Introdução
Entre fins do século XVIII e início do século XIX, emergiram na Europa os primeiros institutos para a escolarização de cegos. O pioneiro, fundado em Paris em 1784, oferecia aos internos o ensino intelectual e musical, associado a oficinas de atividades manuais, atendendo crianças e jovens. O segundo estabelecimento, criado em Liverpool em 1791, caracterizava-se pelo atendimento asilar, sendo residência e escola de formação para o trabalho, voltado aos cegos adultos que careciam de um emprego para manter o autossustento. No primeiro quartel do século XIX já havia dezenas de estabelecimentos para cegos na Europa, em países como Áustria, Inglaterra, Alemanha, Suíça, Holanda, Dinamarca, Itália e Rússia, dentre os quais sete institutos apenas no Reino Unido (RIPLEY; DANA, 1859).
O início do século XIX apontava a educação como vetor do progresso e da modernidade, estimulando alguns setores da sociedade a direcionar esforços em prol do atendimento das pessoas com deficiência. Nesse quesito, os Estados Unidos caminhavam a passos lentos. O país tinha apenas um instituto para surdos, fundado em 1817 no estado do Kentucky, e nenhum voltado para os cegos. Tal lacuna estimulou o médico estadunidense John Dix Fisher, que havia conhecido o instituto francês, a criar o primeiro estabelecimento da América do Norte, sob a direção do médico Samuel Gridley Howe.
Howe tinha a competência necessária para inspirar a confiança do grupo de filantropos que financiavam o empreendimento. Seu trabalho com os exilados e refugiados do pós-guerra na Grécia foi além dos cuidados médicos; seu envolvimento político o fez participar anos depois de ações revolucionárias contra a Prússia. Politicamente engajado nas causas dos subalternos, que viriam a incluir escravizados, prisioneiros, cegos, surdocegos e doentes mentais, Howe era uma figura que transitava em diferentes esferas sociais. Na história da educação estadunidense, é conhecido como o pioneiro na criação do método de alfabetização de surdocegos, sendo premiado na Exposição Universal de 1851 pela apresentação de sua aluna Laura Bridgman, considerada a primeira surdocega alfabetizada.
Apesar de sua relevância na história dos Estados Unidos, Howe é pouco conhecido pelos pesquisadores brasileiros. Na área da Educação Especial, os estudos sobre os intelectuais do século XIX envolvidos na educação de cegos e surdocegos centram-se na atuação dos diretores e professores do Instituto Benjamin Constant, criado em 1854 no Rio de Janeiro, o primeiro do gênero no país.
Essas pesquisas primam pela história da instituição e apresentam em suas análises o perfil dos intelectuais que ali atuaram, como José Álvares de Azevedo, José Francisco Xavier Sigaud, Cláudio Luiz da Costa e Benjamin Constant Botelho de Magalhães, mais estudado por seu papel de reformador da instrução pública brasileira na Primeira República. Destacam-se nessa categoria as pesquisas de Sonia Maria Dutra de Araujo (1993) e Maurício Zeni (1997; 2005).
Em razão da influência francesa nas diretrizes do instituto carioca, nomes como o de Valentin Haüy, idealizador do estabelecimento de Paris, e de Louis Braille, inventor do código de pontos, são mais recorrentes nas pesquisas, embora sem estudos aprofundados. O trabalho inaugural da historiadora francesa Zina Weigand (2009), ainda não traduzido para o português, supre essa lacuna ao mobilizar fontes inéditas a respeito desses dois intelectuais, lançando luz sobre a história dos cegos franceses, desde a Idade Média até o fim do século XIX.
Embora a ausência de pesquisas no Brasil sobre Samuel Gridley Howe ofereça um campo fértil para discussão, ela traz em si o desafio que se impõe na relação entre o pesquisador e seu objeto. Estudar os intelectuais que atuaram na educação das pessoas com deficiência pode nos levar a ter um olhar mais condescendente, uma vez que, no momento histórico em que pouco ou quase nada era feito em favor desse grupo, qualquer iniciativa adquiria ares de heroicização.
Segundo Sirinelli (2003, p. 232), a história dos intelectuais é um “campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural”. Compreender como as ideias ocorrem aos intelectuais significa analisar a genealogia das influências, acompanhando o itinerário formativo desses indivíduos. No caso dos intelectuais da Educação Especial, é possível identificar nesse grupo ideologias comuns, visões sobre a deficiência forjadas com base nas reflexões filosóficas e científicas de cada época.
No microcosmo intelectual dos educadores de cegos, em especial na historiografia produzida nos séculos XIX e XX, nota-se a constante recorrência aos feitos dos pioneiros para demarcar as influências exercidas ao longo dos anos, em uma pretensa linha evolutiva. Contudo, as tensões identificadas nesse grupo revelam os diferentes pontos de vista marcados pelo que Sirinelli (2003, p. 249) chama de “forças antagônicas de adesão”, que dizem respeito às amizades e fidelidades, e “forças antagônicas de exclusão”, como as tomadas de posicionamento e as cisões. A identificação dessas relações sociais torna-se essencial para a compreensão do movimento das ideias dentro de um grupo.
Para o estudo dos intelectuais, Sirinelli (2003) propõe três chaves de análise: itinerário dos intelectuais, redes de sociabilidade e geração. Segundo Alves (2019), é necessário entrelaçar essas três categorias. O itinerário refere-se à reconstituição da trajetória do intelectual, não apenas sua formação escolar, mas as leituras, as posições institucionais, o nascimento da consciência política, os sujeitos que marcaram intelectualmente sua formação.
Já as redes de sociabilidade são formadas por afinidades intelectuais e políticas, amizades, disputas, convergências e divergências de pensamento que compõem seu “microclima”. Diferentemente dos contatos estabelecidos involuntariamente durante a trajetória, as redes de sociabilidade são marcadas por escolhas.
De acordo com Alves (2019, p. 37), a geração é a chave de interpretação que interliga as outras duas, pois “auxilia o historiador a circunstanciar as escolhas, as possibilidades de formação intelectual, o terreno institucional, os espaços de circulação cultural, o impacto das inovações tecnológicas, cruzando os níveis local, nacional e internacional”.
A criação de institutos para a educação de pessoas com deficiência no fim do século XVIII fez surgir um novo grupo de intelectuais. Os diretores dos institutos e professores tiveram a oportunidade de testar empiricamente as ideias filosóficas da época sobre a educação por meio dos sentidos. A possibilidade de provar ou refutar as teorias impulsionou a criatividade desses pioneiros. O espírito inventivo da primeira geração de educadores de cegos perdurou até o fim do século XX, assim como a crença no potencial da educação de seus alunos. Contudo, a atmosfera intelectual da época tendia mais para a incredulidade dessa ação, cultivando nesses pioneiros o ímpeto por provar o valor de suas ideias.
A partir da análise de correspondências pessoais, relatórios do instituto, jornais e publicações da época, bem como do material produzido pelos biógrafos de Samuel Gridley Howe, apresentamos a trajetória desse intelectual, considerando o caráter inovador de suas propostas e buscando compreender tanto a origem e o legado de suas ideias como a forma pela qual elas foram tecendo suas ações ao longo das quatro décadas em que permaneceu à frente da direção do instituto Perkins. Dessa questão geral, decorrem as seguintes questões complementares: Quais projetos ele desenvolveu e com que finalidade? Como se deu a repercussão de suas ideias local e globalmente? Quem foram seus interlocutores? Qual o impacto de seu pensamento na educação de cegos e surdocegos no século XIX?
Neste artigo, nos concentraremos nas duas principais atuações de Howe na área da educação: a de editor de livros escolares para cegos e a de professor de alunos surdocegos.
O primeiro instituto de cegos dos Estados Unidos
A fundação do primeiro estabelecimento para cegos dos Estados Unidos deve-se ao médico John Dix Fisher, que em viagem a Paris em 1825 conheceu o instituto francês. Reunindo um grupo de filantropos de Boston, ele pleiteou, junto ao governo do estado de Massachusetts, verba para criar um asilo. Fisher apresentou um relatório detalhado das informações coletadas na França, mostrou os livros impressos pelos alunos parisienses e forneceu dados sobre outros institutos de cegos da Europa. Em 10 de fevereiro de 1829, foi decretada a criação do The New England Asylum for the Blind2 com verba complementar do Estado (THE NEW ENGLAND..., 1829).
Dois anos se passaram, e o projeto do asilo permaneceu apenas em papel. O comitê formado por dezesseis homens da alta sociedade bostoniana não havia encontrado alguém para dirigir o estabelecimento. Somente em 1831, quando Fisher reencontrou seu ex-colega de Harvard, o médico Samuel Gridley Howe, o projeto começou a se concretizar.
Nascido em 1801 na cidade de Boston, Samuel Gridley Howe iniciou seus estudos na Universidade Brown aos dezessete anos e depois seguiu para a Escola de Medicina de Harvard, formando-se aos 23 anos. A grande admiração por Lord Byron fez com que o jovem médico se juntasse ao poeta e romancista britânico na Guerra da Independência da Grécia. Em 1823, Howe atuou como médico voluntário do Exército grego no conflito pela liberdade do país, controlado pelo Império Otomano havia quatro séculos.
Durante os sete anos em que permaneceu na Grécia, Howe ajudou a construir uma colônia para a população de exilados e refugiados do pós-guerra, experiência registrada nas quinhentas páginas de seu livro An Historical Sketch of the Greek Revolution, de 1828. Quando retornou a Boston em 1831, soube pelo colega dos planos para criar a escola de cegos e se ofereceu para assumir o cargo de diretor (TRENT JR., 2012).
Ao aceitar o convite de Fisher, Howe se lançou em uma nova caminhada individual, diferente daquela vivenciada como médico militar, mas igualmente desafiadora. Sem qualquer experiência no assunto, e seguindo a tradição do pesquisador-viajante, ele decidiu conhecer o trabalho que vinha sendo realizado nas escolas de cegos da Europa. Entre outubro de 1831 e junho de 1832, visitou os institutos de Paris, Dresden, Berlim3, Londres, Liverpool, Edimburgo e Glasgow. Segundo ele, havia muito o que copiar da experiência do Velho Mundo, mas também muito a evitar.
Nas cartas trocadas com os membros do comitê de Boston durante a viagem e no relatório final com suas observações, Howe havia desenhado o tipo de educação que seria dado no instituto: atividades manuais que permitissem ao cego vender os objetos produzidos por ele, garantindo-lhe o autossustento; descobrir o talento de cada aluno - fosse na música, na matemática ou na produção de cestas - e treiná-lo para poder competir no mercado com os videntes; exercícios físicos, disciplina física e moral; educação da família, de modo que as crianças cegas fossem tratadas sem privilégios; ensino intelectual apenas para aqueles que tivessem aptidão para tanto; ensino de leitura e escrita para todos (ADDRESS..., 1833).
Com base em sua experiência na Grécia, o médico acreditava que a verdadeira forma de assistência e benevolência era aquela que permitia aos necessitados fugirem da dependência por meio do desenvolvimento de seus próprios talentos. Para uma efetiva reforma na educação dos cegos, a primeira ação era não os estigmatizar como membros de um grupo distinto e dependente, e sim permitir que eles construíssem suas vidas com independência. Nesse sentido, a conscientização das mães na educação das crianças cegas era importante, pois elas deveriam possibilitar que seus filhos tivessem as mesmas experiências das demais crianças4.
No retorno da viagem pela Europa, Howe trouxe na bagagem livros impressos com letras em relevo na língua inglesa e dois professores: para o ensino intelectual, o francês cego Emile Trencheri, ex-aluno e professor do instituto de Paris; e para o ensino das atividades manuais, o mecânico escocês John Pringle5. As aulas tiveram início no outono de 1832 na casa do pai de Howe, já que não havia ainda um prédio para alocar o instituto.
Seis meses após o início das aulas, ocorreu a primeira exibição pública dos seis alunos para membros do Legislativo de Massachusetts. A apresentação começou com música, performance de coral e um hino de gratidão a Deus. Após um discurso de Howe falando da importância da educação dos cegos, os alunos leram trechos das Escrituras nos livros com letras em relevo, localizaram os estados no mapa em relevo e organizaram números usando tipos6 de metal. Em determinado momento, o médico pedia para um aluno cego ir sozinho buscar um livro na escola, o que era realizado rapidamente, causando espanto e comoção entre os espectadores (FREEBERG, 2001).
Diversas exibições ocorreram para angariar fundos para o estabelecimento, doações que vinham dos cidadãos estadunidenses e dos governos estaduais, como de Connecticut, New Hampshire e Vermont. Desse modo, o instituto poderia atender também os alunos desses estados. Howe não só arrecadou fundos para o estabelecimento, como conquistou a simpatia da elite de Boston, transformando seu instituto no favorito das ações de caridade.
Em 1833, com a doação da mansão por parte do comerciante Thomas Handasyd Perkins para abrigar o asilo, foi possível aumentar o número de admissões. O ano se encerrou com trinta alunos, organizados em três classes: a primeira recebia aulas de aritmética, história, geografia, língua inglesa e francesa, latim e filosofia; a segunda, com instrução intelectual e atividades manuais; e a terceira classe aprendia atividades manuais e música. Dentre as atividades da oficina estavam a produção de tapetes, cestas e colchões; para as meninas, ensino de trabalho doméstico, costura, tricô e trançar palha (ANNUAL..., 1834).
Para a alfabetização, Howe tentou vários recursos: letras feitas com barbante coladas no papel; letras esculpidas em madeira, trazidas da Europa; letras feitas de porcelana e de vidro; e por fim as letras de metal. A partir disso, ele ensinava a escrita a lápis, com o uso das tabuletas criadas até então (FORTY-FOURTH..., 1875-1876).
Com as novas instalações, as exibições públicas passaram a ser feitas dentro do próprio instituto, que abria suas portas à visitação aos sábados à tarde. Howe sabia que, mais poderoso que seu apelo junto às autoridades, era a exposição das crianças cegas para que a população visse com seus próprios olhos o poder da educação. Essa prática das exibições mostrava uma outra face da filantropia, pois observar a “excentricidade da deficiência” era um meio de sensibilizar os espectadores para a abençoada ação financiada por eles, deixando-os com a consciência livre de seus próprios pecados - conduta não muito diferente dos nobres da Idade Média, que davam esmolas em troca de oração dos pobres.
Como afirma Koutsoukos (2020, p. 26), a respeito dos zoológicos humanos das grandes exposições universais, essa intenção filantrópica “terminava por legitimar e exacerbar, nos visitantes, sentimentos de superioridade racial, cultural e civilizatória que ajudavam a desculpar e a justificar o crescente imperialismo”. No caso dos cegos, ajudava a desculpar e a justificar o isolamento deles dentro dos institutos.
Ao longo dos anos, Howe mudou de opinião em relação às exibições públicas. Em 1851, ele afirmou à diretoria do instituto que a preparação para as performances era muito dolorosa, deixando os alunos tensos e ansiosos. Além de prejudicar a saúde das crianças, o propósito dos estudos visava envaidecer a educação oferecida, em vez de promover o efetivo aprendizado dos estudantes (NINETEENTH..., 1851).
De médico a editor de livros escolares
Os poucos livros que compunham a biblioteca do instituto eram aqueles trazidos da viagem pela Europa. Para ampliar a biblioteca dos alunos, Samuel Gridley Howe decidiu produzir seus próprios livros, buscando um método que deixasse as obras menos volumosas e reduzisse o custo de impressão.
A produção de livros para leitura tátil começava a chamar a atenção não só daqueles preocupados com a educação de cegos, mas também das sociedades filantrópicas que buscavam incentivar a criação de inventos nas diversas áreas das ciências. Em 1832, a Sociedade de Artes da Escócia havia promovido uma competição para o melhor método impresso de comunicação para cegos, cujo desafio seria a criação de um alfabeto que unisse legibilidade e economia de impressão. Ao longo de cinco anos, foram apresentados vinte alfabetos, sendo dezessete arbitrários - com uso de traços, pontos, círculos, semicírculos e sinais da estenografia - e três romanos - com as letras do alfabeto em diferentes estilos tipográficos. Dentre os inscritos estavam professores de música e de desenho, tipógrafos e artesãos, homens cegos e diretores de institutos. Howe foi o único a representar os Estados Unidos na competição (SCOTTISH, 1837).
Com a ajuda do tipógrafo e mecânico Stephen Preston Ruggles, o diretor desenvolveu letras do alfabeto romano com design mais fino, sem floreios ornamentais, e com tamanho reduzido ao mínimo para a percepção tátil. Adotou o uso de letras minúsculas, deixando o espaço entre as linhas mais estreito. Seu invento foi nomeado Alfabeto Boston. Para redução do volume do livro, produziram um papel mais fino, mas que garantia boa qualidade do relevo. Embora contrário ao uso de códigos e sinais arbitrários na produção de livros para cegos, o médico defendia a diversidade das letras romanas utilizadas na Europa.
A ideia de confundir os cegos com uma variedade de caracteres surge da suposição de que o sentido do tato possui uma limitação de quantidade, e que deve ser economizado ou ficará exausto; mas a fisiologia nos ensina que, quanto mais um sentido é exercitado, mais seu poder aumenta. Também nos ensina que, na formação de um alfabeto para cegos, devemos dar a maior diversidade possível de formas de letras. É muito mais difícil distinguir quatro letras, expressas por uma figura em várias posições [...], do que quatro letras expressas por caracteres que diferem amplamente um do outro. [...] É por esse motivo que o alfabeto do Sr. Lucas, tão vigorosamente defendido em Bristol, Inglaterra, nunca será o favorito dos cegos; nem qualquer outro pode tornar-se assim, caso não esteja de acordo com as leis da fisiologia da sensação.7 (SEVENTH…, 1839, p. 22, tradução nossa)
Segundo Howe, os cegos seriam alfabetizados da mesma forma que as crianças videntes, mostrando letras do alfabeto romano com diversas formas e desenhos. Howe era contra a uniformização dos livros, pois acreditava que os cegos deveriam escolher o tipo de letra que lhes fosse mais conveniente. Nesse sentido, propunha que cada instituto imprimisse seus livros, cada qual com suas letras, desde que os títulos não fossem os mesmos, evitando assim desperdício de investimento e formando uma biblioteca única.
Em 1834, o educador bostoniano havia se tornado editor da revista The New-England Magazine, onde publicava seus artigos de opinião. Sua experiência como escritor e editor foi impulsionada pela publicação dos livros com letras em relevo, dos quais assumia, na maioria dos casos, a autoria. Seu tema de preferência era a geografia, razão pela qual desenvolveu os primeiros mapas em relevo para cegos. Em 1839, o catálogo do instituto contava com 21 obras, distribuídas para institutos da Inglaterra, Escócia, Irlanda e Holanda (SIXTH..., 1838)8.
Frenologia e surdocegueira
A compreensão de Howe sobre a psicologia humana tinha por base as ideias dos filósofos escoceses do Iluminismo, em especial Thomas Reid e seu discípulo Dugald Stewart, que defendiam a existência de capacidades, disposições e poderes inatos à mente humana. Enquanto Locke argumentava que o conhecimento do mundo externo era adquirido por meio de ideias traduzidas pela mente através da experiência sensorial, Reid invertia esse pensamento, dizendo que nossas ideias não eram cópias da nossa experiência sensorial, mas um ato mental de compreensão do mundo externo, ações executadas pelas várias capacidades da mente. No entendimento de Howe, a ausência de um dos cinco sentidos afetava a natureza humana, causando um distúrbio no desenvolvimento das faculdades morais e mentais, responsáveis pela formação do caráter (NINETEENTH..., 1851).
Associado a esse pensamento, Howe se aprofundou nos estudos da frenologia, que representava a observação empírica da então nova teoria psicológica da mente. Por meio da medição do tamanho do crânio, era possível determinar o caráter e a capacidade mental das pessoas. Intitulando-se cientistas reformadores, e criticando o conceito de “mente” como uma abstração intelectual, os frenologistas defendiam que a verdadeira psicologia científica deveria ser fundamentada na observação, pautada no mundo material. Após a análise de vários crânios e cérebros, os frenologistas concluíram que as capacidades da mente tinham uma existência física, corporificada em dezenas de “órgãos”, formados pelas protuberâncias do crânio (SCHWARTZ, 1952).
Depois da passagem do físico alemão Joseph Spurzheim, um dos fundadores da frenologia, por Boston em 1832, Howe fundou a Boston Phrenological Society para perpetuar os estudos de seu guru, falecido naquele mesmo ano. Dentre os “órgãos” catalogados pelos frenologistas, Howe se interessou pela “linguagem”, que segundo ele era responsável pela criação e pelo aprendizado dos sinais arbitrários para expressar o pensamento (FREEBERG, 2001).
Howe valia-se também da religião para formular suas ideias pedagógicas. Para o médico, a deficiência não poderia ser entendida como uma punição divina, como um pecado inato herdado de Adão, determinando o destino das crianças a um futuro sem perspectivas. Alinhado com as ideias de Rousseau, ele acreditava que todas as crianças nasciam naturalmente boas, e que as influências de um ambiente ruim é que as corrompiam. Para Howe, as crianças tinham uma disposição moral inata, algo que não era ensinado com lições morais (NINTH..., 1841).
De acordo com as ideias da frenologia, cada assunto acadêmico estimulava no cérebro da criança um “órgão”, que, associado a um regular programa de exercícios físicos, fortaleceria os músculos de todo o corpo, inclusive do cérebro. O educador bostoniano defendia o cuidado do bem-estar físico e mental, de modo a obter uma mente bem organizada abrigada em um corpo saudável. Para Howe, assim como o corpo tem apetite por comida, a mente tem apetite por conhecimento. Por essa razão, a rotina da escola era rigorosamente organizada em cinco etapas: quatro horas de trabalho intelectual; quatro horas de música instrumental e vocal; quatro horas para recreação e alimentação; quatro horas de trabalho manual; e oito horas de sono (FIFTH..., 1837).
Cinco anos após iniciar as atividades do instituto e o projeto de impressão de livros, Howe foi em busca de um novo desafio. Ao ler uma reportagem no jornal New Hampshire, ele soube de Laura Bridgman, uma garota de sete anos que havia perdido os sentidos da visão, da audição, do paladar e do olfato após contrair escarlatina. Howe acreditava que a terrível condição de Laura oferecia a única chance de lançar alguma luz sobre um dos maiores problemas da ciência: a influência que os sentidos têm na formação do conhecimento e na constituição da natureza humana (FREEBERG, 2001).
A ideia de que o tato poderia ser usado na educação de surdocegos havia sido antecipada pelo filósofo francês Denis Diderot em sua obra Carta sobre os cegos para o uso dos que veem, publicada em 17499. Segundo Howe, havia duas opções para estabelecer uma comunicação com Laura: usar os sinais manuais criados em seu ambiente familiar ou ensinar-lhe as letras do alfabeto, que para o médico era o caminho mais efetivo e útil para a educação da menina (NINTH..., 1841). A apropriação do sistema alfabético por uma pessoa surdocega parecia algo impossível até então. A iniciativa de Samuel Gridley Howe representava uma mudança não só nas práticas pedagógicas, mas abria caminho para uma nova compreensão sobre a educação de surdocegos.
Howe passou a documentar as descrições minuciosas das atividades realizadas com Laura Bridgman nos relatórios do instituto. Além das questões pedagógicas, ele incluía suas análises sobre o desenvolvimento físico, intelectual e moral da aluna. Em 1841, Howe fez uma meticulosa medição da cabeça de Laura para identificar que havia ocorrido um crescimento, o que poderia estar relacionado ao desenvolvimento intelectual da menina. A alegria espontânea de Laura, a confiança nas pessoas e o cuidado com as outras crianças eram comportamentos enaltecidos nos relatórios.
Os primeiros experimentos foram feitos levando artigos de uso comum, como facas, garfos, colheres, chaves, etc., etiquetados com seus nomes impressos em letras em relevo. Ela tocou com muito cuidado, e logo distinguiu que as linhas curvas de c h a v e eram diferentes das linhas de c o l h e r, assim como a colher diferia da chave em sua forma.
Em seguida, pequenas etiquetas destacadas, com as mesmas palavras impressas nelas, foram colocadas em suas mãos; e ela logo observou que eram semelhantes àquelas coladas nos objetos. Ela mostrou sua percepção dessa semelhança colocando a etiqueta da c h a v e sobre a chave, e a etiqueta da c o l h e r sobre a colher. Ela foi encorajada aqui pelo sinal natural de aprovação, com leves toques na cabeça.
O mesmo processo foi então repetido com todos os artigos que ela podia manusear; e ela aprendeu muito facilmente a colocar os rótulos apropriados sobre eles. Era evidente, porém, que o único exercício intelectual era o da imitação e da memória [...], mas aparentemente sem a percepção intelectual de qualquer relação entre as coisas.10 (NINTH..., 1841, p. 25, tradução nossa)
Com base em seus estudos da frenologia, o objetivo de Howe era compreender e investigar a mente de Laura Bridgman. Sua conclusão era de que o cérebro da menina possuía uma habilidade inata para compreender e criar linguagem, e que o poder de sua mente estava apenas adormecido, porém intacto dentro do “corpo danificado” da criança. Contra a teoria de Locke, de que a disposição e a tendência moral da criança dependiam do desenvolvimento dos sentidos e do intelecto, devendo, portanto, ser aprendidos e exercitados, Howe argumentava que em Laura havia uma disposição inata à aquisição da qualidade moral, uma vez que, mesmo com sua limitação intelectual, o desenvolvimento moral da menina era superior ao das crianças da mesma idade. Para o médico, todos teríamos uma disposição inata para aceitar a existência de Deus (NINTH..., 1841).
Em 1837, mesmo ano em que Laura ingressou no Perkins, Horace Mann, membro do conselho do instituto e amigo de Howe, com quem partilhava uma afinidade intelectual e política, tornou-se secretário de Educação de Massachusetts e criou o Common School Journal, publicação que visava divulgar as inovações em educação implementadas no estado. Mann era um dos reformistas que defendia que as crianças deveriam ser motivadas a aprender por si mesmas e pela dádiva de Deus, e não por meio de indução de recompensas ou punições, método em vigência nas escolas comuns. Com o incentivo do amigo, Howe passou a publicar os relatórios sobre o desenvolvimento de Laura Bridgman no jornal, o que fez a história da menina surdocega ser conhecida não só nos Estados Unidos, mas principalmente na Europa. Em uma das publicações, Howe instigou seus leitores a refletirem sobre a educação das crianças com deficiência, em comparação com as demais crianças: “Se uma criança, que é privada dos sentidos, aprende tanto e se comporta tão bem, o que devem aprender e fazer aquelas crianças, a quem Deus abençoou com os meios de conhecimento e de fazer o bem?”11 (MANN, 1839, p. 91, tradução nossa).
A divulgação do caso de Laura causou as mais diversas reações dos leitores, da surpresa à incredulidade. A excentricidade do fato foi expressa na edição de 1843 do jornal: esforços para educar cavalos, patos e porcos foram bem-sucedidos, mas nenhum para educar uma criança surda, cega e sem os sentidos do olfato e do paladar (MANN, 1843). Com a repercussão do caso, Laura se tornou a principal atração do instituto nos dias de visita. Todos queriam vê-la lendo os livros, “falando com as mãos” ao usar os sinais, costurando e brincando com outras crianças. Um cartão com a assinatura de Laura virou suvenir para os visitantes, e até uma boneca foi criada na época e usada como símbolo de resiliência infantil. Todas as crianças deveriam se inspirar em Laura, que mesmo só possuindo o sentido do tato, era estudiosa, educada e perseverante (FREEBERG, 2001).
Uma das visitas mais ilustres recebidas no instituto foi a de Charles Dickens, que em 1842 relatou a história de Laura em sua obra American Notes. A coroação do trabalho de Howe com a menina surdocega ocorreu na exibição da primeira Exposição Universal, realizada em Londres em 1851. Segundo o jornalista correspondente de Boston, a contribuição dos Estados Unidos para a exposição foi considerada um fracasso para alguns; contudo, o país não poderia ter apresentado uma melhor amostra de sua cultura a ser difundida na Europa:
Em sua pessoa, essa criança notável, ou mulher, como ela agora se tornou, é um triunfo da Arte, à qual os teares da Inglaterra, os tecidos delicados da França e os vários produtos da Alemanha devem render palmas. O interesse despertado por sua história é universal. Seu nome é agora, talvez, conhecido por um número maior de pessoas do que o de qualquer outra mulher no mundo, com exceção da Rainha da Inglaterra. [...] O coração de todo americano, e particularmente de todo bostoniano, pulsaria com verdadeiro orgulho ao ver Laura naquele encontro das nações.12 (EVENING..., 1851, p. 2, tradução nossa)
Howe recebeu diversas cartas de pessoas da Europa impressionadas com o trabalho que ele estava realizando em Boston. Se décadas antes ele tinha olhado para os europeus em busca de inspiração, agora eram os europeus que se sentiam inspirados pelas realizações do educador estadunidense.
Por uma biblioteca nacional para os cegos
Após a entrada de Laura Bridgman, o instituto Perkins passou a receber mais crianças surdocegas. As professoras que cuidavam desses alunos já dominavam o método de alfabetização criado por Howe, de modo que o diretor pôde dedicar mais tempo ao seu projeto de editor.
O desejo de Howe de criar uma biblioteca para os cegos, com variedade de títulos, sempre esteve presente em seus escritos. Além da crítica à competitividade e à rivalidade entre os institutos, seu alvo era direcionado aos políticos estadunidenses, a quem pleiteava a criação de leis que assegurassem, a cada estado, verba para a impressão de livros (EIGHTH..., 1840).
Determinado a convencer o maior número de pessoas sobre a importância dos livros para cegos, o médico fez uma viagem de cinco meses pelo sul e pelo oeste dos Estados Unidos, realizando exibições de seus alunos - dois alunos e duas professoras o acompanharam nessa jornada, que durou de novembro de 1841 a março de 1842. A cada um dos sete estados visitados, Howe reforçava o apelo aos políticos para a elaboração de leis que garantissem a educação de cegos sob a tutela do Estado (TRENT JR., 2012).
Com essa viagem, o trabalho do educador se tornou mais conhecido nacionalmente. O desempenho dos estudantes chamou tanto a atenção das autoridades do Kentucky que eles propuseram contratar um dos ex-alunos do Perkins para assumir a direção do instituto de cegos que seria criado naquele estado. Por outro lado, o tour abriu as portas para a entrada de Howe na vida política. Em 1844 ele foi eleito para compor o Boston School Committee, o que lhe deu a oportunidade de advogar localmente em favor da reforma educacional proposta por Horace Mann13.
Em 1846, Howe fez uma proposta pública em seu relatório anual para a criação de uma Biblioteca Nacional para o Cego, por meio de uma ação conjunta da sociedade e do Estado. Sua carta de intenções, no entanto, não surtiu qualquer efeito. Foram vários períodos em que as prensas do instituto ficaram paradas por falta de verba, tendo como fase mais dramática o período da Guerra da Secessão, de 1860 a 1866.
A batalha travada entre o norte industrializado e o sul escravagista levou à morte de centenas de milhares de estadunidenses. Samuel Gridley Howe era abolicionista e militante ativo, e seu posicionamento político pode ter sido um dos fatores que não lhe permitiram avançar em seu projeto. Não por acaso, a fundação da American Printing House for the Blind (APHB) ocorreu em 1858, no Kentucky, estado confederado, com o objetivo de ser a editora oficial de livros para cegos dos Estados Unidos. Mas, com a Guerra Civil, ela levou mais de dez anos para começar a operar de fato.
Até a fundação da APHB, a tipografia do instituto Perkins era a principal fornecedora de livros para os institutos estadunidenses. Em 1871, durante a Segunda Convenção dos Instrutores Americanos de Cegos14, Howe divulgou uma circular afirmando que as prensas de Boston poderiam atender a todos os institutos, vendendo os livros a preço de custo ou até 20% mais barato, a depender das doações, uma vez que seu objetivo não era ter lucro com as obras, mas apenas viabilizar a criação de uma biblioteca para os cegos do país. A partir daquele ano, os livros passaram a exibir o aviso de que as obras poderiam ser adquiridas pelos cegos por empréstimo, devendo ser devolvidas ao instituto após a leitura; no caso da Bíblia, precisava ser devolvida após a morte do leitor. Este foi um caminho encontrado pelo médico para criar uma biblioteca circulante (FORTIETH..., 1871-1872).
Em seus discursos, Howe continuava defendendo a diversidade de livros em alfabetos romanos, que naquele momento eram feitos em quatro tipos para os cegos de língua inglesa: a letra maiúscula de Glasgow, o minúsculo-maiúsculo de Worcester, o caractere minúsculo de Boston e o combinado da Filadélfia, que misturava maiúsculas e minúsculas. No entanto, a criação de alfabetos arbitrários não havia cessado com o concurso da Sociedade de Artes da Escócia. Desde o invento do alfabeto estenográfico, do inglês Thomas Mark Lucas, haviam surgido o dos também ingleses James Frere e William Moon, o código do francês Louis Braille, que começava a ganhar adeptos nas Américas, e a adaptação do código de pontos feita pelo estadunidense William Bell Wait, então diretor do instituto de Nova York.
Esse período ficou marcado na historiografia dos cegos como a era da “batalha dos tipos” e da “guerra de pontos”15. A disputa envolvia não só os criadores dos alfabetos e códigos, mas também os professores dos institutos, que tinham as suas preferências16. Dessa guerra Howe não pôde acompanhar o desfecho. Com a saúde debilitada, ele faleceu em 9 de janeiro de 1876, aos 74 anos.
A biblioteca que Howe conseguiu formar para os cegos ao longo de 44 anos de trabalho contava com pouco mais de cinquenta títulos, embora apenas trinta deles estivessem com estoque ativo no ano de sua morte. Mesmo sendo contrário ao uso dos alfabetos arbitrários, em 1869 ele começou a utilizar e a revender a reglete criada por Louis Braille somente para a escrita. Os livros no código de pontos só passaram a integrar a biblioteca do instituto Perkins em 1875, vindos de Londres.
Apenas em 1879 o sonho de Howe se tornou realidade. O Congresso estadunidense aprovou uma verba anual para a manutenção da APHB, tornando-a a gráfica responsável pela impressão de livros para cegos de todas as escolas do país. Após a morte de Howe, seu genro, Michael Anagnos17, assumiu a direção do instituto e propôs ao afinador de pianos, o cego Joel West Smith, a criação de um código de pontos a partir da matriz de Louis Braille. Chamado de “braille modificado”, e posteriormente de “braille americano”, foi criado em 1878, sendo o terceiro modelo de código de pontos utilizado simultaneamente nas escolas estadunidenses. Obras no caractere de Howe continuaram sendo impressas até 1882 pela APHB; porém, a produção de livros em alfabeto Boston perdurou até 1908 nas prensas do instituto Perkins (WATERHOUSE, 1975).
Considerações finais
As primeiras quatro décadas do século XIX marcaram a ascensão da educação de cegos e surdocegos, com a criação de institutos, inovação em práticas pedagógicas e investimento em tecnologia para oferecer uma escolarização que se aproximasse daquela proporcionada nas escolas comuns. Os educadores da época tinham diante de si o desafio de encontrar meios para ensinar às crianças e aos adultos como apreender o mundo por meio dos sentidos, utilizando o corpo como instrumento para a aprendizagem.
A crença de que seria possível identificar algum talento nos alunos fez com que Samuel Gridley Howe buscasse no pensamento filosófico da época e nos avanços científicos caminhos para criar novas estratégias de ensino. Ele foi pioneiro no uso de objetos na educação de cegos e surdocegos, proposta pedagógica que anos depois viria a ser intitulada como “lição de coisas”, por meio do livro publicado pela educadora inglesa Elizabeth Mayo, em 183918.
Os casos conhecidos na Europa até então sobre a educação de surdocegos compreendiam apenas o ensino dos sinais manuais como única forma de comunicação19. Determinado a provar a possibilidade de alfabetizar um surdocego, Howe utilizou as letras móveis e os livros impressos em relevo, estratégia que só foi possível em razão do trabalho que ele vinha realizando havia cinco anos, desde a fundação do instituto em 1832. Seu pioneirismo foi reconhecido na época e seu legado propiciou que outra mulher surdocega, Helen Keller, pudesse mostrar ao mundo o poder e o valor da alfabetização das pessoas com deficiência20.
O século XIX foi o período das grandes descobertas científicas. A teoria proposta pela frenologia se mostrava atraente para o propósito de Howe, que procurava não só compreender o funcionamento da mente, mas encontrar, por meio dos sentidos, respostas sobre a educação que fossem além daquelas oferecidas pelos filósofos. O entusiasmo por essas pesquisas e a possibilidade de aplicá-las empiricamente fizeram-no flertar também com os preceitos da eugenia. A descoberta do gene hereditário levou o educador a implementar a separação de seus alunos por sexo, de maneira a evitar que eles se relacionassem e gerassem novas crianças com deficiência21.
Mas não foi só a ciência que fez o intelectual reavaliar sua crença no talento dos cegos. Ao deixarem o instituto ao fim do período de estudos, a maioria dos alunos não conseguia emprego e retornava ao estabelecimento para pedir abrigo. Havia os casos bem-sucedidos - de egressos que se tornaram professores e diretores de institutos - que chegavam à universidade22. Essa realidade fez Howe ampliar as vagas nas oficinas, para que, pelo menos, seus ex-alunos tivessem uma profissão que lhes garantisse uma vida digna.
Como afirma Sirinelli (2003, p. 259), “o intelectual não é infalível”. No entanto, a sensação de ter falhado não mudou a opinião de Howe a respeito do potencial de seus alunos. Sua relutância em usar a palavra “asilo” no nome do instituto vinha justamente de sua oposição ao perfil caritativo das instituições para pessoas com deficiência. Para ele, era dever do Estado garantir às crianças cegas e surdocegas as mesmas condições para escolarização, de modo a não ferir a autoestima desses indivíduos, chamando-os de “estudantes da caridade” (SEVENTEENTH..., 1849).
De acordo com Vieira (2001, p. 55), investigar a trajetória e as ideias dos intelectuais permite identificar as relações e os “projetos formativos que demarcam as disputas em torno da direção dos processos de formação das novas gerações”. A herança cultural que Samuel Gridley Howe deixou para os educadores de pessoas com deficiência foi a comprovação de que a educação, a alfabetização e o acesso aos livros eram as principais ferramentas para abrir o caminho de inserção desses indivíduos na sociedade. Por meio de seus escritos e de sua atuação como intelectual da educação, ele criou um novo ideário sobre a educação de cegos e surdocegos no século XIX.