Introdução
Segundo pesquisas já realizadas, a preocupação com o controle dos filhos da classe trabalhadora, durante o período de embate entre o socialismo e o capitalismo no final do século XIX, foi um indutor para a implantação dos Tribunais de Menores, com a justificativa moral de que era necessário separar crianças e adolescentes do contato com os adultos no cumprimento da pena. As análises anteriores indicavam que esse movimento teve início nos Estados Unidos da América (EUA) e, sob a influência desse país, repercutiu como um movimento transnacional que adentrou a Europa e também a América Latina, como já evidenciamos em outros escritos (ZANELLA, 2014; 2018).
A circulação de ideias foi planejada e se disseminou por meio de diversos eventos e reuniões internacionais, dentre eles, os Congressos Internacionais das Prisões, que duraram de 1872 a 1945 e depois tiveram sequência, sob outra insígnia, com a Organização das Nações Unidas (ONU). Ademais, essa influência demarcou a criação de instituições específicas que ainda atuam na área da infância como a Organização Não Governamental Internacional (OING) Save the Children Fund International Union/Fundo da União Internacional para a Salvação da Infância (1924) (FERNANDES; COSTA, 2021). Tais normativas, sancionadas durante o século XX, sob o auspício da ONU ou da sua antecessora, a Liga das Nações, ocuparam todos os espaços nos quais estavam as crianças assim como parte do proletariado, inclusive as fábricas. A proibição do trabalho infantil garantiu, por um lado, atenção a uma demanda dos sindicatos de trabalhadores; por outro, que os filhos do proletariado não mais defendessem as pautas que interessavam aos socialistas.
Assim, durante o período histórico analisado, observamos que um conjunto de fatores foi estruturado para se assegurar o tutelamento da infância pobre e a prevenção para a garantia da ordem e dos bons constumes. Nesse aspecto, o tutelamente realizou uma ressignificação dos conceitos criança e infância na perspecpectiva do que apontam Pontes e Souza, Mubarac Sobrinho e Herran (2018).
A elaboração deste artigo tem como objetivos primeiros se contrapor à perspectiva de que o menorismo nasceu com o Código de Menores de 1927, como é divulgado no senso comum por formadores que trabalham com o tema, e comprovar que a lei é um produto já acabado da ideologia menorista. Para tanto, interessava-nos, no escopo do estudo, identificar as normativas que contribuíram para que esse movimento tomasse tão ampla proporção.
As primeiras análises realizadas na tese de doutoramento indicavam que a utilização do termo tornou-se vigente no Brasil república, em um decreto de 1890. Entretanto, analisando cuidadosamente outras legislações, identificamos o seu lastro no Brasil imperial e recuamos para a assertiva de que a primeira legislação a utilizar o termo era de 1875, finalmente, retrocedemos mais um pouco e identificamos um decreto de 1861. Foi então que sentimos a necessidade de verificarmos as leis e os decretos promulgados com a instauração da Independência (1822), o que nos levou a identificar, de maneira inédita, o termos em dois textos em meados do século XIX (1850 e 1856). O Quadro que segue apresenta as normativas estudadas no corpo do artigo.
ANO | NORMA | SÚMULA |
---|---|---|
1824 | Constituição | Constituição Politica do Imperio do Brazil; |
1827 | Lei 15 de out. | Manda crear escolas de primeiras letras; |
1828 | Lei 1.º de out. | Atribuição das Camaras Municipaes; |
1830 | Lei 16 de dez. | Manda executar o Código Criminal; |
1836 | Dec. 22 de out. | Cria quatro Companhias fixas de Marinheiros; |
1840 | Dec. 45 / Lei 148 | Batalhão de Aprendizes Marinheiros - Educação Militar Naval; |
1850 | Dec. 678 | Regulamenta a Casa de Correcção do Rio de Janeiro; |
1851 | Dec. 630 | Reformar o ensino primário e secundário do Municipio da Côrte |
1852 | Dec. 931 | Funda o Recolhimento de Santa Thereza para asylo de meninas indigentes; |
1854 | Dec. 1.331-A | Reforma Couto Ferraz: estabeleceu a guarda mediante soldada; |
1856 | Dec. 1.774 | Regulamento para a Casa de detenção na Casa de Correção da Côrte; |
1861 | Dec. 2.745 | Criou o Instituto dos Menores Artesãos da Casa de Correcção da Côrte; |
1874 | Dec. 5.532 | Criou na Corte 10 escolas públicas de instituição primária e destinou uma delas para servir de Casa de Asylo para Meninos Desvalidos; |
1875 | Dec. 5.849 | Aprovou o regulamento da Casa de Asylo para Meninos Desvalidos; |
1883 | Dec. 8.910 | Atualiza o regulamento da Casa de Asylo de Meninos Desvalidos; |
1890 | Dec. 439 | Organizou a assistência à infancia desvalida; |
1890 | Dec. 847 | Promulga o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil; |
1894 | Dec. 1794 | Colônia Correcional Dois Rios - para corrigir e prevenir - vadios, vagabundos, mendigos, abandonados e capoeiras; |
1899 | Aviso 6.881 | Escola XV de novembro |
FONTE: Elaborado pela pesquisadora, 2021.
NOTA: Levantamento realizado baseado em Zanella (2018).
A análise textual de tais legislações foi realizada no artigo para evidenciarmos que, diferentemente do que aponta grande parte dos estudos da área da infância, o menorismo é anterior ao Código de 1927. Para nossa surpresa, foi possível identificarmos que as primeiras normativas que utilizaram a palavra com o sentido cultural adotado no século XX são anteriores, inclusive, ao que as nossas pesquisas demostravam.
Nesse aspecto, a texto estrutura-se em dois tópicos, divididos cronologicamente nas duas metades do século XIX, e um terceiro tópico que busca demonstrar que outras pesquisas devem ser realizadas para desvelarem como se deu a circulação de ideias que possibilitou que a perspectiva menorista adentrasse a legislação nacional quase um século antes da promulgação do Código de Menores de 1927.
As instituições para crianças no Brasil: em busca dos menores
A história das instituições para crianças no Brasil apresenta características de continuidade. As primeiras instituições que atendiam a situações de orfandade, viuvez, mendicidade foram as Santas Casas de Misericórdia, instituídas no século XVI em Olinda (1539), Santos (1543), Salvador (1549), Vitória (1551), Rio de Janeiro (1582) e São Paulo (1599). Nos séculos seguintes, as Santas Casas continuaram a ser criadas como um modelo de instituição caritativa e beneficente para o atendimento dos mais pobres e dos enfermos.
Paralelo a esse movimento das Santas Casas, que tinham uma característica benemérita, as ordens religiosas foram também se estabelecendo por aqui: Jesuítas (1549), Beneditinos (1581), Carmelitas da Antiga Observância (1583) e Franciscanos (1585). No século XVII, constituíram casa no Brasil Capuchinhos italianos e franceses, que foram expulsos em 1702, quando a Coroa alegou tensões políticas com a França; Mercedários (1637); Carmelitas Descalças (1665); e Agostinianos (1693). Tais ordens competiam pelo direito de administrar o indígena, que era visto como guia para o território desconhecido e fiel servo de Deus. Ademais, tais ordens tinham como doutrina filosófica um ensino humanista e de exclusivo proselitismo católico para o qual acolhiam também as crianças indígenas para a conversão destas. Foi com esse intuito que fundaram as primeiras escolas primárias. Assim, entre o século XVI e o século XVIII, existiam, no Brasil, dois tipos de instituições para atendimento de crianças: as escolas religiosas e as Santas Casas com as suas Rodas dos Expostos.
A independência jurídica, alcançada em 1822, contribuiu para a promulgação de normativas que, pouco a pouco, deram, ao país, um caráter nacional. A primeira normativa foi instaurada em 25 de março de 1824: a Constituição Politica do Imperio do Brazil.
O documento elaborado por um Conselho de Estado foi outorgado pelo imperador D. Pedro I (1798 a 1834). A Carta foi, possivelmente, a primeira norma a citar, de maneira ampla, a palavra menor, já que era sucessor do trono o príncipe imperial, sendo uma atribuição da Assembleia Geral “IV. Nomear tutor ao Imperador menor [...]” (BRASIL, 1824, art. 15, inc. IV, grifo nosso). Ocorre que o emprego da terminologia estava atrelada ao antônimo de maior, enquanto conceito matemático, como exemplificado a seguir: “O Imperador é menor até á idade de dezoito annos completos” (BRASIL, 1824, art. 121, grifo nosso).
Promulgada a Constituição, o império cuidava de criar as novas instituições e as normas que dariam uma orientação administrativa à Nação. Assim, em 15 de outubro de 1827, o imperador mandou “[...] crear escolas de primeiras letras em todas as vilas e lugares” (BRASIL, 1827, preâmbulo). Segundo Castanha, “Assim, por iniciativa individual, várias escolas foram abertas em diversas cidades do Brasil” (CASTANHA, 2013, p. 49). Durante o percurso histórico é possível verificarmos que, naquele contexto, teve início uma relativa preocupação com a situação dos alunos pobres e órfãos. Em 1828, a Lei de 1.º de Outubro, que tratava das atribuições das Câmaras Municipais, estabeleceu, no Título III, que os Policiaes
Cuidarão no estabelecimento, e conservação das casas de caridade, para que se criem expostos, se curem os doentes necessitados, e se vaccinem todos os meninos do districto, e adultos que o não tiverem sido [...] (BRASIL, 1828, art. 69).
Terão inspecção sobre as escolas de primeiras letras, e educação, e destino dos orphãos pobres, em cujo numero entram os expostos; e quando estes estabelcimentos, e os de caridade, de que trata o art. 69, se achem por Lei, ou de facto encarregados em alguma cidade, ou vida a outras autoridades individuaes, ou collectivas, as Camaras auxiliarão sempre quanto estiver de sua parte para a prosperidade, e augmento dos sobreditos estabelecimentos (BRASIL, 1828, art. 69, grifos nossos).
Ademais, na aplicação das rendas, estabeleceu a lei que, se as Câmaras não podussem prover a todos os objetos de suas atribuições, deveriam dar preferência às causas mais urgentes: “[...] nas cidades, ou villas, aonde não houverem casas de misericordia, attentarão principalmente na criação dos expostos, sua educação, e dos mais orphãos pobres, e desamparados” (BRASIL, 1828, art. 76, grifos nossos).
Em 1830, o império promulgou a nossa primeira norma que orientaria a penalização dos criminosos. O Código Criminal, promulgado em 16 de dezembro, reproduziu a palavra menor no sentido quantitativo fazendo referência ao fato de que não se julgariam criminosos, dentre eles, “Os menores de quatorze annos [...]” (BRASIL, 1830, art. 10, § 1.º, grifo nosso). Estabeleceu, ainda, que, se ficasse comprovado que “[...] os menores de quatorze annos, que tive[ss]em commettido crimes, obraram com discernimento [...]”, eles deveriam ser recolhidos às casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecesse, mas o recolhimento não poderia exceder à idade de 17 anos (BRASIL, 1830, art. 13, grifo nosso). Como é possível percebermos, até esse momento, a utilização do termo menor estava imbuída do sentido menorista que passaria a ser culturalmente empregado no século XX.
A partir de então, foram criadas as primeiras instituições, que, de alguma maneira, demonstravam preocupação com o controle e o cuidado das crianças mais pobres. Em 22 de outubro 1836, foram criadas quatro Companhias Fixas de Marinheiros (BRASIL, 1836). Em 1840, tais companhias receberam a denominação de “Corpo de Imperiaes Marinheiros” e o “Commandante Geral” passou a ocupar o cargo de “Commandante Superior” (Dec. 45/1840). No mesmo ano, D. Pedro II, ao fixar as finanças das Forças do mar para os anos seguintes, elevou, para o número de 12, as mencionadas companhias e estabeleceu que, dentre elas, haveria uma “[...] de Aprendizes Marinheiros, que poderá ser elevada até o numero de duzentos menores de idade de 10 até 17 annos, que ficará addida ao Corpo de Imperiaes Marinheiros” (BRASIL, 1840, art. 5.º, grifo nosso).
Segundo Santos (2014), o projeto que criou as Companhias de Aprendizes-Marinheiros indica que o principal objetivo seria a ampliação das redes de recrutamento, já que existia carência endêmica de homens para o serviço militar durante o século XIX. Ademais, o pertencimento ao serviço era considerado punição, coerção e até atividade lucrativa, por isso a solução para o problema buscava recorrer a particulares, mas também às casas de detenção, aos asilos e, por que não, aos orfanatos. Era, portanto, uma medida que procurava ampliar o tempo de serviço militar compulsório, perdoando as deserções, pagando pensões aos pais e tutores que entregavam seus menores às juntas de alistamento e imprimindo, com mais força, medidas coercitivas, nos casos de indisciplina, para completar as fileiras das Forças Armadas.
Lentamente, desde a independência, as instituições sociais e de saúde para atendimento começaram a ser criadas. Assim, o Relatório do ano de 1843, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, informava a existência de quatro Estabelecimentos Pios da Santa Casa da Misericordia na Corte - fundada em meados do século XVI: Hospital, Casa dos Expostos (1738), Recolhimento das Orphãs (1739) e Hospício Pedro Segundo (1841) (MINISTÉRIO DO IMPÉRIO, 1844).
Desde a promulgação do Código Criminal, havia, no país, um esforço para se colocar em vigência, na Casa de Correção, os parâmetros normativos internacionais, tornando a instituição alinhada aos ditames liberais e a uma compreensão mais humanista sobre o cumprimento da pena, com a eliminação do suplício e das penas perpétuas, consideradas irracionais. Em 1850, o decreto n.º 678 estabeleceu um Regulamento para a Casa de Correcção do Rio de Janeiro e definiu que a prisão com trabalho seria dividida em duas classes: correcional e criminal. Nessa nova organização, a divisão correcional seria composta por “Menores condemnados em virtude do art. 13 do Codigo Criminal” e mendigos e vadios condenados assim como quaisquer outros condenados pelas autoridades policiais a trabalho na Casa de Correção (BRASIL, 1850, art. 3.º, grifo nosso). Como podemos observar, o decreto n.º 678 utilizou, pela primeira vez, o termo menores, sem atrelar, a ele, a questão da idade, talvez porque se tratasse de um regulamento e não da lei que determinava a punição, efetivamente.
No âmbito educacional, Castanha (2013) identificou que, nos debates de elaboração do decreto n.º 630, de 17 de setembro de 1851, que autorizou o governo a reformar o ensino primário e o secundário do “Municipio da Côrte”, cogitou-se que houvesse redistribuição de bolsas, que já era concedida ao Colégio D. Pedro II, para os alunos pobres de outras províncias, mas as emendas não foram aprovadas (BRASIL, 1851). No ano seguinte, o decreto n.º 931 fundou o “Recolhimento de Santa Thereza para asylo de meninas indigentes” que não podiam ir para o “Recolhimento de Órphãs” existente na Santa de Casa de Misericórdia por não atenderem às condições estabelecidas no Estatuto da Santa Casa. Dentre essas condições, estava o dote para o casamento. Assim, o imperador deixava, sob sua proteção, tais meninas, para formar “[...] perfeitas mães de famílias”. Para tanto, elas teriam como dotes os patrimônios de recursos da dívida pública destinados ao imperador e à impretriz (BRASIL, 1852, p. 15).
Finalmente, em 17 de fevereiro de 1854, o decreto n.º 1331-A, que aprovou o regulamento, estabeleceu algumas parcas medidas para atendimento de alunos pobres: “Aos meninos indigentes se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando seus pais, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral [...]” (BRASIL, 1854, art. 60, grifo nosso).
A lei definiu, ainda, que, “Se em qualquer dos districtos vagarem menores de 12 annos em tal estado de pobreza [...] o Governo os fará recolher a huma das casas de asylo que devem ser creadas para este fim com hum Regulamento especial”. A norma estabeleceu, também, que “[...] os meninos poderão ser entregues aos parochos ou coadjutores, ou mesmo aos professores dos districtos, com os quaes o Inspector Geral contractará, [...], o pagamento mensal da somma precisa parar o supprimento dos mesmos meninos” (BRASIL, 1854, art. 62, grifos nossos). Ou seja, entrava em vigor a paga mediante soldada, uma prática de pagar pessoas para cuidarem das crianças em situação de pobreza.
De acordo com a discussão de Santos (2014), o regulamento definia, ainda, que “[...] depois de receberem a instrucção do primeiro gráo, serão enviados para as companhias de aprendizes dos arsenaes, ou de Imperiaes Marinheiros, [...] sempre debaixo da fiscalisação do Juiz de Orphãos”. Em relação à matrícula, não seriam permitidos alunos escravos e nem a admição de “[...] alumnos menores de 5 annos, e maiores de 15” (BRASIL, 1854, art. 70, grifo nosso). Aqui é possível compararmos que a terminologia menor só era utilizada como justificativa para a idade dos meninos.
As normativas da segunda metade do século XIX
Na investigação documental realizada em normas e legislações da primeira metade do século XIX, identificamos, em 1850, no decreto n.º 678, que estabeleceu o Regulamento para a Casa de Correcção do Rio de Janeiro, com a utilização do conceito menor no sentido cultural, que ganhou destaque no século seguinte. Apesar de termos identificado a palavra, a sua inserção não nos permitia afirmar que havia uma intencionalidade menorista. Entretanto, em 1856, a aprovação do regulamento para a Casa de Detenção que funcionaria na Casa de Correção da Côrte cuidou de elucidar a dúvida que tínhamos estabelecido na análise do decreto de 1850.
Apesar de não repetir as palavras Menores condemnados, já que estes não eram o público a ser atendido na Casa de Detenção, o decreto n.º 1774/1856 estabeleceu que “As mulheres, escravos e menores serão recolhidos em prisões separadas, guardadas as convenientes divisões” (BRASIL, 1856, art. 2.º, grifo nosso). Ou seja, pela segunda vez, em um regulamento da mesma instituição, o termo menor figurou sem anteceder a uma definição etária. Entretanto, a comprovação para a nossa suspeita de que o termo, no sentido cultural, já circulava no Brasil em 1850 se deve ao fato de que, em 1861, o decreto n.º 2.745, que criou uma instituição para meninos, dentro da Casa de Correção, a denominou de Instituto dos Menores Artesãos da Casa de Correcção da Côrte (BRASIL, 1861). Dessa maneira, a análise do documento não deixou pairar dúvidas: o termo se fazia consolidado, a ponto de se tornar nome de uma instituição para meninos.
Pensada para ser uma instituição moderna, a Casa de Correção foi projetada para ter quatro raios, entretanto a construção não havia sido finalizada e já contava com cinco tipos de estabelecimentos penais implantados, caracterizando os ajustes que figurariam nas instituições do sistema penal do Brasil desde sempre: o depósito de africanos livres; os transferidos do calabouço (1838); a Casa de Correção de Trabalho da Corte, que era a prisão com trabalhos (1850); a Casa de Detenção para presos ainda não sentenciados, transferidos da Prisão do Aljube (1856); e o Instituto dos Menores Artesãos (1861) (ZANELLA, 2018).
O regulamento estabelecia que a finalidade do instituto fosse a educação moral e religiosa dos menores que estavam subdivididos em duas seções. A primeira se destinava aos menores presos pela Polícia como vadios, vagabundos e abandonados. A segunda, àqueles que foram admitidos a pedido dos pais ou tutores para correção de má índole. Na segunda unidade permaneciam, ainda, “[...] os menores que por sua orphandade não puderem receber uma educação conveniente e apropriada em outro lugar” (BRASIL, 1861, art. 2.º, § 2.º). Portanto, misturavam-se, na institução, os menores de todos os tipos e não apenas os criminosos.
O documento apresentava, também, uma subdivisão que deveria ser composta por aqueles que apresentassem “[...] bom comportamento moral, a applicação ao trabalho, o aproveitamento no oficio e estudos, os sentimentos religiosos e a docilidade de caracter” (sic!), os que fossem “Uteis, comprehendendo aquelles que forem applicados e aproveitarem no officio” e que se tratava de “Productores, á qual pertencerão os que, applicando-se ao trabalho, não mostrem todavia o devido adiantamento” e, por fim, os “Aprendizes, na qual ficarão todos os que não estiverem no caso de pertencer ás outras classes” (BRASIL, 1861, art. 3.º).
O instituto começou a funcionar de maneira informal, como iniciativa do chefe de Polícia, mas defendia-se sua manutenção por não existirem outras instituições correcionais destinadas aos menores de 14 anos, isentos de responsabilidade penal, conforme definido pelo parágrafo 1.º, do artigo 10, do Código Criminal (BRASIL, 1830).
A partir de 1862, os documentos do Ministério da Justiça (MJU) passaram a sugerir, ano após ano, que se viabilizasse a transferência dos menores, tendo sido um “[...] erro de annexar-se á prisão penitenciaria o asylo de educandos artesãos”. Assim, “[...] o instituto deve ser quanto antes removido para uma fazenda rural, sendo o ensino pratico da agricultura a base da educação profissional dos menores” (MJU, 1864, p. 16), visto que a instituição penal, na prática, havia se tornado não “[...] uma casa correcional, mas um asilo da infância desvalida” e de menores encaminhados pela Polícia (MJU, 1866, p. 46). Era, também, um problema o fato de que a instituição tinha dificuldade para manter a disciplina e evitar a fuga dos menores que não obedeciam da mesma maneira que os adultos, ou seja, para cuidá-los, era necessário um contingente maior de funcionários, o que levou o relator a sentenciar: “Sendo o instituto um asylo da infancia desvalida e não de educação correcional não podia elle fazer parte da casa de correcção, e não era da competencia do ministerio da justiça” (MJU, 1866, p. 46, grifo nosso).
Em outro ponto, o documento enfatizou que a criação do Instituto dos Menores Artesãos produziu benéficos resultados, mas que não existia ali um só único menor condenado em virtude do estabelecido no artigo 13, do Código Criminal, que dizia: “Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete anos” (BRASIL, 1830, art. 13, grifo nosso). Assim, o instituto acabava por atender exclusivamente a “[...] filhos de pessoas menos favorecidas da fortuna que, na falta de asylo de infância desvalida, são alli entregues para receberem educação moral e religiosa” (MJU, 1866, p. 33, grifo nosso). O relator justificava não ser adequado educar, de forma conveniente, órfãos e abandonados em uma instituição em que outros menores haviam cometido atos delituosos, o que, por si só, demonstrava que já existia a concepção de se diferenciar os abandonados e órfãos dos infratores (MJU, 1866). Verdadeiramente, por trás da preocupação com a educação dos órfãos, estava a constatação de que a presença deles trazia prejuízos para a administração da instituição, já que eles não participavam das oficinas de produção (ZANELLA, 2018).
Assim, os pedidos em defesa da educação e da moral dos menores foram, enfim, ouvidos e, para se amenizar o problema, outras medidas paliativas foram tomadas, até que, em 1865, ocorreu o fechamento definitivo, quando os menores ingressarram no Batalhão de Aprendizes Marinheiros que travava a Guerra do Paraguai (1864-1870), possibilitando que eles fossem aproveitados de maneira útil, assim como ocorreu com as demais oficinas de aprendizes artífices existentes nos arsenais, que também acolhiam meninos entre dez e 17 anos.
Em relação ao termo menor, o documento que veio a termo em 1861, para além de trazer no título o termo menores, reproduziu-o outras 36 vezes, não deixando dúvidas em relação ao seu emprego: os menores que forem presos; serão compreendidos menores; dos referidos menores ou a educação religiosa dos menores e, assim por diante, que evidenciam o menorismo presente como etiquetamento dos meninos e meninas inseridos na instituição.
A influência dos Congressos Internacionais das Prisões
No final do século XIX, os modelos prisionais europeus e dos EUA começavam a ser divulgados em Congressos Internacionais das Prisões (CIP) que reuniam interessados no tema da gestão dessas instituições, tratando também daquelas que eram específicas ou que atendiam conjuntamente a adultos e crianças.
Esse primeiro congresso reuniu agentes penitenciários, reformadores sociais e especialistas, totalizando 100 delegados de 22 países, dentre eles, EUA, México, Brasil, Chile, Inglaterra e todas as nações europeias, com exceção de Portugal (CIP, 1872). Ao final, formou-se um comitê com os objetivos de recolher estatísticas penitenciárias, incentivar a reforma penal e convocar outras conferências. Convém mencionarmos que o debate sobre os encaminhamentos em relação às crianças sempre foi pauta efetiva nessas reuniões.
Vinte anos depois do decreto n.º 1.331-A - que reformou o ensino primário e o secundário da Corte -, foi promulgado o decreto n.º 5.532/1874, que criou na Corte dez escolas públicas de instituição primária e destinou uma delas para a “[...] execução das disposições dos arts. 62 e 63 [...], sendo destinada a servir de Casa de Asylo para os meninos que se acharem nas circumstancias declaradas no primeiro dos ditos artigos, e regida pelo regulamento especial que o Governo Imperial expedirá” (BRASIL, 1874, p. 1). Como é possível observarmos, a lei da educação tratou de meninos e não de menores, o que pode indicar que a terminologia estava ligada ao direito e não era de utilizaçao comum na área da educação.
No ano seguinte, o decreto n.º 5.849, que aprovou o regulamento da Casa de Asylo para Meninos Desvalidos, tornou a reproduzir o termo em um dos seus artigos: “Os menores do Asylo, serão entregues a seus pais, ou, sendo orphãos, postos á disposição de algum dos respectivos Juizes, salvo o caso em que se julgue conveniente dar-lhes outro destino” (BRASIL, 1875, art. 6.º). Entretanto, em 1883, quando o decreto 8.910 atualizou o mesmo regulamento, a utilização do termo se repetiu da seguinte maneira: “As condições de admissão serão provadas: sendo orphão o menor, com attestados de completa indigencia [...] passados pelo Vigario da freguezia em que residir o dito menor [...]; não sendo orphão o menor, por analogos attestados [...]” (BRASIL, 1883, art. 5.º). Ademais, o artigo 37 estabeleceu ser incumbência do médico “Inspeccionar os menores [...]” (BRASIL, 1883, art. 37, §1.º, grifos nossos).
Além de podermos observar uma repetição do termo, também identificamos que, pela primeira vez, uma legislação brasileira estabeleceu que fossem admitidas, no Asylo, crianças que possuíssem pais e mães vivos, o que inaugurou, no Brasil, a interferência do Estado no pátrio poder das famílias2.
Ocorre que, alguns anos antes, mais precisamente em 1878, os países interessados no tema se reuniram no segundo Congresso Internacional das Prisões, realizado em Estolcomo, na Suécia. Representou o Brasil o ministro André Augusto de Pádua Fleury (1830-1895). O relatório do congresso apresentou, em uma das sessões, o seguinte problema:
D’après quels principes convientil d’organiser les établissements affectés aux jeunes gens acquittés comme ayant agi sans discernement et mis à la disposition du gouvernement pendant la durée déterminée par la loi? D’après quels principes convient-il d’organiser les institutions affectées aux enfants vagabonds, mendiants, abandonnés, etc.? (CIP, 1879, p. XIII)3.
Ou seja, os especialistas do congresso defendiam um tratamento diferente entre aqueles que haviam cometido um crime sem discernimento e os que eram vagabundos, mendigos e abandonados, mas que não haviam praticado um ato criminoso, ainda que os dois grupos permanecessem sob a tutela do governo. O Congresso de 1878 estabeleceu essa distinção entre os reformatórios - para reformar e punir os condenados - e as colônias correcionais - para corrigir e prevenir quem estivesse em vias de fazê-lo (ZANELLA, 2018).
De maneira geral, as publicações da área da infância estabelecem as legislações publicadas a partir da segunda década do século XX como precursoras de um novo modelo de atendimento para a infância. Nas pesquisas, entretanto, identificamos que, em 1890, o chefe do governo provisório, Deodoro da Fonseca, publicou o decreto n.º 439, que antecipou, em três décadas, os fatos apontados ao estabelecer “[...] as bases para a organização da assistencia á infancia desvalida” (BRASIL, 1890a, p. 1).
Essa norma definiu como desvalidos, “[...] para o fim da admissão nos ditos estabelecimentos, os menores, [...] que não tiverem pessoa alguma que os deva e possa manter [...]”, e, ainda, como menores “Os abandonados na via publica [...]”; “Os orphãos de pae e mãe, quando a indigencia destes seja provada; Os orphãos de pae, sob a mesma condição”; “Os que, tendo pae e mãe, não puderem ser por estes mantidos e educados physica ou moralmente, dando-se o desamparo forçado” (BRASIL, 1890a, art. 1.º, § 1.º, grifo nosso). Portanto, o governo assumia, efetivamente, o pátrio poder das crianças, retirando-as de suas famílias.
Nessa sequência, o decreto n.º 847/1890, que promulgou o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, manteve uma prerrogativa semelhante, e, na maior parte da escrita, o termo menor foi antecedido pela palavra idade, mas, em alguns momentos, o formato menorista era evidenciado (BRASIL, 1890b).
O perigo comunista que rondava a Europa chegara à República e, com ele, os menores filhos dos imigrantes. A ausência de escolas foi suprida com a criação de instituições correcionais e reformatórios. Para resolver os problemas e apaziguar os conflitos sociais, em 11 de julho de 1893, o presidente Floriano Peixoto autorizou o governo a fundar uma colônia correcional. O decreto n.º 145/1893 não apresentou nenhuma menção à idade, apenas estabeleceu que deveriam ser inseridos na instituição, para correção pelo trabalho, os vadios, vagabundos e capoeiras (PINHO; FERNANDES, 2022).
À luz do debate travado no Congresso de 1878, é possível vislumbrarmos que o legislador utilizou a proposta de intervenção, pensada para a infância vadia, abandonada e mendiga, para incluir também os capoeiras e adultos nas mesmas condições, aproximando-os dos abandonados e separando-os do grupo que havia cometido crimes, mas que necessitavam ser contidos. Nesse aspecto, a Colônia Correcional Dois Rios, de alguma maneira, foi a instituição de transição, já que era uma instituição criada para atender a menores e adultos, e a primeria instituição para atender, exclusivamente, a menores foi criada em 1899, pelo chefe de Polícia João Brasil Silvado, de maneira privada. Assim, finalmente, em 1903, a Escola Quinze de Novembro foi oficializada como instituição do Estado, representando um modelo que passou a vigorar a partir de então.
Considerações finais
A análise textual das normativas promulgadas nas áreas da educação e da justiça durante o século XIX evidenciam que o emprego da palavra menor atrelada à cultura menorista se fez presente no Brasil império, a partir de 1850, e ganhou ênfase na década seguinte. A ilustração que apresentamos (Figura 1) evidencia a frequência identificada de cada termo nas legislações promulgadas durante o século XIX.
A nuvem de palavras foi formulada com os termos utilizados nas legislações evidenciando ser esse um período de trânsição, visto que a utilização da palavra menor, em oposição ao termo maior, no sentido de quantidade ou idade - conforme grandeza matemática, foi em muito superada pelo regular emprego da palavra associada ao menorismo. Como é possível notarmos, também era comum a utilização de termos como meninos, meninas, órfãos, órfãs, seguidos de palavras que qualificavam tais sujeitos como pobres, indigentes, perambulanes, desvalidos, abandonados, expostos, indigentes ou asilados.
FONTE: Elaborado pelas pesquisadoras, 2022.
NOTA: As pesquisadoras adaptaram a escrita das palavras para o emprego comum da norma culta linguística contemporânea, de maneira a facilitar a identificação das palavras nos repositórios de revistas qualificadas.
Assim, o artigo evidencia que as instituições voltadas especificamente para o atendimento de meninos e meninas começaram a ser pensadas em meados do século XIX, sendo a primeira delas o Batalhão de Menores Aprendizes (1840). Outras foram criadas depois, mas destacamos, na nossa análise, o Instituto de Menores Artesãos, que, apesar do nome, foi organizado na Casa de Correção da Corte e tinha como objetivo deixar os menores separados dos adultos durante o cumprimento da pena.
No contexto brasileiro, as legislações voltadas especificamente para crianças e adolescentes começaram a ser pensadas, com maior incidência, a partir de meados do século XIX, como consequência da necessidade de controle e administração de problemas sociais e de organização do Estado Nação, recém-independente do país colonizador. O estudo comprovou que, três décadas antes da instituição do Código de Menores, por Mello Mattos, Deodoro da Fonseca promulgou o decreto nº 439, que organizou a assistência à infância desvalida, e que esta norma já tinha como norte o modelo menorista, o que carece de explicações para próximos estudos.
Em pesquisas anteriores, indentificamos que a circulação de ideias de cunho menorista nasceu nos EUA e chegou ao Brasil por meio de congressos internacionais, denominados Congressos Internacionais das Prisões. O primeiro desses congressos foi realizado no ano de 1872, na Inglaterra, a partir da proposta do governo dos EUA que já havia realizado alguns em âmbito nacional (CIP, 1872). Identificada a realização desse evento em 1872, havíamos concluído que a circulação de ideias dos EUA para a América Latina se deu por intermédio desse país, mas o artigo demonstrou que tais ideias já estavam no Brasil em 1850. Nesse aspecto, de que maneira os Estados Unidos da América influenciaram a América Latina, a ponto de em 1850 já identificarmos normas reproduzindo o discurso menorista? Compreender esse movimento de circulação de ideias é um dos objetivos das próximas pesquisas.