torna-se exequível em decorrência da pandemia e tal condição traduz o assemblage que justifica a demanda por , muito embora tenha sido ressignificada como ensino remoto pelos sujeitos políticos que estão situados no contexto de influência da política na cena fluminense, numa relação que segue um desalinho com um grupo situado no contexto de produção de textos, quando a opção pelo ensino remoto foi encaminhada à Alerj.
Sem avançar na Casa Legislativa, a política do ensino remoto foi distribuída por circular interna pela Seeduc, com contradições na proposta. Essa situação acena para um campo de forças sob tensão entre alguns sujeitos posicionados no contexto de influência da política e de produção de textos, mas tendendo à assunção das orientações do primeiro, por pautar-se em orientações que extrapolam o campo de forças do estado do RJ. Com relação à opção pelo ensino remoto, é possível observar que, se há uma disputa dentro do estado que vem provocando efeitos adversos ao propagado pela objetivação de tal política, como apresentam os dados compilados por Lima (2020), é também possível observar que a relação estabelecida entre Estado-estado vem adensando as tomadas de decisão dos sujeitos políticos do contexto de influência do RJ, pois a política estadual apresenta alinhamento com as orientações de caráter internacional num movimento de adesão à ideia de que a #AprendizagemNuncaPara.
Como forma de acesso aos conteúdos pedagógicos entre os alunos do ensino médio, Lima (2020) anuncia os dados: o celular assume o lugar da tecnologia mais utilizada pelos jovens, sendo que, no ensino privado, o uso de computadores/notebooks como ferramentas de aprendizagem é 42% mais recorrente, trazendo “à tona não apenas o acesso desigual à internet, como também a uma experiência educacional remota de maior qualidade, em função do tamanho de tela, da capacidade de processamento e, presumivelmente, da velocidade de conexão” (LIMA, 2020, p. 38).
Sobre a política nacional e a crítica ao ensino remoto, elencamos o Decreto nº 9.057/17 (BRASIL, 2017), que regulamenta o art. 80 da LDB (BRASIL, 1996) e define o EaD como:
modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos (BRASIL, 2017, n.p.).
Assim, a modalidade a distância assume características que lhe são peculiares: linguagem e formato próprios, exigindo também a administração, o acompanhamento, a avaliação, os recursos técnicos e tecnológicos de infraestrutura e pedagógicos condizentes com tal opção. Por essa razão, a proposta só ganha relevância no encadeamento de uma discussão política e pedagógica da ação educativa, “fato esse que leva à necessidade de se investigar como alunos e instrutores, com o uso das novas tecnologias, podem colaborar para gerar novos conhecimentos” (MUGNOL, 2009, p. 339).
Disso decorre que, mediante as disputas ocorridas pela EaD como modalidade de ensino no RJ, os sujeitos que ocupam o lugar do contexto de influência no estado - o Executivo - optam por imprimir uma diferença entre o ensino remoto proposto pela Seeduc e a EaD delimitada nos ordenamentos. Dessa forma, a Seeduc define o ensino remoto na CI expedida pela Secretaria Estado de Educação (RIO DE JANEIRO, 2020c, p. 4), esclarecendo que
o ensino remoto não se confunde com o ensino a distância, o último trata-se de uma modalidade de ensino com natureza e singularidade próprias. O ensino remoto por sua vez, extrapola as possibilidades fornecidas por uma plataforma digital, ele diz respeito a um conjunto de ações pedagógicas que fazem uso de diferentes ferramentas e estratégias e mobilizam atores diversos, como os alunos e suas famílias.
Parece-nos que o esforço em traçar uma distinção entre o ensino a distância e o remoto pauta uma tentativa de consenso das disputas pelos sujeitos do contexto de influência e de produção do texto da política, cuja assunção dessa nova gramática permite assumir concepções distintas para a educação. As questões políticas, que afirmam a EaD como modalidade de ensino numa gramática do ensino remoto para a contabilidade do calendário regular do estado, inserem-se numa pauta mais ampla em que são situadas as demandas do ensino público e também do ensino privado. Logo, de um lado, através dos sujeitos defensores da disponibilização das plataformas digitais, é possível observar um alinhamento com as políticas internacionais e, no âmbito do estado, a conformidade desses sujeitos pode indicar um vínculo com as instituições educacionais privadas na possibilidade de a instituição escolar justificar a manutenção dos serviços educacionais recontextualizando sua oferta educacional.
Quanto ao setor público, ressaltamos a atenção da CI no interesse em diversificar as ferramentas tecnológicas, pois se pelo oportunismo de ocasião o estado escolhe, como via de saída única, o uso específico de uma plataforma, a do Google Classroom, a garantia do acesso não é dada para todos. Desse modo, outros recursos pedagógicos, já encaminhados desde a década de 1960 no contexto da EaD no Brasil, constituem-se com estratégias de ensino, como é o exemplo da televisão.
Não obstante, recuperamos o texto da CI, que inclui outros atores como corresponsáveis para a educação on-line, pois, ao afirmar que essa modalidade “mobiliza atores diversos, como os alunos e suas famílias” (RIO DE JANEIRO, 2020c, p. 4), ressaltamos que a escolha por incluir a família no processo educativo retoma a salvaguarda do estado em vista do cumprimento do dever de educar imposto pelo art. 2º da LDB (BRASIL,1996) e pelo art. 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), também através de uma plataforma de ensino. Nesse sentido, o cumprimento da obrigação está dado pelo estado; entretanto, como dever da família, caberia o apoio pedagógico em casa, pois, caso contrário, indicaria a omissão dos responsáveis a dois dos principais ordenamentos legais do país. A partir dessa orientação da Seeduc, torna-se relevante assumir como alerta a análise de Oliveira, Gomes e Barcellos (2020) sobre a relação da família com a escolarização:
a habilidade dos pais em ensinar é limitada, principalmente em se tratando de conteúdos específicos das séries mais avançadas e de interações e de estímulos realizados na primeira infância, que possuem uma curta janela temporal para serem realizados (AVVISATI et al., 2014; POWELL-SMITH et al., 2000). No caso de crianças muito pequenas, muito pode ser feito em casa pelos pais - e efetivamente o é, sobretudo, por famílias de classes sociais mais favorecidas, em tempos normais. Em tempos de pandemia, as pressões sobre as famílias, possivelmente, constituirão oportunidades para desenvolver habilidades, como o estabelecimento de rotinas e de resiliência, mas dificilmente constituem oportunidades favoráveis para aprender e adotar novas formas de interação pelos pais, especialmente em ambientes mais carentes (OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020, p. 562).
Além das impossibilidades de acesso que exigem o aprendizado por meio das tecnologias,
não podemos esquecer que saúde física e saúde mental andam juntas. A duração prolongada do confinamento, a falta de contato pessoal com os colegas de classe, o medo de ser infectado, a falta de espaço em casa torna o estudante menos ativo fisicamente do que se estivesse na escola -, e a falta de merenda para os alunos menos privilegiados são fatores de estresse que atingem a saúde mental de boa parte dos estudantes da Educação Básica e das suas famílias (DIAS; PINTO, 2020, p. 546).
Nesse contexto, o ensino remoto foi encaminhado pelo executivo do estado do RJ. Na seção seguinte, apresentamos a tramitação da política na Assembleia Legislativa do estado.
O ensino remoto como um campo de disputas na Alerj
Em 13 de março de 2020, o então governador Wilson Witzel (PSC)5 publicou o Decreto nº 46.970/20 (RIO DE JANEIRO, 2020a) que deu início à suspensão das aulas das redes pública e privada do estado do Rio de Janeiro - educação básica e ensino superior - como medida temporária de prevenção ao contágio decorrente da Covid-19. Segundo esse ordenamento, a suspensão das atividades escolares aconteceria, inicialmente, por um período de 15 dias - a começar no dia 15 do mesmo mês -, sem prejuízo de calendário, e com anuência do secretário de Estado de Educação e do secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação. Em seguida, como medida protetiva à saúde pública, reconheceu-se a necessidade de prorrogação do prazo de suspensão das atividades presenciais na escola, variando primeiramente na antecipação das férias escolares e, em seguida, destacando a necessidade de manutenção do isolamento social, por ser fundamental o prosseguimento da situação de emergência no âmbito do estado, sem prazo de retorno das atividades presenciais.
No dia 18 de março, o Projeto de Lei nº 2.036/20 (PL) (RIO DE JANEIRO, 2020b), que dispõe sobre a plataforma de Educação a Distância do Google Classroom para os alunos da rede estadual de ensino durante as medidas de enfrentamento da propagação e combate à Covid-19, com a justificativa de “matéria de inegável relevância social” (RIO DE JANEIRO, 2020b, n.p) e como estratégia de enfrentamento da pandemia, foi protocolado junto à Alerj. O objetivo do PL é disponibilizar conteúdo de qualidade aos alunos da rede pública estadual de ensino através de ferramentas digitais. Há que se ressaltar o curto intervalo de tempo entre a interrupção das atividades escolares e o encaminhamento de uma proposta educacional por uma plataforma privada específica para mediar a aprendizagem.
No dia 25 de março, o Projeto de Lei nº 2.036/20 (RIO DE JANEIRO, 2020b) foi encaminhado para a votação. Inicialmente, o esforço foi assegurar a lei como uma ação de caráter emergencial, sendo vedada a substituição da educação presencial, em períodos letivos regulares, pela educação mediada por tecnologias. Dessa maneira, o recurso de uso da plataforma digital estaria restrito ao período da pandemia e, nesse sentido, podemos entender que tal proposta cumpriria o que foi disposto pela LDB (BRASIL, 1996) para a EaD, quando traduzida para o ensino fundamental, ou seja, num contexto emergencial. De forma crítica, entendemos que o processo justificado pela pandemia como caráter de exceção situa-se num campo de possibilidades mais amplo que, ao articular-se numa parceria público-privada, nos possibilita entender como o grupo GAFAM direciona o consumo de seus usuários.
Como ressalvam Fiormonte e Sordi (2019), em diálogo com Douris (2010): as ferramentas das linguagens digitais não são apenas instrumentos para realização de um trabalho; elas moldam, também, o modo como o indivíduo entende o mundo. Assim, mesmo assumindo que políticas públicas entram em disputa a partir de uma janela de oportunidades frente às situações forçadas pela realidade, impondo a aprendizagem virtual como “alternativa obrigatória” (RAVALLEC; CASTRO, 2022), em virtude da pandemia, para mais de 80% dos estudantes da educação pública do país, o uso das plataformas possibilitado por esse oportunismo de ocasião precisa ser compreendido pela diversidade de bias culturais e epistemológicos que compõem os objetivos tanto dos processos, quanto dos produtos digitais ofertados.
Adicionalmente, ressaltamos no Projeto de Lei nº 2.036/20 (RIO DE JANEIRO, 2020b) a emenda que inclui a necessidade de responsabilizar o Poder Executivo na atuação do combate à exclusão digital disponibilizando equipamentos e viabilizando acesso às redes virtuais para assegurar interação entre estudantes e profissionais da educação. Esta articula-se a uma outra emenda que afirma que o conteúdo veiculado pela plataforma deve estar acessível aos estudantes com deficiência, com baixa visão, com cegueira e surdos de modo a viabilizar a educação para esses grupos de alunos. Em concordância com Fiormonte e Sordi (2019), entendemos que qualquer contenda sobre o ensino remoto precede à discussão sobre a possibilidade de materialização de sua oferta, ou seja, no que diz respeito à infraestrutura, num sentido de pensar o acesso às tecnologias digitais como forma de democratizar o conhecimento, analisando, nos diversos coletivos que compõem a escola, a camada social à qual os sujeitos pertencem, pois essa discussão está dada nas instituições escolares no seu formato presencial, que “convertem-se nos espaços em que o direito à educação materializa-se e onde se vê refletida a imagem de uma sociedade profundamente desigual” (LIMA, 2020, p. 7).
Entretanto, assinalamos uma emenda do Projeto de Lei nº 2.036/20 (RIO DE JANEIRO, 2020b) que parece configurar uma disputa que romperia um acordo com o campo macro da política pois, além desta argumentar pelo uso da plataforma no período de suspensão das atividades escolares regulares, a questão quanto a não contabilização dos dias letivos das aulas ministradas a distância no período de excessão deveria aparecer de forma explícita. No tocante a essa inserção, observamos que uma das soluções dos organismos internacionais para manter a agenda política durante a pandemia foi assumir o ensino remoto como uma alternativa à instrução presencial na contagem dos dias letivos. Desse modo, por essa emenda contradizer de forma radical o alinhamento da política do Estado e seus agentes internacionais, é possível entender as discordâncias indutoras do projeto à hibernação: uma inatividade temporária, atendendo ao propósito instituído.
Ainda assim, ressaltamos que a implantação das atividades remotas no sistema estadual de ensino do RJ se deu em meio à ausência de debate com os destinatários e servidores, de modo que os elaboradores da política partiram de pressupostos de que todos têm acesso à rede mundial de computadores em condição de igualdade e que as famílias contam com computadores disponíveis para que todos acessassem as aulas ou, se não, que a aprendizagem poderia ser mediada pelo uso de celulares. Igualmente, o estado assume como premissa na qual todos os professores da rede sabem utilizar as ferramentas tecnológicas e, ainda, que os pais/responsáveis têm a formação necessária para dar apoio aos estudantes nas atividades escolares e, especialmente, que todos da família gozam de condições de saúde física e mental mesmo em meio à pandemia, no favorecimento de um espaço e de um clima favorável ao regime especial domiciliar.
A transposição das atividades presenciais para o ambiente virtual em um curto período é situada por nós como um oportunismo de ocasião, baseado em evidências que interessam aos grupos que, de diferentes formas, podem beneficiar-se das informações dos usuários da rede. Isso posto, muitas questões permaneceram sem solução no período pandêmico para a proposta pedagógica mediada por tecnologias: quais as estratégias para estudantes e professores em locais de difícil acesso? Em que medida esse regime especial domiciliar continua a acentuar as desigualdades historicamente assentadas em nosso país? Como as famílias foram, ou não, incorporando um fazer pedagógico cotidiano às aulas remotas, às leituras e aos exercícios destinados aos estudantes?
Considerações finais
Mouffe (2020) aponta que as estratégias para a ação política estão na possibilidade de mobilizar coletivos em oposição ao paradoxo que sustenta o par democracia-liberalismo. No Brasil, especificamente, a balança dessa dupla mantém acentuada tendência a um liberalismo político numa articulação com os grupos econômicos e vem rompendo com os princípios da igualdade e da soberania popular como objetivo de políticas públicas, privando os cidadãos da possibilidade de decidir sobre os assuntos coletivos que lhes dizem respeito.
Além do campo da saúde, a crise sanitária matizou as diferenças em contextos diversos: econômico, educacional, político e, no que se refere a pensar o acesso e a produção do conhecimento, o uso das ferramentas digitais tendeu a acentuar as desigualdades sociais. Segundo o Relatório do Unicef (2021) sobre a educação no cenário da pandemia, em novembro de 2020, ao final do ano letivo, 5.075.294 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos estavam fora da escola ou sem atividades escolares, o que corresponde a 13,9% dessa parcela da população em todo o Brasil. Os maiores percentuais de crianças e adolescentes fora da escola se verificam nas regiões Norte e Nordeste, e a maior incidência de crianças e adolescentes fora da escola ou sem atividades escolares ao final do ano letivo de 2020 encontra-se entre aquelas(es) de 6 a 10 anos. Estamos falando de uma geração de meninos e meninas cujo direito à educação está sendo negado.
Efeitos da educação pública no período pandêmico que oferecem respostas aos questionamentos levantados no texto podem ser presumidos a partir do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do ano de 2021, que marca o fim da etapa da educação básica para o ingresso no ensino superior. Com o menor número de inscritos no exame desde 2005, 3,1 milhões de estudantes, a queda foi marcada por um massivo decréscimo de jovens das camadas populares: 77% a menos de inscritos por isenção de taxa vinculada à renda, além de 20,8% daqueles que têm direito à isenção de modo automático por terem cursado todo o ensino médio em escolas públicas, menor número desde 2017 (PALHARES, 2021). O Enem mais branco e elitista da última década, como está intitulada a reportagem de Isabela Palhares (2021), alinha a proposta de governo do Estado ao projeto de rompimento de inclusão social de modo a ampliar a desigualdade por meio do oportunismo de ocasião da crise sanitária.
Quando, no ano de 2020, em meio à pandemia, o número de faltosos ao Enem supera a média histórica de cerca de 27%, segundo dados do Inep (TOKARNIA, 2021), registrando 51, 5% , o Estado regulamenta que estes não poderiam solicitar isenção no ano seguinte em decorrência da ausência no ano anterior. Aplicada em 2021, o argumento tem como base o não “desperdício de dinheiro público” (PALHARES, 2021), afetando, primordialmente, as camadas populares. Em se tratando da análise de políticas públicas educacionais que tenham como objetivo dirimir a desigualdade, a atenção volta-se à continuidade de projetos destinados à parcela favorecida da sociedade.
Defendemos para o ensino mediado por tecnologias um investimento na teorização crítica de uma história do conhecimento no seu formato digital (FIORMONTE, 2017 apud FIORMONTE; SORDI, 2019), para que a possibilidade de seu uso escape da ilusão de uma suposta neutralidade. Além disso, à escola - como instituição representativa da política democrática, desterritorializada em sua forma presencial - exige-se que projetos coletivos mais igualitários para o planejamento do acesso aos conhecimentos escolares, considerando que a “geopolítica dos sistemas de comunicação global” construída pela “dimensão digital da produção do conhecimento é um ato intrinsecamente político” estejam fundamentando o seu fazer político (FIORMONTE; SORDI, 2019).
Conforme evidenciado por Oliveira, Gomes e Barcellos (2020, p. 565), um modelo de uma estrutura de ensino não funciona de modo ensimesmado, mas através do “conjunto de seus elementos, inclusive e especialmente, a qualidade dos materiais e a adequação das estratégias pedagógicas à condição dos professores”. Assim, a tensão que que nos orienta no momento pós-pandemia amplia-se quando indagamos a democracia como um processo que poderia assumir a ascensão da desigualdade como efeito de uma pandemia para incorporar elementos desse oportunismo de ocasião, como proporcionado pelo ensino remoto. Os movimentos de encolhimento da escola, no seu formato presencial, e de acesso aos conhecimentos escolares vinham sendo feitos no modelo proposto para o novo ensino ensino médio, cuja implementação, via intinerários formativos , flexibiliza o currículo para uma parcela da sociedade que não tem acesso aos bens materiais e simbólicos, no reforço às desigualdades àqueles que não o têm na sociedade brasileira.
De outro modo, nossa aposta política no campo de análise de políticas públicas educacionais permite-nos perceber as “grietas” (MOUFFE; ERREJÓN, 2016, p. 39), que agora deslocam-se para o campo social e tendem a pensar o ensino público como direito, pois na finalização deste artigo, o debate do novo ensino médio logra êxito em suspender sua implementação.