Porque falar sobre relações étnico-raciais
Atualmente nos deparamos com acontecimentos que têm provocado debates sobre o racismo. Os meios de comunicação demonstram situações em estádios de futebol, nas redes sociais etc. nas quais pessoas foram humilhadas e até agredidas por pertencerem à determinada etnia. Infelizmente, estes episódios são apenas uma pequena parcela de todas as situações constrangedoras e, importante ressaltar, ilegais que diversos brasileiros sofrem diariamente por conta do preconceito, o que demonstra a necessidade de mais discussões sobre as relações étnico-raciais em diferentes espaços e, inclusive nas pesquisas educacionais.
Vivemos em um contexto importante para o combate ao racismo, uma vez que as discussões sobre as relações étnico-raciais têm acontecido de maneira mais aberta. Essa abertura é oriunda, em parte, de mobilizações do Movimento Negro e de ações que ocorreram internacionalmente, como, por exemplo, a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa que ocorreu em Durban, na África do Sul. Esse evento, aliado às contribuições do Movimento Negro, culminaram na elaboração de textos legais destinados à área da educação, como o Parecer CNE nº 1 (BRASIL, 2004), que alterou a Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, por meio da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), que caracteriza a obrigatoriedade do ensino da história africana e afrodescendente no currículo da Educação Básica (VERRÂNGIA, 2009).
Vale ressaltar, porém, que essas mudanças foram demasiadamente postergadas, pois desde o início do século XX os afrodescendentes reivindicam que o Estado adote medidas de reparação à violência sofrida no período da escravidão, bem como às desigualdades sociais que até hoje marcam o povo negro. Essas marcas estiveram presentes, por exemplo, na história do sistema educacional brasileiro, que além de não se destinar a todos, se pautava em uma educação eurocêntrica baseada em políticas eugênicas e higienistas que não contemplavam a população indígena e negra (VERRÂNGIA, 2009).
Nesse sentido, propostas e discussões para o ensino das relações étnico-raciais devem existir, sobretudo, nas escolas, geralmente o primeiro lugar onde crianças negras aprendem que o racismo existe (SOUZA, 2001). Por esse motivo a promulgação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) é um passo importante para a mudança desse cenário, pois, mesmo de maneira tímida, tem iniciado a abertura de discussões sobre as relações étnico-raciais no espaço escolar, o que se configura um esforço rumo à diminuição ou até à erradicação do preconceito racial.
A Lei supracitada determina que essas discussões devem ocorrer em todas as disciplinas, mas ainda existe a crença de que as relações étnico-raciais são responsabilidade dos professores de História, Geografia e Letras, ou ainda que esta discussão deva ser conduzida somente por professores negros e/ou militantes. Contudo, a lei não faz distinção de disciplinas e, no caso específico de Ciências e Biologia, não é possível ignorar o fato de que no passado os conteúdos dessas áreas de conhecimento foram largamente utilizados para justificar e até consolidar o racismo.
Assim, no entendimento de que a produção acadêmica e científica revela o quanto os especialistas e pesquisadores têm se debruçado para discutir essas importantes questões, esta pesquisa possui o objetivo de traçar um panorama das pesquisas sobre educação em Ciências e sua interface com as relações étnico-raciais.
A problematização da abordagem dessas relações nas pesquisas que vêm sendo desenvolvidas é importante porque o racismo é “uma rejeição da diferença; pela recusa, incapacidade ou impossibilidade de aceitar o que é diferente, o que não é idêntico” (SILVA, 2009, p. 11), e isso, urgentemente, precisa ser superado.
A forma como essa temática é tratada nas pesquisas é também um caminho para divulgar algumas das maneiras pelas quais as questões étnico-raciais vêm sendo trabalhadas no espaço escolar. Olhar para tais discussões na escola se justifica por dois motivos: primeiro porque esta deve se posicionar para a implementação de uma educação pautada no respeito às diferenças étnico-raciais e no atendimento da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003); segundo, porque um dos maiores motivos pelos quais os professores não trabalham as relações étnico-raciais em suas aulas é, segundo eles, o desconhecimento sobre como fazê-lo (COELHO; SOARES, 2015).
Um dos caminhos que possibilitam a reflexão crítica sobre as questões supracitadas é a incorporação do ensino da cultura de todos os povos que constituem o Brasil, uma vez que a proposta não é substituir a educação eurocêntrica por outra, africana, mas possibilitar que todos esses conhecimentos sejam abordados no ambiente escolar de maneira que sensibilize a população sobre o quão necessário é respeitar as diferenças étnico-raciais e o reconhecimento da história do povo negro para além da escravidão.
Retomando a responsabilidade do ensino de Ciências em combater o preconceito e a discriminação, entendemos que se ele for acrítico proporcionará a manutenção do racismo, uma vez que ele “incorpora uma forma de propaganda racista sutil, difícil de ser detectada, principalmente tendo em vista que essa forma de conhecimento é comumente percebida como politicamente neutra” (VERRÂNGIA, 2009, p. 12). Essa pseudoneutralidade ajuda a mascarar o racismo científico que ainda existente e que precisa ser superado para a promoção de um ensino de Ciências convergente com a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), e de uma ciência que não tenha mais seus conceitos e conhecimentos utilizados para a discriminação, de qualquer natureza.
As relações étnico-raciais e o ensino de ciências
Depois de sofrer diversas transformações ao longo do tempo, no que diz respeito a suas metodologias e função social, o ensino de Ciências no Brasil atualmente se preocupa em formar alunos críticos, que entendam e problematizem o papel da ciência e da tecnologia em suas vidas. Isso perpassa necessariamente uma educação voltada para atender à diversidade encontrada nas salas de aula (AZEVEDO; ABIB, 2013), na qual seja possível discutir que “as contradições culturais, econômicas e sociais atingem os sujeitos sociais em suas vidas, em seus objetivos, em seus cotidianos” (DÁVILA, 2005, p. 86). Só abordando sistematicamente essas questões será possível dizer que o ensino de Ciências cumpre uma de suas funções, a de formar para cidadania.
Um dos caminhos possíveis para que o ensino de Ciências se comprometa com a promoção de uma educação cidadã é a inserção das discussões das relações étnico-raciais. Dávila (2005) sinaliza que o debate sobre as relações étnico-raciais nos ambientes escolares e nos cursos de formação de professores é fundamental porque a cultura da população menos favorecida, econômica ou racialmente, tem sido completamente esquecida ou simplesmente apresentada de maneira equivocada. Com isso, o autor acrescenta ainda que “os desafios postos, nesse século, são múltiplos e os profissionais da educação que trabalham nos cursos de formação de professores não podem mais fechar os olhos para esses desafios que nos apresentam” (DÁVILA, 2005, p. 91).
Portanto, para que a discussão das relações étnico-raciais na escola aconteça, um ator importante no processo deve ser levado em conta: o professor, sendo fundamental investigar em que medida sua formação tem permitido que ele conduza essas discussões de maneira positiva e comprometida com a formação para cidadania, o que perpassa o combate a todo o tipo de preconceito. Para tanto, é necessário que os docentes superem a visão simplista do ensino de Ciências, ou seja, pautada somente na transmissão de conhecimentos científicos aparentemente neutros, acríticos e a-históricos, que nem interferem e nem sofrem interferência de fatores sociais, econômicos e políticos.
Um exemplo das interferências da sociedade na construção do conhecimento científico está na forma como este passa a discutir as relações étnico-raciais em pesquisas pioneiras, como a realizada pelo Grupo de Trabalhos para Assuntos Afro-Brasileiros (GTAAB), que buscou investigar como o ensino de Ciências poderia abordar essa temática, especificamente com relação aos conhecimentos de Biologia para o combate ao racismo, embasados na discussão do conceito biológico de raça, amplamente utilizado para justificar a hierarquia entre as “raças humanas”, conduzindo à própria justificativa da escravidão. Para o Grupo, seria necessário que o sistema escolar brasileiro e, principalmente, o ensino de Ciências se pautassem em uma abordagem antirracista. Porém,
Frente a essa necessidade de produzir um ensino de Ciências que, efetivamente, se comprometa com o combate ao racismo, encontra-se uma ausência quase total de orientações específicas, tanto formuladas por parte do governo quanto da literatura em educação e ensino de Ciências no Brasil. Essa ausência não impede a busca por compreender como a legislação vigente e a literatura na área contribuem, ou não, para o desenvolvimento de tal ensino. Essa compreensão passa, necessariamente, pela discussão das relações entre ensino de Ciências e cidadania. (VERRÂNGIA, 2009, p. 14).
A Lei nº 10.639/03 preconiza que todas as disciplinas devem se comprometer com a abordagem das relações étnico-raciais, regulamentando a implantação de dois artigos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB): o artigo 26A, que traz a obrigatoriedade dos conhecimentos da cultura africana e afrodescendente e da história da África na educação básica, e o 79B, que insere no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra (BRASIL, 2003).
Com esse dispositivo legal é possível chamar a atenção da sociedade para o fato de que não basta garantir apenas o acesso dos negros às escolas, é necessário também valorizar e reconhecer a cultura e história africana e afrodescendente, com o intuito de reparar danos, criar uma identificação positiva de alunos negros com seus antepassados e compreender que “estudos referentes à cultura afro-brasileira, não dizem respeito apenas à população negra, mas sim a todos (as) os (as) brasileiros (as)” (JESUS, 2013, p. 162).
Coelho e Soares (2015) apresentam alguns entraves para que se estabeleça o ensino das relações étnico-raciais no ensino básico, como, por exemplo, a falta de formação dos professores nessa perspectiva e a ausência de materiais didáticos apropriados, a exemplo de livros didáticos que nem sempre auxiliam para que esse objetivo possa ser alcançado, seja porque silenciam sobre a cultura africana, seja porque ainda não conseguem apresentar uma visão dos negros no Brasil, a não ser pelo viés da escravidão. Como dito anteriormente, uma das dificuldades para a implantação efetiva da Lei nº 10.639/03 está centrada na formação de professores, que não deve ser restrita apenas à aquisição de conhecimentos técnicos e pedagógicos, incluindo também a inserção de temáticas sociais como a questão racial, foco de nossa pesquisa, para que então essa discussão chegue à escola de maneira mais efetiva, uma vez que o ambiente escolar é “lócus de encontro da diversidade social e cultural de nossa sociedade” (JESUS, 2013, p. 47).
A Resolução CNE n° 2, de 2015 (BRASIL, 2015), que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial e continuada de professores, busca uma mudança de pensamento no que diz respeito às discussões sobre as relações étnico-raciais nesses espaços de formação. Com isso o objetivo central é estabelecer diretrizes curriculares que tratem de orientações e princípios e não somente procedimentos pedagógicos para aplicabilidade da Lei, e que se foquem na necessidade de mudança da postura e forma de pensar dos formadores de professores e futuros docentes. A validade da existência de leis e diretrizes que conduzam à presença da discussão sobre as diferenças étnicas em sala de aula é sem dúvida inquestionável, porém devemos considerar primeiramente, que:
Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que consequentemente exige várias frentes de batalha, não temos dúvidas de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser plenamente cumprida enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas e culturais das populações que formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira. (MUNANGA, 2005, p. 17).
Notamos que os professores apresentam dificuldades em discutir as relações étnico -raciais por diversos motivos: alguns não se sentem responsáveis por conduzir o debate por não serem negros ou, ainda, por não conseguirem visualizar em suas áreas de conhecimento e disciplinas possibilidades de conexão entre as relações étnico-raciais. Isso acontece com certa frequência quando se trata, por exemplo, do ensino de Ciências, como foi evidenciado por Jesus, Santos e Prudêncio (2016), que realizaram uma pesquisa com professores de Ciências de escolas estaduais do interior da Bahia. Foi perguntado aos professores se acreditavam que conseguiriam implantar em suas aulas as discussões sobre relações étnico-raciais e, de maneira mais específica, se poderiam sinalizar algum conhecimento de matriz africana e afrodescendente que tivesse relação com o ensino de Ciências. A maioria dos professores revelou que essa proposta era difícil de ser executada por conta da falta de formação adequada para conduzir essas discussões e por não conseguirem imaginar de que forma os conhecimentos científicos poderiam se relacionar a essa temática. Porém, é importante lembrar que as Ciências, que já tiveram um importante papel na manutenção do racismo, hoje têm igual papel em sua desconstrução, isso porque “Os saberes da biologia molecular dizem, um a um, sem exceção, exatamente o contrário de tudo aquilo que os racistas vêm, através dos tempos, usando como se fosse a favor de sua doutrina. O racismo repousa, pois, sobre uma mentira incomensurável.” (OLIVEIRA, 2003, p. 56).
Outro fator relevante a ser mencionado diz respeito à organização dos currículos tanto da educação básica quanto dos cursos de formação de professores, que poderão permitir ou não que os assuntos referentes à diversidade étnico-racial sejam abordados.
Verrângia (2009) apresenta, a partir dos resultados de sua pesquisa, relações entre Ciências Naturais, conhecimento científico, ensino de Ciências e relações étnico-raciais, mostrando ser possível a discussão dessa temática nas aulas de Ciências. Em outro trabalho, Verrângia e Silva (2010) apresentam alguns elementos estratégicos para que essas relações sejam estabelecidas no ensino de Ciências, elaborando cinco grupos temáticos e questões que orientam nessa perspectiva:
a) Impacto das Ciências Naturais na vida social e racismo; b) superação de estereótipos, valorização da diversidade e Ciências Naturais; c) África e seus descendentes e o desenvolvimento científico mundial; d) Ciências, mídia e relações étnico-raciais, e) conhecimentos tradicionais de matriz africana e afro-brasileira e Ciências. (VERRÂNGIA; SILVA, 2010, p. 707).
Ainda que a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) seja uma ação afirmativa para a população negra, a qual permite legitimar e valorizar a história desse grupo étnico, somente sua existência não fará com que mudanças ocorram. Por isso é preciso buscar estratégias bem fundamentadas para a inserção dos conhecimentos de matriz africana e afrodescendente em todo o currículo escolar e não somente em algumas disciplinas, de forma, muitas vezes, pontual.
Considerando que alguns autores, como Verrângia (2009), Bastos e Benite (2017) e Rosa (2016), já sinalizaram que o ensino de Ciências precisa adentrar nesse campo de discussões de maneira mais significativa, buscando estratégias para a inserção da temática especificamente nessa área de conhecimento, e entendendo que esse feito perpassa necessariamente o desenvolvimento de pesquisas em Educação em Ciências, nesse sentido, buscamos fazer um panorama de como essas pesquisas vêm sendo desenvolvidas em um dos maiores eventos da área de Educação em Ciências.
Da seleção dos artigos à análise dos dados
Na busca por realizar uma revisão bibliográfica sobre as pesquisas que têm como foco as relações étnico-raciais e o ensino de Ciências, Química, Física e Biologia, procuramos identificar os artigos publicados no Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC). Essa escolha justifica-se por este ser um dos maiores eventos de pesquisa na área de educação em Ciências e, portanto, abranger trabalhos das mais diversas regiões do Brasil e representar, em parte, o que de mais relevante vem sendo produzido na área.
O ENPEC é um evento bianual e nossa faixa de tempo compreende os anos de 2003 á 2015 por conta da data da promulgação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003). Dessa maneira, conseguimos traçar um panorama sobre a representatividade das pesquisas relativas às relações étnico-raciais na área de educação em Ciências, ao mesmo tempo em que analisamos em que medida essa temática é discutida nesses trabalhos, buscando compreender qual enfoque tem sido dado a essa problemática.
Os trabalhos foram levantados nas atas de cada ENPEC disponíveis no site da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC (2017). Procuramos por artigos apresentados tanto na modalidade oral quanto na forma de painéis, e os descritores utilizados para selecionar os trabalhos foram: Lei 10.639, raça, racismo, relações étnico-raciais, etnia, diversidade e multiculturalismo. Escolhemos estes termos porque em pesquisas que abordam as questões étnico-raciais pelo menos um deles está presente no título, resumo ou palavras-chave.
Os termos que utilizamos para fazer as buscas nos permitiram também entrar em contato com trabalhos que não discutem as relações étnico-raciais como, por exemplo, ao utilizar o termo “raça”, encontramos um trabalho intitulado Raça ou espécie? Relações interpessoais em sala de aula (PEDRANCINI; CORAZZA, 2011), publicado no VIII ENPEC. Contudo, não o analisamos, uma vez que a pesquisa não é feita com seres humanos e, portanto, longe do escopo de nossa pesquisa.
Primeiramente, empregamos os termos descritos anteriormente nos títulos, palavras-chave e resumos, e assim agrupamos os trabalhos segundo sua área, o que nos conduziu à formação das categorias: a) concepções; b) ensino; c) formação de professores; d) material didático. O estabelecimento dessas categorias nos ajudou a compreender como estão distribuídos os trabalhos dentro do campo de pesquisa da educação em Ciências.
Posteriormente, fizemos a leitura na íntegra dos trabalhos previamente selecionados e categorizados, de modo a podermos discutir mais detalhadamente aspectos referentes às relações étnico-raciais e sua abordagem dentro de cada uma das categorias.
O que as pesquisas apontam
Nos eventos do ENPEC analisados ao longo desses 12 anos, observamos que as produções sobre as questões étnico-raciais oscilam bastante, uma vez que em alguns anos esse tema é contemplado, mas em outros simplesmente desaparece.
O levantamento foi realizado de 2003 a 2015, resultando num total de 6.148 trabalhos apresentados. Deste montante, 16 trabalhos (aproximadamente 0,3%) tiveram como propósito discutir as relações étnico-raciais (RER) no ensino de Ciências. Diante da grande dimensão que o evento possui, tais números, a nosso ver, corroboram o que é apresentado em outras pesquisas (BASTOS; BENITE, 2017; GOMES; ROSA, 2015; VERRÂNGIA, 2009) que indicam uma lacuna em relação ao desenvolvimento de trabalhos em educação em Ciências que contemplem as relações étnico-raciais.
Ao observar a Tabela 1 podemos notar um aumento de trabalhos apresentados no IX ENPEC envolvendo a temática. Esse aumento significativo provavelmente se deve aos dez anos da promulgação da Lei nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003), pois todos os nove trabalhos apresentados neste ano fazem referência à Lei, sendo o trabalho de Moreira, Amauro e Rodrigues Filho (2013), por exemplo, dedicado a fazer um levantamento dos dez anos de sua promulgação.
Concepções
Nessa categoria estão reunidos os trabalhos que abordaram concepções discentes e docentes sobre as relações étnico-raciais.
EVENTO | ANO | ORIGEM DAS CONCEPÇÕES | TÍTULO | AUTOR(ES) |
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V ENPEC | 2005 | Discentes | Diferenças raciais: o que diz a biologia, o que pensam os alunos | Vieira e Chaves |
IX ENPEC | 2013 | Coordenação pedagógica | O discurso da coordenação pedagógica da rede de ensino do município de Vicência sobre a noção de “raça” | Melo |
IX ENPEC | 2013 | Docentes | Preconceito étnico-racial: a escola, a Ciência e a formação de professores | Carlan e Dias |
Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.
Os três trabalhos mostram a importância do embasamento teórico sobre conceitos como raça e preconceito como ponto de partida para se desconstruir concepções equivocadas e construir novas, tanto por parte de alunos quanto de professores.
Um trabalho que evidencia diferentes concepções raciais é o de Vieira e Chaves (2005), realizado em uma aula de Biologia de uma escola particular, verificando as concepções de 27 alunos sobre as diferenças raciais. Aos alunos foram colocadas as seguintes questões: O que é raça?; qual é a sua raça?; o que você acha das ações afirmativas?
Esses questionamentos deram início a um curto debate e a partir daí foi solicitado aos alunos uma dissertação sobre o tema raça. Com esses dados em mãos os autores afirmam que os alunos trazem argumentos próximos aos que estão estabelecidos pelos conhecimentos científicos atuais, ou seja, que não existem diferenças biológicas que justifiquem a existência de diferentes raças humanas, não havendo, portanto, raças superiores e inferiores.
A respeito disso, Oliveira (2003) aborda que a contribuição do Projeto Genoma Humana (PGH) e do Projeto de Diversidade do Genoma Humano (PDGH) foram relevantes para a finalização da concepção de que existiam raças superiores e melhores. Porém, vale ressaltar que esse argumento por si só não quer dizer que as cotas e outras ações afirmativas são desnecessárias.
Outro elemento que o autor traz de relevante em sua pesquisa é a dificuldade de a maioria dos alunos se autodenominarem negros, não negros, pardos e indígenas. Os alunos justificam essa dificuldade porque acreditam que existem vários tipos de brancos, negros e pardos. Podemos inferir que um dos fatores que dificultam a autodenominação dos alunos como negros pode estar relacionado às imagens negativas sobre os negros que a mídia constrói, e a escola silencia ou mostra sempre associado à escravidão.
Em outro trabalho, Melo (2013) apresenta uma discussão sobre a noção de “raça” na rede de ensino do município de Vicência (PE), trabalhando a importância do entendimento dos professores que atuam na coordenação pedagógica de que o termo raça não mais se aplica à explicação da diversidade humana. Esse trabalho foca na coordenação pedagógica, uma vez que ela agrega profissionais que também são responsáveis pela formação de professores, e suas práticas e discursos os influenciam. Destacamos que saber o conceito de raça não é suficiente para o término do racismo, pois essa ideia de que existem raças na espécie humana ainda está presente no imaginário das pessoas.
Em nossa análise, o trabalho de Carlan e Dias (2013) corrobora o de Melo (2013) ao enfatizar que alguns docentes de Ciências e de Biologia apresentam dificuldades para trabalhar com as relações étnico-raciais em suas aulas e que para superar tal obstáculo é importante conhecer as concepções de seus alunos sobre o que é raça, etnia e relações étnico-raciais, visto que a partir desse conhecimento os professores podem trilhar um caminho que conduza a uma educação cidadã pautada no respeito às diferenças e valorização das diferentes etnias. A pesquisa foi feita com 19 alunos do Ensino Médio do turno noturno de uma escola pública de Pelotas (RS), que responderam a um questionário com 17 perguntas, as quais buscavam entender o pertencimento étnico-racial de cada aluno, a escolaridade deles e de seus familiares e, por fim, como eles enxergavam os negros na sociedade.
Como resultado a pesquisa mostrou que dos 19 alunos, 11 se declararam brancos e 8, negros. Os autores destacam que no momento da aplicação do questionário muitos alunos sentiram dificuldades de se definirem como negros. Carlan e Dias (2013) atribuem essa dificuldade à desqualificação do perfil do negro oriundo do processo histórico de discriminação. Um fato intrigante do resultado da pesquisa foi a ausência do conhecimento sobre cotas por parte de todos os estudantes. Após a explicação da política de cotas pela professora responsável pela turma, 53% dos alunos afirmaram serem a favor das cotas e 47% de posicionaram contrários.
Guimarães (2003) ajuda a entender a dificuldade de os alunos se declararem como negros abordando a desvalorização estética e histórica do povo negro, propagada mediante a visão recorrente dos negros em situações desfavoráveis e de escravidão, sem levar em consideração sua participação na ciência, letras, artes, comércio, indústria etc. Verrângia e Silva (2010) defendem a valorização de personalidades africanas e afrodescendentes que contribuíram para a construção da Ciência, ampliando a chance de que os alunos negros se sintam representados de maneira positiva.
Ensino
Nesta categoria reunimos todos os trabalhos apresentados no ENPEC de 2003 a 2015 que problematizam o ensino das relações étnico -raciais no ensino de Ciências, Química, Física e Biologia.
EVENTO | ANO | TÍTULO | AUTOR(ES) |
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VIII ENPEC | 2011 | A Bioquímica do Candomblé - possibilidades didáticas de aplicação da Lei Federal 10.639/03 | Moreira e colaboradores |
IX ENPEC | 2013 | Desvendando a Anemia Falciforme - Uma proposta lúdica para aplicação da Lei Federal 10.639/03 | Moreira e colaboradores |
O filme “Jardim das Folhas Sagradas” e a possibilidade de uma abordagem intercultural em aulas de Ciências | Oliveira, Trindade e Queiroz | ||
X ENPEC | 2015 | Raça, classe e etnia: o ensino das ciências na educação básica | Tonácio e colaboradores |
Estudos do racismo científico e da sociedade: perspectivas para a ação em ensino de ciências | Castillo e Andrade |
Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.
Os trabalhos elencados revelam o esforço que tem sido feito em determinadas disciplinas para discutir em alguma medida questões étnico-raciais em sala de aula. Assim, de modo geral, são pesquisas que apresentam propostas utilizadas nas escolas para abordar essa temática, sendo que algumas problematizam o quanto a promulgação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) realmente impactou na promoção do ensino das relações étnico-raciais. Esses trabalhos vão ao encontro do que Verrângia (2009) discute ao mostrar que, apesar das dificuldades, é possível discutir relações no ensino de Ciências.
Destacamos o trabalho de Santos, Siemsen e Silva (2015), que discute o racismo, a influência das pesquisas científicas para a “validação” do racismo e o quanto são necessários esforços para superar o racismo científico impregnado no ensino das Ciências. Dessa forma, é estabelecida uma convergência desta pesquisa com a de Oliveira (2003), que enfatiza que os conhecimentos produzidos pela biologia molecular invalidam todos os argumentos utilizados pelos racistas e, portanto, a própria ciência precisa se retificar. Todavia, ao mesmo tempo, é imprescindível destacar que ainda que sejamos todos iguais biologicamente, as condições de acesso à saúde, à educação e à cultura, entre outros, não é a mesma para as diferentes etnias.
Formação de professores
Dos trabalhos encontrados no ENPEC três eram sobre formação de professores: dois com enfoque na formação inicial e um na formação continuada. Todas as pesquisas sinalizam que é necessário inserir no processo formativo docente a discussão das relações étnico-raciais, como defende Jesus (2013), que aponta ainda que o cumprimento da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) só será realmente efetivado nas escolas, quando os professores forem formados nessa perspectiva, debatendo sobre conceitos de raça, racismo, diversidade, entre outros.
EVENTO | ANO | FORMAÇÃO DE PROFESSORES | TÍTULO | AUTOR(ES) |
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IX ENPEC | 2013 | Formação inicial | Professores dos cursos de Biologia e a (re)construção da nação brasileira a partir da Lei nº 10.639/03 | Fernandes |
Discutindo questões raciais a partir de uma poesia: uma análise das interações discursivas | Francisco Júnior, Silva e Yamashita | |||
Formação Continuada | Diversidade e ensino de Ciências: formação docente e pertencimento racial | Verrângia |
Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.
Os autores Francisco Júnior, Silva e Yamashita (2013), ao proporem a discussão da temática étnico-racial junto a uma turma de licenciandos em Química, a partir de uma poesia que abordava o tema racismo, demonstraram que essa ação possui potencial para colaborar com o rompimento de práticas discriminatórias. A poesia “Lágrimas de Preta”, de Antônio Gedeão (pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), traz alguns elementos que possibilitam fazer a ligação de alguns conhecimentos químicos e racismo. No entanto, quando o professor formador questiona os alunos para que analisem o poema, todos conseguiram identificar os conhecimentos da Química, mas dos 18 alunos que participaram da pesquisa, apenas um percebeu a possibilidades de discutir as relações étnico-raciais. Para os autores, isso pode estar diretamente associado à ausência de discussões sobre o tema na sociedade e no ensino de Ciências. A nosso ver, uma outra explicação, que não invalida a trazida pelos autores, está relacionada à dificuldade em perceber a inserção da relações étnico-raciais em disciplinas outras que não o Português, a História e as Artes, por exemplo. Assim, concordamos com Rocha e Aguiar (2012), que afirmam que para essa temática ser inserida na formação de professores de Ciências é necessário superar o mito de que só os professores de História e Letras são responsáveis por trabalhar essas questões em suas aulas.
Fernandes (2013) aborda a relação entre o conceito de nação e a Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003) entre os professores de Biologia, abordando a importância das contribuições dos outros povos para a constituição da nação brasileira e a necessidade dessa abordagem no ensino de Ciências. A autora faz uma reflexão sobre o termo nação, o qual define como “uma comunidade política, imaginada, soberana e limitada. Ao pensar na definição de nação como comunidade política, logo vem à mente disputa de poder” (FERNANDES, 2013, p. 2), defendendo que a forma como se entende o que é nação pode privilegiar a abordagem da história de alguns grupos e excluir a de outros, ou contar de maneira equivocada como aconteceu e acontece com a História da África e dos afrodescendentes. A autora considera ainda, que a Lei nº 10.639/03, além de promover a História da África e dos afrodescendentes, favorece também a discussão sobre relações étnico-racial, e o combate ao racismo.
Em outro trabalho, Verrângia (2013) fez um estudo empírico cujo objetivo foi trabalhar o papel do pertencimento étnico-racial de docentes brasileiros e estadunidenses de Ciências e Biologia mediante processos educativos por eles vividos. O autor afirma que a prática docente pode ser compreendida como objeto de estudo sobre a discussão das relações étnico-raciais no entendimento das experiências vivenciadas pelos professores. Destaca ainda que “Os/as professores/as de Ciências têm de envolver-se no processo de expor ideologias racistas e desafiar sua própria prática, muitas vezes racista” (VERRÂNGIA, 2013, p. 7). O autor fala que o pertencimento racial interfere na prática pedagógica, porque para que a plena cidadania seja alcançada é necessário o envolvimento com as lutas por equidade travadas dentro dos grupos étnico-raciais.
Atualmente a formação de professores deve ter o objetivo de abordar temas sociais e não apenas conceitos específicos de determinada área do conhecimento. Partindo desse princípio, os processos formativos docentes devem se fundamentar na perspectiva da cidadania e, nesse contexto, é necessário abordar as relações étnico-raciais.
Material didático
Cinco trabalhos discutiram o livro didático, relações étnico-raciais e ensino de Ciências (área de Biologia), sendo três publicados em 2013, um em 2007 e um em 2015. Verrângia (2009), em sua pesquisa, mostrou que os professores não se sentem preparados para trabalhar essa temática em suas aulas, e um dos fatores seria a falta de material adequado, entre eles o livro didático é sempre citado. Outro aspecto sinalizado pelas autoras é que os negros pouco aparecem nos livros didáticos, e quando isso acontece, normalmente estão associados a lugares sociais desfavorecidos.
EVENTO | ANO | TÍTULO | AUTOR(ES) |
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VI ENPEC | 2007 | Raças biológicas e “raças humanas” em livros didáticos de Biologia | Stelling e Krapas |
IX ENPEC | 2013 | Articulação entre conhecimento biológico e cultura em livros didáticos: o que se ensina com a Biologia | Silva e Silva |
Estudos de racismo em livros didáticos e perspectivas para investigar racismo científico em livros de ciência | Castillo | ||
Dificuldades na aplicação de materiais Didáticos digitais que trabalham assuntos estudados pela Química em conformidade com a Lei nº 10.639/03 | Santos, Rodrigues Filho e Amauro | ||
X ENPEC | 2015 | Articulando Química, questões raciais e de gênero numa Oficina sobre Diversidade desenvolvida no âmbito do PIBID: análise da contribuição dos recursos didáticos alternativos | Santos, Siemsen e Silva |
Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.
A pesquisa de Silva e Silva (2013) destaca um processo de tendência para a homogeneização cultural, evidenciando como o processo de globalização tem proporcionado mudanças sociais que valorizam a cultura ocidental. Para nós, esses dados ratificam a necessidade de superar a centralização da cultura europeia, que não permite que se tornem visíveis os conhecimentos científicos de matriz africana. Além disso, as autoras defendem que “ao pensarmos a proposta de currículo único e a produção dos livros didáticos destinados a atender a todo o território nacional questionamos se a existência desse currículo nacional, de algum modo, não favorece processos de homogeneização” (SILVA; SILVA, 2013, p. 4).
Verrângia (2009), em sua pesquisa com professores brasileiros e estadunidenses, conclui que a maioria desses profissionais utilizam o livro didático como principal recurso. Os professores usam o livro e destacam sua importância, mas afirmam que nada os impede de consultar outras fontes como, por exemplo, a internet. O autor diz ainda que existem assuntos que são inevitáveis de serem apresentados, a exemplo, segundo os professores participantes da pesquisa, da ética, da postura e do profissionalismo, entre outros. Todos os participantes da pesquisa afirmaram que os livros não apresentam adequadamente a população negra, o que evidencia a necessidade de representações positivas sobre essa etnia nos livros didáticos.
Por fim, os dados deste levantamento revelam que além da pouca representatividade dessa temática no ENPEC, somente as disciplinas de Biologia, Ciências e Química têm contemplado discussões sobre as relações étnico-raciais. Tal fato deve ser problematizado porque a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) determina que estas questões devem ser contempladas por todas as disciplinas, e nesse contexto observamos a ausência de pesquisas envolvendo relações étnico-raciais e o ensino de Física.
Considerações finais
O presente artigo trouxe um panorama sobre as discussões da temática étnico-racial, o que é uma contribuição importante para as pesquisas futuras sobre esse tema em razão da carência de trabalhos que nos mostrem em que medida as temáticas envolvendo a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) tem adentrado as instituições educadoras do Brasil.
Outro aspecto importante se refere aos poucos trabalhos sobre as relações étnico-raciais e o ensino de Ciências, indicando a necessidade de mais pesquisas sobre a abordagem das relações étnico-raciais nas mais diversas áreas que envolvem o processo de ensino e aprendizagem. Destacamos a urgência em trabalhos na área de Física relacionados à Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), pois a ausência pode ser um indício das dificuldades que os educadores da área possuem em articular a Física com a temática.