Participação das crianças nos espaços públicos
Esta reflexão parte de uma pesquisa participativa com crianças, numa freguesia da zona norte de Portugal, cujo principal objetivo foi o de promover processos coletivos de construção de conhecimento, entre crianças e adultos, acerca dos espaços públicos em que as crianças se movem.
No sentido de trilharmos o caminho e percebermos o que tem sido discutido pelos estudos da criança sobre os direitos de participação das crianças nos espaços públicos, foi realizada uma revisão da literatura no que a esta área do conhecimento diz respeito. Desta revisão decorre a constatação que este tem sido “(...) um dos objetos mais importantes no que respeita à investigação mais recente no campo dos estudos sociais da infância” (Sarmento, 2019, p. 1). Permitiu-nos, ainda identificar quatro aspetos muito debatidos entre os autores que têm vindo a trabalhar sobre o tema, nomeadamente: a) os motivos subjacentes ao interesse pela relação entre as crianças e os espaços públicos; b) os constrangimentos que afetam a apropriação dos espaços públicos pelas crianças; c) as vantagens identificadas no usufruto desses espaços; e, finalmente, d) o que importa fazer1.
Pudemos constatar, igualmente, que a abordagem ao direito de participação das crianças nos espaços públicos, surge maioritariamente vinculada ao conceito de cidade. Este aspecto é desde logo visível na designação, muito comum, utilizada pelos autores no título dos seus textos2, mesmo que não seja claro por meio da leitura, que as pesquisas tenham sido, efetivamente, desenvolvidas em cidades3.
A partir destas propostas, desde cedo nos questionamos acerca da adequação desta designação ao contexto de investigação, que em termos geográficos se situa a seis quilometros da cidade, sede do concelho. É uma região que faz parte integrante de um Território mais abrangente denominado por Território Vale do Ave, o qual é fortemente industrializado, sendo o têxtil o principal setor produtivo.
O Território do Vale do Ave tem sido alvo de estudo, desde os anos oitenta do século XX, por parte de vários autores, dos quais destacamos Manuel Fernandes de Sá, arquiteto e urbanista) “(...) e um dos responsáveis pelo avanço do conhecimento neste campo disciplinar no nosso país” (Silva; Pereira, 2017, p. 14); de Álvaro Domingues, geógrafo, doutorado em Geografia Humana; de Cidália Silva e Marta Labastida arquitetas, professoras e investigadoras; e de Nuno Travasso, arquiteto e investigador.
Segundo Silva e Pereira (2017, p. 10) neste território “(...) as dicotomias da cidade/campo não se aplicam”, subsistindo um modelo de pluriatividade, onde a indústria, a agricultura e as atividades complementares associadas à habitação coexistem, implantadas no território, numa rede de proximidade, sendo que este modelo carrega consigo modos de vida próprios, com raízes históricas e culturais profundas, “(...) onde um campo de batatas coexiste com uma grande empresa internacional (...)” (Silva; Pereira, 2017, p. 10). Sendo um território urbano, o Vale do Ave constitui-se por dois modelos de ocupação, o modelo compacto, aliado às sedes de concelho, e o modelo difuso, aquele que caracteriza o “entre cidades” (Silva, 2008, p. 38):
(...) no sentido convencional do conceito, não desempenham um papel forte enquanto “centro de gravidade” económica e demográfica da região. A maioria da população vive “entre cidades”. (...) numa malha urbana densa, percorrida por uma rede fina de estruturas viárias e onde se localiza também a fatia maioritária da atividade industrial dominante (Quaternaire, 1995, apudSilva, 2008, p. 38).
No contexto em estudo, o território difuso continua a ser visto pelas lentes de um modelo compacto, levando a que impere um discurso de constante negatividade sobre este território, pois o “(...) difuso não tem espaços públicos, não tem estrutura, não tem identidade, não tem... e deve ter a oportunidade de vir a ter um sistema de espaços públicos, deve ser reestruturada, as estradas devem ser transformadas em ruas urbanas, deve ter (...)” (Silva, 2008, p. 39).
Embora se saiba que no modelo difuso reside o dobro da população em comparação à sede do concelho e que este é composto por uma extensa rede viária, predominando o triângulo da pluriatividade, muito pouco se conhece sobre sua estrutura física e social. Esta falta de conhecimento resulta na ausência de uma representação mental que possa servir como referência. (Silva, 2008, p. 39).
Esta será, talvez, a razão maior pela qual, para nós, cidadãos comuns, seja difícil conseguirmos caracterizar e denominar espaços com estas caraterísticas, pois apesar de não terem caraterísticas urbanas, também não possuem caraterísticas totalmente rurais.
Falando de cidades
Considerando as ambiguidades presentes, é crucial expandirmos nossa busca por elementos que proporcionem uma utilização mais adequada do conceito. Isso envolve um diálogo interdisciplinar entre a Sociologia da infância, os Estudos do urbanismo e a Sociologia urbana, o qual é fundamental por várias razões. Primeiramente, esse diálogo nos auxiliará a entender quais aspectos são destacados pelos autores dessas áreas na definição de uma cidade, buscando um conceito que abranja a diversidade de espaços que as crianças habitam, assim como os modos e oportunidades de participação delas no planejamento e na projeção de espaços públicos. É também essencial para conceber estratégias mais eficazes para combater a invisibilidade geracional que afeta, em grande medida, os mundos de vida infantil. Esse aspecto pode ser fortalecido ao enfrentarmos sua invisibilidade geográfica.
Comecemos, então, por compreender como é utilizado o conceito de cidade a partir da Sociologia da Infância. Do levantamento desenvolvido pudemos perceber que as propostas de compreensão do conceito são variadas. Se para Farias e Müller (2017, p. 262) cidade é “(...) uma criação humana composta pelo plural de praças, ruas, avenidas (...) esquinas, becos e cantos”, ela também pode ser um espaço de abrigo de pessoas e sendo constituída precisamente por uma grande variedade de pessoas, mas também de culturas, coisas, espaços e ideias (Müller; Nunes, 2014; Santos; Silva, 2015); pode tornar-se um espaço heterogéneo, de ação coletiva (Tomás; Müller, 2009; Müller; Nunes, 2014), de relações sociais e afetivas (Müller, 2012; Santos; Silva, 2015), onde existe uma valorização do simbólico nas ligações estabelecidas pelo coletivo (Müller; Nunes, 2014). É considerada igualmente como “(...) um espaço não formal de educação que proporciona diferentes aprendizagens quando os habitantes se relacionam com a sua estrutura” (Farias; Müller, 2017, p. 262). Finalmente, há outros autores que defendem que cidade não é um conceito estanque, a cidade de hoje não é a cidade de sempre, ela foi sofrendo e continua a sofrer transformações (Schonardie; Tondo, 2018). Araújo et al. (2018, p. 213) acrescentam mesmo que “(...) a cidade dos nossos dias perdeu suas referências estáveis e tranquilizadoras (...)”.
Tendo em conta estes sentidos, tão diversos, atribuídos ao conceito de cidade, questionamo-nos se os autores que os convocam estão a qualificar especificamente o território circunscrito à cidade ou o território no seu todo.
De que falamos quando utilizamos o conceito de cidade? Será uma criação humana composta pelo conjunto de ruas, praças com caraterísticas urbanas? É um local de abrigo de pessoas? Um espaço de ação coletiva? De relações sociais e afetivas? Um espaço não formal de educação? Um local que foi sofrendo mudanças com o passar do tempo?
A utilização do conceito cidade em muitos trabalhos na área da Sociologia da Infância, carece, na nossa opinião, de mobilizar enfoques mais críticos e detalhados, pois embora, defendam o direito de participação das crianças na cidade, aspeto social e politicamente muito relevante, o uso regular, acrítico e indiscriminado deste conceito poderá estar a promover a invisibilidade geográfica de todas as crianças que não habitam na cidade.
Dada esta constatação, consideramos fundamental discutir este conceito de uma forma interdisciplinar, trazendo para o debate autores do Urbanismo e da Sociologia, de modo a ir além da invisibilidade geográfica das crianças, a qual pode contribuir para acentuar a invisibilidade ontológica destes sujeitos, que tendencialmente habitam em maior número em cidades.
Neste sentido, e com base no trabalho de autores tão distintos como Choay (1999), Corboz (1994), Domingues e Travasso (2015), Meira e Alencar (2019) e Silva (2008), apresentaremos, de seguida, o entendimento do que é cidade do ponto de vista do Urbanismo. Cidade é, no entender de Domingues e Travasso (2015, p. 165), “(...) uma daquelas palavras que, ao mesmo tempo, parece ter um significado claro e, logo de seguida uma embrulhada de sentidos tão vagos quanto instáveis e até contraditórios.” Esta realidade estará relacionada com o facto de, em tempos passados, a cidade estar perfeitamente delineada pelas suas muralhas, ao passo que hoje em dia, extintas essas mesmas muralhas e, por conseguinte, a definição dos seus limites, “(...) não se sabe que sentido se possa aplicar à palavra cidade (...)” (Domingues; Travasso, 2015, p. 165). Choay (1999, p. 69), no seu artigo “O reino do urbano e a morte da cidade”, após definir cidade como “(...) objeto de uma convenção, variável segundo os países (...) e que constitui um instrumento administrativo, jurídico e fiscal”, como uma “(...) união indissociável daquilo que os romanos chamavam de urbs (território físico da cidade) e civitas (comunidade de cidadãos que a habitam) (...)”, afirma mesmo que este vocábulo se tornou inadequado para classificar o território atual. Outros autores, concordando com esta afirmação, apresentam múltiplas razões que o justificam. É o caso de Meirae Alencar (2019), que declaram que os progressos científicos, tecnológicos e da informação favoreceram uma modernização e uma tecnicização da agricultura, aproximando o campo da cidade e complicando a diferenciação entre o rural e o urbano não sendo mais assim tão “(...) claro onde termina um e começa o outro” (Silva, 2008, p. 36). Para Corboz (1994) as dicotomias campo/cidade ou rural/urbano não fazem mais sentido, uma vez que hoje em dia não existem cidades, mas antes regiões urbanizadas, onde o centro da cidade, tal como o imaginamos, com bairros antigos e parte histórica “(...) ocupará provavelmente menos de um por cento da superfície total” (Corboz, 1994, p. 34).
Para Domingues e Travasso (2015, p. 164), a cidade não mais detém o “(...) monopólio da urbanização. A civitas, a urbis ou a polis deixaram de ser um “interior” nitidamente confinado no seu limite - a urbanização há muito que é um “exterior”, um processo que ocorre nos mais variados contextos, formas e extensões.”. Para estes autores, o espaço urbanizado não tem tanto a ver com as construções, mas sim com a apropriação de uma mentalidade citadina por parte dos seus habitantes. Eles reputam ainda que o modelo de urbanização perfeitamente demarcado que continua a prevalecer, apenas existe nos manuais de geografia, ou seja, a realidade que conhecemos não vai de encontro a esse mesmo modelo, estabelecendo-se deste modo “(...) um desfasamento entre um registo no papel, que se lê, e outro no território, que se percorre” (Domingues; Travasso, 2015, p. 18), sendo que a ideia mental de cidade, enquanto ideal-tipo, é a maior barreira à compreensão da urbanização contemporânea.
É evidente que o conceito de cidade está sendo seriamente questionado pelos autores de Urbanismo, enquanto os autores da Sociologia da Infância continuam a utilizá-lo regularmente. Portanto, parece relevante que um diálogo interdisciplinar entre essas duas áreas do conhecimento possa reposicionar a discussão.
Levando em conta que as crianças habitam não apena em cidades, é importante entender como sua participação no espaço público é salvaguardada. Isso garante que, em sua posição de sujeitos ativos de direitos, elas não se sintam excluídas desses espaços.
Não esquecemos, com esta afirmação, que milhões de crianças vivem em cidades e que daí decorre a defesa de um direito à cidade, como um direito inalienável da criança. Ilustrativo de tal é o facto de o direito à cidade ter sido “(...) alçado como um direito no bojo dos direitos humanos e fundamentais, isto é, tornou-se um direito proclamado nos documentos das instâncias internacionais (...). Configurou-se, assim, como um direito juridicamente exigível” (Oliveira; Silva Neto, 2020, p. 2).
Este desenvolvimento levou ao surgimento de programas como as “Cidades Amigas das Crianças”, que “… incorpora a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) ao nível local, o que na prática significa que os direitos dos cidadãos mais jovens estão refletidos nas políticas, programas e orçamentos do concelho” (UNICEF, 2023), e que em Portugal conta com doze municípios reconhecidos, ou ainda, a Associação Internacional das “Cidades Educadoras”, que apresenta na Carta das cidades educadoras, como uma das propostas de ação “A garantia dos direitos da criança, do adolescente e do jovem na cidade passa, em primeiro lugar, por garantir integralmente a sua condição de protagonista da sua própria vida e o desenvolvimento dos seus direitos civis e políticos; também devem ser capazes de participar na vida da comunidade por meio de mecanismos representativos e participativos de qualidade, ao lado dos adultos e dos seniores, promovendo a convivência entre gerações” (AICE, 2023).
Também pretendemos incluir na nossa reflexão, muitos outros milhões de crianças que, embora não ocupem o “espaço-cidade”, têm a mesma legitimidade de ver os seus direitos respeitados, pois poderemos estar a promover, mais uma vez, exclusões, ao homogeneizar a presença das crianças no espaço público a um único conceito - o direito à cidade - e desse modo não considerar a diversidade de espaços em que a criança se move, ou pode e deve mover-se. Julgamos que é importante trazer para debate todas estas possibilidades, de modo a respeitar a diversidade que carateriza a categoria geracional da infância e os seus modos de vida, os lugares que ocupa e os desafios que daí resultam para as crianças.
Apresentamos, em seguida, uma proposta que é na nossa opinião mais respeitadora da diversidade de contextos em que a criança se move.
Infância e direito ao território
O termo Território “(...) vem do latim ‘territorium’ que é derivado de terra e que nos traçados de agrimensura apareceu com o significado de pedaço de terra apropriada.” (Costa, 1997, apudMeira; Alencar, 2019, p. 30). O conceito de território sempre existiu, porém é “(...) impossível de definir à partida, de modo absoluto (...)” (Domingues; Travasso, 2015, p. 34), visto que não é algo estabelecido, fixo ou preciso. É antes algo que se vai construindo não só socialmente, uma vez que emerge da ação da sociedade, dos atores que nele habitam, mas também politicamente, na medida em que “(...) que exige avaliação, decisão e legitimação sobre o modo de pensar territorialmente, sobre quais são os assuntos relevantes e as prioridades” (Domingues; Travasso, 2015, p. 182).
Territórios são, ainda, representações “e são essas representações que estabelecem os protocolos que nos permitem conviver pacificamente e mediar os conflitos sempre existentes” (Domingues; Travasso, 2015, p. 185), acrescentando, conforme Corrêa, que “(...) o significado de pertencimento, de que a terra pertença a alguém, não necessariamente como posse, propriedade, mas devido ao caráter de apropriação sentimental, identificação com o espaço” (Corrêa, 1996, apudMeira; Alencar, 2019, p. 30). Portanto, para os autores do urbanismo, cada território é objeto de uma construção, é um produto, é único e para conseguirmos perceber o território que habitamos, temos de perceber as condições que o definem, como um processo social em contínua transformação (Corboz, 1983; Domingues; Travasso, 2015).
Neste diálogo interdisciplinar, que procura consolidar a importância de trazer o direito de a criança estar e participar no espaço público, há outros autores, cujo contributo é valioso para interrogarmos esta importância. Marques (2020, p. 81) propõe considerar o conceito de território como “…um espaço socialmente construído, possuidor de recursos naturais e detentor de uma história construída pelos homens que nele habitam, através de convenções de valores e regras, de arranjos institucionais que lhes conferem expressão, e de formas sociais de organização da produção”. Os trabalhos de Milton Santos, ao defender que “O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência (Santos, 2002, p. 13), traz contributos inestimáveis para vincar a importância da ação social dos indivíduos em geral, e defendemos nós, das crianças em particular, para a importância do vivido e do modo como os sujeitos se envolvem em tais dinâmicas.
Considerando que o conceito de território realça, de maneira ampla, a relevância das ações sociais e políticas dos sujeitos, é essencial entendê-lo como um espaço onde todos os seus residentes, particularmente as crianças, têm direito à voz e ação, além de direito de apropriação.
A participação das crianças na construção do território favorecerá a otimização dos seus direitos (Sarmento, 2018), permitirá a estruturação de “(...) laços sociais pautados por valores partilhados” (Sarmento, 2019, p. 4), fomentando assim a condição política das crianças, dando ênfase às suas vozes (Sarmento, 2019), e ajudando a afirmá-las como cidadãs e membros ativos da sociedade (Sarmento, 2018).
O território pode, ainda, ser entendido, vivido e experienciado enquanto uma “casa comum”, tal como Domingues e Travasso (2015) propõem. Uma casa, para recuperar a ideia de um espaço que representa um grande investimento pessoal e é mais do que a soma dos materiais que a constituem, sendo um local de refúgio, de proteção, de descanso, de segurança, um “(...) espaço de construção de representação da identidade familiar (...)” (Domingues; Travassos, 2015, p. 120), é “(...) o nosso espaço, o nosso domínio (...) o domínio da família, do grupo de pessoas que aí habita em conjunto. E é a série de regras e protocolos que permitem que esse grupo conviva sem grandes conflitos (...)” (Domingues; Travassos, 2015, p. 184). Comum, uma vez que o coletivo corresponde ao grupo de pessoas que ocupam um determinado território e dele se sentem parte integrante. As suas representações comuns sobre esse território definem “(...) um projecto de futuro partilhado capaz de guiar e dar coerência à acção de todos aqueles que, diariamente, participam na sua construção” (Domingues; Travassos, 2015, p. 185). Ao negociar as representações do espaço que habita, o coletivo está igualmente a negociar a sua própria identidade, enquanto isso mesmo, um coletivo. Esta conceção de “território - casa comum” pressupõe um verdadeiro entendimento sobre as relações entre o território e o coletivo que o habita, pressupõe a aceitação e o respeito pela diferença, pressupõe uma ação comum, que inclua todos os habitantes e não apenas alguns adultos e/ou representantes do poder político, pressupõe um entendimento compartilhado do que é território e do que se aspira que ele venha a ser:
Partindo do princípio e da convicção que o território que habitamos pode ser entendido e vivido enquanto casa comum - enquanto espaço de vida e relação de um grupo social que aí se inscreve -, então esta casa deverá ser resultado da construção colectiva de um imaginário e de projectos comuns sobre o que somos enquanto sociedade e sobre as coisas e os lugares que podemos e devemos partilhar. Uma casa em construção (Domingues; Travassos, 2015, p. 26).
E a construção dessa casa comum não pode deixar de lado as crianças. A consideração pelo modo como estes atores sociais “habitam” esta casa comum, com as suas singularidades e culturas infantis, que conferem à casa modos distintos de configuração, terá se ser valorizada na promoção de um planeamento dos espaços públicos mais ajustado e adequado às crianças, uma vez que estas poderão manifestar “(...) uma posição original, frequentemente inesperada e alheia ao sentido mais comum das preocupações adultas, sem que por isso percam pertinência (Sarmento, 2018, p. 238).
O envolvimento das crianças nos processos de identificação de problemas, análise, elaboração de propostas e planeamento dos espaços públicos do seu território permitirá que tenham espaços construídos com elas, e não somente espaços construídos para elas (Arruda; Müller, 2010). Possibilitará o reconhecimento e a legitimação da existência dos “espaços das crianças”, ou seja, os espaços que dependem das vivências, da identificação, da ligação ou mesmo da discussão que estas fazem e sentem em relação a eles (Sarmento, 2018; Trevisan, 2014). E estes vão muito para além das escolas ou dos parques infantis, onde é expectável que as crianças estejam e que são facilmente reconhecidos por todos como espaços destinados aos mais novos, os “espaços para as crianças” (Sarmento, 2018; Trevisan, 2014). Eles podem ser praças, ruas, jardins, espaços naturais, livres, onde elas possam conviver, brincar, correr e sentirem-se livres (Arruda; Müller, 2010; Sarmento, 2018).
Ajudará ainda a combater as decisões marcadamente adultistas (Liebel, 2014) que continuam a prevalecer atualmente, o que leva a que tenham de ser sempre as crianças a fazer esforços de adaptação aos espaços concebidos (Arruda; Müller, 2010), criando barreiras que impedem uma verdadeira relação das crianças com o meio que as rodeia. Reputamos, por isso, indispensável que o “território casa comum” seja construído com as crianças, que a sua participação seja verdadeiramente reconhecida através de “Políticas orientadas para o bem-estar das crianças e para a cidadania infantil (...)” (Sarmento, 2018, p. 236), através de políticas públicas participativas que compreendam as crianças como “espacialistas”, ou seja, que aceitem o modo como elas se “(...) apropriam e transformam os lugares, em que o jogo, o risco e a aventura têm um papel predominante, fazendo deles “especialistas” dos espaços que ocupam.” (Barbosa et al., 2020).
Territórios para as crianças ou territórios das crianças?
Para as crianças poderem usufruir do direito ao território, para poderem experienciá-lo como uma casa comum, cabe-nos a nós, adultos, a tarefa de promover a sua participação real e efetiva na projeção e construção dos espaços públicos que constituem o seu território.
Entendemos os espaços públicos como locais cujo objetivo principal é o de fomentar a vida social das populações onde se situam (Ramos, 2020). As suas principais características são o “(...) seu caráter público, ou seja, aberto a todos (...)” (Andrade; Baptista, 2015, p. 130) e o facto de todos os cidadãos que os ocupam desfrutarem dos mesmos direitos “(...) no que se refere ao uso e à apropriação do espaço” (Andrade; Baptista, 2015, p. 133).
Portanto, é um fato que as crianças têm exatamente os mesmos direitos que os adultos na ocupação e usufruto destes espaços. Porém, a existência de espaços públicos num território não promove, por si só, a presença das crianças nesses mesmos espaços. Para que tal aconteça, para que o convívio e o relacionamento que as crianças têm com o território vá para além das “ilhas do arquipélago urbano”, nomeadamente, casa, escolas, parques infantis, ou mesmo shoppings (Sarmento, 2019, p. 3), é fundamental assegurar e considerar verdadeiramente e em simultâneo as questões de segurança, mobilidade, autonomia e de participação das crianças.
Neste sentido, não basta haver um grande investimento em termos de espaços públicos, como se tem verificado por meio da crescente “(...) construção de parques urbanos próximos de cursos de água, trilhos pedonais ou mesmo ciclovias (...)” (Oliveira, 2020, p. 3). A projeção destes espaços deveria acautelar sempre o seu fácil acesso por parte de toda a população, evitando que eles permaneçam “(...) fragmentos, pontos, afastados das nossas casas” (Oliveira, 2020, p. 3). Poderia estar centrada numa ideia que ligasse, que harmonizasse os vários lugares que compõem o território, tornando-o uma extensão das casas dos seus habitantes, ou seja, “uma extensão menos centrada no homem a bordo da sua máquina (...). Uma extensão que possibilite a evasão, a errância, a informalidade, a descoberta, que nos devolva a liberdade de sair de casa, a pé, simplesmente para deambular” (Oliveira, 2020, p. 3). Que promova a autonomia e a livre circulação de todos os cidadãos, incluindo das crianças.
Não queremos com isto afirmar que as crianças devem ter uma total autonomia no usufruto dos espaços públicos, pois, como indicam Müller e Nunes (2014, p. 671) “(...) seria ingênuo abstrairmos as dificuldades e riscos que isso acarretaria.” Contudo, julgamos importante que não estejam completamente dependentes dos tempos, das vidas e das disponibilidades dos adultos para acederem ou brincarem nos lugares públicos. Para que tal seja viável, não podemos nunca negligenciar a segurança, mas sem, contudo, correr o risco de exacerbar a preocupação e a obsessão em garantir a segurança, a proteção das crianças, bem como o conforto de quem as acompanha, aspetos que têm levado a que os adultos procurem espaços privados, afastando as crianças dos espaços públicos (Farias; Müller, 2017; Müller; Nunes, 2014; Schonardie; Tondo, 2018). E, pese embora, o reconhecimento da importância dos espaços públicos, “(...) pouco tem sido feito para incentivar novamente o uso desses espaços pelas crianças” (Pinto; Bichara, 2017, p. 29).
No nosso entender, e concordando com Gonçalves (2015), um planeamento conjunto, uma discussão que envolva todos os habitantes, incluindo as crianças, de um determinado território, resultará numa produção de políticas mais realistas e baseadas nas necessidades efetivas dos cidadãos; uma melhor compreensão das escolhas realizadas e um incremento da confiança, por parte do público; uma aproximação entre aqueles que governam e os que são governados; e ainda um aumento da qualidade e da consistência das decisões tomadas.
A salvaguarda pelas preocupações, necessidades e desejos comuns de uma comunidade poderá promover, não só, o uso e o aproveitamento efetivo dos espaços criados, como também, uma verdadeira relação e apropriação destes pelos seus habitantes. Deixariam de existir assim “espaços de ninguém” e passaria a haver “espaços de todos” (Schonardie; Tondo, 2018, p. 53).
Estará, então, na altura de assumirmos todas estas questões e de promovermos políticas que pensem e considerem efetivamente todos os benefícios que podem resultar da convivência das crianças com o seu território. Entre eles, a criação de oportunidades de convívio com pessoas com quem normalmente não se relacionam, ou ainda, o facto de sendo estes espaços oferecerem aprendizagens variadas aos seus cidadãos, favorecendo a interação, a comunicação e o encontro, a experimentação, a exploração e a aprendizagem sobre e com o meio (Farias; Müller, 2017).
Indispensável, também, reconsiderarmos sentimentos paternalistas e de proteção em relação às crianças, que acabam por forçar o retrato destas como meras beneficiárias das ações dos adultos, enfraquecendo a visão como seres autónomos, agentes responsáveis pelo seu próprio bem-estar e da sua comunidade (Gaitán, 2018) e garantir condições para que a partir dos territórios em que vivem, possam assumir-se como atores sociais, promovendo estratégias participativas e inclusivas, na diversidade que compõe o mundo das crianças.
Assim, é fulcral deixar de lado o ceticismo em relação às capacidades e competências que as crianças têm para intervir, uma vez que, na verdade, elas têm-nos mostrado que estão “(...) preparadas para liderar, para lutar, para reclamar o futuro dos adultos e imaginá-lo de outra forma” (Spyrou, 2020, p. 3). As suas intervenções nos debates sobre o clima, sobre a questão do controlo de armas ou do combate à guerra, por exemplo, são a prova de que elas são atores sociais e que podem ser atores de mudança (Mcmellon; Tisdall, 2020; Spyrou, 2020) e o aparecimento destes novos “atores emergentes” demanda adaptações nas instituições políticas, mudanças na mentalidade dos adultos e no sentimento de poder que eles utilizam para restringir a ação das crianças, pois participar inclui ter voz, ter influência nas tomadas de decisões econômicas e políticas “(...) que afetam o presente e o futuro da humanidade, que é mais das crianças do que das gerações adultas que estão decidindo agora por eles” (Gaitán, 2018, p. 35).
Conclusão
Neste diálogo entre a Sociologia da Infância e outras áreas científicas, entre as quais o urbanismo, pudemos constatar que há desfasamentos entre os discursos de uns e outros sobre o território.
Nos discursos sobre o território, sobretudo a partir dos contributos dos urbanistas, discutem-se conceitos capazes de o caraterizar, mas não se discute o papel que as crianças devem ter. Por sua vez, no campo da sociologia da infância, e mais latamente dos estudos da criança, defende-se, sim, que as crianças possuem direitos de participação nos espaços que habitam, contudo, essas referências reduzem-se essencialmente à participação na cidade, ficando por questionar este conceito e a invisibilidade geográfica que ele pode trazer, ao não contemplar outros contextos que elas possam habitar. Há, por isso, no nosso entender, uma verdadeira necessidade de se encetar um diálogo transdisciplinar entre estas duas áreas. Por um lado, para que os urbanistas no momento de pensar, delinear e projetar os seus trabalhos consigam reconhecer a importância da participação dos cidadãos, e incluam as crianças nos processos de planeamento. Por outro lado, para que os mais variados autores que se debruçam sobre a participação das crianças nos espaços públicos encontrem conceitos capazes de dar conta dos territórios reais em que as crianças habitam, uma vez que, não só as crianças têm direito a mais do que à cidade, como também se reconhece atualmente uma necessidade de percebermos as vivências das crianças a partir das “(...) produções socioespaciais, pois estar aqui ou em outra localidade do planeta faz toda a diferença, quando se pensa na produção da própria diferença e da diversidade de infância.” (Lopes; Fernandes, 2018, p. 205).
Pelo exposto, parece-nos que os autores do campo dos estudos da criança que se debruçam sobre a participação infantil, ou ainda organizações não governamentais, bem como detentores do poder político deveriam refletir e reconsiderar a utilização do termo “cidade”, quando discutem a participação das crianças e considerarem a utilização do conceito “território”, passando assim a haver um discurso sobre “participação das crianças no território”, passando a haver municípios que se arroguem como sendo “Territórios Amigos das Crianças” ou “Territórios Educadores”.
A nosso ver, esta substituição poderá salvaguardar a participação de todas as crianças, independentemente do contexto em que habitam, ajudando a ultrapassar a invisibilidade geográfica das crianças que não residem nas cidades.