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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 14-Nov-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.86425 

Artigos

A judicialização de vagas na educação infantil em tempo integral: uma análise de decisões judiciais e extrajudiciais

The judicialization of full-time early childhood education vacancies: an analysis of judicial and extrajudicial decisions

Franceila Auer* 
http://orcid.org/0000-0002-1913-854X

Vania Carvalho de Araújo* 
http://orcid.org/0000-0002-7678-1689

*Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: auerfranceila@gmail.com; vcaraujoufes@gmail.com


RESUMO

Este artigo expõe parte dos resultados de um estudo de caso sobre a judicialização de vagas na educação infantil em tempo integral realizado no município de Vitória-ES. Tem por objetivo discorrer sobre as decisões proferidas pela Secretaria Municipal de Educação e pelo Sistema de Justiça em relação às demandas promovidas pelas famílias que solicitam vagas para seus filhos nas instituições públicas de educação infantil em tempo integral. Adota uma análise documental de legislações educacionais de Vitória-ES, bem como de processos judiciais e extrajudiciais impetrados no período de 2016 a 2019. Utiliza o software Nvivo para auxílio e organização da análise dos dados. Os resultados indicam que a maioria dos pleitos são indeferidos em função de um tensionamento no campo da educação infantil devido à não obrigatoriedade do atendimento em tempo integral e à prioridade assumida com a pré-escola em tempo parcial. Conclui-se que o compromisso pelo direito à educação das crianças pequenas não se resume às famílias demandantes diretas por esse direito, nem isoladamente às decisões da Secretaria Municipal de Educação ou do Sistema de Justiça, mas configura uma questão política que diz respeito a todos, o que pressupõe a constituição de uma interlocução pública entre os diferentes agentes.

Palavras-chave: Direito à Educação; Educação Infantil em Tempo Integral; Judicialização; Infâncias

ABSTRACT

The paper presents part of the results of a case study on the judicialization of vacancies in full-time early childhood education held in the municipality of Vitória-ES. It aims to discuss the decisions made by the Municipal Department of Education and the Legal System in relation to the demands promoted by families who request vacancies for their children in public institutions of full-time early childhood education. It adopts a documentary analysis of educational legislation of Vitória-ES, as well as judicial and extrajudicial proceedings impetrated in the period 2016 to 2019. It uses the software Nvivo to assist and organize data analysis. The outcomes indicate that most of the lawsuits are rejected due to a tension in the field of early childhood education due to the lack of mandatory full-time care and the priority assumed with part-time preschool. It is concluded that the commitment to the right to education of young children is not limited only directly to the demandant families for this right, nor in isolation to the decisions of the Municipal Education Department or the Legal System, but it is a political issue that concerns everyone, which presupposes the establishment of a public dialogue between the various agents.

Keywords: Right to Education; Full-Time Early Childhood Education; Judicialization; Childhoods

Introdução

A Constituição Federal - CF (BRASIL, 1988) representa um marco para o campo da educação da infância ao reconhecer a educação infantil como um direito de todas as crianças de zero a cinco anos de idade e como um dever do Estado. Passados anos desde a promulgação da CF (BRASIL, 1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (BRASIL, 1996) complementa o texto constitucional e assume a educação infantil como primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas públicas e gratuitas. Segundo a LDB (BRASIL, 1996), a organização em torno do atendimento estabelece a jornada da criança na instituição de educação infantil por um período de, no mínimo, quatro horas diárias para o tempo parcial e de, no mínimo, sete horas diárias para o tempo integral.

Conforme Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - Dcneis (BRASIL, 2010), o dever do Estado com a educação infantil pressupõe oferta “pública e de qualidade, sem requisito de seleção” (BRASIL, 2010, p.14, grifo nosso), independente do atendimento ser em tempo parcial ou em tempo integral. Contudo, uma pesquisa exploratória realizada por Araújo (2015) em vinte instituições de educação infantil em tempo integral de dez municípios capixabas revela tensionamentos no processo de matrícula, incluindo o município de Vitória - ES. Nesse estudo, identificou-se que o risco e a vulnerabilidade social das crianças e de suas famílias, bem como a comprovação do trabalho materno extradomiciliar, aparecem como critérios predominantes de matrícula nas instituições em que a quantidade de vagas era insuficiente para atender à demanda da população.

Considerando que, sob o ponto de vista legal, as crianças têm o direito à educação sem distinção de situação familiar ou condição econômica, a elaboração desses critérios de matrícula contraria, em certa medida, o reconhecimento público da educação como um direito de todos. Estabelecer condicionalidades de acesso à educação infantil em tempo integral pode “[...] subverter a asserção ao direito por uma lógica perversa da diferença” (ARAÚJO, 2017, p. 200) na medida em que há uma inversão do direito pelo “mérito da necessidade” (TELLES, 1999) que não se aproxima das prerrogativas do direito “[...] enquanto experiência que diz respeito igualmente a todos” (ARAÚJO; AUER; NEVES, 2019, p. 4).

No contexto de descompasso entre a oferta dos municípios e a demanda por vagas na educação infantil em tempo integral, observou-se intervenções judiciais na seleção das crianças, que ocorriam quando, por determinação de promotores ou juízes, as instituições de educação infantil eram obrigadas a matricularem as crianças como consequência das demandas impetradas pelas famílias e pelo Conselho Tutelar (ARAÚJO, 2015). Considerando que as vagas nesse tipo de atendimento são continuamente demandadas, observamos tensões entre a aplicação de critérios predominantes de matrícula e os efeitos de ações jurídicas.

Para Araújo, Auer e Neves (2019), o tempo integral vai, aos poucos, assumindo destaque nas políticas públicas, seja pelas demandas quanto à efetivação e ampliação de sua oferta, seja pelos desafios que a consolidação dessa experiência requer no contexto da educação infantil. A exemplo disso, a Estratégia 1.17 do Plano Nacional de Educação - PNE (BRASIL, 2014) propõe “estimular o acesso à educação infantil em tempo integral para todas as crianças de 0 a 5 anos” (BRASIL, 2014). Importante reforçar a educação infantil como primeira etapa da educação enquanto um direito independente se o atendimento for em tempo parcial ou integral.

Por conseguinte, sempre que houver intervenção do Sistema de Justiça1 em questões concernentes à educação para garantir qualquer dimensão desse direito, ocorre a judicialização, definida como o “deslocamento da discussão dos conflitos educacionais das arenas tradicionais, legislativo e executivo, para as instituições do Sistema de Justiça” (SILVEIRA, 2015, p. 7). A existência do fenômeno da judicialização deve-se ao fato de o direito à educação ser reconhecido como público subjetivo na CF (BRASIL, 1988), conferindo a qualquer cidadão, comunidade ou associação a possibilidade de reivindicá-lo sempre que ele for violado.

A assertiva da CF (BRASIL, 1988, n.p) que “[...] o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo” gera dualidades no campo educacional. Se de um lado, há a interpretação que o direito das crianças de zero a três anos de idade à creche não é público subjetivo por não estar contemplado na obrigatoriedade escolar da faixa etária dos quatro aos 17 anos, de outro lado, há o posicionamento de que, embora as famílias das crianças não sejam obrigadas a matricular seus filhos na creche, a sua oferta é obrigatória. Somado a isso, o Supremo Tribunal Federal fortalece a jurisprudência da educação infantil através do Recurso Extraordinário nº 436. 996 institucionalizado em 2005. O Recurso impõe ao Estado a obrigação constitucional de “[...] criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das crianças de zero a seis anos de idade [...], o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola” (BRASIL, 2005, n.p).

Diante do exposto, este estudo tem como objetivo discorrer sobre as decisões proferidas pela Secretaria Municipal de Educação (SEME) e pelo Sistema de Justiça em relação às demandas judiciais e extrajudiciais promovidas pelas famílias que solicitam vagas para seus filhos nas instituições públicas de educação infantil em tempo integral. Delimita como contexto da pesquisa, o município de Vitória, por ter o maior número de matrículas na educação infantil em tempo integral no estado do Espírito Santo, conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2021).

Metodologia

Para atender ao objetivo anunciado, optamos por realizar um estudo de caso (YIN, 2001) caracterizado pela investigação profunda de um fenômeno no contexto real de existência. Temos a análise documental como principal instrumento de pesquisa. Embora já existam diversos estudos sobre a judicialização da educação infantil no Brasil, quando nos debruçamos no atendimento em tempo integral, encontramos somente um trabalho, ao menos nas duas teses e 10 dissertações encontradas mediante levantamento realizado no Banco de Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes entre os anos de 2014 e 2018,2 tendo como descritores: “judicialização AND educação infantil AND tempo integral”; “judicialização AND educação infantil”.

Em um primeiro momento do estudo, recorremos à legislação municipal para analisar o que as normativas regulamentam sobre a educação infantil e seu atendimento em tempo integral no contexto do município de Vitória. Para tanto, visitamos o site da Prefeitura Municipal de Vitória e buscamos os documentos referentes à educação infantil, mas também os específicos do tempo integral na aba “legislação”. Nela, selecionamos as opções de Diário Oficial; Decretos, Leis e Portarias; Atos Oficiais. Localizamos os documentos utilizando dois descritores, “educação infantil” e “tempo integral”, onde foram encontrados, respectivamente, 87 e 16 documentos. Com a leitura da ementa dos 103 documentos localizados, analisamos os sete mais próximos ao objeto de estudo.

Em um segundo momento do estudo, buscamos os processos extrajudiciais na SEME, precedida de autorização prévia e do cadastro da pesquisa no portal eletrônico “Protocolo Virtual” do site da Prefeitura Municipal de Vitória. A escolha pelo recorte temporal dos processos de 2016 a 2020 se dá pelo estudo ter como justificativa a pesquisa de Araújo (2015), solicitando, assim, dados atuais. Todavia, não encontramos nenhum processo no ano de 2020. Na coleta de dados realizada no Departamento de Protocolos da SEME, dentre os arquivos disponibilizados para a pesquisa, selecionamos seis decisões extrajudiciais.

Em um terceiro momento do estudo, realizamos uma busca dos dados referentes aos processos judiciais no portal eletrônico do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), por meio da aba “jurisprudência”, onde foi utilizado como descritor: “educação infantil E tempo integral” no recorte temporal de 01/01/2016 a 31/12/2019. Desse modo, surgiram seis decisões judiciais de segunda instância publicadas, incluindo acórdãos e decisões monocráticas. Uma vez feita essa busca, as decisões foram preliminarmente analisadas por suas ementas, assim sendo, selecionamos apenas duas decisões dos anos de 2018 e 2019.

Ao final das buscas, obtivemos um universo de oito decisões judiciais e extrajudiciais. Vale destacar que os dados encontrados não necessariamente correspondem ao número real de solicitações impetradas pelas famílias, em virtude dos empecilhos deste tipo de metodologia.3 Para a análise dos dados, privilegiamos o software Nvivo, produto da QSR International utilizado como auxílio em estudos de metodologia qualitativa. O software Nvivo nos permite a criação de mapas de árvore, bem como de nuvens de palavras, para ilustrar os dados que se sobressaem através de um recurso visual de fácil compreensão.

A educação infantil em tempo integral: o que dizem as legislações municipais?

De acordo com o documento orientador Programa Educação em Tempo Integral (2010), o tempo integral enquanto política municipal para a educação infantil em Vitória surgiu no ano de 2005 e foi marcada pelo encontro entre a SEME, a Secretaria Municipal de Saúde e a Assistência Social (VITÓRIA, 2010). Por sua vez, o documento “A educação infantil do município de Vitória: um outro olhar”, no ano de 2006, já previa que haveria desafios para os anos seguintes, tais como “a ampliação do atendimento [e] o oferecimento progressivo do horário integral” (VITÓRIA, 2006, n.p).

O documento Programa Educação em Tempo Integral (2010) afirma que “a Educação em Tempo Integral, constitui uma demanda legítima da sociedade [que] se volta para o coletivo e para a questão da dignidade da pessoa humana, no contexto comunitário” (VITÓRIA, 2010, n.p), assumindo assim, uma perspectiva de equidade social. A construção deste programa contribuiu para que quase todos os Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIS) atendessem as crianças de zero a seis anos de idade no ano de 2007 (VITÓRIA, 2010). Visando atender um maior número de crianças de quatro a seis anos de idade na educação infantil em tempo integral, foram criados sete Núcleos Brincartes com perfil de filantropia mediante convênios com ONGs em 2007. Porém, desde 2009, o município vem se organizando para que os CMEIs consigam suprir a demanda do tempo integral de modo que não haja necessidade de atendimento nos Núcleos Brincartes (VITÓRIA, 2010).

Em 2011, foi sancionado o Decreto nº 15.071 que estabeleceu critérios para a matrícula e a permanência de crianças e de adolescentes no Projeto Educação em Tempo Integral. O Art. 3º desse decreto ressalta que para o estudante ser matriculado, ele deverá “[...] prioritariamente, estar inserido no Cadastro Único da Secretaria de Assistência Social - CADÚNICO/SEMAS” (VITÓRIA, 2011, n.p). Já o Art. 5º reitera que essa prioridade se destina para crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco e vulnerabilidade social.

A educação em tempo integral também ganhou visibilidade no Plano Municipal de Educação em Vitória, sancionado em 2015. Dentre as 20 metas, a Meta 1 que se refere à educação infantil traz em sua Estratégia 1.13 “garantir a ampliação do acesso ao tempo integral nas escolas de educação infantil” (VITÓRIA, 2015, n.p). Por sua vez, a Meta 6 propõe “oferecer e assegurar a educação em tempo integral, garantindo-a de forma qualitativa, em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) estudantes da educação básica” (VITÓRIA, 2015, n.p).

Em março de 2016, o Decreto municipal nº 16.637 por meio do Diário Oficial instituiu o Programa Educação Ampliada na modalidade Educação Integral com Jornada Ampliada na Rede Municipal de Ensino de Vitória. Em seu Art. 3º, afirma-se que serão beneficiários prioritários os estudantes “regularmente matriculados e frequentes em situação de vulnerabilidade e risco social, atendidos por programas de transferência de renda e considerando aspectos objetivos de âmbito social, de saúde, exposição às violências e situação escolar descritos em instrumento” (VITÓRIA, 2016, n.p).

Passados oito anos desde a publicação do primeiro documento orientador da educação em tempo integral no município de Vitória, foi sancionado o mais atual, intitulado Política Municipal de Educação Integral, em 2018. Ele traz como uma de suas novidades a informação de que no ano de 2017, foi construído o primeiro CMEI com atendimento das crianças de zero a cinco anos de idade exclusivamente em tempo integral. Desde o ano de 20184, dentre o total de CMEIs em Vitória, 42 passaram a ter atendimento em tempo integral, além das matrículas em tempo parcial (VITÓRIA, 2018). O tempo integral nesses 42 CMEIs organiza-se de dois modos: “34 CMEI na Educação Integral em Jornada Ampliada [...] e 8 CMEI em transição para o tempo integral” (VITÓRIA, 2018, n.p).5

No ano de 2019, foi sancionada a Portaria da Secretaria Municipal de Educação nº 007/2019, que estabeleceu critérios especificamente para o acesso de crianças dos CMEIs ao atendimento em Educação Integral com Jornada Ampliada que priorizam aspectos sociais, de saúde e de exposição às violências, além de contemplarem os beneficiários dos programas de transferência de renda. Conforme exposto em seu Art. 5º, o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) auxilia as instituições de ensino a identificarem as famílias acompanhadas nos serviços de assistência social a fim de selecionarem as crianças para frequentarem o atendimento em tempo integral nos CMEIs (VITÓRIA, 2019).

A análise desses documentos municipais nos permitiu identificar que as discussões em torno da educação infantil e de seu atendimento em tempo integral no município de Vitória são marcadas por avanços e desafios que subvertem a ordem cronológica dos acontecimentos. Diferentes nomenclaturas são utilizadas Política Municipal de Educação Integral, Educação Integral com Jornada Ampliada e Programa de Educação em Tempo Integral, podendo assumir distintos significados. Há um reconhecimento do documento que orienta a política do tempo integral em Vitória de que ainda persiste a dificuldade em garantir o tempo integral como um direito de todas as crianças (VITÓRIA, 2018).

A educação infantil em tempo integral nas decisões judiciais e extrajudiciais

Quanto à estrutura das decisões, elas se diferem a partir dos processos e da relação entre as famílias, a SEME e o Sistema de Justiça. Extrajudicial inicia-se com a ementa e apresenta o prazo estipulado pela Promotoria de Justiça do Ministério Público para que a SEME responda, em torno de 15 dias. Geralmente, é classificado como “urgente” pela SEME, consta a descrição do que é solicitado pela família e nessa formulação, encontra-se a fundamentação teórica ou legal dos profissionais do Sistema de Justiça. Por fim, há a resposta da SEME que retorna em forma de despacho ao Ministério Público. Caso o processo seja encerrado nesse caminho, ele é arquivado no Departamento de Protocolos da SEME. O Judicial, analisado em segunda instância no Tribunal de Justiça, é mais detalhado do que o Extrajudicial. Inicia-se com as informações do julgamento realizado, retoma a demanda do que o requerente está pleiteando. Em seguida, o desembargador desenvolve uma discussão do caso, fazendo uso de argumentos legais ou constitucionais e imperativos categóricos. Baseando-se nisso, há a decisão judicial do processo direcionada à SEME na forma de “cumpra-se”, o que significa o despacho final proferido com a ordem que deve ser cumprida.

Quanto aos entes vinculados ao Sistema de Justiça, dos quais decorrem os processos apreciados no estudo, 75% dos processos impetrados pelas famílias na busca por vagas na educação infantil em tempo integral têm o Ministério Público como ente jurídico responsável, por meio da atuação da Promotoria de Justiça. Há um processo do Ministério Público junto à 1ª Vara da Infância e da Juventude de Vitória, à Defensoria Pública e à Advocacia. Em outro processo extrajudicial, o Ministério Público atuou em companhia do Conselho Tutelar. Outros 25% dos processos caracterizam-se como judiciais e foram julgados por desembargadores do Tribunal de Justiça, instituição do Poder Judiciário.

Identificamos que seis crianças envolvidas em tais processos têm de dois a três anos de idade e duas crianças têm quatro anos, evidenciando que a maior parte das famílias pleiteia vagas em creches. Em três processos, não é especificada a idade das crianças, somente se menciona o desejo de matriculá-las em CMEIs com atendimento em tempo integral. Há casos que se demandam vagas para mais de uma criança, por isso o número de crianças não corresponde ao de processos. Quanto à oferta da creche, Araújo, Freguete e Nascimento (2019, p. 15) afirmam que este “[...] é considerado o grande gargalo na educação básica do Brasil”, o que se torna mais complexo quando falamos do atendimento em tempo integral.

No Processo Extrajudicial 1, ao ser demandada a vaga para uma criança na creche, embora não tenha sido proferida devido à indisponibilidade de vagas no CMEI pleiteado pela mãe solicitante, a SEME responde que “o município de Vitória vem trabalhando na perspectiva de atendimento a 100% do público da faixa etária de 0 a 3 anos (idade não obrigatória)” (ESPÍRITO SANTO, 2019b). Deste modo, a ampliação das vagas apresenta-se como meta para os anos subsequentes. Poloni (2019) considera que a obrigatoriedade da matrícula após os quatro anos de idade pode prejudicar a oferta da creche, pois as legislações vêm dando mais visibilidade à pré-escola e o olhar direcionado à creche figurou seu atendimento em segundo plano. Já Campos (2011) tensiona a não obrigatoriedade das crianças de zero a três anos de idade em frequentarem a educação infantil, considerando que isso ainda pode revelar o não afastamento da creche como lugar de assistência.

Conforme Figura 1, na nuvem de palavras referente às decisões proferidas, a palavra crianças se destaca, visto que elas são os sujeitos principais dos processos e são sempre citadas ao ser tomada a decisão quanto às vagas solicitadas. Em virtude disso, a palavra vagas também aparece com certa recorrência na nuvem. Em algumas decisões dos processos, trata-se como sinônimo o atendimento em tempo integral e a educação integral, nesse sentido, as palavras atendimento, educação e integral têm grande evidência na nuvem.

FONTE: elaboração das autoras com a utilização do software Nvivo.

FIGURA 1 NUVEM DE PALAVRAS COM AS DECISÕES PROFERIDAS 

Os dados analisados mostram que a SEME nega os pedidos na maioria das solicitações extrajudiciais por vagas na educação infantil em tempo integral, mesmo que a Promotoria de Justiça tenha utilizado formulações coerentes dentro dos trâmites legais. No Processo Extrajudicial 2, que solicita vagas para duas crianças com, respectivamente, três e quatro anos de idade, a profissional da SEME responde ao promotor de justiça:

Para que as crianças do Grupo 4 matutino e do Grupo 3 matutino possam frequentar a turma de educação integral, será necessário que elas sejam remanejadas para o ensino regular no turno vespertino, porém, essas turmas não têm vagas disponíveis. Solicitamos que o responsável procure o CMEI para inserir os nomes das crianças na lista do turno vespertino (ESPÍRITO SANTO, 2019a, grifo nosso).

A resposta da Secretaria está ancorada no pressuposto legal do município de que para as crianças frequentarem a educação infantil em tempo integral, elas precisam estar matriculadas regularmente em algum CMEI no turno vespertino, por isso, as palavras vespertino, grupo, turno e turma têm destaque na Figura 1. Todavia, em outro processo analisado, os filhos da requerente já frequentam o turno vespertino do CMEI, e mesmo assim, o pedido da matrícula no tempo integral é negado sob a justificativa de que este atendimento “[...] não é obrigatório e ocorre no contraturno da escolarização dos/as estudantes, durante o ano letivo. Os critérios para o acesso, bem como o número de vagas em cada unidade de ensino, foram estabelecidos na Portaria SEME nº 061/2018” (ESPÍRITO SANTO, 2018a).

No trecho acima, podemos notar que a existência de critérios de matrícula é mencionada na resposta dada pela SEME à Promotoria de Justiça. Ainda que a vaga tenha sido negada, é alegado que o ofício do Ministério Público do pedido da família “[...] será anexado à ficha de cadastro das duas crianças, a fim de utilizá-lo na pontuação da seleção para a educação integral em jornada ampliada em 2019” (ESPÍRITO SANTO, 2018a). Diante disso, percebemos que, no ano letivo seguinte ao da solicitação, a ação extrajudicial é utilizada como um acréscimo de pontuação para a família, assim, esse conhecimento sobre a possibilidade de recorrer ao Sistema de Justiça não garante a vaga imediatamente, mas aumenta as chances de vir a consegui-la posteriormente, em relação às outras famílias que têm o mesmo interesse, mas nem sequer sabem sobre esse movimento, “[...] o que é possível definir como uma relação de ‘desigualdade de armas’” (OLIVEIRA, 2015, p. 200).

Embora a “[...] desigualdade de informações, inclusive [gere] uma desigualdade da garantia de direito” (OLIVEIRA, 2015, p. 200), não podemos perder de vista que as crianças que conseguem ter a vaga assegurada pela ação extrajudicial, primeiramente, também sofreram a frustração de não terem seu direito garantido diretamente nos CMEIs. Nesse sentido, seria possível falar “[...] em desigualdades mais justas ou, pelo menos, menos injustas que outras?” (RICOEUR, 2008, p. 97). Cabe aqui mencionar a existência de uma lista de espera em algumas instituições de educação infantil que têm atendimento em tempo integral no município de Vitória, o que pode fazer com que as ações judiciais e extrajudiciais prejudiquem essas crianças que há tempos aguardam uma vaga na “fila de espera”.

Ao que nos parece, essa situação de quem tiver uma maior pontuação obter as vagas na educação infantil em tempo integral ilustra “[...] uma sociedade despolitizada marcada pela atomização, competição e instrumentalização de tudo” (TELLES, 1999, p. 48). Também deixa “transparecer uma hierarquia de necessidades que termina por subverter o sentido mesmo da cidadania, da democracia, dos direitos” (ARAÚJO, 2017, p. 193) e de igualdade, visto que “[...] tudo passa pela imediatez do mérito da utilidade” (ARAÚJO, 2017, p. 193).

Carvalho (2015, p. 17) entende que a política da educação em tempo integral revela-se como um amparo “[...] na privação dos direitos das crianças e dos adolescentes pobres [categoriais geracionais mais afetadas na sociedade], que demandam políticas de proteção social”, por encontrarem-se fora das redes básicas de segurança social, tais como, os serviços de saúde, de educação, de lazer, de habitação etc. Contudo, bem sabemos que tais artifícios de proteção social servem apenas como medidas paliativas, pois não dão conta de superar efetivamente as malezas sociais em que as crianças e suas famílias vivem. É urgente a constituição de experiências públicas voltadas ao bem comum e ao reconhecimento mútuo do “direito a ter direitos” (ARENDT, 1989).

No Processo Extrajudicial 6, a mãe solicita a vaga na educação infantil em tempo integral sob formato de denúncia e dado seu caráter emergencial, o Ministério Público e a Vara da Infância e da Juventude pedem o retorno da SEME em no máximo cinco dias. A Secretaria emite a devolutiva que “[...] não possui número de vagas suficientes para atender todas as crianças em situação de risco desse município, elencando em seu ofício várias condicionantes que constam no decreto municipal nº 15.071/2011, para o deferimento da referida vaga em tempo integral” (ESPÍRITO SANTO, 2016). Tal assertiva justifica a presença das palavras 2011, vagas, ofício, municipal e decreto no mapa de árvore abaixo.

FONTE: elaboração das autoras com a utilização do software Nvivo.

FIGURA 2 MAPA DE ÁRVORE DAS DECISÕES PROFERIDAS 

Mesmo se tratando de um processo organizado por mais de um ente jurídico a partir de uma audiência pública, dado o seu alto teor de gravidade e tendo prazo de resposta consideravelmente menor do que outros processos do mesmo assunto, o pleito não é deferido em função da oferta de vagas insuficiente no município. Mais uma vez, a SEME deixa explícito que há critérios socioeconômicos prioritários para a matrícula no tempo integral, citando inclusive o decreto municipal publicado em 2011.

Em um contexto de precarização de vagas na educação infantil em tempo integral, os critérios socioeconômicos de matrícula definidos nas normativas municipais fazem com que determinadas pessoas fiquem mais bem classificadas, em uma espécie de “ranqueamento” e assim, elas têm uma chance maior de conseguir a vaga pleiteada. Contudo, as famílias não participam de momentos em que se decide como resolver o problema da falta de vagas no município tendo em vista a política de educação infantil em tempo integral. De acordo com Müller (2018, p. 353), “como seres do mundo, homens e mulheres comunicam suas opiniões e pontos de vistas e, ao fazê-lo, agem no mundo comum”. Arendt (1989) entende que o mundo comum é aquele que entramos quando nascemos e deixamos quando morremos, assim, a durabilidade dele transcende a vida privada de cada pessoa, mundo este que, é fruto da obra humana e não simplesmente um espaço físico.

Para Arendt (1989, p. 335), “o perigo que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas em plena civilização, à sua elementaridade natural, à sua mera diferenciação”, como as famílias que são beneficiadas com os critérios socioeconômicos de matrículas ao serem destituídas pela precariedade de suas vidas ou alcançarem uma pontuação maior com as ações extrajudiciais, mas sem nem sequer, opinarem sobre tais questões. Além disso, “[...] as crianças de diferentes classes sociais podem não compartilhar um tempo comum estendido, uma vez que a política de educação infantil em tempo integral parece destinar-se a um público específico” (ARAÚJO; AUER; TAQUINI, 2021, p. 18).

Cabe aqui chamar atenção para a ineficácia ou precariedade de certas políticas educacionais que ainda enfrentam dificuldades para atingir a todos do mesmo modo. Como bem destacam Bastos e Ferreira (2019, p. 3), no Brasil, um país de dimensões continentais, a “[...] política significa um campo de muitas disputas e representa também a necessidade de acompanhar de perto o desenvolvimento de políticas educacionais, que acontece de formas distintas”. Posto isso, Bastos e Ferreira (2019, p. 6) vislumbram políticas “[...] a partir da atuação de agentes que participam de redes, fóruns ou comunidades de políticas públicas, pois nesses espaços ou instituições se constroem o sentido das políticas, os diagnósticos e as soluções que serão debatidas e que podem culminar em uma decisão”.

Não apenas a discussão sobre a ausência de vagas na educação infantil em tempo integral poderia ser oportunizada a todos, como também o (re)pensar sobre as legislações orientadoras dessa política educacional, uma vez que o debate circunscrito ao direito à educação das crianças pertence ao bem comum. Não significa que todos obrigatoriamente devam sempre participar, o importante é que tenham ciência que podem estar na cena política. Nestas condições, Arendt (2010, p. 201) afirma “qualquer um que não esteja interessado nos assuntos públicos terá simplesmente que se satisfazer com o fato desses assuntos serem decididos sem ele. Mas deve ser dada a cada pessoa a oportunidade”.

Nos Processos Extrajudiciais 4 e 5, ao receber o pedido das famílias por vagas na educação infantil em tempo integral, a SEME responde ao promotor de justiça do Ministério Público que as crianças já se encontram matriculadas - uma delas com quatro anos de idade na faixa etária obrigatória escolar - então encaminha as respectivas fichas de matrícula para comprovar que o acesso já está sendo garantido. Em um desses casos, a ementa formulada pelo promotor tem o caráter apelativo “Com vistas a assegurar os direitos dos menores, valho-me do presente para requisitar, com urgência, que os infantes sejam matriculados na Rede Municipal de Vitória” (ESPÍRITO SANTO, 2018b, grifo nosso).

Além dessa análise das decisões dos processos extrajudiciais, chama-nos atenção um processo judicial que demorou anos até ser tramitado em juízo pelo desembargador e, assim, quando é acatado que a criança deve obter sua vaga, ela já não pode mais ser matriculada em um CMEI. Nas palavras do desembargador, ele questiona “[...] no caso ora em análise, verifico que hoje o menor encontra-se com 08 anos de idade-nascimento [...], e é dever do Estado prover atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (BRASIL, 2019). É perceptível a menção às idades das crianças na maior parte das decisões, por isso, a recorrência da palavra idade no mapa de árvore (Figura 2).

Diante disso, o desembargador reconhece a prejudicialidade da referida criança e de sua família, em virtude da criança já não ter mais idade adequada para ser matriculada na instituição de educação infantil em tempo integral, em razão da demora de todo o movimento do processo judicial, considerando então, no momento final de decisão, a falta de interesse superveniente do requerente. Ainda no Processo Judicial 1, o desembargador apresenta o argumento constitucional sobre o direito à educação ser público subjetivo e posteriormente afirma “Daí porque, em relação ao direito à vaga não haver discussão a respeito” (BRASIL, 2019) e ainda considera que:

[...] os princípios de educação integral têm sido cada vez mais desprezados nas políticas municipais de educação infantil; seja pela redução da jornada como estratégia de ampliação de vagas, seja pela redução de vagas para as turmas de creche, uma vez que estas demandam uma razão adulto/criança maior do que as turmas de pré-escola (BRASIL, 2019, grifos nossos).

Na perspectiva do desembargador, o foco das políticas municipais é a ampliação de vagas de tempo parcial principalmente na pré-escola para atender a obrigatoriedade legal, o que faz com que a oferta de vagas no tempo integral, sobretudo na creche, não seja suficiente para atender aqueles que demandam, visto que não é a prioridade do município. Julga-se que “a medida de restrição das vagas a meio período na maioria das creches do município fere frontalmente os direitos do requerente garantidos pela Constituição Federal” (BRASIL, 2019). Essa interpretação do desembargador se dá, pois “[...] os ‘fatos’ de um caso não são fatos brutos, mas estão impregnados de sentidos, portanto interpretados” (RICOEUR, 2008, p. 170). Nessa tarefa atribuída ao Sistema de Justiça de instituir uma ordem justa a partir da interpretação dos processos, ciente da existência de critérios socioeconômicos de matrícula para a educação infantil em tempo integral, o desembargador questiona:

[...] ainda que a Administração possua o poder de estabelecer critérios para matrículas nas creches de período integral, tais regras não podem ser rigorosas a ponto de inviabilizar ou impedir o atendimento, de qualquer criança, em creche localizada o mais próximo possível à sua residência, e em período integral (BRASIL, 2019, grifo nosso).

O desembargador nos brinda com sua consciência de que deve haver a efetivação das políticas públicas educacionais para que o direito à educação possa ser garantido a todas as crianças, sem qualquer forma de segregação ou de privação de direitos. Ele problematiza a ação do município de criar critérios condicionantes para o acesso da criança à educação infantil em tempo integral. A fim de tomar sua decisão, ele parece “[...] pôr-se no lugar de outro ser humano, próximo ou distante” (RICOEUR, 2008, p. 146), o que nos remete a pergunta de Ricoeur (2008, p. 80): “quando é necessário tratar de maneira privilegiada, diferenciada, parcial, e quando é preciso tratar de modo anônimo, indistinto, imparcial?”

Os profissionais do Sistema de Justiça são vistos como aqueles que agirão a favor da justiça, decidindo o que é justo em determinadas situações. Mas essa formulação de juízos é algo que todas as pessoas podem praticar e não apenas juízes/desembargadores ou promotores de justiça, pois, “[...] dizer que algo é bom ou belo só é possível no contexto de significados que determinada linguagem oferece - significados que não podem ser ‘possuídos’ individualmente, mas só podem existir entre as pessoas” (ALMEIDA, 2008, p. 469).

Para Ricoeur (2008, p. 165), “[...] ainda que não seja publicamente motivada, a decisão é pelo menos justificada pelos argumentos empregados. Essa é a razão pela qual um juiz não pode ao mesmo tempo estatuir um caso e declarar que sua sentença é injusta”. Se os profissionais do Sistema de Justiça são incumbidos de formularem os processos extrajudiciais e judiciais e, em alguns casos, até realizam as decisões finais, as suas sentenças e colocações sempre são entendidas como “justas”, compreendendo que “[...] justiça em sentido jurídico, vincula-se ao poder de dizer o que é direito” (LAFER, 1988, p. 64).

O Processo Judicial 2 chama atenção pela decisão peculiar ao envolver uma família que faz o pedido da vaga para a criança e não obtém sucesso em primeira instância. Posteriormente, a família move uma nova ação judicial, pois, além de continuar requerendo a vaga, também alega ter sofrido dano moral com o ocorrido. O desembargador, todavia, conhece do recurso e não lhe dá provimento sob a justificativa de que “Para que este seja caracterizado o dano moral, é necessário que haja abalo íntimo da pessoa ofendida, uma ofensa tal que ultrapasse os meros dissabores experimentados no cotidiano” (BRASIL, 2018).

Esse desembargador considera que o não reconhecimento do direito da criança à educação infantil em tempo integral é simplesmente um dissabor do cotidiano. Assim, nem a vaga é proferida a favor, nem a denúncia do dano moral é considerada viável. Uma das explicações utilizadas para a decisão judicial ser contra a vaga refere-se ao PNE determinar que “[...] a educação em tempo integral é objetivo a ser cumprido no prazo de 10 (dez) anos, tratando-se ainda de um projeto de governo, não há como exigir do ente estatal a imediata criação de condições para o seu cumprimento” (BRASIL, 2018). Tendo em vista que o PNE foi instituído em 2014 e o processo ocorreu apenas quatro anos depois, o desembargador considera que não seria obrigação do município naquele momento ter vaga para todas as crianças na educação infantil em tempo integral, pois o prazo do PNE para o cumprimento das metas se encerraria apenas em 2024.

Tomando por referência que a maior parte dos pedidos de vagas foi negado, pelo menos momentaneamente, cabe destacar a afirmação de Sierra (2011, p. 5) sobre a judicialização revelar-se como “[...] um fenômeno ambíguo, pois se a corrida [...] pode significar o aumento da pressão social por serviços, ela ao mesmo tempo tende a colocar em risco a autoridade da justiça, caso suas decisões não venham a ser acatadas”. No caso dos processos extrajudiciais organizados pelo Ministério Público, nem sempre as formulações dos seus pedidos são atendidas, o que de certa forma mostra que o Sistema de Justiça não tem um poder demasiadamente coercitivo a ponto de a SEME não ter a possibilidade de contestá-lo. Ainda que a SEME tenha uma preocupação em respondê-lo de forma rápida, isso não faz com que ela acate o pedido pelas vagas se não considerar coerente com a realidade dos CMEIs.

Se, de um lado, nem sempre as decisões judiciais e extrajudiciais são consideradas a favor do requerente, de outro lado, o Sistema de Justiça pode abrir novos processos até recorrer como última saída jurídica aos processos de segunda instância no Tribunal de Justiça. É possível afirmar que, em certa medida, há um poder alargado por parte do Sistema de Justiça na sociedade devido à sua autoridade jurídica, por exemplo, quando o pedido é levado ao Poder Judiciário e o juiz emite o chamado “cumpra-se”.

Naqueles casos, cujas decisões não são acatadas devido à falta de vagas nas turmas dos CMEIs, entendemos que a SEME leva em consideração o direito cotidiano das crianças já matriculadas, por exemplo, a relação do número de professores pelo número de crianças e a relação da quantidade de crianças por metro quadrado no espaço físico dos CMEIs, conforme orientação da Resolução do Conselho Municipal de Educação de Vitória nº 06/1999 (ESPÍRITO SANTO, 1999). Em decisão referente à demanda do segundo semestre de 2018, a SEME destaca que a vaga não seria proferida, visto que o ano letivo já havia iniciado: “Neste ano, não há possibilidade de atendimento às crianças visto que o ano letivo se encerra no dia 21 de dezembro” (ESPÍRITO SANTO, 2018a). Diante disso, não podemos ignorar que as vagas preenchidas aleatoriamente ao decorrer do ano podem atrapalhar o planejamento pedagógico realizado. Todos esses pontos também são importantes quando pensamos no reconhecimento do direito à educação infantil e parecem ser considerados pela SEME.

Considerações finais

Ao analisarmos as decisões proferidas em relação aos processos judiciais e extrajudiciais promovidos pelas famílias, identificamos que a maioria dos pleitos foram indeferidos, evidenciando um tensionamento no campo da educação da infância devido à não obrigatoriedade do tempo integral, sobretudo na creche, e à prioridade da cobertura com a pré-escola em tempo parcial. Embora a lei legitime o acesso das crianças à educação infantil em tempo integral, não necessariamente é capaz de promover experiências com um horizonte mais igualitário de ação e de cidadania. Para Arendt (1989), o direito enquanto fenômeno da política ocorre por meio do exercício efetivo de direitos, não se resumindo apenas às normativas jurídicas abstratas.

Ainda que os direitos sejam pré-escritos em leis, o que é uma conquista, eles não são materializados apenas por seu reconhecimento legal, pois dependem de uma organização política para serem garantidos na experiência da dinâmica societária. A judicialização evidencia que, em um contexto de negação de direitos, as famílias vislumbram o Sistema de Justiça como fundamental instância de mediação societária para obter vagas na educação infantil em tempo integral. Para Araújo (2017, p. 194), na assimetria entre famílias preocupadas com suas demandas particulares e “a emergência de reconhecer as crianças não pela privatização de suas demandas, mas pelo reconhecimento público de seus direitos, que se fazem necessárias políticas públicas orientadas por uma cidadania compartilhada”.

Embora a judicialização represente um fenômeno legítimo de interpelação ao direito e previsto pelo Estado Democrático de Direito assumido na CF (BRASIL, 1988), o compromisso pelo direito à educação das crianças pequenas não se resume às famílias demandantes diretas por esse direito, nem isoladamente à SEME ou ao Sistema de Justiça, mas configura uma questão política que diz respeito a todos. Compreendemos que os diferentes atores sociais poderiam deliberar conjuntamente acerca das matrículas, demandas de vagas e políticas destinadas à educação infantil.

Inspirada nas reflexões da pensadora da política Hannah Arendt, Almeida (2013, p. 232) questiona “Qual a responsabilidade da instituição escolar diante da criança e do mundo?” A essa instigante pergunta, Arendt (1990, p. 223) responde, que aqueles que chegaram primeiro ao mundo têm responsabilidades em introduzir as novas gerações nesse mundo pré-existente, cujos valores públicos e simbólicos são construídos historicamente, como se disséssemos aos recém-chegados: “- Isso é o nosso mundo”. Diante disso, nosso estudo nos inspira a problematizar qual a aposta ético-política do atendimento da educação infantil em tempo integral ofertado às crianças, sobretudo aquelas que vivem em um contexto de desigualdades sociais e econômicas como na realidade investigada?

Considerando que a temática judicialização da educação infantil em tempo integral é pouco explorada sob o ponto de vista acadêmico, as considerações aqui apresentadas não visam estabelecer generalizações sobre o tema, mas algumas reflexões advindas de nosso processo de pesquisa. Ao final de 2021, o município de Vitória anunciou ampliação de vagas em tempo integral para creches e pré-escolas de bairros desfavorecidos socioeconomicamente com o discurso de promover maior equidade social, suscitando a necessidade de futuros estudos que investiguem as novas estratégias adotadas para a política de educação infantil em tempo integral no contexto de pandemia e pós-pandemia Covid-19.6

REFERÊNCIAS

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1Há que se destacar que Poder Judiciário e Sistema de Justiça não são sinônimos. Contudo, o Poder Judiciário faz parte do Sistema de Justiça junto ao Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia e a Defensoria Pública.

2Não delimitamos nenhum recorte temporal. Este foi o período disponibilizado pelo portal mediante busca realizada em outubro de 2021.

3Processos considerados “segredos de justiças” impossibilitados para acesso; processos extrajudiciais físicos perdidos com as chuvas que afetaram a SEME em 2018; processos judiciais apreciados em primeira instância não publicizados pelo TJE.

4Cabe destacar que houve alterações na política de educação infantil em tempo integral durante o período da pandemia de Covid-19. Contudo, trouxemos os dados referentes ao último documento orientador publicado até o encerramento de nossa pesquisa.

5No primeiro modo, não se considera que os 34 CMEIs funcionem totalmente em tempo integral, mas sim que algumas crianças matriculadas têm sua permanência ampliada na instituição de educação infantil. No segundo modo, 8 CMEIs que tinham turmas excedentes já que haviam suprido as demandas por vagas em tempo parcial, passaram a oferecer vagas também em tempo integral.

6A atual gestão da Prefeitura Municipal de Vitória, vigente desde 2021, estabeleceu o Programa Educação Integral como prioritário no Planejamento Estratégico (2021-2014), abrindo possibilidades para novas pesquisas neste contexto.

Recebido: 17 de Junho de 2022; Aceito: 12 de Abril de 2023

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