Introdução
No início da década de 1970, a construção de uma segunda ponte interligando a Ilha de Santa Catarina ao continente e o aterramento de uma extensa área do mar junto à área central da cidade de Florianópolis alteraram significativamente a paisagem da localidade. A ponte Colombo Salles e o aterro da Baía Sul transformaram-se em ícones do Programa Catarinense de Desenvolvimento (SILVA, 2012). Essas obras de infraestrutura realizadas na capital do estado de Santa Catarina repercutiram no cenário nacional como exemplos do progresso e da modernização do Brasil durante um período então denominado como “milagre econômico”, entre os anos de 1969 e 1973 (LOHN, 2011).
As citadas obras de infraestrutura seguem como as mais importantes remanescentes daquele período na cidade, diferente de outras construções que datam da mesma época, mas que perderam importância ou deixaram de existir. Contudo, houve “marcas” deixadas pelo governo do engenheiro civil Colombo Machado Salles2 no âmbito do social. Dentre estas destacam-se as ações governamentais relativas à infância e à juventude pobre, acusada de práticas antissociais3, que habitava na região da Grande Florianópolis durante a década de 1970. É possível perceber uma inter-relação entre as políticas de infraestrutura e mobilidade urbana e as ações voltadas à infância e à juventude. Essa inter-relação, a princípio, pode parecer desarrazoada, pois se trata de uma aproximação entre setores muitos distintos entre si. Ambas as ações, todavia, comportavam um ponto comum, qual seja, a articulação dos interesses políticos das elites regionais e nacionais no contexto da ditadura militar (AREND; DAMINELLI, 2014).
Este artigo busca identificar as principais características presentes nas diretrizes que nortearam a educação escolar levada a cabo, entre 1973 e 1982, no Centro Educacional para Menores, a principal instituição de correição do estado de Santa Catarina para adolescentes e jovens do sexo masculino considerados antissociais. Frente à indisponibilidade de fontes documentais no arquivo das instituições que se sucederam ao Centro Educacional para Menores e em arquivos do estado de Santa Catarina,4 a busca pelos dados para construção desta narrativa deu-se, no âmbito da legislação vigente, ou instituída à época, e em trabalhos acadêmicos desenvolvidos entre as décadas de 1970 e 1990, os quais, de forma direta ou indireta, abordaram a temática do artigo.
Dentre a legislação federal analisada, destacam-se os seguintes documentos: o Código de Menores, de 1927 - Decreto nº 17. 943-A, de 12 de outubro de 1927 (BRASIL, 1927); a lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) (BRASIL, 1964); o Código de Menores, de 1979 - Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 (BRASIL, 1979) e a Lei nº 5.692 de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), à qual Saviani (2008) se refere como a “Lei de Diretrizes e Bases do Tecnicismo”. No que se refere a legislação estadual, destacam-se os seguintes documentos: a lei que criou o Centro Educacional para Menores; a lei que criou a Fundação Catarinense do Bem-estar do Menor (FUCABEM); e o Provimento nº 20/1984 (SANTA CATARINA, 1984), que regulamentava o internamento de “menores” nas entidades de assistência catarinense. Ressalta-se que a maioria dos estudos que trata das políticas públicas para as infâncias consideradas antissociais, implementadas em Santa Catarina, durante a ditadura militar, utilizados como fonte, se constitui de “literatura cinzenta”. Esse conjunto de fontes documentais em termos teórico-metodológicos foram analisadas a partir da análise do discurso sob uma perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 1996).
A criação do Centro Educacional para Menores e a FUNABEM
A partir de 1964, o governo federal delineou o projeto de um “novo” Brasil, passando a implementá-lo por meio de um plano econômico de cunho desenvolvimentista e da remodelação de uma série de políticas públicas, como, por exemplo, a educacional e de assistência à infância e à juventude. De acordo com Bresser-Pereira (1978), após o golpe de estado de 1964, uma nova “coalizão de classes” foi instituída no país. O pacto político e econômico foi estabelecido pelos representantes dos setores da indústria nacional e multinacional, da agroindústria, dos serviços e da tecnoburocracia estatal liderada pelos militares. Sob essa coalizão de classes, a economia brasileira alcançou, por um curto período, elevadas taxas de crescimento e relativa estabilidade. Segundo o economista, “um estado nacional forte, onde se localizam os tecnoburocratas civis e militares, permite o controle político e econômico da sociedade” (BRESSER-PEREIRA, 1978, p. 58).
O setor educacional também foi utilizado estrategicamente para o processo de sustentação do regime autoritário. As diretrizes educacionais foram reformuladas, ajustando-se aos interesses dos referidos mandatários. Por meio da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), o governo federal substituiu grande parte da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que havia sido promulgada durante o governo de João Goulart em 1961 (BRASIL, 1961). Conforme Jacomeli (2010), nesta reformulação as diretrizes e bases da educação foram instituídas sob o discurso de que o Brasil vivia em outro tempo, o que exigiria uma escola com objetivos pautados na formação de mão de obra para o mercado de trabalho, especialmente para o setor industrial.
Do conjunto de mudanças no campo das políticas sociais voltadas ao atendimento infantojuvenil, destaca-se a criação da Fundação do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), ocorrida durante o primeiro ano de governo dos militares, através da Lei n. 4.513, de 1º de dezembro de 1964 (BRASIL, 1964). A instituição foi criada com objetivo de “formular e implantar a política nacional do bem-estar do menor, mediante o estudo do problema e planejamento das soluções, a orientação, coordenação e fiscalização de entidades que executem essa política”. A FUNABEM emergiu como uma instituição depositária de uma significativa parcela de expectativas sociais, sendo utilizada por seus dirigentes em várias frentes políticas (DAMINELLI, 2019). Por meio dessa fundação, o governo federal apresentava ao país uma nova proposta de atendimento à infância e à juventude, difundindo a obra redentora da “Revolução” (MIRANDA, 2014), à medida em que se desvencilhava dos estigmas que pairavam sobre o antigo Serviço de Assistência ao Menor (SAM).5
Os representantes da FUNABEM passaram a emitir diretrizes e a implementar políticas públicas que repercutiram em todas as regiões do país, inclusive no estado de Santa Catarina. No momento da criação da FUNABEM, em dezembro de 1964, a capital catarinense já dispunha do Abrigo de Menores do Estado de Santa Catarina. Naquele ano, a instituição mantinha aproximadamente 250 internos, sendo a principal instituição de acolhimento de “menores”6 do estado. A instituição, inaugurada pessoalmente por Getúlio Vargas em 1940, estava localizada aproximadamente a quatro quilômetros do centro de Florianópolis e funcionava em regime de internato, recebendo apenas crianças, adolescentes e jovens do sexo masculino. A grande maioria dos internos era de menores de idade considerados “abandonados”. Todavia, o abrigo também recebia aqueles acusados da prática de atos considerados antissociais. Na condição de principal instituição destinada à institucionalização dos meninos e jovens pobres do estado de Santa Catarina, o Abrigo de Menores foi diretamente impactado pelos “ventos modernizantes” advindos das diretrizes da FUNABEM (SANTOS, 2006).
A partir de 1969, iniciou-se um processo de transição na política de atendimento do Abrigo de Menores de Santa Catarina. Como parte deste movimento, uma das primeiras ações do governo estadual foi reajustar os termos do convênio que mantinha com a Congregação dos Irmãos Maristas. A ordem religiosa católica geria pedagógica e administrativamente o Abrigo de Menores desde a sua fundação, sendo responsável pela escolarização e profissionalização dos internos (SANTOS, 2006).
Ainda como parte do alinhamento às diretrizes da FUNABEM, em 12 de junho de 1969 o Abrigo de Menores de Santa Catarina teve seu nome alterado para Educandário XXV de Novembro. A justificativa para esta mudança na política da instituição, que procurava se alinhar às diretrizes da FUNABEM, foi apresentada pelo então governador na 5ª Mensagem Anual à Assembleia Legislativa. Segundo o governador Ivo Silveira:
Fazia-se necessária, como imperativo da moderna técnica de assistência ao menor, que desaconselha denominações capazes de causar impacto à criança, fazendo-a sentir-se mero objeto da caridade do Estado e julgar-se marginalizada, gerando sentimento de revolta e humilhação evidentemente prejudiciais ao bom desenvolvimento do processo educacional a que é submetida (SANTA CATARINA, 1969 apudMACHADO, 2009, p. 117).
A partir do ano de 1970, valendo-se de recursos financeiros federais, acessados através de convênios assinados com a FUNABEM, o governo catarinense completou o processo de transição, realizando uma ampla reestruturação técnica, administrativa e física no denominado Educandário XXV de Novembro, que passou a abrigar somente os considerados “abandonados”. A estrutura física da instituição foi ampliada e os Irmãos Maristas foram paulatinamente substituídos por uma equipe de servidores estaduais (SANTOS, 2006). Inserido nesse contexto de mudanças, em 30 de junho de 1972, o governador Colombo Machado Salles, firmando mais um “elo” no alinhamento político entre o governo estadual e o governo federal - representado, neste caso, pela FUNABEM - assinou a Lei nº 4.744, de 30 de junho de 1972 (SANTA CATARINA, 1972), com a qual criou, no organograma administrativo do Poder Executivo do estado, uma nova instituição destinada ao atendimento da população infantojuvenil considerada antissocial, o Centro Educacional para Menores.
A nova instituição era singular, pois, diferentemente do Abrigo de Menores do Estado de Santa Catarina, que acolhia os “menores” considerados abandonados e os acusados da prática de atos antissociais, o Centro Educacional para Menores destinava-se exclusivamente à internação destes últimos. Os dados presentes nas fontes documentais não permitem saber se, além do alinhamento político-institucional entre o governo estadual e o governo federal, outras questões de cunho local embasaram a criação da instituição.
Apesar de haver sido implementada sob a denominação de Centro Educacional para Menores, a instituição não foi vinculada à Secretaria de Educação, sendo alocada junto à Secretaria de Estado de Serviços Sociais, cujo titular da pasta era o ex-comandante da Base Aérea de Florianópolis, coronel Marcelo Bandeira Maia. A partir da análise dos objetivos do Centro Educacional para Menores, é possível depreender que, com a criação dessa nova instituição, o estado de Santa Catarina estabelecia uma ruptura na política socioeducacional de atendimento à população infantojuvenil.
Ao apontar a criação do Centro Educacional para Menores como uma ruptura no atendimento aos menores considerados antissociais, não se desconsidera a preexistência de outras instituições com objetivos similares, haja vista uma consolidada tradição de institucionalização de menores considerados “delinquentes”7 no estado de Santa Catarina (e no Brasil). Além do Abrigo de Menores de Santa Catarina, também antecederam o Centro Educacional para Menores as seguintes “casas” destinadas à institucionalização de menores do sexo masculino: o Patronato de Anitápolis, que funcionou durante a década de 1920; a Escola de Aprendizes Marinheiros de Florianópolis; as cadeias públicas dos municípios e a Penitenciária da Pedra Grande localizada na capital. Todavia, nenhuma destas instituições federais, estaduais ou municipais foi criada com os mesmos objetivos específicos do Centro Educacional para Menores.
Segundo a lei, a instituição tinha por objetivo exclusivo “educar e preparar globalmente menores na faixa etária entre 14 e 18 anos de idade, acusados da prática de atos antissociais e que apresentassem graves desvios de conduta” (SANTA CATARINA, 1972). Diferente das instituições que o precederam e que recebiam adolescentes e jovens considerados “delinquentes”, o Centro Educacional para Menores se destinava à internação de “menores” que apresentassem “grave desvio de conduta”. O conceito jurídico “desvio de conduta”, que não estava presente nas prescrições do Código de Menores de 1927, passará a constar em 1979, numa legislação para as infâncias e juventudes elaborada posteriormente, ainda sob os ditames dos governantes do regime autoritário. De acordo com esse código, ou versão, o termo “desvio de conduta” distinguia-se do conceito de “infração penal”. Isto significa que um “menor” considerado em desvio de conduta não necessariamente tinha cometido um delito. Porém, tal rotulação permitia diversas intervenções de parte das autoridades públicas, inclusive a internação do “menor”. Constata-se, então, que o referido conceito jurídico já estava sendo aplicado pelos operadores do Direito ao longo da década de 1970, antes da criação do novo código de menores. O diferencial do Centro Educacional para Menores, portanto, residia na constituição de uma instituição de caráter parapenal no estado de Santa Catarina.
Neste artigo, utiliza-se o conceito de “sistema parapenal” a partir da perspectiva foucaultiana. De acordo com o autor, instituições parapenais eram projetadas para não serem prisões em sentido stricto, mas por suas estruturas físicas e regulamentos constituírem espaços de contenção, vigilância e disciplinarização. Ao caracterizar este tipo de instituição, Foucault (2011, p. 279) afirma que “toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: “Deus o vê”.
O educador Sérgio Guerra Duarte apresentou, em seu estudo, um panorama nacional sobre as unidades estaduais de atendimento a menores, inclusive aquelas responsáveis pela internação dos acusados de conduta antissocial. Segundo o pesquisador, em relação ao atendimento dos menores no período, o estado de Santa Catarina apresentava a seguinte cenário:
[...] Foram inaugurados em 1977 as novas instalações do Centro de Reeducação, em ala anexa ao Centro de Recepção e Triagem. “Anteriormente, funcionava a obra em prédio de dimensões acanhadas, sem condições de atendimento técnico sistemático”. As vagas foram aumentadas de 11 para 22 e o corpo técnico do CRT estará à disposição dos menores. A Sra. Ingrid Zwoelfer de Troncoso, Presidente da FUCABEM, anunciou a vinda das Irmãs Oblatas para implantação da reeducação feminina, na grande Florianópolis e a liberação de verbas para funcionamento do Recolhimento Provisório, a partir de outubro de 1977 (DUARTE, 1978, p. 118).
A partir do exposto pelo autor, é possível afirmar que em seus primeiros anos de funcionamento o Centro Educacional para Menores possuía apenas 11 vagas. Duarte faz menção, em seu texto, ao Centro de Reeducação, denominação que a entidade passou a receber a partir de 1977. No ano de 1975, o governo catarinense, dando mais um passo rumo ao alinhamento com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, criou a Fundação Catarinense do Bem-Estar do Menor (FUCABEM), instituição que funcionava como uma espécie de “subsidiária” da FUNABEM em âmbito estadual. A instituição foi criada por meio da Lei Ordinária nº 5.089, de 14 de maio de 1975 (SANTA CATARINA, 1975). De acordo com o Art. 89, inciso IX, parágrafo único, da citada Lei, a FUCABEM deveria dar “execução às sentenças da Justiça de Menores” (SANTA CATARINA, 1975).
A FUCABEM iniciou suas atividades atuando em duas frentes principais: o “Programa de Prevenção à Marginalidade do Menor” e o “Programa Sócio-Terapêutico e de Apoio”. Pela primeira frente, empenhava-se em atender os considerados “menores” carentes e em risco de se tornarem abandonados; com a outra frente, visava à reparação das condutas compreendidas como antissociais. Para a execução do “Programa Sócio-Terapêutico e de Apoio” eram necessários dois tipos de unidades de internação: os centros de educação - destinados à internação de menores considerados abandonados - e os centros de reeducação - destinados à internação de menores com conduta considerada antissocial (FERNANDES, 1990). Em razão disso, como referido anteriormente, o nome do “Centro Educacional para Menores” havia sido alterado para “Centro de Reeducação”.
Possivelmente, após aproximadamente quatro anos de funcionamento, a instituição já apresentasse problemas em relação ao atendimento prestado aos internos, uma vez que, segundo Duarte (1978), mesmo possuindo poucas vagas de internação, os menores de idade não recebiam “atendimento técnico sistemático”. De acordo com a Lei de criação do Centro Educacional para Menores (BRASIL, 1972), os internos deveriam receber atendimento biopsicossocial e jurídico através de equipe interdisciplinar, o que significa, “atendimento técnico sistemático”, que compreendia atendimento médico, psicológico, do serviço social e educacional.
Outro processo observado refere-se à ampliação em 100% da capacidade de vagas da instituição. Os índices de “delinquência” da população infantojuvenil registrados na região da Grande Florianópolis, bem como o perfil das pessoas menores de idade apreendidas naquele período, não informam sobre as razões da ampliação da capacidade do então Centro de Reeducação. Pelo contrário, conforme pode ser verificado na Tabela 1 abaixo, nos dois anos que antecederam a referida ampliação do número de vagas, os índices relativos à “delinquência infantojuvenil” na região da capital de Santa Catarina estavam em curva descendente.
Ano | Sexo | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | feminino | |||||
absoluto | relativo | absoluto | relativo | absoluto | relativo | |
1971 | 87 | 75 | 29 | 25 | 116 | 100% |
1972 | 94 | 69,12 | 42 | 30,88 | 136 | 100% |
1973 | 115 | 78,67 | 31 | 21,33 | 146 | 100% |
1974 | 165 | 58,1 | 119 | 41,9 | 284 | 100% |
1975 | 121 | 75,15 | 40 | 24,85 | 161 | 100% |
1976 | 49 | 71 | 20 | 29 | 69 | 100% |
Total | 631 | 69,19 | 281 | 30,81 | 912 | 100% |
FONTE: Reprodução da tabela elaborada por CAMPOS (1978, p. 36).
Em novembro de 1978, o então promotor de Justiça, Nuno de Campos, que atuava junto à Vara de Menores da Comarca da Capital desde 1971, produziu a dissertação de mestrado intitulada “O Estado e os Menores de Conduta Anti-social”, visando à obtenção do título de mestre em Direito. Para a elaboração do estudo, Campos coletou uma grande quantidade de dados sobre o problema da considerada delinquência juvenil no município de Florianópolis, o que lhe possibilitou traçar um perfil dessa população. Desses dados, extraímos o seguinte perfil do adolescente antissocial da época:
Sexo - predominantemente masculino; Idade - 16 e 17 anos; Nível escolar - analfabeto ou não concluiu a quarta série do 1º Grau; Atualmente não trabalha e nem estuda; Os pais são casados e o menor reside com os mesmos; O ato anti-social é crime contra o patrimônio: furto simples ou uma modalidade de furto qualificado; Os mais velhos têm maior propensão para se envolver com tóxicos; O menor é proveniente dos subúrbios ou das cidades vizinhas mais próximas e comete o ato anti-social no centro da cidade (CAMPOS, 1978, p. 57).
Campos relata que as informações apresentadas foram obtidas por meio de dados coletados ao longo seis anos em 912 processos civis investigatórios, nos quais aparecem envolvidos 769 menores. Dentre as informações disponibilizadas nas tabelas e gráficos, ressaltam-se as que tratam do detalhamento do tipo de infração cometida pelos menores de idade. De acordo com o autor:
Verifica-se, no referente aos crimes contra o patrimônio, um grande percentual de furtos simples; um pouco menos da metade do total dos crimes contra o patrimônio. Isto indica que nosso menor infrator comete furtos sozinho e de maneira primária. Os furtos qualificados o são pelo concurso de autores ou pelo arrombamento, principalmente de automóveis.
Crimes contra o patrimônio com violência à pessoa quase não ocorrem. Quanto aos crimes contra a vida, verificamos, pelo levantamento efetuado, que a grande incidência, neste tipo, é de lesões corporais (brigas). O número de homicídios é muito pequeno. Nos seis anos pesquisados, ocorreram somente 9 casos (CAMPOS, 1978, p. 57, grifos nossos).
A partir dos dados quantitativos e qualitativos apresentados pelo autor, depreende-se que a ampliação no número de vagas para internação no Centro Educacional para Menores não refletia o aumento da chamada delinquência infantojuvenil na região da Grande Florianópolis. A construção do referido centro e a ampliação no número de vagas eram produto de uma política de recrudescimento e criminalização das infâncias e das juventudes pobres que se acentuou no contexto da ditadura militar. O mesmo pode ser afirmado em relação ao Educandário XXV de Novembro - que recebia a população infantojuvenil em situação de abandono -, o qual teve sua capacidade ampliada até alcançar 250 vagas. Os dados indicam, portanto, que durante a década de 1970 o “problema do menor” na capital catarinense relacionava-se à pobreza, muito mais do que às infrações (AREND; DAMINELLI, 2014).
Diretrizes para a educação escolar no Centro Educacional para Menores
Apesar de a lei de criação do Centro Educacional para Menores prever que a instituição deveria receber menores de idade encaminhados pelo Juizado de Menores da Comarca da Capital, a instituição não foi construída em terreno localizado no município de Florianópolis. O terreno destinado à construção desse centro estava localizado em uma área pouco urbanizada do município vizinho à capital, São José. Na década de 1970, o processo de modernização da capital do estado de Santa Catarina, com a consequente valorização fundiária, expurgava os pobres do centro e dos bairros habitados pelas camadas médias, de modo que a construção de uma instituição daquela natureza era incompatível com os projetos de cunho imobiliário das elites locais (LOHN, 2011).
A área destinada à instituição estava localizada em uma região com baixo adensamento populacional, portanto, de fácil aquisição pelo governo catarinense. Quando comparada com a área do antigo Abrigo de Menores do Estado de Santa Catarina, é possível observar uma grande redução do espaço, diminuído de 55.000 para menos de 30.000 metros quadrados. Essa cifra é relevante em função da correlação entre o espaço e a proposta pedagógica implantada na nova instituição. Ou seja, a proposta pedagógica do Centro Educacional para Menores não fora embasada no “modelo” colônia agrícola. As “casas de correção para menores” tiveram como referência, por longa data, a Colônia Agrícola de Mettray, inaugurada na França em 1840. Esse modelo se espalhou, na época, pela Europa, sendo posteriormente implantado em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil (FOUCAULT, 2011).8
O Centro Educacional para Menores se constituía de um espaço totalmente murado, com apenas um portão de acesso. A instituição possuía apenas um pavilhão com onze quartos individuais, um setor administrativo, um campo de futebol e uma pequena área destinada ao cultivo de verduras e hortaliças. Diferente das intuições que o precederam, no Centro Educacional para Menores não havia alojamentos coletivos, mas quartos individuais de aproximadamente quatro metros quadrados. Não podemos afirmar se inicialmente estes quartos já possuíam uma cama feita de concreto, uma janela gradeada e uma porta de aço, com uma pequena abertura na altura dos olhos. Esta era a arquitetura de cunho penitenciário descrita pelos pesquisadores e operadores do Direito que visitaram as instituições que ocuparam este mesmo espaço a partir da década de 1980.9
Quanto ao tipo de atendimento que deveria ser destinado aos internos, a lei de criação da instituição estabelecia que estes deveriam ser objeto de um estudo biopsicossocial e jurídico que apontasse, além de um diagnóstico global, qual seria o tratamento terapêutico mais indicado para a sua futura reinserção social. As questões relativas ao espaço, bem como ao funcionamento das terapêuticas, constituem os primeiros indícios sobre quais práticas pedagógicas corretivas/coercitivas estiveram nos horizontes do Centro Educacional para Menores no período em estudo. As implicações da utilização do espaço físico, enquanto estratégia de disciplinamento, foram alvo da interpretação de Foucault:
As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos (FOUCAULT, 2011, p. 142).
Prosseguindo na busca pelas diretrizes que nortearam as práticas pedagógicas desenvolvidas no Centro Educacional para Menores, recorre-se à legislação produzida pelo Estado brasileiro vigente à época. Nesse mesmo período, a legislação correlata ao funcionamento da instituição fundamentava-se principalmente no seguinte arcabouço jurídico: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 (BRASIL, 1967); a Lei n° 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), que fixava as Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e o Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927 - Código de Menores de 1927 (BRASIL, 1927), que consolidava as leis de assistência social e proteção aos menores.
Estas eram as normativas que estabeleciam os direitos, as sanções e as obrigações no que dizia respeito à escolarização, à assistência social e à proteção de adolescentes e jovens internados na instituição no decorrer da década de 1970. Todavia, esses ordenamentos legais apresentavam dissonâncias quanto ao direito e à obrigação de escolarização dos internos. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, elaborada na vigência da ditadura militar, prescrevia “o ensino dos sete aos quatorze anos é obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários oficiais” (BRASIL, 1967). Tratava-se de um direito positivado, mas não efetivado, haja vista a não universalização do acesso à escolarização naquele período. Portanto, neste momento, não há como pensar a educação escolar como um direito fundamental ou social nos moldes hoje conhecidos. Quanto à assistência social e à proteção aos menores de idade, a Constituição de 1967 se limitava a apontar que a questão deveria ser tratada por lei complementar.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, instituída em 1971 durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, não ampliava as possibilidades de acesso à escolarização, referendando os limites já estabelecidos na mencionada Carta Magna. Todavia, o Código de Menores 1927 (BRASIL, 1927), trazia outra previsão legal. Ao tratar da escolarização a ser ofertada no interior dos institutos disciplinares,10 ou seja, em instituições da mesma natureza do Centro Educacional para Menores, a referida legislação previa, em seu Art. 211: “Aos menores será ministrada educação physica, moral, profissional e litteraria”. No mesmo artigo, o inciso 4º afirmava que por educação litteraria deveria ser compreendido o ensino primário obrigatório (BRASIL, 1927, s/p).11
Caso tenha sido aplicado o previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 e ratificado na Lei de Diretrizes e Bases, considerando que a instituição se destinava à internação de pessoas dos 14 aos 18 anos, os internos teriam legalmente direito a apenas um ano de escolarização. Porém, o Código de Menores de 1927 previa que os internos receberiam escolarização obrigatória referente ao ensino primário. Portanto, sob a perspectiva legal do Código de Menores de 1927, a escolarização obrigatória dos adolescentes e jovens privados de liberdade não estaria limitada à idade de 14 anos, devendo estender-se até a conclusão do ensino primário. Assim, caso o Centro Educacional para Menores tivesse seguido essa normativa, os internos teriam tido direito a quatro anos de escolarização, independentemente de sua idade.
Ao fixar a obrigatoriedade da educação primária, o Código de Menores de 1927 (BRASIL, 1927) normatizou várias outras questões relativas à educação escolar no âmbito dos institutos disciplinares, prescrevendo um itinerário formativo que deveria contemplar educação física, moral e profissional. Nesse quadro, a Educação Física compreendia a higiene corporal, a ginástica, exercícios militares e participação em competições desportivas. Segundo a lei, o objetivo da disciplina Educação Física era propiciar o desenvolvimento e o robustecimento dos corpos dos menores de idade. A disciplina Educação Moral buscava incutir obrigações e procedimentos relativos à família, ao trabalho e à pátria.
Ainda no sentido de normatizar as práticas pedagógicas que deveriam ser adotadas no interior dos institutos disciplinares, o Código de Menores de 1927, no Art. 210, previa que cada turma deveria ficar sob a regência de um professor, devendo este docente intervir na educação individual dos internos, incutindo-lhes os princípios morais necessários à própria “regeneração”. Para isso, o professor deveria observar cuidadosamente os “vícios, as tendências e as virtudes” do interno e registrar as anotações em um livro especial (BRASIL, 1927, s/p).
Segundo o Art. 113 do mesmo código, as instituições poderiam estabelecer, em seus regulamentos, as premiações e as punições aos internos, excetuando disso qualquer possibilidade de castigos físicos. Todavia, em que pese a importância do direito à escolarização para os privados de liberdade, cabe observar que os objetivos do Código de Menores de 1927 (BRASIL, 1927) não se limitavam a promover o desenvolvimento cognitivo e a aquisição de conhecimento sistematizado, visando à emancipação dos menores de idade institucionalizados.
O Centro de Educação para Menores foi criado em um período em que ocorreram alterações significativas nas diretrizes educacionais. Concordamos com Jacomeli (2010) quando afirma que o projeto educacional do governo federal tinha, entre seus objetivos, produzir a “mansidão” social. De acordo com a autora, durante aquele período, a educação escolar foi utilizada para difundir valores nacionalistas e pautados no Liberalismo:
A retórica liberal utilizou-se e utiliza-se da escola como forma de divulgar valores desejáveis para manter a sociedade “coesa” e “pacífica”, de acordo com os preceitos postulados por sua ideologia. Isso pode ser percebido quando da análise dessa legislação e currículo para o nível de ensino fundamental no período (JACOMELI, 2010, p. 76).
No intuito de adequar o currículo escolar aos projetos políticos em curso, as autoridades se anteciparam à elaboração da Lei de Diretrizes e Bases de 1971, publicando o Decreto-Lei n. 869, em 12 de setembro de 1969 (BRASIL, 1969). Em seu Art. 1º, determinava-se à instituição, “em caráter obrigatório, como disciplina e também como prática educativa”, a “Educação Moral e Cívica, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País” (BRASIL, 1969, s/p).
No contexto das instituições disciplinares destinadas à internação de menores, tal determinação não constituiu novidade, visto que o Código de Menores de 1927 já prescrevia a Educação Moral como disciplina. No entanto, o decreto-lei acrescentava outras nuances à formação moral:
Art. 2. A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade:
a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valôres espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;
d) o culto à Pátria, seus símbolos, tradições, instituições e grandes figuras de sua história; [...] (BRASIL, 1969, s/p).
Portanto, a partir daquele momento histórico, ao ensino da moral - que estivera baseado em larga medida na ótica da moralidade das elites brasileiras responsáveis pela elaboração dos currículos escolares - foi adicionado o civismo, tão caro à manutenção do estado autoritário. Possivelmente, os internos do Centro Educacional para Menores foram submetidos a intervenções pedagógicas pautadas nessa concepção de moralidade enquanto frequentaram as salas de aula do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), instituído no ano de 1967 pelo governo federal. O Mobral tinha por objetivo reduzir os altos índices de analfabetismo observados entre a população brasileira, que, na década, era de aproximadamente 40%12 entre as pessoas com mais de 15 anos.
Em relação à educação profissional ofertada aos internos do Centro Educacional para Menores, entende-se que, independentemente dos cursos profissionalizantes oferecidos, as práticas pedagógicas estavam provavelmente voltadas à formação de cunho meramente instrumental, haja vista a concepção de educação tecnicista que hegemonicamente orientou a formação profissional a partir da promulgação da LDB de 1971. Ou seja, a perspectiva formacional visava apenas ao desenvolvimento das práticas laborais do indivíduo, prevendo seu aproveitamento enquanto mão de obra.
Ao tratar da educação profissional, cabe a ressalva segundo a qual o Código de Menores de 1927 realizava prescrições a partir das relações de gênero. Segundo a referida lei, no interior das chamadas escolas de preservação,13 voltadas a meninas e jovens do sexo feminino, deveriam ser ensinados os seguintes ofícios: “costura e trabalhos de agulha, lavagem de roupa, engomagem, cozinha, manufatura de chapéus, datilografia, jardinagem, horticultura, pomicultura e criação de aves” (BRASIL, 1927, s/p), ofícios que mulheres pobres desempenhariam sobretudo como empregadas domésticas e/ou donas de casa.
Em relação à profissionalização dos internos do sexo masculino, como era o caso do Centro Educacional para Menores, os autores da legislação possivelmente entendiam que o universo de possibilidades do labor masculino não se diferenciava do das mulheres apenas quanto à natureza - para estas, predominavam as atividades ligadas ao serviço doméstico -, como também não poderia ser definido meramente por meio da identificação de uma dezena de profissões, razão por que a questão ficou em aberto. De acordo com o Art. 211, inciso 3º, do Código de Menores de 1927, a educação profissional envolveria a “aprendizagem de uma arte ou de um officio, adequado à idade, força e capacidade dos menores e às condições do estabelecimento” (BRASIL, 1927, s/p).
Ainda sobre a questão da educação profissional, cabe lembrar que a Lei de Diretrizes e Bases de 1971 (BRASIL, 1971), tornava a profissionalização obrigatória nos cursos de 2º grau. Frente a essas determinações legais, aventa-se que nos intramuros dos institutos disciplinares as oficinas de formação laboral não se limitavam ao ensino de uma profissão. No sentido de compreender o papel da educação profissional neste tipo de instituição, Foucault afirma:
A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção (FOUCAULT, 2011, p. 230).
No interior dos institutos disciplinares, a educação profissional era entendida como a principal possibilidade de “redenção” dos internos. A assistente social Angela Fernandes, analisou os impactos do Código de Menores de 1979 sobre a rotina dos internos do Centro Educacional São Mateus, instituição que “sucedeu” ao Centro Educacional para Menores, e a seu sucedâneo Centro de Reeducação. Segundo a autora, a instituição em 1990 abrigava menores de idade de ambos os sexos e ofertava os seguintes cursos profissionalizantes: jardinagem, horta, culinária, marcenaria, artes e costura. Como alguns destes cursos profissionalizantes se assemelham aos previstos no Código de Menores de 1927, possivelmente parte deles foi implementada no Centro Educacional para Menores no decorrer da década de 1970 e continuou sendo ministrada nas décadas seguintes.
Em Florianópolis, conforme apontado por Campos (1978), entre os “menores” acusados de prática de atos antissociais, predominavam os do sexo masculino, com idades entre 16 e 17 anos. Estes adolescentes e jovens, segundo o autor, eram analfabetos ou com escolarização inferior à quarta série do então 1º grau. Compreendemos que a efetivação de atividades pedagógicas de escolarização e profissionalização no interior da Centro Educacional para Menores poderia contribuir, senão para a emancipação pessoal e social dos egressos, visto não ser este o objetivo da instituição, ao menos para a manutenção da subsistência da pessoa quando do retorno ao convívio social amplo. Nesta perspectiva de análise, a quantidade de anos de escolarização e a aquisição de um ofício durante o período de internação poderiam ampliar as possibilidades de inserção no mundo do trabalho, contribuindo para afastar os egressos da dita “situação irregular”.
Por fim, a partir do trabalho de Fernandes (1990), é possível, ainda, observar que, com o advento do Código de Menores de 1979, o Centro Educacional para Menores precisou ser adequado ao novo ordenamento jurídico. Em 1982, a instituição foi reestruturada, tendo seu espaço físico dividido para dar lugar a duas novas instituições, o Centro Educacional São Lucas e o Centro Educacional São Mateus.
Após esta reestruturação, de acordo com a análise do documento normativo intitulado Provimento nº 20/1984 (SANTA CATARINA, 1984),14 emitido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, infere-se que naquele momento, a instituição - que havia sido projetada no início dos anos setenta para disciplinar adolescentes e jovens considerados antissociais e em grave desvio de conduta - já não atendia às demandas sociais que eclodiram com o encerramento do período do chamado milagre econômico.15 De acordo com o Provimento n. 20/1984:
Art. 15 - Os menores infratores notoriamente perigosos, na faixa etária de 14 a 18 anos, poderão ser internados no Centro Educacional São Lucas, localizado na Comarca de São José.
§ Único - Considera-se infrator notoriamente perigoso, aquele cuja personalidade, antecedentes e condições, bem como os motivos e circunstâncias da ação, presumam a necessidade de tratamento em regime de contenção, com o propósito de se evitar a continuidade da prática de outras infrações graves (SANTA CATARINA,1984, grifos nossos).
Consolidada em 1982, a “transformação” do Centro Educacional para Menores em Centro Educacional São Lucas e Centro Educacional São Mateus tinha ao menos um significado historicamente delineável. Uma década após ter sido criada, a casa parapenal deixava de institucionalizar a categoria social do “menor antissocial e em grave desvio de conduta” e passava a custodiar a categoria social dos “menores infratores notoriamente perigosos”. Segue, a seguir, matéria publicada no JORNAL O ESTADO, tratando da inauguração do Centro Educacional São Lucas.
Mas, apesar de o magistrado, autor do Provimento n. 20/1984 (SANTA CATARINA, 1984), apresentar uma definição do que era um infrator notoriamente perigoso, tal conceito, ou mesmo a terminologia empregada, não encontrava amparo na legislação vigente. Portanto, consideramos que o termo notoriamente perigoso era mais uma construção discursiva estigmatizante, tal como ocorrera com o termo “menor” ao longo do século XX.
Considerações finais
As práticas pedagógicas levadas a cabo nas instituições para adolescentes antissociais, tais como, o Centro Educacional para Menores, foram balizadas em uma concepção pedagógica de cunho liberal-tecnicista que possibilitaram apenas a formação escolar e profissional instrumental dos internos. Do exposto, compreende-se que, durante o seu período inicial de funcionamento, o Centro Educacional para Menores não atendeu aos objetivos políticos-institucionais - solucionar o “problema do menor” - pactuados entre o estado de Santa Catarina e o governo federal. Neste sentido, seu insucesso somou-se ao de muitas outras instituições de internação, criadas em território nacional, que se pautaram pelas diretrizes da FUNABEM. No início da década de 1980, tanto em âmbito estadual quanto nacional, o fracasso do projeto da “reinvenção” da infância e da juventude pobre brasileira já era largamente perceptível (DAMINELLI, 2019).
Frente à complexidade conjuntural, as medidas estanques adotadas pela FUNABEM e pela FUCABEM não conseguiram superar a condição de pobreza estrutural em que se encontravam as famílias dos menores de idade aos quais se voltava a assistência social. Portanto, restou aos governantes, em seus instantes finais, enviar para o “regime de contenção” o menor infrator considerado notoriamente perigoso.
Igualmente, devido ao fracasso de sua política de atendimento à infância e à juventude e com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, a FUNABEM foi extinta em 1990. Pelas mesmas razões, dois anos mais tarde, os governantes do estado de Santa Catarina extinguiram a FUCABEM. Todavia, a instituição, criada em 1972 sob o nome de Centro Educacional para Menores, após ser reestruturada, seguiu em funcionamento mediante outras nomenclaturas até entrar em colapso e ser demolida em junho de 2011.16 Estas instituições para os adolescentes considerados antissociais deixaram de existir fisicamente, sendo perceptível o intento de apagamento de suas memórias; porém, para muitos, ainda seguem presentes enquanto reminiscências de políticas públicas implementadas durante a ditadura militar.